Passava da meia-noite quando Carlos Eduardo Sundfeld Nunes invadiu o sítio onde morava Glauco Villas Boas, em Osasco, São Paulo, afim de sequestrar o cartunista. Armado com uma pistola Taurus 765 mm, o agressor afirmava que queria levar Glauco e a família até sua residência para que o desenhista confirmasse à mãe dele que Nunes era Jesus Cristo. De acordo com testemunhas, o artista tentou argumentar para ir sozinho com o invasor, mas houve discussão, e o criminoso fez dez disparos, atingindo o cartunista e seu filho, Raoni, de 25 anos. Tudo aconteceu na frente da mulher e da enteada de Glauco.
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Pai e filho foram levados às pressas para o Hospital Albert Sabin, na Zona Oeste da capital paulistana, mas os dois chegaram mortos à unidade de saúde. O duplo assassinato, que ocorreu em 12 de março de 2010, há exatos dez anos, comoveu o país, gerando consternação entre cartunistas.
Um dos mais célebres quadrinistas do Brasil, expoente de uma geração surgida no início dos anos 80, Glauco tinha a seu favor o humor ácido, veloz, e os traços simples, precisos. Episódios da política, crises existenciais, dramas de relacionamento, ansiedade e depressão eram tratados com sagacidade e estilo próprios. Ao lado de Angeli e Laerte, o desenhista, que criou personagens como Geraldão, Dona Marte e o Casal Neuras, formava a conhecida "santíssima trindade dos quadrinhos" no Brasil. Juntos, eles produziram a série de tirinhas "Los 3 Amigos". A morte brutal e precoce do paranaense, aos 53 anos de idade, foi lamentada por colegas como Chico Caruso, Ziraldo e Adão Iturusgarai, em entrevistas publicadas na edição do GLOBO de 13 de março de 2010.
O assassinato tornou conhecido um lado da vida de Glauco que boa parte do público ainda não conhecia. Em 1997, ele fundou, no mesmo sítio onde morava, em Osasco, a igreja Céu de Maria, que realiza cerimônias do Santo Daime. Hoje liderada pela viúva do desenhista, a artista plástica Beatriz Galvão, a igreja recebe centenas de pessoas todos os fins de semana, em cilma de paz e harmonia. Os cultos giram em torno do chá do Santo Daime. A bebida, obtida a partir da combinação de um cipó nativo da Amazônia com várias plantas, provoca alucinações. Seu consumo é permitido no contexto religioso, mas não é recomendado a pessoas com histórico de transtornos psicológicos graves, como a esquizofrenia.
O próprio Glauco ministrava as cerimônias na igreja em Osasco. De acordo com testemunhas do crime, Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, conheceu a igreja por meio de uma garota por quem ele se apaixonou. O jovem de 24 anos foi a alguns cultos ao longo de um ano, mas se afastou. A família dele contou à polícia e à imprensa que o rapaz voltava muito agitado das cerimônias. Em entrevista ao "Jornal Nacional", na época, o comerciante Carlos Grecchi Nunes, pai de Cadu, disse que o filho já vinha, desde antes, desenvolvendo a esquizofrenia, doença que também acometia a mãe do rapaz. Os parentes o convenceram a parar de tomar o daime, mas, após alguns meses ausente, em janeiro de 2010, o jovem reapareceu na igreja. Semanas depois, cometeu o duplo assassinato.
- No meio do ano passado, ele disse que recebeu uma mensagem de Jesus, de que ele próprio era Jesus. Eu disse 'Eduardo, eu vou ter que te internar'. Ele ajoelhou, abraçou a minha perna e disse 'não quero ficar como minha mãe - contou o pai, na entrevista ao "Jornal Nacional".
