• 07/10/2020
  • GIOVANNA OLIVEIRA | FOTOS Divulgação / Rodrigo Capote
Atualizado em
Liberdade: conheça a história por trás do bairro turístico de São Paulo (Foto: Divulgação)

Liberdade: conheça a história por trás do bairro turístico de São Paulo (Foto: Divulgação)

O bairro da Liberdade, em São Paulo, atrai turistas do mundo inteiro. A região é conhecida por abrigar a maior comunidade japonesa do mundo fora do Japão. Além disso, as feiras, restaurantes, parques e construções características da arquitetura asiática também chamam a atenção das pessoas que passam por este bairro que se destaca no centro da capital paulistana. Entretanto, o que pouca gente sabe é que a região antes era habitada pela comunidade negra e que, ao longo das últimas décadas, parte desta memória foi ocultada.

Nos últimos anos, alguns episódios que ocorreram na Liberdade trouxeram à tona o debate sobre o multiculturalismo da região. De acordo com o jornalista e pesquisador Abilio Ferreira, que estuda a região, esta cadeia de acontecimentos começou em 2016, quando o cantor Aloysio Letra escreveu uma música chamada "Rua da Glória", que fala sobre a história da região. No mesmo ano de lançamento da canção, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP) iniciou o processo de tombamento patrimonial do bairro. Segundo a entidade, a decisão é uma forma de preservar a dimensão sociocultural da história e da paisagem local.

Dois anos depois, em 2018, um empresário chinês demoliu um antigo sobrado de sua propriedade, situado em frente a Rua Galvão Bueno. Entretanto, a demolição e o processo de fundação de um novo edifício no terreno colocaram em risco de desabamento a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, uma das construções mais importantes para a preservação da história do bairro. Além disso, no terreno demolido foram encontradas ossadas de nove pessoas.

O início da Liberdade

Antes mesmo de ganhar o nome Liberdade, quando ainda era conhecida como "Bairro da Pólvora", a região era majoritariamente ocupada por pessoas negras. O que conhecemos hoje por Largo da Liberdade, por exemplo, era antes chamado de largo da Forca, visto que era o local onde escravizados fugitivos eram executados após serem condenados à pena de morte.

"A população negra se encontrava nas fontes públicas, nos chafarizes, nas margens dos rios e nas pontes, lavando roupa e apanhando água para abastecer as casas, ocupando os arredores dos sobrados das elites"

Abilio Ferreira

Além disso, o Cemitério dos Aflitos, construído entre 1774 e 1775, é outro importante ponto para entender a história da região. Situado entre a Rua dos Estudantes, a Rua Galvão Bueno, a Rua da Glória e a Radial Leste, o local a céu aberto era reservado ao sepultamento de escravizados, indígenas, e de condenados à morte na forca. Com a inauguração do Cemitério da Consolação, em 1858, o espaço parou de ser utilizado. Dessa forma, somente a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos ainda está preservada.

Liberdade: conheça a história por trás do bairro turístico de São Paulo (Foto: Rodrigo Capote)

Fachada da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos (Foto: Rodrigo Capote)

Embora as ossadas encontradas no terreno demolido ainda não tenham sido estudadas, acredita-se que são oriundas do cemitério. Isso porque duas possuíam contas de vidro azuis, adereço característico de pessoas adepta de religião de matriz africana.

Outros locais do bairro, como a Paróquia Pessoal Nipo-brasileira São Gonçalo, por exemplo, também reúnem pontos importantes da história da região. O local foi construído pela Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e São Gonçalo Garcia, composta por homens negros e pardos, por volta de 1756. Segundo Ferreira, São Gonçalo Garcia era muito cultuado pela população negra. O santo era filho de uma nativa com um português e morreu no Japão durante uma viagem de evangelização.

Com a extinção da irmandade, em 1893, a igreja foi entregue aos jesuítas e passou por uma série de modificações. Foi somente por volta de 1966, com o crescimento da comunidade japonesa na região, que surgiu a Matriz Paroquial Pessoal Nipo-Brasileira de São Gonçalo, destinada aos descendentes de imigrantes japoneses.

Chegada dos japoneses e resistência negra

No início do século XX, o Japão enfrentou um momento de necessidade de emigração. O país estava superpovoado e se sustentava basicamente por meio de técnicas agrícolas da época, o que limitava a produção ao alimento que era consumido pela população. Dessa forma, era impossível formar estoques para períodos de seca ou guerra.

De acordo com o jornalista, neste período, a ocupação japonesa ocorreu na Rua Conde de Sarzedas, no distrito da Sé. Foi somente após a 2º Guerra Mundial, com o aumento da chegada de imigrantes japoneses no país, que estas pessoas passaram a ocupar as regiões das ruas Galvão Bueno e Estudantes, no bairro da Liberdade.

Neste período, houve um forte processo de resistência negra, marcado pela presença das escolas de samba Paulistano da Glória, na Rua da Glória, entre os anos 1940 e 1980, e Lavapés Pirata Negro, a mais antiga escola de samba paulistana em atividade, fundada nos anos 1930. "Outro fator de resistência é o fenômeno da Frente Negra Brasileira, importante organização com sede na Avenida Liberdade, onde hoje é a Casa de Portugal, com ramificações em todo o estado, em outras localidades do Brasil e até no exterior, que em 1936 chegou a se registrar como partido político, logo extinto pelo Estado Novo", explicou Ferreira.

Memorial dos Aflitos

Após a conclusão das escavações que encontraram as ossadas no terreno demolido pelo empresário chinês, outros acontecimentos na região também incentivaram a criação de um espaço para a preservação da memória negra do bairro. No dia 19 de dezembro de 2018, um grupo de ativistas da União dos Amigos da  Capela de Nossa Senhora dos Aflitos e do Movimento Negro lideraram um ato em protesto contra o abandono da Capela.

No ano seguinte, o Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo iniciou um diálogo sobre a preservação do patrimônio histórico do bairro. Na ocasião, a diretora da entidade, Raquel Schenkman, informou que o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, pretendia adotar três medidas. Sendo elas:

- Desapropriação do terreno do prédio demolido, onde foram encontradas as ossadas
- Trabalhar pela restauração da Capela dos Aflitos
- Promover no local uma intervenção urbanística para referenciar o Sítio Arqueológico

Assim, em dezembro de 2019, o Diário Oficial da Cidade de São Paulo oficializou a criação do "Memorial dos Aflitos" e a desapropriação das áreas situadas entre as ruas Galvão Bueno e Rua dos Aflitos. De acordo com Ferreira, o memorial servirá para trazer outras narrativas à região e mostrar que, além da importante memória japonesa, outros povos também viveram ali. Com isso, o turismo da região também ganhará novas proporções, o que ajudará a fomentar a economia local. 

"O bairro da Liberdade é um bairro diverso. O que nós estamos propondo é um debate amplo entre poder público e sociedade civil para que a gente possa fazer um trabalho de educação patrimonial com a população e com os comerciantes para entender que a diversidade será boa para todos", concluiu o jornalista.