MUSEU PORTÁTIL *
Sabine Righetti
Criador do Museu Casa do Botão,
o artista plático Hélio Leites fala sobre a arte que pulsa sem
estar entre paredes
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O
ministro da Cultura Gilberto Gil descreve, no relatório da Política
Nacional dos Museus (gestão 2003-2004), diversos tipos de museus, entre
eles: os grandes museus das capitais, os pequenos museus do interior e os
museus portáteis. O importante é que estejam vivos, que
pulsem, consagrando o jogo de tradição. Assim funciona
o Museu Casa do Botão, criado em 1984 pelo ex-bancário e artista
plástico Hélio Leites e sediado oficialmente em Curitiba (Paraná),
apesar de não ter um prédio fixo.
O
Museu está vivo porque ele e Hélio Leites se misturam. Ele é
portátil, cabe em uma mala, vai onde o artista for e entra em qualquer
casa, ou qualquer outro museu. Com a obra, as cores e as criações
de Hélio Leites é possível visitar sentimentos, conhecer
literatura, discutir valores, educar, emocionar, por meio de objetos feitos
a partir de lixo. É possível conhecer a história da humanidade
nos botões pendurados em roupas que são denominadas por Leites
de "parangohélicos" termo que se refere aos parangolés
criados pelo artista plástico brasileiro Hélio Oiticica, na
década de 1960. A obra de Oiticica, polêmica para a época,
inaugurou uma nova visão sobre a arte, em que o visitante interativo
passa a fazer parte da obra.
A reportagem da Patrimônio esteve na sede do Iphan, no Rio de Janeiro, para entrevistar com Hélio Leites. E, em uma longa conversa, foi possível sentir o pulsar do Museu da Casa do Botão, vivo e bem na nossa frente.
Patrimônio - Como surgiu o Museu Casa do Botão?
Hélio Leites - Tudo começou quando eu vi um botão
no meio da rua, perdido, sozinho. Resolvi dar atenção a ele,
resolvi juntar mais botões, comecei uma coleção. Todo
mundo que me conhecia, me entregava um botão. A minha coleção
está aumentando a cada dia. E essa é justamente uma das definições
de museu: uma coleção. Por isso, resolvi criar o Museu Casa
do Botão, em 1984. Ele surgiu em São Paulo, onde eu morava na
época. Depois fui para Curitiba e o museu foi comigo. Essa é
a vantagem: eu sou o cavalo do museu, quando o coloco nas costas, o levo e
ele me leva.
O nome é idéia da teatróloga Renata Pallotini: já
que o museu não tem uma casa, ele leva a casa no nome (risos). Ele
visita a casa dos outros, visita os outros museus. Não tem sede, não
tem goteira, não tem dinheiro. Ele viaja comigo, ele se mistura comigo,
ele se mistura com os visitantes. É uma mala, que eu levo, abro, mostro,
experimento e que as pessoas experimentam também. A idéia é
levar o museu para onde eu for e os visitantes participam. Na verdade, não
existem visitantes no Museu, mas existem "visitados".
Patrimônio - Mas por que trabalhar justamente
com botão?
Hélio Leites - Experimente desligar o botão! O mundo
não funciona sem botões. Tudo tem botão, tudo pode ser
um botão, todo mundo se abotoa. Agora, com as novas tecnologias, tudo
liga e desliga em botões. A Terra é um grande botão.
O umbigo, para os orientais, é um botão de conexão com
o mundo externo. O botão surgiu no Egito antigo e ainda hoje está
no peito das pessoas, perto delas, em todo lugar. E ninguém vê.
E ainda dizem que os botões vão acabar, imagine... nem que todo
mundo usasse velcro (risos).
É possível contar a história da humanidade por meio de botões: existe botão de osso, de côco, botão do ecologista, do funcionário público. Eu apenas reúno todos os botões nos parangohélicos e os levo comigo. Também faço botões de papel adesivo e os distribuo. Hoje em dia ninguém dá nada para ninguém, eu dou esse botão-adesivo para as pessoas se lembrarem de se presentear. Um desses botões-adesivos que eu faço tem o desenho de um pinheiro. Já que o governo não repinheira o Paraná, eu repinheiro com a minha arte... São mensagens. Uma vez encontrei uma professora que tinha vários botões que eu distribuo colocados em um abajur. Ela me disse que o abajur era a última coisa que via antes de dormir, ao apagá-lo. Olha a ligação que eu e ela estabelecemos!
