Racha, logística, 'mala suerte'... O time de erros que afundou a Espanha

Thiago Arantes, de Barcelona, para o ESPN.com.br
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espanha eliminada
Espanha eliminada: na falta de um motivo central, todos os motivos do mundo

Apontar o motivo central do fracasso da Espanha na Copa do Mundo de 2014 é tarefa difícil, quase impossível. Mas declamar uma coleção de razões para o fiasco da campeã do mundo de 2010 ainda na primeira fase é muito mais fácil.

A Espanha não caiu por um motivo, apenas. Nem por dois, três, quatro. Um jogo dos sete erros talvez não bastasse. A coletânea que constrói a anatomia da tragédia poderia ser elencada em uma lista de sete pecados capitais, ou de dez mandamentos que os espanhóis não cumpriram.

Talvez dez ainda fosse pouco.

Que tal, então, escalar, como em um time, 11 razões que fizeram da passagem dos espanhóis pelo Brasil um suplício, um carma, uma viagem da qual nenhum jogador terá muitas saudades?

Pois a seleção do fracasso espanhol poderia ser, então: Logística; Desgaste, Convocação, Falta de Fome e Racha; Estilo, Descontrole e Amistosos; Receio, Ambiente e Mala Suerte.

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Técnico da Espanha, Vicente del Bosque, espera pela irrigação no CT do Caju
Del Bosque em Curitiba: erro de estratégia

Logística

Foi um dos primeiros erros da Espanha. Na Copa das Confederações, em 2013, a equipe sofreu no Recife: campo de treinamento distante, horas dentro de ônibus, hotel em uma região central - e toda a polêmica de prostitutas nos quartos - e pouca privacidade para os jogadores.

O antídoto, para a Copa do Mundo, foi hospedar-se em Curitiba, no CT do Atlético Paranaense. Longe do centro da cidade, com mais privacidade... Mas também distante do clima da Copa.

Enquanto holandeses e alemães faziam a festa com cariocas e baianos, os espanhóis não sentiam-se parte do Mundial. Nada relacionado diretamente à cidade, mas ao fato de eles não terem se integrado à população local.

Mais do que isso: a temperatura média de Curitiba girava em torno de 10 graus; e, nas duas primeiras partidas, os espanhóis jogaram em Salvador e no Rio, sempre com temperaturas acima dos 25 graus. A escolha foi duramente criticada pela imprensa espanhola. E não só por elas: nos bastidores, atletas também se queixaram.

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Casillas e Sérgio Ramos: decepção espanhola e cansaço
Casillas e Sérgio Ramos: decepção espanhola e cansaço

Desgaste

O bom desempenho de Real Madrid e Atlético de Madri na temporada custou caro à seleção. Jogadores dos dois times chegaram à Copa fisicamente exaustos - alguns deles, como Diego Costa, tiveram de lidar com lesões em sequência.

Mas eles não foram os únicos. Jogadores do Barcelona também terminaram a temporada lesionados e/ou muito desgastados fisicamente. Jordi Alba, por exemplo, teve as lesões mais graves da carreira na temporada; Piqué parou por mais de um mês.

Na hora da Copa do Mundo, faltou ritmo de jogo a alguns, enquanto outros queixavam-se justamente do contrário: excesso de partidas nos meses anteriores.

Convocação

A lista final de Vicente del Bosque, que parecia indiscutível quando foi anunciada, no começo de junho, passou a ser questionada ainda durante o segundo tempo da goleada por 5 a 1 diante da Holanda.

Os dois volantes - Xabi Alonso e Busquets - não estavam bem, e a dupla de zaga, formada por Piqué e Sergio Ramos, também não. Logo, nomes como Gabi, Alberto Moreno e Dani Carvajal começaram a ser pedidos pela torcida e pela imprensa.

No ataque, Vicente del Bosque prescindiu de Llorente, centroavante de ofício, para levar Fábregas, que poderia atuar como falso 9, mas foi usado em apenas 10 minutos na campanha.

