Lado B da Copa: O homem sem pátria que virou capitão e exemplo na França

André Donke, Guilherme Nagamine e Jean Pereira Santos, do ESPN.com.br
Sem mãe aos dois anos de idade, sem pai aos 12 e sem nacionalidade por 20 anos. Rio Antonio Mavuba está na briga para ser convocado pela França para a Copa do Mundo, o que, claro, seria um feito em sua carreira, mas passaria longe, bem longe de ser a grande vitória de sua vida, envolta em superações e um exemplo de solidariedade.

A paixão pelo esporte é algo de sangue. Afinal, seu pai, Ricky Mavuba, fez carreira no futebol africano e foi campeão continental pelo então Zaire em 1974, mesmo ano em que disputou o Mundial da Alemanha. Pela qualidade na bola parada, ficou conhecido como o "Mágico Negro".

Ele encerrou a carreira em Angola, onde conheceu Theresa e formou família. Porém, devido à guerra civil que atingia o país desde 1975 (leia mais abaixo), o casal decidiu fugir da realidade assustadora e partiu do continente em 1984. Nem mesmo a gravidez dela foi um obstáculo.

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LADO B DA COPA
Mavuba não teve pátria por mais de 20 anos; hoje, é francês


Em 8 de março daquele mesmo ano, a mulher deu à luz no barco em que viajavam.

Era apenas a primeira prova vencida na vida de Rio, nome escolhido em homenagem à água que cercava ele e seus pais.

Rio Antonio Mavuba nasceu assim, em meio a águas internacionais e navegando rumo à Marselha, na França, em fuga para longe da barbárie que assolava e parecia sem fim em Angola, terra de sua mãe.

Uma criança sem pátria. 


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Embora pareça, a situação do hoje jogador não é tão incomum. "Hoje sabemos que existem mais de 12 milhões de pessoas apátridas no mundo, o que é lamentável, porque a nacionalidade é um direito fundamental, um direito humano", explicou e opinou ao ESPN.com.br o professor das faculdades de Direito e Relações Internacionais da PUC-SP Pietro Alarcon.

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Francês PSG Lille Mavuba 22/12/14
Capitão, Mavuba ganhou Francês e Copa da França no Lille


Morte dos pais e vida na França

Bordeaux se tornaria a casa da família Mavuba quando o futuro jogador tinha apenas quatro anos. Porém, não por muito tempo para Theresa, que morreria dois anos antes, em 1986. Rio Antonio cresceu e, junto com seus 11 irmãos (homens e mulheres), foi criado sob os cuidados da madrasta.

O pai até sentiu o prazer de ver o futuro volante dar seus primeiros passos no maior time da cidade, mas por pouco tempo. Morreu em 1996, quando seu filho tinha 12 anos e já há cinco estava no Bordeaux.

Não deu outra. Ainda nas categorias de base, Mavuba já era o capitão da equipe, tarefa que a vida lhe ensinou a exercer desde que nasceu. "Você cresce mais rápido e tem um senso de responsabilidade mais cedo", contou o jogador em entrevista ao site da Fifa, em 2012.

No começo de 2004, Mavuba fez sua estreia pela equipe principal do Bordeaux e, a partir de então, tornou-se titular absoluto. Destaque logo em seu primeiro ano com os profissionais, o volante despertou a atenção de duas seleções: República Democrática do Congo (antigo Zaire, terra de seu pai) e França, pela qual seria convocado em setembro. À esta altura, ele já havia capitaneado o time sub-21 do país europeu.

No entanto, Mavuba não poderia jogar o amistoso contra Israel, já que não tinha nacionalidade francesa. Sua história, então, logo correu pela Europa e sua naturalização, após 20 anos na França, foi feita.

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Francês PSG Ibrahimovic Lille Mavuba 22/12/14
Mavuba, 1,71m, não se intimidou e encarou Ibra, 1,95m


"Eu estava irritado. Mas, com sorte, toda a cobertura da mídia sobre o meu passado acelerou o meu caso. Agora, eu sou como todo mundo. Eu perdi um pouco da minha diferença, minha singularidade, mas meu passado segue como parte de mim", afirmou à agência de refugiados da ONU, em 2007.

Com a documentação regularizada, Mavuba estreou pela França e deu sequência à sua boa fase no Bordeaux, onde seguiria até 2007, quando foi negociado por cerca de oito milhões de euros com o Villarreal.

