Emygdio de Barros

Daniely Botega
5 min readJan 15, 2021

O pintor de memórias do ateliê de Engenho de Dentro

Emygdio foi diagnosticado esquizofrênico por volta dos 30 anos, sendo descoberto como artista por Almir Mavignier aos 52.

Emygdio de Barros nasceu em 1895, na Paraíba do Sul, Rio de Janeiro. Era tido como uma criança triste e tímida. Fez curso técnico de torneiro mecânico, posteriormente entrou no Arsenal de Marinha, sendo enviado a França em 1922, onde permaneceu por dois anos. Ao retornar ao Brasil, Emygdio recebeu a notícia de que a mulher que amava estava noiva de seu irmão. A relação do irmão com esta mulher parece ter sido um fato fundamental no que ocorreria a partir de então em sua história.

Ele abandona seu emprego, passando a vagar pelas ruas da cidade até tarde da noite, sem rumo. Apresentando sintomas de esquizofrenia foi internado pela primeira vez no Serviço Nacional de Saúde Mental em 1924.

Retornou ao internamento em 1931, após saber do casamento do irmão. Foi transferido ao Hospital Gustavo Riedel no Engenho de Dentro em 1944. Lá no complexo do Engenho de Dentro em 1946 que Nise da Silveira criou o ateliê de pintura, um espaço de vivência artística livre para os pacientes. Modificando as práticas ocupacionais dos internos. E assim se cruza a história do artista com a médica psiquiatra Nise da Silveira.

O primeiro contato de Emygdio de Barros com o ateliê foi como encadernador, mas lhe foi proposto que pintasse, o que ele logo aceitou. Após 23 anos de internação, foi assim que se deu início o trabalho do artista, que mesclava as paisagens exteriores e interiores da sua vida.

As delicadas pinceladas logo revelaram o seu talento. Ele que desde criança já demonstrava habilidade manual construindo brinquedos, agora encontra uma nova forma de construção.

Rodrigo Naves, ao comparar o colorido de Emygdio com o dos expressionistas alemães, diz que o brasileiro “precisou pagar o preço de satisfazer-se apenas com o encantamento de regiões limitadas da realidade”.

O paciente de pouca conversa, começou a encontrar uma nova forma de comunicação através das suas obras. Conhecido como o pintor de memórias.

Segundo Nise da Silveira, o pintor Almir Mavignier foi o afeto catalisador para Emygdio. Mavignier foi quem deu a ideia do ateliê de pintura no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, e atuou como monitor. Suas obras foram aceitas por artistas como Mário Pedrosa e Abraham Palatnik, que inclusive o visitavam.

Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente

Os espaços vividos nos tempos de encarceramento e de tratamentos desumanos são apresentados por um jogo de cores frias e com poucos elementos simbólicos, mas com grande carga emocional, ao contrário de sua pintura habitual. A motivação para a execução dessas obras é a indignação que invade Emygdio nesse momento. Ele formula então com grande profundidade o problema da internação através de uma linguagem simples. Invoca todo o seu passado de interno e cria imagens em que dá o melhor de sua percepção de espaço vivido. Faz uma pintura chapada, com pouca profundidade, sem movimento, em que traduz o silêncio e as emoções pelas linhas e cores sombrias.
- Glória Chan, 2009.

Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente

Em suas obras Emygdio expressou sua perspectiva de cenários da sua vida, como o hospital, a vida no campo e as oficinas mecânicas, onde inclusive, tentou retomar o trabalho. Chegou a pedir que pudesse retomar sua função de torneiro mecânico no Arsenal da Marinha.

Paisagens rurais também viraram tema de suas telas. Emygdio, após 25 anos de internamento, mudou para o interior indo morar com alguns parentes. Com a falta dos amigos que o estimulavam a continuar a pintar, foi perdendo o interesse.

Emygdio de Barros deixou 3.300 obras, curadas pelo Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro.

Foi internado pela última vez em 1965. Indo para uma clínica geriátrica, onde recebia a visita dos funcionários do museu que ainda o incentivam a pintar, o que se recusava a fazer, afirmando que só voltaria se retornasse ao ateliê do museu. Dizia que “O importante não é só pintar, é ter ideias para pintar. Aqui na clínica eu não tenho ideias para pintar. Só no Museu.” Voltou então a frequentar regularmente o Museu de Imagens do Inconsciente, onde pintou até o seu falecimento, em 5 de maio de 1986, aos 92 anos.

A história de Emygdio faz parte das mudanças no tratamento dos internos em Engenho de Dentro realizado por Nise da Silveira. Trabalho este que legitimou a produção de vários outros sujeitos assim como Emygdio. Fazendo com que os que eram vistos como doentes e incapacitados fossem vistos como capazes de construir algo a partir dos seus desejos, em um espaço livre em que sua comunicação é válida, e o que ele tem a dizer é apreciado e compartilhado. O estímulo proporcionado pelos profissionais do ateliê e dos amigos se mostra importante na história deste artista, assim como na de muitos outros que podem encontrar a sua forma de expressão e legitimação que parece muitas vezes faltar na escuta em saúde mental.

“Emygdio de Barros é talvez o único gênio da pintura brasileira. Um gênio não é pior nem melhor que ninguém. Com respeito a ele não há termo de comparação: um gênio é uma solidão fulgurante, ultrapassa as medidas e as categorias. Não é possível defini-lo em função de escolas artísticas, vanguardas, estilos, metiê. Com relação a Emygdio podemos afirmar que raramente alguma obra pictórica foi capaz de nos transmitir a sensação de deslumbramento que recebemos de seus quadros. A pintura de Emygdio não reflete a experiência humana no nível da sociedade e da história. A ruptura com o mundo objetivo precipitou-o numa aventura abismal, em que o espírito parece quase perder-se na matéria do corpo, afundar-se no seu magma. E é daí, desse caos primordial, que ele regressa, trazendo à superfície onde habitamos, com suas imagens fosforescentes, os ecos de uma história outra, que é também do homem, mas que só a uns poucos é dado viver.”

-Ferreira Gullar

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