Eu também trabalho com lixo, com aquilo que é desprezado pelos homens, com aquilo que não tem mais valor. Rolhas, latas, madeira, restos de material entalhado. Eu dou valor ao lixo. Eu costumo dizer que não transformo o lixo, mas o transtorno. Isso é arte.
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Patrimônio - Quando o Museu Casa do
Botão foi criado, o senhor já trabalhava como artista plástico?
Hélio Leites - Não, eu era bancário, fui bancário
por 25 anos. Sou formado em economia. Mas não posso acreditar que Deus
fez criaturas tão maravilhosas, que riem e que choram, para ficarem
carimbando cheques devolvidos, como eu fazia. Eu precisava me expressar de
alguma maneira e a criação do Museu foi a melhor maneira que
encontrei para isso. Enquanto eu era bancário, pintava quadros em acrílico,
grandes quadros, e não podia levá-los comigo. Hoje eu posso.
Patrimônio - Sua arte e sua concepção de museu são
inovadoras. Elas são bem recebidas pelo público?
Hélio Leites - Nós condenamos os grafiteiros, mas não
condenamos as pinturas dos homens das cavernas. Toda forma de expressão
pode ser bem ou mal recebida, dependendo do contexto. Eu não saio pela
rua vestindo o museu (os parangohélicos), mas quero que
as pessoas vistam quando visitam o museu. Tem gente que diz que é surrealismo.
Eu gosto de chamar de hiper-realismo é difícil classificar
as coisas, difícil classificar a arte. Afinal, o que é arte,
o que é ciência, o que é teatro? Pode ser tudo uma coisa
só.
A minha arte é bem recebida especialmente pelas crianças, que são constantemente reprimidas pela nossa educação. Não mexa, não encoste, não toque, não quebre. No Museu Casa do Botão é diferente: as crianças brincam, encostam, tocam, vestem... Elas têm a experiência do toque, do tato. E se quebrarem, eu conserto.
Patrimônio - Então existe um potencial
educativo nessa interatividade?
Hélio Leites - Certamente existe. Por meio da minha arte, feita
basicamente a partir de lixo e daquilo que as pessoas desprezam, é
possível refletir sobre muitos assuntos. Sobre o próprio lixo,
por exemplo. Já teve uma criança que fez um objeto a partir
de uma caixa de fósforos da mãe depois que ela viu um objeto
meu, feito a partir de fósforos. A minha arte tem cor, tem poesia.
As crianças se encantam, entram em estado de graça. As crianças
podem aprender literatura, ecologia, conceitos do esporte, podem discutir
valores, sentimentos, tudo através da arte. O Museu Casa do Botão
tem participado de projetos educativos no Paraná, faz visitas a escolas.
O museu vai até a escola. Essa é a graça. Hoje em dia
as professoras estão abandonadas nas escolas, com uma responsabilidade
enorme nas costas. A participação de um projeto como esse numa
escola pode ajudá-las bastante a complementar a educação,
suscitar idéias...
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Patrimônio - Alguns personagens são
recorrentes na sua obra, como o ratinho branco e alguns santos (em especial
Santo Antônio e São Francisco) . Por quê?
Hélio Leites - O rato aqui é um rato de biblioteca. É
um rato que lê, que segue o caminho da sabedoria, que gosta de descobrir
as coisas. Mas o rato é também uma figura recorrente no imaginário,
se ele fez a felicidade do Walt Disney, fez a felicidade do Silvio Santos
e por que não fazer a minha? (risos). Já os santos estão
aqui por causa dos ensinamentos. O São Francisco, por exemplo, ensinou
a riqueza da pobreza. Quer ensinamento mais bonito que esse? E por que não
passá-lo por meio da arte?
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Patrimônio
- E como conhecer o Museu Casa do Botão?
Hélio Leites - O museu está sempre circulando e sempre
varia a sua forma de atuar. Todos os domingos, estamos na Feira de Curitiba,
no setor histórico. Vamos a shows, a lançamentos de livros.
Em agosto, estaremos numa exposição do Museu do Folclore, em
Santa Catarina. E assim vai. Todos são bem recebidos.
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* Publicado originalmente em http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=185
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