October 29, 2015
NAIR BENEDICTO >onde o coração e a razão se encontram

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Autora do compêndio “The World History of Photography” (Abbeville Press 1984) - um dos maiores estudos sobre a fotografia mundial - a historiadora americana Naomi Rosenblum lançou em 1994 uma edição especial, “A History of Women Photographers” (Abbeville Press) onde reuniu cerca de 240 fotógrafas, entre elas Julia  Margaret Cameron(1815-1879), Susan Meiselas, Tina Modotti (1896-1942) e Cindy Sherman. Nesta lista seletíssima incluiu também o nome da paulistana Nair Benedicto.

Nascida em 1940, Nair Benedicto não está no livro por acaso. Também, ser relacionada numa edição tão peculiar faz justiça a um trabalho desenvolvido há quase quarenta anos, onde o cerne é a condição da mulher brasileira. Não precisa muita explicação para entender a dimensão do tema, assim como é desnecessário comentar o que é ser uma fotógrafa no Brasil. Ainda mais, uma fotojornalista dedicada a temas sociais.

Apenas para se ter uma idéia, na Coleção Pirelli-MASP de fotografias, uma das mais importantes do país, cerca de 300 fotógrafos, pouco mais de 40 são mulheres. Interessada na imagem em movimento, a fotógrafa se aproximou primeiro da Televisão. Formou-se nesta especialidade pela Universidade de São Paulo, em 1972, na segunda turma da recém criada Escola de Comunicação e Artes, ECA. Entre os seus contemporâneos, Suzana Amaral, Djalma Limonge e José Possi Neto, futuros criadores no cinema e teatro. Mas, a fotógrafa relembra mesmo com saudade o ano que passou na Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP, em São Paulo, onde foi aluna do filósofo checo Vilém Flusser (1921-1991) e do escritor e crítico pernambucano João Alexandre Barbosa (1937-2006).

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Flusser criou em 1967 o curso de “Comunicação e Humanidades” na FAAP. Segundo o crítico e professor Rubens Fernandes Junior, diretor da Faculdade de Comunicação da entidade, “O curso criado por Flusser foi o precursor do formato atual das escolas de comunicação. A proposta de diferentes habilitações foi criada por ele e depois seguida pelas demais, inclusive pela USP”. Cursos à parte, o filósofo fez a cabeça de muitos pensadores que hoje discutem fotografia e suas idéias se mantém quentíssimas em meio aos mornos pensadores da atualidade. A fotógrafa credita a paixão pela discussão e a literatura aos professores. “A Suzana Amaral filmou muitas aulas do Flusser” conta.

No início da década de 70, bem longe dos softwares de hoje, imperavam as projeções com áudio. Foi por aí que Nair Benedicto se enveredou com a fotografia, criando a empresa Alpha Comunicações. “Na empresa  fazíamos basicamente audio-visuais corporativos. Entre os nossos clientes, empresas importantes como a Olivetti!” Conta a fotógrafa. “A gente fazia  apresentações com vários projetores! Era o máximo naquela época! Dois, quatro, oito projetores de slides simultâneos, com fusões e outros efeitos”.

Com esta mesma mídia, Nair Benedicto começa a plantar os fundamentos da sua fotografia exercidos até hoje. Com o áudio-visual “O prazer é nosso”, estreou como autora em 1978, numa das reuniões anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC. Ela relembra: “Foi tão incrível, e tão bem recebido que a projeção durava horas com o pessoal pedindo para ser repetida. As reuniões da SBPC eram uma maneira da gente se expressar politicamente!”. Outra obra nesse formato, “Não quero
ser a próxima”, sobre a violência contra a mulher, circulou pelo Brasil no
circuito alternativo da resistência à ditadura militar, conta Salomon Cytrynowicz, fotógrafo que fez a curadoria de sua mais recente exposição em São Paulo, em setembro de 2008, na Galeria Olido.

