INVERNO DA ALMA (2010)

(Winter’s Bone)

 

Filmes em Geral #83

Dirigido por Debra Granik.

Elenco: Jennifer Lawrence, Isaiah Stone, Ashlee Thompson, John Hawkes, Dale Dickey, Valerie Richards, Shelley Waggener, Garret Dillahunt, Lauren Sweetser, Cody Brown, Cinnamon Schultz, Casey MacLaren, Kevin Breznahan, Sheryl Lee e Tate Taylor.

Roteiro: Debra Granik e Anne Rosellini, baseado em livro de Daniel Woodrell.

Produção: Anne Rosellini, Alix Madigan-Yorkin e Kate Dean.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Tão frio quanto seu título indica, “Inverno da Alma” apresenta de maneira crua e direta a luta de uma garota para proteger sua família, sem jamais apelar para o melodrama como forma de chocar o espectador. Repleto de diálogos adultos e verdadeiros que jamais dão a sensação de pertencer ao roteiro de um filme, o longa dirigido por Debra Granik impressiona justamente pelo realismo e, mesmo apresentando um ambiente deplorável, conquista o espectador.

Em “Inverno da Alma” acompanhamos a jovem de 17 anos Ree Dolly (Jennifer Lawrence), que parte em busca de seu pai quando este sai da cadeia após ser preso por envolvimento na fabricação de metanfetamina e dá a casa da família como garantia do financiamento de sua fiança, desaparecendo logo em seguida. Sem notícias do paradeiro do pai e com dois irmãos e uma mãe doente para cuidar, ela sai em busca de pistas, entrando em conflito com os arredios vizinhos e até mesmo com os seus próprios familiares.

O roteiro escrito pela própria Debra Granik ao lado de Anne Rosellini e baseado em livro de Daniel Woodrell acertadamente foca na trajetória da jovem que busca proteger sua família, sem se importar com detalhes pouco relevantes no desenvolvimento da personagem (como revelar quem assassinou o pai dela ou o destino final de seu tio). Além disso, a narrativa aborda sem rodeios a vida dura daquela região dos EUA, indo diretamente contra a idéia do “país das oportunidades” ao mostrar um ambiente hostil onde os habitantes pouco se importam com a vida alheia, sem por isso transformá-los em personagens unidimensionais justamente por nos apresentar razões para o comportamento de todos eles, acertando ainda ao evitar o maniqueísmo e a generalização barata através dos vizinhos solidários da jovem Ree e do próprio arco dramático do tio da garota.

A melancólica canção que abre “Inverno da Alma” dá o tom da narrativa, nos apresentando aquela região fria e distante das montanhas Ozark, no Missouri, onde o frio parece ter congelado também o relacionamento entre as pessoas, até porque é sempre mais difícil sair de casa e manter uma vida social nestas condições. Pra piorar, todos parecem ter algum grau de parentesco, o que faz a questão “sangue” perder força e obriga a garota a lutar praticamente sozinha contra o silêncio velado daqueles que preferem evitar o envolvimento no caso, evitando também desentendimentos desnecessários com a polícia e com os comparsas do pai dela. Além disso, a suposta traição de seu pai faz com que toda sua família também sofra a rejeição imediata dos moradores locais. Como podemos notar, os problemas do pai complicaram de mais a já sofrida vida de Ree, o que facilita a identificação do espectador com o drama da garota, especialmente porque os problemas que ela enfrenta são reais e passíveis de acontecer com muitos de nós.

Entretanto, o que não é muito comum é o ambiente selvagem e hostil em que ela vive, captado com realismo pela câmera precisa de Granik. Realismo, aliás, que está sempre presente em “Inverno da Alma”, praticamente nos inserindo naquele ambiente, por exemplo, através da aparência desgastada das cabanas de madeira e até mesmo de objetos como os utensílios utilizados para fazer comida. Da mesma forma, a fotografia crua de Michael McDonough aposta em cores frias que refletem a personalidade dos personagens, além de garantir um visual pouco colorido que, auxiliado pelas blusas e tocas dos figurinos de Rebecca Hofherr, transmite ao espectador a sensação térmica congelante do local. Além disso, a fotografia gradualmente deixa o visual iluminado pelo sol para trás e passa a priorizar seqüências noturnas, que conferem uma aura sufocante à narrativa, ampliando a tensão enquanto acompanhamos o desenrolar da busca da garota. Por sua vez, a trilha sonora econômica de Dickon Hinchliffe realça esta atmosfera realista, aproveitando ainda de maneira inteligente (e diegética) as canções cantadas pelos personagens, subindo o tom apenas em momentos pontuais, como quando Ree grita por Thump Milton (Ronnie Hall) enquanto este caminha entre o gado.

Conduzindo todo este trabalho com segurança, a diretora Debra Granik realça as ótimas atuações de seu elenco através do uso constante do close, criando ainda planos interessantes que realçam a aspereza do local, seja através do close-up em objetos ou através dos planos gerais que destacam a região – e é impressionante como a diretora consegue criar planos lindos naquele lugar tão sofrido, como se fossem quadros tristes e belos. Além disso, a diretora constrói cuidadosamente a atmosfera de suspense da trama, reforçada pelos personagens arredios e pouco sociáveis que fazem com que o espectador nunca saiba o que esperar de cada um deles, tornando cada diálogo potencialmente tenso. Contudo, existe uma cena que resume perfeitamente “Inverno da Alma”, quando Ree ensina ao irmão Sonny (Isaiah Stone) como tirar a pele de um esquilo. A frieza do diálogo ilustra claramente o modo racional que a garota enxerga as coisas, mas sob aquela carcaça puramente racional se escondem os mais primitivos sentimentos de defesa da família. Apesar de soar fria, na verdade Ree está apenas preocupada em preparar o garoto para enfrentar o mundo opressivo à sua volta. Estenda este raciocínio aos outros habitantes locais e você entenderá melhor as motivações de cada um deles.

