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Você pagaria R$ 6 mil para ler uma revista?

Você pagaria R$ 6 mil para ler uma revista?

É esse o preço médio pago anualmente pela USP por cada periódico científico que assina. As publicações são importantes para o trabalho dos pesquisadores. Seus preços elevados geram protestos no mundo inteiro

RAFAEL CISCATI
27/11/2015 - 08h00 - Atualizado 27/11/2015 11h38
Capas da Science - os periódicos científicos são importantes para o trabalho dos pesquisadores. Seus preços elevados geram protestos (Foto: Reprodução/ Instagram)

Joohan Rooryck tinha uma relação quase afetiva com o lugar em que trabalhava. Professor de linguística da Universidade de Leiden, na Holanda, Rooryck trabalhava como editor-chefe da revista acadêmica Lingua desde 1998. Assumiu o posto a pedido do antigo editor-chefe, um amigo íntimo. “Ele me pediu que eu assumisse o trabalho pouco antes de morrer”, diz Rooryck. Essa história, ele reconta sem afetação. Trabalhar na Lingua, uma das revistas acadêmicas de maior prestígio do mundo, não era para ele um fardo. Era algo que Rooryck fazia com prazer, apesar de ganhar pouco pela função  – US$ 5 mil por ano (aproximadamente R$ 18 mil), bem menos do que ganhava como professor universitário.

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Esse tempo de satisfação passou. No início do mês, todo o corpo editorial da Lingua pediu demissão. A decisão foi tomada numa troca de emails – à distância, os editores da revista, todos acadêmicos renomados, decidiram que não permaneceriam nos seus postos. Eles se opunham aos preços cobrados pela editora da publicação, a Elsevier, a universidades e pesquisadores que quisessem ter acesso ao material publicado. Os estudos publicados em Lingua, e editados pela equipe de Rooryck, são escritos por pesquisadores de todo o mundo. São resultado de suas pesquisas em linguística, trabalho muitas vezes pago pelo dinheiro de governos, bancado por impostos. Ainda assim, para esses mesmos autores terem acesso ao que era produzido pelos seus pares, eles precisavam pagar. E pagar caro.

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No último mês, Lingua virou o símbolo acabado de uma discussão que se desenrola há anos nos círculos acadêmicos: é correto cobrar caro pelo acesso ao conhecimento científico? Sobretudo quando esse conhecimento, muitas vezes, foi produzido com o dinheiro do contribuinte? A questão – e o problema que ele acompanha – afeta pesquisadores e universidades em todo o mundo. E golpeia também as universidades brasileiras – com verbas em baixa e o dólar em alta, as instituições brasileiras se esforçam para manter as assinaturas de revistas que os pesquisadores precisam ler para trabalhar.

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Revistas científicas são importantes porque ajudam a divulgar e selecionar o conhecimento produzido em universidades e em outros centros de pesquisa. Você as conhece – algumas são famosas, como a Science ou a Nature. Esse tipo de publicação é antigo. Existe desde meados do século XVII e, desde aquela época, funciona mais ou menos do mesmo jeito: os pesquisadores interessados submetem seus artigos científicos a um corpo de editores, responsável por preparar o material para a publicação. Esses editores e suas equipes avaliam a qualidade dos trabalhos, conferem a validade de alguns dados apresentados e publicam os melhores artigos. O surgimento de revistas científicas foi importante, em parte, por causa do caráter colaborativo do trabalho dos cientistas. Antes de se lançar numa nova pesquisa, os cientistas leem o que já foi feito naquele campo e procuram continuar o trabalho a partir dali – adicionando novas descobertas ao que já foi produzido ou refutando os trabalhos que vieram antes dos seus. Quando surgiram, as revistas científicas foram revolucionárias porque tornam públicas essas descobertas. O blog Pricenomics lembra que, antes de elas existirem, os cientistas mantinham suas pesquisas em segredo. E ciência feita por baixo dos panos não avança.

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O problema é que, na opinião de muitos, as revistas deixaram de facilitar o acesso a ciência ao torná-lo caro. Muitas vezes, proibitivo. Em 2012, a Universidade Harvard – o centro universitário mais rico do mundo – divulgou um comunicado dizendo que ia cancelar as assinaturas de algumas de suas revistas científicas. O preço dessas publicações não cabia mais no orçamento: “Nos últimos dez anos, os valores cobrados pelas assinaturas subiram 146%”, dizia o informe enviado pela central de bibliotecas da Universidade.

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As universidades brasileiras também sofrem para pagar por suas assinaturas. Por aqui, o problema é agravado pela situação econômica do país. As assinaturas são negociadas em dólar: “Com a alta da moeda, nós tivemos que nos adaptar”, diz Maria Crestana, chefe do Sistema Integrado de Bibliotecas da Universidade de São Paulo (Sibi- USP). Anualmente, a USP destina uma verba milionária para abastecer as 48 bibliotecas sob administração do Sibi. Em 2015, o orçamento da universidade previa gastar R$ 16 milhões na compra de periódicos científicos. É mais dinheiro do que a USP destinou para gastos com auxílio moradia a estudantes (R$ 14,4 milhões em 2015). E ultrapassa, em quase 8 vezes, os gastos com compras de livros para as bibliotecas (R$ 2,6 milhões). “O custo é alto por causa dos  preços abusivos praticados por parte do mercado editorial e, principalmente, porque a grande maioria dos conteúdos é comercializada em dólares”, diz Maria Crestana. Esse dinheiro paga pelas assinaturas de 2.645 títulos. A USP gasta, em média, R$ 6 mil por título anualmente.