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É ainda  na década de 70 que a fotografia impressa começa a tomar o lugar do movimento das projeções e que a fotógrafa reafirma o engajamento político: “Minha família tinha um envolvimento histórico com a política. Minha mãe, Dona Maria, tinha muita simpatia pelo socialismo. Nomes como o de Mariguella (Carlos, 1911- 1969) eram frequentes nas reuniões domésticas. Morávamos no bairro da Liberdade, e na mesma rua estava a redação do Jornal Hoje, ligado ao PCB ( Partido Comunista Brasileiro). Com frequência os jornalistas iam dormir na minha casa! Escondidos!”.

Entre os partidários estava o francês Jacques Breyton (1921-2005)  que seria seu primeiro marido e pai de suas três filhas. Quase 20 anos mais velho que a fotógrafa, Breyton já tinha uma história com a Resistência francesa quando chegou ao Brasil. “ Seus conhecimentos militares eram valiosíssimos”, comenta Nair Benedicto. Ele saiu da França com a patente de Capitão depois de ter recebido medalhas da Legião de Honra, da Resistência e a Cruz de Guerra. Entre outras coisas, foi um dos fundadores do  Partido dos Trabalhadores.

Não há dúvida que o envolvimento intelectual e político não só ajudou a direcionar sua fotografia, bem como a se posicionar num mundo controlado por homens. Também foi responsável pelos nove meses que passou presa em São Paulo. Como estudante da USP foi contemporânea também de outro militante, o ex-ministro José Dirceu. “Só o fato de estudar na USP, já era suficiente para ter a vida vasculhada pela Ditadura” comenta a fotógrafa, que primeiro ficou detida no DOPS (Departamento de Ordem e Política Social ) braço violento dos militares, e depois na Casa de Detenção, que naquela época ficava na Av. Tiradentes, próximo a Pinacoteca do Estado.

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Curiosamente a sua prisão colaborou para que fizesse a opção pela pelo jornalismo impresso: “Queria trabalhar na televisão, mas não conseguia um atestado de bons antecedentes por causa da prisão, e sem isso não podia ser contratada em nenhuma emissora ! Enrolava até o limite, mas na hora de ser contrada…não conseguia. Era dispensada!”. Foi ai que percebeu que, como fotógrafa, podia ser mais independente. Sua primeira produção foi sobre os nordestinos em São Paulo, que daria o mote para os trabalhos que viriam até hoje, e pelos quais ficou conhecida no Brasil e no exterior.

Na opinião do fotógrafo Delfim Martins, contemporâneo de Nair Benedicto no fotojornalismo, “Ela poderia ter vivido confortavelmente, como uma dondoca da classe alta, como muitas que hoje se dizem fotógrafas. Mas, seu trabalho com as mulheres, com as minorias raciais, com os menores, é um dos mais importantes que se tem conhecimento. Isso, sem falar na luta pelos direitos autorais dos fotógrafos”.

O primeiro trabalho importante, um registro da comunidade  nordestina em São Paulo, foi exposto no Forró do acordeonista Mário Zan, uma casa famosa do gênero popular. Como o mundo é muito pequeno, John Szarkowski (1925-2007), curador do Museum of  Modern Art of New York, MoMA,  apareceu por lá (Nair não lembra como)  adorou a exposição e comprou duas imagens para a coleção do museu. Foi a primeira vez que suas imagens foram adquiridas para um acervo. “Curiosamente, muito antes de eu estar em qualquer coleção no Brasil, minhas imagens estavam no MoMA! Hoje as pessoas me encontram e dizem que viram as fotos, mas não sabem que estão lá há anos! Conta a fotógrafa com um sorriso franco, uma de suas marcas mais pessoais.

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Desde esta primeira mostra, Nair Benedicto já tinha seu arquivo de imagens organizado, herança da cultura européia que aprendeu nas constantes visitas a França. Também começa a trabalhar no ainda  incipiente mercado para o fotógrafo independente brasileiro - onde o crédito da imagem era uma coisa impensável para certos editores - e para publicações como o Jornal da Tarde e a revista Isto É. Frequentando as reuniões do Sindicato dos Jornalistas, notou que os fotógrafos mais atuantes não estavam ligados a nenhum grupo.

