Woman at her Toilette, 1875-1880. Image courtesy of The Art Institute of Chicago, Stickney Fund.

DASARTES 134 /

BERTHE MORISOT

A PINTORA IMPRESSIONISTA BERTHE MORISOT ALCANÇOU SUCESSO EM UM PERÍODO NO QUAL SE PRESUMIA QUE AS MULHERES ERAM CAPAZES DE PRODUZIR ARTE APENAS COMO UM HOBBY.  ABORDANDO CENAS INÉDITAS DO COTIDIANO FEMININO, ELA INOVOU COM GRANDE TALENTO EM PINTURAS, DESENHOS E PASTEIS, FICANDO LADO A LADOA COM SEUS COMPANHEIROS “FUNDADORES” DO IMPRESSIONISMO

The Artist’s Sister at a Window, 1869. © National Gallery of Art.

Me parece que Rubens é talvez o único pintor que representou completamente a beleza; o olhar marejado, as sombras das pestanas, a pele transparente, os cabelos sedosos, a graciosidade da atitude… Não deixa de ser justo acrescentar os do século passado que também o fizeram com mais carinho, mas muito charme. Veja a beleza da grande pintura Vênus e Vulcano de Boucher, os retratos de madame de Pompadour de Boucher e Latour, os admiráveis Perroneaus da coleção Groult – e também alguns Mestres ingleses – Reynolds, Romney…

Berthe Morisot (1885-1886)

 

Nesta nota que parece rapidamente escrita apenas para si, Berthe Morisot refez, em idade madura, uma linhagem de Rubens a Boucher e aos pastelistas Maurice-Quentin de La Tour e Jean-Baptiste Perronneau, e também aos mestres ingleses com quem ela se familiarizou mais em Londres. Graças a esse relato, podemos imaginar a arte do século 18 que ela teria visto nas casas que frequentou, em museus e exposições, e tentar discernir como seu conhecimento íntimo das técnicas de pintura daquela época permeava sua obra.

 

O UNIVERSO DE RENDA E SEDA DA INFÂNCIA DE MORISOT

Marie-Joséphine & Edma, 1869/70. © National Gallery of Art.

Durante seu mandato como prefeito, de 1840 a 1852, o pai de Morisot, Edmé Tiburce Morisot, também foi um pioneiro das artes. No departamento de Haute-Vienne, em Limoges, foi responsável pela fundação do Museu de Belas Artes e do Museu Nacional de Porcelana Adrien Dubouché. Ele convocou amigos particulares a doarem suas “pinturas antigas”, e deu o exemplo ao ser o primeiro a doar vários trabalhos, incluindo um retrato de Luís 16.  Membros da elegante sociedade local vivendo “de rendas e seda”, conforme descrito duas gerações depois pela sobrinha de Morisot, Paule Gobillard, seguiram o exemplo e doaram obras, especialmente pinturas do século 18. A história da família de Berthe Morisot está entrelaçada com a arte do século 18 e desempenhou um papel significativo em seus primeiros anos. Vindas de um círculo social de amantes da arte, é difícil imaginar que as meninas Morisot e seus pais, por sugestão de seus instrutores de pintura Jean-Baptiste Camille Corot e Achille Oudinot, não estivessem entre os visitantes da exposição de 1860 de pinturas e desenhos da Escola Francesa, principalmente do século 18, realizada na Galerie Martinet, em Paris.

 

MORISOT E O SÉCULO 18: UMA INSIDER

Apollo revealing his divinity to the shepherdess Issé, after François Boucher, 1892. © Musée Marmottan Monet, Paris

É difícil não ver uma homenagem a Watteau em Mulher jovem regando um arbusto (1876), como a figura graciosa da modelo (irmã de Morisot, Edma). Suas roupas e sua pose, vista de costas, lembram as mulheres elegantes que tornaram Watteau famoso.

