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LUTO NOS QUADRINHOS

Há dez anos, o cartunista Glauco e seu filho foram mortos por jovem que dizia ser Jesus Cristo

O cartunista Glauco Villas Boas, em imagem dos anos 90

Passava da meia-noite quando Carlos Eduardo Sundfeld Nunes invadiu o sítio onde morava Glauco Villas Boas, em Osasco, São Paulo, afim de sequestrar o cartunista. Armado com uma pistola Taurus 765 mm, o agressor afirmava que queria levar Glauco e a família até sua residência para que o desenhista confirmasse à mãe dele que Nunes era Jesus Cristo. De acordo com testemunhas, o artista tentou argumentar para ir sozinho com o invasor, mas houve discussão, e o criminoso fez dez disparos, atingindo o cartunista e seu filho, Raoni, de 25 anos. Tudo aconteceu na frente da mulher e da enteada de Glauco.

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Pai e filho foram levados às pressas para o Hospital Albert Sabin, na Zona Oeste da capital paulistana, mas os dois chegaram mortos à unidade de saúde. O duplo assassinato, que ocorreu em 12 de março de 2010, há exatos dez anos, comoveu o país, gerando consternação entre cartunistas.

Um dos mais célebres quadrinistas do Brasil, expoente de uma geração surgida no início dos anos 80, Glauco tinha a seu favor o humor ácido, veloz, e os traços simples, precisos. Episódios da política, crises existenciais, dramas de relacionamento, ansiedade e depressão eram tratados com sagacidade e estilo próprios. Ao lado de Angeli e Laerte, o desenhista, que criou personagens como Geraldão, Dona Marte e o Casal Neuras, formava a conhecida "santíssima trindade dos quadrinhos" no Brasil. Juntos, eles produziram a série de tirinhas "Los 3 Amigos". A morte brutal e precoce do paranaense, aos 53 anos de idade, foi lamentada por colegas como Chico Caruso, Ziraldo e Adão Iturusgarai, em entrevistas publicadas na edição do GLOBO de 13 de março de 2010.

O assassino de Glauco e Raoni, Carlos Eduardo Nunes, de 24 anos

O assassinato tornou conhecido um lado da vida de Glauco que boa parte do público ainda não conhecia. Em 1997, ele fundou, no mesmo sítio onde morava, em Osasco, a igreja Céu de Maria, que realiza cerimônias do Santo Daime. Hoje liderada pela viúva do desenhista, a artista plástica Beatriz Galvão, a igreja recebe centenas de pessoas todos os fins de semana, em cilma de paz e harmonia. Os cultos giram em torno do chá do Santo Daime. A bebida, obtida a partir da combinação de um cipó nativo da Amazônia com várias plantas, provoca alucinações. Seu consumo é permitido no contexto religioso, mas não é recomendado a pessoas com histórico de transtornos psicológicos graves, como a esquizofrenia.

O próprio Glauco ministrava as cerimônias na igreja em Osasco. De acordo com testemunhas do crime, Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, conheceu a igreja por meio de uma garota por quem ele se apaixonou. O jovem de 24 anos foi a alguns cultos ao longo de um ano, mas se afastou. A família dele contou à polícia e à imprensa que o rapaz voltava muito agitado das cerimônias. Em entrevista ao "Jornal Nacional", na época, o comerciante Carlos Grecchi Nunes, pai de Cadu, disse que o filho já vinha, desde antes, desenvolvendo a esquizofrenia, doença que também acometia a mãe do rapaz. Os parentes o convenceram a parar de tomar o daime, mas, após alguns meses ausente, em janeiro de 2010, o jovem reapareceu na igreja. Semanas depois, cometeu o duplo assassinato.

- No meio do ano passado, ele disse que recebeu uma mensagem de Jesus, de que ele próprio era Jesus. Eu disse 'Eduardo, eu vou ter que te internar'. Ele ajoelhou, abraçou a minha perna e disse 'não quero ficar como minha mãe - contou o pai, na entrevista ao "Jornal Nacional". 