Nair Benedicto relembra o início  como freelancer: “ Era muito difícil encarar o frila por opção! Mas, esta era a nossa opção ! O sindicato mesmo não tinha nada de avançado, pelo contrário!” . Mas foi em uma destas reuniões que percebeu que existiam outros profissionais que pensavam como ela: “No sindicato conheci o Juca Martins, o Pedro Martinelli, o Hélio Campos Mello!”. Foi então que, em 1979, juntamente com Juca Martins, Delfim Martins e Ricardo Malta, criou a - hoje lendária - Agência F4. Genuinamente brasileira, foi a mais emblemática do gênero e  mesmo depois do seu fim em 1991, ainda é um referência para qualquer fotojornalista que se preze.

O fotógrafo Eduardo Simões, que já foi editor de importantes revistas brasileiras como a GOODYEAR E BRAVO!, e que também fez parte do grupo, credita a sua colega muito do que aprendeu: “Na minha formação como fotógrafo, a Nair está entre meus mestres” . Quem conhece o extraordinário trabalho de Simões pode fazer uma idéia da importância da fotógrafa. Ele vai além: “Se a imprensa teve um papel importante na queda da ditadura, no movimento pela anistia e em outros tantos movimentos sociais, certamente a fotografia teve sua parte nisso. A Nair Benedicto como fotógrafa, como criadora e organizadora da Agência F4 foi fundamental nesse momento da nossa história.”

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Além do trabalho pioneiro e fundamental na F4, Nair Benedicto publica nos anos 80 nas principais revistas femininas do país, como Claudia e Marie Claire. O que hoje parece impossível, era a continuação do seu trabalho seminal: A questão social e, dentro desta, a posição da mulher. “Nestes anos trabalhei com jornalistas incríveis como Lais Tapajós, Carmen Silva, Andréia Peres e a brilhante Regina Lemos (1950-1996) ”. A fotógrafa unia o conteúdo de uma imagem esteticamente elaborada com um engajamento humanitário poucas vezes vistos.

Em 1991, após a dissolução da F4, a  fotógrafa criou a N-Imagens. Juca Martins, com quem foi casada por 10 anos, criou com seu irmão Delfim, a Pulsar Imagens. Ambas agências dividiram parte dos arquivos dos demais fotógrafos. Com a nova agência Nair Benedicto deu continuidade a sua obra mais autoral, com trabalhos importantes produzidos pelo Brasil, entre eles, as comunidades indígenas na Amazônia e Quilombos no Rio de Janeiro, publicados em revistas e jornais como Paris Match, Stern, Time, Newsweek e Le Figaro. Suas fotografias integraram outros acervos como do Smithsonian Institute, em Washington e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, MAM.

Foi ainda em 1991 que a fotógrafa participa da criação do Núcleo dos Amigos da Fotografia, NAFOTO, responsável por exposições antológicas e também por trazer ao Brasil profissionais como Joel Peter Witkin, Josef Koudelka e Joan Fontcuberta, entre outros. Nair Benedicto foi coordenadora do Núcleo até 1995. A proximidade com a imagem “fine art” e a sua formação cultural com raízes européias, alimentam uma estética cada vez mais refinada em seu fotojornalismo, que apesar de nitidamente clássico, passa a estampar as paredes de galerias, museus e colecionadores, provando o poder da imagem documental.

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Pierre Devin, curador e fundador  do  Centre Régional de la Photographie-Nord Pas de Calais, na França, onde foi diretor artístico por mais de 25 anos, incluiu a fotógrafa na coleção “Tiré à Part”, do famoso laboratório parisiense  La Chambre Noire, um  portifólio fine art com dezoito de suas belas imagens foi editado em 2007. Para Devin “ Nair é testemunha engajada da virada do século XX. Fotógrafa pioneira em vários aspectos, ela captou os pontos nevrálgicos de seu país passando da ditadura militar à democracia formal”.  Mas, é realmente no conteúdo que outra definição sua acerta com perfeição : “Sua ética produz uma estética clara e sensual, onde o coração e a razão se encontram”.

Fotografia © Nair Benedicto  Textos © Juan Esteves

* Sábado, dia 7 de novembro, Nair Benedicto abrirá as 11 hs a mostra Por debaixo do Pano, com curadoria de Diógenes Moura. Na ocasião haverá uma mesa redonda com a fotógrafa, o curador e Maria Lucia Mendes. Visitação da mostra até 7 de fevereiro de 2016.

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