Somente a familiaridade com os originais de Watteau pode explicar as semelhanças cromáticas, as cores cintilantes na descrição dos tecidos na pintura de Morisot. Essa análise confirma não apenas que ela se lembrava das obras de Watteau – que havia admirado no passado –, mas também que ela visitou e estudou a coleção La Caze depois que ela se tornou novamente acessível ao público. Olhando para o trabalho desse período de maneira mais geral, fica claro o interesse de Berthe Morisot no tratamento de cores claras e, particularmente, nos brancos matizados, prateados e brilhantes dos quais Watteau era o mestre. Ela se apropriou desse tratamento e o desenvolveu entre 1875 e 1877. Várias obras que o mostram foram exibidas nas exposições impressionistas de 1876 e 1877, incluindo No baile (1875); Mulher jovem em um espelho (1876); O toalete (1876); O espelho (A Psique) (1876); Mulher em seu toilette (1876) e o pastel Sonhando acordado (1877). Embora essas obras tenham sido tomadas recentemente como exemplos que definem o cerne da conexão de Berthe Morisot com o século 18, os críticos que escreviam na época não se referiam a isso. Essa ausência é agravada pelo fato de que, durante a exposição de 1877, Renoir foi comparado a Watteau.

 

1875: BAILE NO PALÁCIO DE ÉLYSÉE

At the Ball, 1875 © Musée Marmottan Monet, Paris.

Como explica sua correspondência inédita, Morisot, que acabara de se casar com Eugène Manet, desejava comparecer a um baile realizado no Palácio de Élysée pelo presidente francês, Patrice de Mac-Mahon. O Salão Napoleão III no palácio, uma residência doada pelo rei Luís 18 a madame de Pompadour em 1754, acabara de ser reformada no estilo do século 18. Este baile, ou qualquer outro nesse contexto social, inspirou Morisot a pintar No baile. A modelo, acompanhante de Morisot, segura um leque aberto decorado com uma pintura do século 18. O leque é envolvido por uma borda dourada formando uma moldura antiga que transforma essas cenas em pinturas no estilo de Boucher ou Lancret. Nessa pintura, o leque, representado dessa forma, tem o mesmo propósito de uma carta ou bilhete nos retratos dos séculos 17 e 18. De maneira igualmente ostensiva, ele comunica informações essenciais sobre a identidade, profissão, atividade ou convicções da modelo.

 

BERTHE MORISSOT NA INGLATERRA

Eugène Manet on the Isle of Wight, 1885. © Musée Marmottan Monet, Paris.

Em agosto de 1875, Berthe Morisot pintou seu marido, Eugène Manet, olhando pela janela aberta da sala de estar do Globe Cottage, em West Cowes, na ilha de Wight. Ele olhava através de um jardim frontal cheio de flores e cerca verde para o mar, onde uma babá – elegantemente vestida – acompanha uma garotinha de avental e chapéu de palha, e, ao fundo, é possível ver os iates e barcos a vapor reunidos no píer. O casal se casou em 22 de dezembro de 1874 e essa foi a lua-de-mel. Morisot há muito desejava visitar a Inglaterra. Durante a infância, sua governanta inglesa, Louisa, apresentou à família o costume inglês de bolos de aniversário enfeitados com velas e incutiu nela um gosto precoce pela literatura inglesa. Manet se vira na cadeira, vestindo blazer estilo velejador, pronto para sair. Morisot observou afetuosamente que ele era um modelo impaciente, escrevendo para sua irmã Edma, que muitas vezes havia modelado para ela no passado: “Comecei algo na sala de estar, de Manet. O pobre homem tomou o seu lugar. Mas ele é um modelo menos complacente; imediatamente posar se torna demais para ele”.

Morisot transmite espontaneidade, mas essa é uma composição sofisticada com uma forte estrutura de grade definida em uma escala de cinzas prateados, com a forma inquieta de Manet equilibrada pela cortina ondulante à direita. As figuras do lado de fora estão posicionadas com precisão: o rosto da mulher está obscurecido, mas suas proporções são nitidamente marcadas pela janela em seu ombro e a cerca em seu pulso, enquanto seu cós preto está alinhado com as embarcações carregadas no píer. A menina continua na vertical da vidraça e seu avental branco ecoa em miniatura com as cortinas que margeiam a composição. Pintado de dentro para fora, o quadro resume a posição de Morisot como uma nova visitante da ilha: hesitante em montar seu cavalete em público, mas alerta para as possibilidades visuais.

 

UMA PASTELISTA REALIZADA

Self-portrait, 1885 © Musée Marmottan Monet, Paris.