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Xabi Alonso concedeu entrevista coletiva neste domingo
Xabi Alonso falou demais; ninguém gostou

Falta de fome

As palavras de Xabi Alonso depois da derrota por 2 a 0 para o Chile foram duras. "Parece-me que faltou fome ao time", disse o meio-campista. Alguns companheiros revoltaram-se com a frase, notadamente Andrés Iniesta - um dos poucos que se salvaram na campanha - e Diego Costa.

Os dois, sobretudo, ficaram indignados porque as palavras do volante generalizaram todo o grupo, como se todos eles estivessem sem disposição para correr e lutar na Copa do Mundo.

Após a eliminação, começaram a voltar à tona declarações como a de Casillas, após a conquista da Champions League pelo Real Madrid. "A décima é um número redondo, importante, maior do que uma Copa do Mundo", disse o goleiro, que teve atuação muito ruim no Mundial.

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Palavras de Alonso não agradaram a Iniesta
Palavras de Alonso não agradaram a Iniesta

Racha

No vestiário, o clima pesou. Xabi Alonso nunca foi unanimidade entre os companheiros, alguns o classificam como "intratável". Mas a relação profissional sempre foi protegida pelas boas atuações do volante e por sua discrição ao comentar as derrotas.

Com os comentários após a queda diante do Chile, o volante passou a ser isolado pelos companheiros. Antigos grupos, que pareciam diluídos nas vitórias, voltaram a se formar.

E até mesmo a relação dos jogadores com o treinador ficou ruim. Exemplo maior foi o de Cesc Fábregas, que estava - no julgamento de Vicente del Bosque - fazendo corpo mole em um treino. O técnico tirou o colete do jogador, que não escondeu sua insatisfação.

Diego Costa foi outro que teve problemas com o racha no vestiário espanhol. Recém-chegado ao grupo, ele encontrou no zagueiro Sergio Ramos seu maior amigo no elenco. Mas teve jogador que não aprovou a convocação do brasileiro.

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Xavi, símbolo do tiki-taka que naufragou
Xavi, símbolo do tiki-taka que naufragou

Estilo

A Espanha chegou à Copa do Mundo com o estilo mais bem delineado dentre todas as 32 seleções da competição. Mas sem os meios ideais para mantê-lo funcionando a pleno.

A peça central, o meio-campista Xavi Hernández, vinha de temporada abaixo da média no Barcelona. A má temporada do clube catalão como um todo também teve influência. Em um ano no qual o estilo de posse de bola e domínio do jogo não funcionou nem na Liga, nem na Copa do Rei ou na Champions League, não havia muitas maneiras de ele funcionar na Copa do Mundo; Del Bosque, ainda assim, manteve o sistema.

Os volantes - Xabi Alonso e Busquets - que poderiam ajudar o cansado Xavi na função de controlar a posse de bola, não conseguiam dar a saída de jogo que a Espanha precisava.

E, sobretudo, a inclusão de Diego Costa na equipe tirou a característica tática dos atacantes anteriores. O brasileiro, que jogava em um esquema completamente diferente no Atlético de Madri, caiu de paraquedas em um time que não era previsto para ter um jogador como ele.

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Jordi Alba ameaçou arrancar a cabeça de um jornalista na zona mista em Curitiba
Alba ameaçou arrancar a cabeça de um jornalista

Descontrole

A seleção da Espanha e a imprensa do país viveram uma relação de amor inabalável nos últimos 6 anos. O episódio com mulheres no hotel, na Copa das Confederações, foi transformado em mentira pela mídia espanhola, mesmo diante de evidências policiais.

Os jogadores sempre foram bajulados, os jornalistas cobriam jogos com a camisa da seleção, as críticas eram brandas, quase inexistentes.

Na Copa do Mundo no Brasil, a situação saiu de controle pela primeira vez. Depois da goleada para a Holanda, a mídia ainda contemporizou. Mas a queda definitiva, diante do Chile, fez eclodirem as críticas.

Nem todos jogadores reagiram bem, mas os mais experientes souberam lidar. Outros, mais jovens, como o lateral-esquerdo Jordi Alba, extravasaram. Após a vitória por 3 a 0 sobre a Austrália, ele ameaçou um jornalista do diário AS. "Vou arrancar sua cabeça", disse.

