Jogadores de futebol das seleções de Marrocos e Espanha discutindo durante partida da Copa do Mundo da Rússia em 2018

Mais próximos do que nunca: as tensões entre Espanha e Marrocos no futebol, na política e na história

Por Luiz Vendramin Andreassa

Esta matéria foi atualizada no dia 06/12/2022

Espanha e Marrocos decidem, nesta terça-feira, uma vaga nas quartas de final da Copa do Mundo de 2022. Se essa é apenas a segunda vez que as duas nações se enfrentam num Mundial, o encontro já aconteceu muito ao longo da história, nos campos de batalha e nas disputas políticas.

Apesar de fazerem parte de continentes diferentes, Europa e África, os dois países estão em lados opostos do Estreito de Gibraltar, um pequeno pedaço de mar que separa seus territórios por poucos quilômetros. Tamanha proximidade faz com que, ao longo da história, ambos tenham protagonizado inúmeros conflitos, migrações, invasões e mesmo guerras. Por isso, ao duelar em campo, Gavi, Ferrán Torres, Ziyech, Hakimi e Cia vão escrever o novo capítulo de uma história da qual talvez nem tenham dimensão.

Domínio mouro, protetorado e independência

A Península Ibérica, onde hoje estão Espanha e Portugal, era bem diferente no século XIII. Naquela época, os visigodos, povo de origem germânica, estavam em guerra contra outros grupos. Uma parte dos visigodos resolveu pedir ajuda a Musa ibn Nusayr, líder muçulmano da etnia berbere que vivia no território que hoje compreende o Marrocos e parte da Argélia. Mas ele fez mais do que o combinado: enviou seu exército para dominar aquela região e mudar para sempre sua história.

Ilustração de Musa ibn Nusayr, líder muçulmano que comandou invasão dos mouros à Península Ibérica
Líder de uma das regiões onde hoje é o Marrocos, Musa ibn Nusayr foi um dos responsáveis pela invasão à Península Ibérica no século XIII. (créditos: WikiMedia Commons)

A invasão começou no ano 711 e em pouco tempo dominou toda a Península Ibérica. Os invasores eram chamados de mouros, uma forma genérica de se referir às pessoas de pele escura que praticavam o islamismo. A palavra “mouro” vem de “maures”, que significa “escuro”, em latim. O domínio durou oito séculos e eles só foram definitivamente expulsos em 1492. Sua influência se mantém até hoje nas línguas, arquitetura, culinária e música dos dois países europeus.

Alguns séculos mais tarde, a situação se inverteu. A Espanha, enfraquecida pela perda de suas colônias no fim do século XIX, se uniu à França em 1912 para estabelecer protetorados no Marrocos. Os franceses ficaram com a parte sul, mais rica, e os espanhóis com o norte, mais pobre. Protetorados são territórios formalmente autônomos, mas administrados ou protegidos por nações mais poderosas. Os críticos apontam que essa é apenas uma forma mais leve e menos violenta de colonização, diferente das ocupações ostensivas, como aconteceu na Argélia.

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A atuação dos dois países europeus no Marrocos foi distinta. A Espanha, por exemplo, focou no domínio militar, deixando a exploração econômica em segundo plano e pouco intervindo na cultura e na política da região. Até hoje, o norte é considerado mais conservador e nacionalista que o sul. Em geral, houve avanços em tecnologia, infraestrutura e urbanismo, mas nenhuma das duas ocupações promoveu estabilidade política e consolidação de valores democráticos.

Os protetorados não foram pacíficos e tiveram de lidar com diversos conflitos. Em 1921, povos berberes da região montanhosa do Rife se revoltaram contra a ocupação espanhola e iniciaram o que ficou conhecido como Guerra do Rife. A Espanha teve derrotas importantes, que resultaram em muitas baixas, como no Desastre de Annual. Foi preciso grande esforço, com participação do general Francisco Franco, futuro ditador espanhol, para vencer a disputa e recuperar o controle militar do local.