Interpretada de maneira convincente pela ótima Jennifer Lawrence, Ree surge como a irmã mais velha e decidida que, forçada a assumir a casa diante dos problemas dos pais, não hesitará nem por um segundo até que consiga atingir seu objetivo, nem que para isto tenha que sofrer às mais terríveis ameaças. Transmitindo confiança no papel, Lawrence faz o espectador acreditar na personagem e embarcar na jornada junto com ela ao desafiar com autoridade as pessoas mais velhas, o que é muito importante para o sucesso da trama. Além disso, a atriz se sai muito bem em momentos mais sutis, externando sentimentos escondidos sob aquela fachada durona, como na única cena em que surge vulnerável chorando no colo da mãe. Observe também o olhar confuso da garota quando ouve de um sincero soldado a dura realidade sobre sua condição, fazendo-a desistir da idéia de servir o exército e priorizar a defesa da família – o que, ironicamente, era exatamente o que ela buscava ao tentar a inscrição no exército, sem perceber que para isto teria que deixá-los para trás. Ree sabia que não poderia demonstrar fraqueza naquele ambiente hostil, mas ainda assim jamais soa como uma personagem sem sentimentos, o que é mérito da atriz.

Numa cena capaz de assustar o espectador, somos apresentados ao Teardrop Dolly de John Hawkes, o ameaçador tio de Ree que demonstra seu lado explosivo ao segurar com violência o rosto dela. Mas apesar desta introdução assustadora, Teardrop é um personagem fascinante, que começa a demonstrar sua ambigüidade quando aconselha a sobrinha a vender as madeiras antes que perca a casa, completando seu arco dramático quando assume de vez a missão de proteger a garota ao buscá-la num momento crucial da narrativa. Aliás, a captura de Ree por parte dos irritados vizinhos é uma cena surpreendente e tensa, que faz o espectador realmente temer pelo destino da personagem. Da mesma forma, é marcante a atuação de Dale Dickey como Merab, a esposa de Thump Milton, que demonstra compreender o drama da garota, mas deixa claro que não permitirá que esta situação complique sua vida, o que dificulta antecipar o que acontecerá quando ela convida Ree a encontrar os restos do pai.

A tensão chega ao extremo quando o xerife interpretado por Garret Dillahunt para o carro de Teardrop na estrada, iniciando um diálogo lento que nos leva a temer constantemente pela reação deles. Momentos depois, a tensão é ampliada pelo suspeito convite dos vizinhos de Ree, que afirmam saber onde estão os ossos do pai dela. Toda a seqüência, desde a saída do carro, passando pelo barco, o rio congelado, o visual obscuro e o som da serra elétrica nos fazem temer pelo pior, mas a reação da garota ao tocar os braços do pai morto confirma que eles tinham razão – e este momento mórbido chega a ser tocante graças ao fabuloso desempenho de Lawrence. Ao afirmar que “estaria perdida sem o peso dos irmãos nas costas”, Ree evidencia que a luta para proteger a família era tudo que lhe restava naquele local, escancarando a triste realidade de sua vida. “Inverno da Alma” chega ao fim com a imagem de uma garota obrigada pela vida a interromper a adolescência e se tornar a cabeça de um lar, acompanhada dos irmãos que certamente crescerão igualmente arredios, simplesmente porque só assim conseguirão sobreviver ali.

Em suma, “Inverno da Alma” não trata da busca de redenção na relação entre pai e filha. Muito pelo contrário. O que vemos é uma busca seca pela sobrevivência, sem enfeites e sem jamais apelar para o melodrama. Ree precisava saber do paradeiro do pai, não porque sentia falta dele ou algo assim, mas apenas porque precisava desta informação para sobreviver. E é justamente este aspecto cru que chama a atenção, ainda mais quando observamos que a heroína em questão é somente uma garota, que certamente teve seus sonhos e desejos interrompidos de maneira cruel, apenas como consequência do ambiente hostil em que está inserida.

Texto publicado em 20 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira

2 comentários sobre “INVERNO DA ALMA (2010)

  1. augustomerlin 26 março, 2012 / 10:53 am

    Fala Beto, assisti o filme ontem e tenho 2 comentários a fazer além do elogio de praxe para a excelente crítica.

    1 – É interessante notar que mesmo tendo panorâmicas (poucas) o filme nunca mostra um cenário livre de casas ou de resíduos das pessoas que habitam o local, o que mostra como Ree esta presa aquele ambiente

    2 – A luz no começo do filme que passa da janela para iluminar Ree no começo do filme deixa claro, na casa escura, quem é o pilar da família.

    3 – Achei muito boa a cena do sequestro da Ree começar com a caneca de café, já que uma mesma caneca havia sido oferecida anteriormente para a protagonista, o que faz com que ela abra a guarda e não perceba o que esta para acontecer.

    Curtir

    • Roberto Siqueira 20 abril, 2012 / 10:08 pm

      Olá Augusto,
      Valeu pelo elogio e pelo comentário. Adorei suas observações, muito interessantes.
      Abraço!

      Curtir

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.