Entre suas primeiras paisagens de 1864 e seu Retrato de uma menina com jacintos (1872), Morisot se tornou uma pastelista talentosa. Seus estudos de pastel eram feitos com a mesma rapidez que a pintura ao ar livre, à qual ela também estava acostumada.

Baseando-se em suas memórias de infância, Jacques-Émile Blanche relembrou Morisot por volta de 1867, “sentada em uma cadeira dobrável” no meio da vila de Passy, pintando “com pastéis ao ar livre”. Era um pastel retratando sua irmã grávida, madame Edma Pontillon, nascida Edma Morisot, que ajudou a tornar Berthe Morisot conhecida pelos amantes da arte e pelo público no Salão de 1872.

Morisot usou pastel no papel de uma forma que justificou o termo do século 18 peindre au pastel (pintar em pastel). Comum no período Luís 15, a expressão descrevia uma técnica sólida, como a pintura, não deixando à vista áreas intocadas da folha de papel. Morisot usava pastéis secos e semiduros, que trabalhava úmidos com pincel, ou nas duas técnicas: seco e úmido. O rosto da modelo, visto frontalmente, é sombreado com marrom-esverdeado na têmpora direita. As pálpebras são realçadas com pastel sanguíneo. Seu tratamento do preto, retocado com o azul escuro, confere a opacidade e a transparência de dois tecidos diferentes. Como prova do talento de Morisot, Édouard Manet queria obter encomendas para ela criar retratos infantis em pastel. Manet lhe deu de presente de Natal uma caixa de pincéis preciosos em 1879 e, no ano seguinte, um novo modelo de cavalete, muito cômodo para pastel.

 

MEMÓRIAS FRAGMENTADAS DO SÉCULO 18

Julie Manet with her Greyhound Laerte,
1893. © Musée Marmottan Monet, Paris

Longe de qualquer citação, Morisot trouxe para suas composições motivos do século 18 que lhe são familiares. A conexão entre as figuras femininas de Watteau vistas de costas e a silhueta da irmã de Morisot levantando graciosamente seu vestido em Mulher jovem regando um arbusto (1876) foi notada várias vezes. A liberdade de Morisot em relação a essas imagens deve ser destacada. Aqui a seda de Watteau desapareceu, substituída por musselina. Sem ombros frágeis, mas uma estatura assertiva. Talvez o aspecto mais oitocentista da cena resida na indefinição de características sociais. Um viajante inglês que chegou a Paris vindo de Londres, em 1739, reclamou que era impossível distinguir uma dama da alta sociedade de uma criada na rua, com criadas imitando a maneira como suas patroas se vestiam em todos os detalhes. Esse “borrão das aparências” percorre toda a obra de Morisot. A artista mencionava retratos de “Madame de Pompadour por Boucher” em seu caderno.

Young Girl with Basket 1892. © Philadelphia Museum of Art.

The Mirror (La Psyché), 1876. © Museo Nacional ThyssenBornemisza, Madrid.

Em 1860, a Galerie Martinet exibiu um retrato de Pompadour em um vestido de seda amarelo na frente de um cavalete, e um segundo, maior, pintado em 1756. Este último trabalho oferece uma gama de motivos típicos do século 18, incluindo muitos detalhes que Morisot também teria sido capaz de ver separadamente em pinturas de contemporâneos de Boucher. Esse apetite pelo século anterior é visível até nas roupas de Morisot. Aos 20 anos, recusando-se a usar as botas pretas da moda na época, ela adotou os sapatos de cetim de La Pompadour como um símbolo de sua própria elegância indumentária. Esse calçado foi destacado por Édouard Manet em sua pintura Berthe Morisot com um leque. Acima de tudo, é em sua arte que Morisot mostrou sua atração pelo século 18. Do grande retrato de La Pompadour, ela adotou o reflexo da nuca da Marquesa, cabelo preso para trás, cortado pela moldura do espelho. Ela parece se lembrar dessa memória em O espelho (1876). Já em 1880, Morisot fez dela o tema principal em uma das suas principais pinturas, Mulher em seu toilette, na qual uma modelo é vista de costas.

BERTHE MORISOT: SHAPING
IMPRESSIONISM • DULWICH PICTURE
GALLERY • REINO UNIDO
• 31/3 A 10/9/2023

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