Internacional Raça & Classe

África: Sahel, dos Golpes à Revolução?

A 26 de julho deste ano ocorria no Níger um golpe de Estado que redundou na tomada do poder pelos militares, na figura do General Abdulrahman Tchiani, Comandante da Guarda Presidencial do deposto presidente Mohammed Bazoum. Assim, o Níger juntatava-se ao Burquina Faso, Guiné-Conacri, Mali e, posteriormente, Gabão na lista de países onde ocorreram golpes de Estado.

O Sahel, onde o colonialismo mostra a sua face mais brutal

O Níger encontra-se no Sahel, sub-região da África Ocidental, em forma de faixa, que percorre o continente a partir da costa ocidental no Oceano Atlântico até ao Mar Vermelho a Leste, marcando o limite norte entre o Deserto do Sahaara e a porção subsariana do continente.

Apesar das riquezas minerais, os países do Sahel enfrentam de forma dramática os efeitos das alterações climáticas, que fazem com que durante o ano até 50% da terra arável sofra com os efeitos da seca severa, sendo uma das regiões mais pobres do mundo, onde a ausência de infraestrutura se combina com os baixos níveis de alfabetização.

Historicamente sede de algumas das principais civilizações africanas, pela sua localização enquanto fronteira entre o mundo mediterrânico e as savanas da África Ocidental, surgiram nesta região os impérios do Gana, Mali e Songhai, que deixaram grandes centros de conhecimento e cultura, como podemos ver em Tomboctu e Gao.

Porém, a história recente do Sahel é marcada pelo colonialismo francês, o trabalho forçado, deslocalização forçada desses povos e territórios, na chamada África Ocidental Francesa, cujo poder se aliou às autoridades regionais mais submissas e oportunistas, esmagando os resistentes, e aliando-se às estruturas sociopolíticas verticais e patriarcais próprias da região.

Hoje constatamos o efeito brutal do neocolonialismo francês, que estabeleceu acordos pós-coloniais que obrigam os países independentes ao pagamento das dívidas deixadas pela administração colonial. A aplicação do franco CFA, emitido e controlado pelo tesouro francês, garante poder à França para intervir militarmente mediante o seu interesse, o que acontecia repetidamente, sob a forma de golpes de Estado, e envio de forças militares francesas. Desta forma, assegurava a rapina das matérias-primas locais em condições ultrafavoráveis, como acontece com a mineradora francesa Orano, que domina o mercado da exploração do urânio no país e tem capital próprio duas vezes superior ao PIB nigeriano.

As aspirações francesas em África ganham uma outra importância no atual equilíbrio de forças mundial, quando a corrida armamentista é uma realidade no pós-invasão russa da Ucrânia, e a soberania energética e transição verde pautam as prioridades dos países.

A luta dos povos do Sahel em defesa dos seus interesses

Hoje, apesar de todas as iniciativas dos aparatos mundiais de ajuda humanitária, mais de 10 milhões de pessoas no Sahel estão ameaçadas pela insegurança alimentar. Isto é agravado pela profunda crise causada pela proliferação dos grupos jihadistas a partir da década passada, que coloca em cheque o abastecimento interno e cria um autêntico êxodo nas áreas de influência desses grupos de insurgentes.

A situação de extrema impopularidade dos governos e das tropas francesas que, após longo desgaste no combate ao terror, tinham pouco ou nada para apresentar, combina-se com uma enorme instabilidade, produto dos fatores anteriormente referidos, que oferece o pano de fundo perfeito para os golpes.

Assim, para além de expressão do rotundo fracasso da estratégia imperialismo, os golpes são também expressão inequívoca da luta de classes, sendo obrigação dos revolucionários e daqueles que lutam pelo nosso continente dialogar com o justo sentimento de satisfação das massas quando se dá o derrube de agentes da França.

Por uma verdadeira independência nacional

É uma tarefa indispensável da Revolução Africana romper com o neocolonialismo imperialista francês, mas também com o poder dos EUA, enquanto principal potência mundial. Por isso, ante qualquer ameaça de invasão do Bloco CEDEAO (Comunidade dos Países da África Ocidental) ao Níger, estaremos no campo dos nigerinos que instam os seus irmãos Haúças-Fulani da Nigéria a resistirem ao governo lacaio do recém-eleito Bola Tinubu, impedindo qualquer invasão que reponha Bazoum no Níger.