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O cenário se repete em outras instituições brasileiras. Em 2010, a Unicamp gastou R$11,5 milhões na assinatura de revistas científicas. Com a alta dos preços e do dólar, a Unesp precisou fazer cortes: 42% das assinaturas mantidas pela universidade foram canceladas em 2014. A Unesp deixou de gastar R$ 3,5 milhões. Em 2015, houve novo corte de 42% no número de periódicos assinados. A economia resultante foi de R$  4,6 milhões. “Embora o porcentual de assinaturas canceladas tenha se mantido, o valor é maior em função do aumento do preço das publicações e da variação cambial”, diz Flávia Maria Bastos, coordenadora geral de bibliotecas da Unesp.

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Em 2000, o governo brasileiro criou uma alternativa que barateia o acesso a essas revistas. Através do Portal dos Periódicos, instituições que mantêm programas de pós-graduação conseguem acessar mais de 4 mil títulos, sem ter de pagar por isso. As assinaturas são mantidas com dinheiro da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes). É uma espécie de sistema coletivo de assinaturas: “O preço dessas publicações é proibitivo”, diz Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. “Mas, no cálculo do número de pesquisadores brasileiros que têm acesso ao Portal, pode-se dizer que o custo é baixo. Foi uma solução brilhante”. Algumas universidades, como USP, Unesp e Unicamp mantêm assinaturas complementares para atender a necessidades de seus pesquisadores.

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#ICanHasCheezburguer (Foto: Reprodução)

Nos EUA, a indignação dos acadêmicos com o preço das publicações se transformou em um protesto online em outubro deste ano. Tudo começou com Andrea Kuszewski, uma cientista da cognição que vive em São Francisco. Andrea precisava ler um estudo publicado em uma revista a qual não tinha acesso. No Twitter, publicou uma mensagem com o link para o artigo, seu próprio endereço de email e a hashtag #ICanHazPdf. A hashtag faz remissão a um meme popular: a hashtag #ICanHasCheezburguer, que vem invariavelmente acompanhada pela foto de um gatinho implorando por um lanche. No caso de Andrea, em lugar de sanduíche, ela queria um artigo acadêmico em formato PDF. Quem tivesse acesso ao estudo poderia salvar o arquivo no computador e enviar a ela por email. A moda pegou e outros pesquisadores começaram a usar a hashtag para os mesmos fins. Como a prática infringe direitos autorais, os pesquisadores apagam o tuíte com o pedido logo que recebem uma cópia do estudo de que precisam. A BBC chamou a tática de pirataria.

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Publicar uma revista científica de renome não é coisa barata. As grandes editoras não costumam revelar qual o custo de publicação de um estudo – a Elsevier, que publica The Lancet, e a AAAS, que publica a Science, foram procuradas pela reportagem, mas não quiseram se manifestar – mas os gastos incluem a manutenção de um corpo de editores capaz de selecionar quais artigos, dentre os muitos recebidos, merecem ser publicados. Esses artigos passam pela análise dos pares – outros cientistas que, voluntariamente, examinam o estudo para dizer se suas informações fazem sentido. Esse trabalho de revisão é vonluntário mas, segundo as editoras, coordená-lo é algo complexo e caro. Além disso, algumas das grandes editoras também produzem material jornalístico sobre ciência, ou organizam conferências e encontros de pesquisadores. Tudo isso significa gasto. Despesas que, em grande parte, são bancadas com a venda de assinaturas. “O preço cobrado pelas revistas encarece a divulgação científica”, diz Helena Nader, da SBPC. “Mas esse é um trabalho que não há como ser gratuito."

O que irrita os cientistas é o lucro elevado obtido por essas empresas através da venda de um produto pelo qual a sociedade já pagou. Os estudos são pagos pelas universidades, cujos pesquisadores tem de pagar também para ler os artigos publicados. “O problema não é ter lucro”, diz Joohan Rooryck, o cientista do início dessa matéria, que pediu demissão da Elsevier. “O problema é que empresas como a Elsevier começaram a abusar da sua posição para atingir lucros excessivos. Se a Harvard não consegue pagar, fica evidente que há um problema”.  Em 2008, a consultoria londrina Cambridge Economic Policy Associates estimou que as editoras comerciais de revistas científicas mantinham margens de lucro de 35%, um valor surpreendente para os padrões do mercado editorial.

Há pelo menos 15 anos, a comunidade científica discute a adoção de novos modelos de publicação, que retirem o ônus de quem quer ler os artigos, e democratizem o acesso à ciência. Em 2000, o cientista Michael Eisen criou a Public Library of Science (PLoS), uma revista científica online, de acesso aberto. Qualquer um pode ler o que a PLoS publica, sem ter de pagar por isso. Os custos de publicação são pagos pelos autores do estudo – ou pela instituição para a qual os autores trabalham. Em 2013, de acordo com um artigo da Nature, a PLoS cobrava  US$ 1.350 (quase R$ 5 mil) por artigo publicado.

Joohan Rooryck e seus colegas querem seguir caminho parecido. Anunciaram, para 2016, a criação da Glossa, uma revista de acesso aberto financiada por uma associação de universidades da Holanda. Os pesquisadores não terão de pagar para ler nem para publicar. Revistas de acesso aberto como a Glossa não devem fazer com que as publicações pagas desapareçam – a Elsevier já convidou novos acadêmicos para assumir o lugar da equipe de Rooryck em Lingua. Tampouco são, necessariamente, melhores. São alternativas que alimentam as discussões da comunidade científica sobre como fazer e consumir conhecimento. E discutir abertamente é algo que sempre fez bem para a ciência.








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