Amistosos

Na reta final para a Copa do Mundo, a Espanha disputou quatro amistosos. Apenas um deles contra uma equipe de primeiro nível, a Itália, no Vicente Calderón. Os outros três foram contra África do Sul, Bolívia e El Salvador.

Mas as críticas aos amistosos vêm de antes. Desde que foi campeã mundial, em 2010, a seleção espanhola passou a fazer uma espécie de tour - como a seleção brasileira - jogando contra adversários de pouca expressão. Na lista, entraram seleções como Panamá, China e Haiti.

Outro movimento criticado pela imprensa espanhola foi a viagem a Washington, no período de preparação para a Copa. Ali, os espanhóis fizeram seus últimos amistosos, deixando a chegada ao Brasil para a última hora. Uma escolha que foi avaliada como um erro da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF).

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Vicente del Bosque, técnico da Espanha, antes do jogo contra a Austrália
Del Bosque teve medo de arriscar e não mudou

Receio

A opinião é de jornalistas que cobriram a seleção da Espanha em Curitiba, mas também de jogadores que fizeram parte da campanha: faltou ousadia a Vicente del Bosque. Antes e durante a disputa da Copa do Mundo.

Sobretudo por uma coisa: receio de mexer em uma equipe vencedora e com 23 egos a serem administrados.

A falta de ousadia passou pela manutenção na lista de convocados de jogadores que não estavam bem ou não mostravam tanta vontade de disputa o Mundial. E continuou após os 5 a 1 para a Holanda, no primeiro jogo.

Del Bosque mexeu no time - tirou Piqué e Xavi - mas esperava-se, dentro do vestiário inclusive, que ele mexesse mais. E, além disso, que fizesse uma escolha contundente, ou por manter o estilo, por mudá-lo completamente.

No fim, não houve mudança drástica; nem o retorno ao estilo 100% espanhol. E os campeões do mundo, tentando encontrar um meio-termo, perderam para o Chile e foram eliminados da Copa.

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Torres e Diego Costa podem, enfim, jogar juntos na Espanha
Diego Costa só fez aumentarem as vaias

Ambiente

Desde a Copa das Confederações, em 2013, os espanhóis encontraram um ambiente hostil em solo brasileiro. No torneio do ano passado, eles foram vaiados em todos os jogos, ora pelo estilo de jogo "chato" - como contra o Uruguai 0 -, ora por enfrentarem um time muito mais fraco, como o Taiti, ou pelo motivo óbvio da final contra o Brasil.

Fato é que os jogadores levaram de volta para seu país uma impressão ruim da torcida brasileira. Alguns deles deixaram isso claro durante entrevistas no período entre as duas competições.

Na Copa, a animosidade entre os espanhóis e a torcida brasileira ganhou outro componente: a presença de Diego Costa. O atacante, que optou por defender a Espanha após conseguir sua cidadania, foi o jogador mais vaiado de toda a Copa do Mundo, nos três jogos.

Se a torcida não atrapalhou decisivamente a seleção da Espanha, certamente ela também não ajudou nem um pouco.

‘Mala Suerte'

Diante de tantos fatores, falar em sorte chega a parecer simplório. Mas os espanhóis não puderam nem contar com o destino para ajudar-lhes na Copa no Brasil. Qualquer mínima ajuda do acaso lhes foi negada desde o começo. A famosa "mala suerte".

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Austrália, rival mais fácil, ficou pro final
Austrália, rival mais fácil, ficou pro final

O sorteio, por exemplo, colocou a equipe não apenas no caminho da Holanda - atual vice-campeã mundial - como do Chile, com uma geração inspirada e de muita qualidade técnica e obediência tática. Mais do que isso, duas equipes comandadas por treinadores dos melhores do mundo, Louis van Gaal e Jorge Sampaoli.

Há, ainda, um outro fator: a Austrália, o rival mais fácil, só foi enfrentado pelos espanhóis na última rodada. Há quem diga que se fosse o contrário...

E, por fim, existe a famosa bola de David Silva, contra a Holanda, quando o placar ainda marcava 1 a 0 para a Espanha. Dez em cada dez espanhóis dizem que "se aquela bola entra...".

Mas no futebol, o "se" não joga. E, se tivesse jogado nesta Copa, seria sempre contra a Espanha.

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