Porém, e, apesar de importante, este posicionamento por si não contribui para elevar a condição de luta das classes exploradas para além das fronteiras do poder golpista dos militares da região; é preciso carregar no acelerador para garantir a expulsão dos algozes dos povos africanos, com quem os militares vão inevitavelmente conciliar.

Esse pedal está sem dúvida a ser acionado quando as ameaças francesas e da CEDEAO obrigam os regimes do Mali, Burquina e Níger a equacionar seriamente a união entre os três países. Nós, revolucionários, devemos aproveitar para propagandear a ideia de uma federação do Mali Socialista, que permita elevar as possibilidades desses povos.

Ainda assim, em nenhum momento temos ilusões nos governos militares que assumem o poder. Primeiro porque sabemos que as forças armadas são o braço do Estado capitalista e da repressão sobre a classe trabalhadora. Além disso, sabemos a centralidade que as instituições militares desempenham, enquanto garantes da entrega dos recursos do continente ao Imperialismo, não sendo raro que muitos dos homens-fortes dos regimes se tornem em generais-empresários. A garantia da aplicação dos interesses dos povos africanos é que o poder esteja nas mãos dos trabalhadores.

Na luta pela soberania dos povos africanos, Rússia e China não são aliados

Por outro lado, é também neste particular que entra a Rússia e, noutro patamar, a China enquanto supostos “amigos” dos povos africanos.

A Rússia tem desenvolvido uma política agressiva de cooptação, baseada na presença do Grupo Wagner no terreno, oferecendo aos novos regimes militares força mercenárias que não respondem a nenhum estado, por isso não estranhamos os preocupantes relatos de massacres efetuados por este grupo. E mais! Com Wagner não há almoços grátis, e por isso os homens anteriormente liderados por Prighozin, têm recebido principalmente do Mali e da República Centro-Africana a sua fatia na exploração das matérias-primas.

Putin aproveita-se do “sucesso” da presença de Wagner em África para branquear as consequências nefastas para o continente africano da sua política de bloqueio à saída dos cereais ucranianos.

Para complementar, a política mais subtil da China tem efetuado inúmeros empreendimentos e empréstimos, sobretudo a nível da infraestrutura, que potencialmente salvaguardam a sua posição de explorador dos povos africanos. Falamos concretamente de empreendimentos como o Porto de Mombassa e a via que o ligará a Nairobi, no Quénia, e também a construção do Porto de Djibouti, que ligaria ao mar a única base militar da China em África. Todas estas construções massivas vêm com a contrapartida de que caso haja incumprimento nas obrigações relativamente às dívidas, a gestão passará para a China, que vem gozando de uma crescente influência enquanto potência imperialista emergente, capaz inclusive de fechar a porta dos BRICS a um colosso económico como é a Nigéria em detrimento da Etiópia, parceira de Pequim.

É central, para nós, a compreensão do carácter imperialista da China e da Rússia, e como estes novos agentes da luta imperialista não são a solução para a Revolução Africana: querem apenas ter acesso ao espólio das riquezas do continente africano.

A queda de lacaios do Imperialismo francês, como Ali Bongo do Gabão, representa a possibilidade de abertura de uma nova etapa na luta de classes no continente. Porém, para que esta etapa avance decisivamente para a emancipação dos povos africanos, é preciso que a classe trabalhadora avance, juntamente com as demais classes exploradas, para assumir o protagonismo. Lembramos a Revolução Burkinabé da década de 80, para afirmar que os golpes só se transformam em revoluções quando a classe entra em jogo como motor das transformações. Só a classe trabalhadora organizada, com os seus próprios organismos e organizações, pode fazer a revolução no campo, impor uma planificação da produção para que o povo não passe fome e democratizar estruturas autoritárias como as forças armadas, para que as armas estejam sempre do lado certo. Só a classe consciente da penúria do neocolonialismo, e consciente da sua força e do carácter internacional da luta pela emancipação do continente pode corajosamente cancelar o pagamento das dívidas aos países imperialistas.

Por essas razões, o Sahel e  todo o continente hão que passar dos golpes à Revolução.

António Tonga