Para invadir a comunidade, que fica numa área tranquila e bucólica de Osasco, Cadu rendeu a enteada de Glauco, Juliana, na entrada, cerca de 30 minutos depois da meia-noite. Após cometer o crime, chegou a ficar foragido por dois dias. Na noite de 14 de março, uma equipe da Polícia Federal identificou um carro modelo Fiesta roubado perto da Ponte da Amizade, que liga o Brasil ao Paraguai. Os agentes acharam que aquele seria um procedimento rotineiro, mas, ao ser abordado, o motorista fugiu disparando tiros com a mesma Taurus 765. Era Sundfeld Nunes, tentando sair do país. Ele trocou vários disparos com os policiais e chegou a ferir um deles no braço, mas, no meio da ponte, desistiu e se rendeu, depois que acabou a munição.
Membro de uma família de classe média alta, o acusado já tinha passagem pela polícia, por porte de drogas. Preso após o tiroteio na fronteira, o acusado disse que matou Glauco e Raoni por "ordem de Deus". Ele foi internado no Instituto Médico-Penal do Paraná e, mais tarde, transferido para uma clínica psiquiátrica em Goiânia. O assassino não foi condenado pelas mortes em Osasco porque a Justiça considerou que o criminoso sofria de esquizofrenia e, assim, era inimputável. Em 2013, ele recebeu alta e ficou em liberdade. Porém, em setembro de 2014, o criminoso foi preso e condenado a 61 anos de cadeia pela morte de outras duas pessoas. Em abril de 2016, Cadu foi morto por um outro detento, no Núcleo de Custódia, em Aparecida de Goiânia.
Glauco começou a publicar tirinhas na "Folha de São Paulo" em 1984. Ele estava no auge de sua experiência e talento quando foi assassinado. Muitos colegas lamentaram a morte do desenhista. Na edição do GLOBO de 13 de março de 2010, quando o jornal noticiou o assassinato, uma página inteira foi dedicada apenas aos comentários de cartunistas como Angeli, Chico Caruso, Ziraldo e Adão Iturrusgarai.
- Éramos muitos íntimos e tínhamos uma relação forte. Apesar de distante nos últimos tempos, o nosso elo não havia se quebrado. Ele teve uma participação intensa na minha vida. Perdi uma boa parte da minha história com a morte do Glauco - lamentou Angeli ao site da "Folha".
- É o cara que começou a colocar genitálias desnudas no jornal. Seus personagens são tarados sexuais. E é engraçado porque esse cartunista, todo ligado à contracultura, fundou uma igreja. Ele sempre foi um garoto engraçado. Ao lado do Angeli e do Laerte, e depois do Adão, que entrou como uma espécie de D’Artagnan na história dos três mosqueteiros, ele é criador de personagens fantásticos. Como vieram depois da ditadura, eles têm o faro do humor mais escrachado e não tanto da luta política que marcou minha geração - descreveu Chico Caruso.
- Glauco foi um dos caras mais engraçados que conheci. Seu trabalho também. Era rápido, certeiro, hilário. Ele era genial, o traço inimitável. Como profissional, influenciou toda uma geração de novos cartunistas. Pessoalmente era uma criança, um doce - disse Iturrusgarai.
- Estou no interior da Bahia, e esta notícia me pegou no meio da estrada. Foi um choque. A turma mais velha, como eu o Jaguar, acompanha o trabalho desses meninos desde que começaram a vida. E com a maior alegria, porque eles foram a coisa mais importante que aconteceu depois do Pasquim. Na verdade, acho que eles são o que de melhor aconteceu no cartum brasileiro. São absolutamente geniais, muito melhores que a gente - enalteceu Ziraldo.
- Ele era uma espécie de Henfil reeditado desta geração. O despudor e a capacidade transgressora dele eram muito grandes. Isso tudo além da figura maravilhosa que era, um doce de pessoa, nada a ver com os personagens dele. Vai fazer uma falta enorme - comentou Miguel Paiva.
- Foi Glauco quem mostrou o caminho do humor de comportamento para o Angeli e para o Laerte, uma alternativa ao cartum político que os dois faziam quando o Glauco, o mais pirado e anárquico dos Três Amigos, entrou em cena. Portanto, pode-se dizer que era o cartunista mais influente do Brasil. Não podemos nos dar ao luxo de perder artistas deste porte - lamentou Arnaldo Branco.