Cultura

Um fazedor de objetos de arte: João Cutileiro (1937-2021)

Um fazedor de objetos de arte: João Cutileiro (1937-2021)
António Pedro Ferreira

As mulheres esculpidas em mármore polido são o rótulo de um homem maior, que se notabilizou pela forma como brincou com a história do país ao criar D. Sebastião e o monumento ao 25 de Abril. João Cutileiro morreu esta terça-feira, aos 83 anos

Foi pela mão de Paula Rego que chegou a Londres depois de se ter desiludido com a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. No mesmo estabelecimento de ensino que a pintora frequentara, a Slade School of Art, João Cutileiro, falecido esta terça-feira aos 83 anos, descobriu as suas capacidades reais para a escultura. Estávamos em 1955 e por lá ficou até 1970 a trabalhar já com as máquinas que viria a aperfeiçoar e a aumentar de tamanho no seu quintal da casa de Évora, onde montaria o seu estúdio.

Antes, muito antes, em 1946, tinha sido levado a desenhar pelo artista António Pedro, um amigo lá de casa, que o puxa para o seu ateliê e lhe empresta o bichinho das artes. Do estúdio do surrealista salta para o ateliê de Jorge Barradas, onde experimenta o modelismo e a pintura. No entanto, o trabalho não o entusiasma. A aprendizagem passa a fazê-la com António Duarte. É aí que se apaixona pelo mármore. Material que nunca mais deixou para trás. Cabia-lhe ampliar o trabalho do mestre canteiro e transformá-lo primeiro em gesso e definitivamente em mármore, depois.

As experiências que aí teve deram azo a uma exposição perto de Évora, onde viveu com os pais, mais propriamente em Reguengos de Monsaraz. Ainda só tinha 14 anos. Contudo, foi depois de Florença, cidade por onde passou a caminho de Cabul, no Afeganistão, onde foi visitar o pai, que as dúvidas face ao que faria da sua vida profissional se dissiparam. Em Itália, em 1951, Miguel Ângelo e a sua obra tornaram óbvio o seu destino.

De Londres regressa a Portugal e é em Lagos que se instala. Já tinha exposto em Lisboa e no Porto aquelas formas que seriam sempre as suas: as figuras, femininas, sobretudo, as árvores, as paisagens. No entanto, o seu nome só sobe verdadeiramente à ribalta quando esculpe, em 1973, D. Sebastião, desafiando o regime à ordem instituída. O rei menino vem sem espada nem escudo, face imberbe, no meio da Praça Gil Eanes, naquela cidade algarvia.

A polémica assentou, porém, e João Cutileiro passou a dedicar-se aos seus "objetos destinados à burguesia intelectual do ocidente", como afirmava. Para trás ficava uma força artística inovadora, sempre a espreitar em cada obra mais ousada. À frente, muita escultura vendida a particulares, ao Estado, e a todos os hóteis que foram nascendo por este país fora. As suas "meninas" como eram apelidadas nunca foram bem acolhidas pelos artistas seus contemporâneos. Mas foi com ele, mestre Cutileiro, que nomes da arte portuguesa como Rui Chafes e José Pedro Croft aprenderam a técnica do 'metier'.

A surpresa chegou depois, quando em 1997, a encomenda da Câmara Municipal de Lisboa para assinalar os 23 anos do 25 de Abril, chegou ao cimo do Parque Eduardo VII. Blocos de pedra ordenados na vertical e a fazer lembrar um falo estalaram a polémica.

A arte é livre e João Cutileiro sempre o soube ser. Conhecido pelo seu posicionamento à esquerda, chegou a militar pelo Partido Comunista Português, o escultor nunca teve papas na língua e soube muito bem viver, sem nunca deixar de trabalhar arduamente naquele quintal de Évora, onde o pó da pedra se confundia com a sua imagem.

Homem gentil, afável, interessado no trabalho dos outros artistas, generoso, curioso, apaixonado pela fotografia, pela amizade e pela comunicação, João Cutileiro era um verdadeiro embaixador, como o irmão mais velho, da boa-vontade e da justiça.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: acarita@expresso.impresa.pt

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