O sítio de Glauco onde fica a igreja Céu de Maria, em imagem de 12 de março de 2010

Para invadir a comunidade, que fica numa área tranquila e bucólica de Osasco, Cadu rendeu a enteada de Glauco, Juliana, na entrada, cerca de 30 minutos depois da meia-noite. Após cometer o crime, chegou a ficar foragido por dois dias. Na noite de 14 de março, uma equipe da Polícia Federal identificou um carro modelo Fiesta roubado perto da Ponte da Amizade, que liga o Brasil ao Paraguai. Os agentes acharam que aquele seria um procedimento rotineiro, mas, ao ser abordado, o motorista fugiu disparando tiros com a mesma Taurus 765. Era Sundfeld Nunes, tentando sair do país. Ele trocou vários disparos com os policiais e chegou a ferir um deles no braço, mas, no meio da ponte, desistiu e se rendeu, depois que acabou a munição.

Membro de uma família de classe média alta, o acusado já tinha passagem pela polícia, por porte de drogas. Preso após o tiroteio na fronteira, o acusado disse que matou Glauco e Raoni por "ordem de Deus". Ele foi internado no Instituto Médico-Penal do Paraná e, mais tarde, transferido para uma clínica psiquiátrica em Goiânia. O assassino não foi condenado pelas mortes em Osasco porque a Justiça considerou que o criminoso sofria de esquizofrenia e, assim, era inimputável. Em 2013, ele recebeu alta e ficou em liberdade. Porém, em setembro de 2014, o criminoso foi preso e condenado a 61 anos de cadeia pela morte de outras duas pessoas. Em abril de 2016, Cadu foi morto por um outro detento, no Núcleo de Custódia, em Aparecida de Goiânia.

Primeira página do GLOBO de 13 de março de 2010

Glauco começou a publicar tirinhas na "Folha de São Paulo" em 1984. Ele estava no auge de sua experiência e talento quando foi assassinado. Muitos colegas lamentaram a morte do desenhista. Na edição do GLOBO de 13 de março de 2010, quando o jornal noticiou o assassinato, uma página inteira foi dedicada apenas aos comentários de cartunistas como Angeli, Chico Caruso, Ziraldo e Adão Iturrusgarai. 

- Éramos muitos íntimos e tínhamos uma relação forte. Apesar de distante nos últimos tempos, o nosso elo não havia se quebrado. Ele teve uma participação intensa na minha vida. Perdi uma boa parte da minha história com a morte do Glauco - lamentou Angeli ao site da "Folha".

- É o cara que começou a colocar genitálias desnudas no jornal. Seus personagens são tarados sexuais. E é engraçado porque esse cartunista, todo ligado à contracultura, fundou uma igreja. Ele sempre foi um garoto engraçado. Ao lado do Angeli e do Laerte, e depois do Adão, que entrou como uma espécie de D’Artagnan na história dos três mosqueteiros, ele é criador de personagens fantásticos. Como vieram depois da ditadura, eles têm o faro do humor mais escrachado e não tanto da luta política que marcou minha geração - descreveu Chico Caruso.

Enterro de Glauco e Raoni, na comunidade Céu de Maria, em 13 de março de 2010

- Glauco foi um dos caras mais engraçados que conheci. Seu trabalho também. Era rápido, certeiro, hilário. Ele era genial, o traço inimitável. Como profissional, influenciou toda uma geração de novos cartunistas. Pessoalmente era uma criança, um doce - disse Iturrusgarai.

- Estou no interior da Bahia, e esta notícia me pegou no meio da estrada. Foi um choque. A turma mais velha, como eu o Jaguar, acompanha o trabalho desses meninos desde que começaram a vida. E com a maior alegria, porque eles foram a coisa mais importante que aconteceu depois do Pasquim. Na verdade, acho que eles são o que de melhor aconteceu no cartum brasileiro. São absolutamente geniais, muito melhores que a gente - enalteceu Ziraldo.

- Ele era uma espécie de Henfil reeditado desta geração. O despudor e a capacidade transgressora dele eram muito grandes. Isso tudo além da figura maravilhosa que era, um doce de pessoa, nada a ver com os personagens dele. Vai fazer uma falta enorme - comentou Miguel Paiva

- Foi Glauco quem mostrou o caminho do humor de comportamento para o Angeli e para o Laerte, uma alternativa ao cartum político que os dois faziam quando o Glauco, o mais pirado e anárquico dos Três Amigos, entrou em cena. Portanto, pode-se dizer que era o cartunista mais influente do Brasil. Não podemos nos dar ao luxo de perder artistas deste porte - lamentou Arnaldo Branco.

Quadrinho do cartunista Glauco exposto durante mostra no Itaú Cultural

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