Apesar de todas as difíceis vitórias que teve na vida, Mavuba não conseguiu a adaptação na Espanha. Contratado com grande expectativa, ele pouco atuou e voltou à França seis meses depois com um empréstimo ao Lille. Um semestre mais tarde, acertou em definitivo com a equipe.

O retorno trouxe novamente a sua regularidade em campo. Afinal, titular desde que chegou, em 2008, o volante (sim, de novo) virou o capitão e um dos protagonistas da equipe que conquistou o Campeonato Francês e a Copa da França de 2010/2011.

Hoje um jogador experiente e com 29 anos (completará 30 em 8 de março), Mavuba está nos planos da seleção francesa que disputará a Copa no Brasil. Ao todo, ele entrou em campo nove vezes com a camisa azul e esteve no grupo de Didier Deschamps que jogou a repescagem contra a Ucrânia.

Davi x Golias
Personalidade não falta ao atleta de 1,71m, o que ficou claro em 22 de dezembro de 2013, quando o Lille perdia por 1 a 0 para o Paris Saint-Germain em pleno Parque dos Príncipes. Aos 41 minutos, Ibrahimovic, do alto de seu 1,95m, deu um empurrão em Mavuba, que prontamente reagiu.

Mesmo tendo um faixa preta em taekwondo à sua frente, o 'baixinho', mais de 20 centímetros menor, encarou o sueco. Fez mais. Na frente do árbitro, empurrou o atacante, que foi ao chão. Um cartão amarelo para cada encerrou o entrevero. 

Três minutos depois, Mavuba balançou a rede, empatou o jogo e encerrou por cima a polêmica com o rival - o jogo acabaria com um 2 a 2 no placar.

Ibrahimovic empurrou Mavuba, levou um 'tapa' na cara e foi ao chão - ambos receberam cartão amarelo; veja como foi

Exemplo fora das quatro linhas
Líder dentro de campo, solidário fora dele. Mavuba sustenta um orfanato na República Democrática do Congo chamado "Les Orphelins de Makala". Segundo o site oficial, a instituição, que funciona em um prédio onde o pai do volante morou por muitos anos com seus irmãos, cuida de até 30 crianças.

"Minha prioridade é ajudar os outros", disse o volante na entrevista à Fifa. Tendo sentido na pele a dor de perder os pais ainda jovem, o atleta transformou o baque em um gesto que, certamente, é o maior título de sua vida. "Dê aos órfãos uma chance de viverem como crianças", é a frase que completa a descrição da organização que criou.

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Mavuba
Mavuba fugiu da guerra e nasceu no meio da água


Guerra civil em Angola

A guerra civil em Angola começou oficialmente em 1975. Porém, desde 1962 o país já convivia com conflitos em busca por independência. Em janeiro daquele ano, Portugal, que sofreu a queda do governo militar após a Revolução dos Cravos e via as suas colônias - o que era proibido na época - se libertarem, concedeu a independência à Angola, que definiu 11 de novembro como data para eleições. Até lá, o país teria um governo provisório.

Três movimentos de libertação almejavam a presidência: o Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União pela Libertação Total de Angola (Unita). A luta pelo poder não foi política e, sim, na base da violência.

Em poucos meses, a guerra civil se instaurou de vez e foi influenciada pelo panorama mundial. Afinal, o MPLA, que era socialista, acabou apoiado por União Soviética e Cuba. Já o Unita teve o suporte dos Estados Unidos e a África do Sul, então dominada pelo regime do apartheid.

As eleições chegaram, e o MPLA venceu. O confronto, no entanto, seguiria da mesma forma, e foi justamente neste cenário de guerra que o país se encontrava quando a família de Mavuba deixou o continente.

Em 1992, uma nova votação indica outra vitória do MPLA - algo não aceito pelo Unita. Assim, a quantidade de sangue derramado aumentou.

"O período mais violento foi de 1992 até 1997. A Unita, até então, atuava mais nas áreas rurais. A partir de 1992, ela vai para Luanda, e a guerra passa a um cenário urbano", declarou o professor do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcelo Bittencourt, em entrevista ao ESPN.com.br.

No início do novo milênio, a Unita perdeu força e já não ia mais à luta armada. Em 2002, seu líder, Jonas Savimbi, foi morto, e o tratado de paz acabou assinado. Em quase quatro décadas de conflito, mais de 500 mil civis morreram.

A seção Lado B da Copa tem como objetivo contar histórias ligadas ao Mundial que ultrapassam os limites do campo e da bola e terá 18 edições, sempre com uma novidade a cada terça-feira até 10 de junho, a dois dias da abertura da Copa.

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