Após a Segunda Guerra Mundial, movimentos nacionalistas ganharam influência na sociedade marroquina, promovendo a ideia de independência do país por meio de greves, boicotes a produtos franceses e revoltas armadas. Em situação complicada, a França recolocou no poder o sultão Mohammed ben Youssef, que tinha sido deposto e deportado com seu apoio, e teve de aceitar a proclamação do Reino de Marrocos, em 1956. Um mês depois, a Espanha também reconheceu a independência, mas manteve as cidades de Ceuta e Melilla e parte do Saara Ocidental sob seu controle.

Mapa do sul da Espanha e do norte do Marrocos. O Estreito de Gibraltar aparece à esquerda e as cidades de Ceuta e Melilla, pertencentes aos espanhóis, estão em destaque.
Mapa do sul da Espanha e do norte do Marrocos. O Estreito de Gibraltar aparece à esquerda e as cidades de Ceuta e Melilla, pertencentes aos espanhóis, estão em destaque. (créditos: WikiMedia Commons)

Marrocos e Espanha hoje

O Marrocos hoje é uma monarquia constitucional, sob governo do rei Mohammed VI, que assumiu em 1999, após a morte de seu pai, e o primeiro-ministro Aziz Akhannouch. São mais de 37 milhões de habitantes, com expectativa de vida de 77 anos, PIB per capita de 3,5 mil dólares por ano – um pouco menor do que o de vizinhos como Argélia e Tunísia, e seu Índice de Desenvolvimento Humano é considerado médio. O islamismo sunita é dominante e as línguas oficiais são o árabe e o berbere.

Encravadas na costa norte do território marroquino, estão as cidades de Ceuta e Melilla, que pertencem à Espanha e compõem a única ligação por terra entre a África e a União Europeia. Por conta disso, o país é a principal rota de migração do continente, o que costuma gerar divergências com os europeus, especialmente os espanhóis. Numa ironia da história, africanos passam pelo Marrocos para chegar à Europa séculos depois da invasão dos mouros, agora por razões diferentes.

Dezenas de imigrantes resgatados no mar, tentando chegar à Espanha pelo Marrocos, em cima de um bote.
Imigrantes que tentavam chegar à Europa pelo Marrocos e foram resgatados no mar em 2021. A imigração é tema quente entre marroquinos e espanhóis. (créditos: John Hightower/US Coast)

Um dos momentos de maior tensão aconteceu em 2021, quando a Espanha permitiu que Brahim Ghali se tratasse da Covid-19 em um de seus hospitais. Líder da Frente Polisário, movimento separatista do Saara Ocidental, Ghali é considerado terrorista por Marrocos. Como retaliação, o governo marroquino afrouxou o controle sobre imigrantes que buscavam chegar a Ceuta e Melilla. Milhares tentaram cruzar as praias que separam os dois territórios e o caos se instalou, com crianças sendo resgatadas e pessoas usando garrafas plásticas para não se afogar.

O episódio causou uma crise diplomática entre os dois países que só acabou em 2022, depois que Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, declarou apoio ao Marrocos em sua tentativa de anexar o Saara Ocidental. Essa região foi controlada pela própria Espanha até 1975 e, desde então, vem sendo disputada pelos marroquinos e pelos separatistas. As duas nações concordaram em reabir as fronteiras em Ceuta e Melilla e cooperar no controle da imigração.

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Mesmo assim, os fluxos migratórios continuam nas duas cidades e no estreito de Gibraltar. Em junho de 2022, um mês após os dois países restabelecerem o diálogo, um grupo de 2 mil pessoas tentou entrar em Melilla, com objetivo de pedir asilo ou refúgio. Dezenas delas morreram e centenas ficaram feridas, incluindo policiais espanhóis. Segundo relatos, os militares usaram violência e armas de fogo contra os imigrantes. Em reação, houve protestos em Madrid e Barcelona contra as violações de direitos humanos e contra a política de imigração espanhola.

Mas não são apenas esses fluxos que têm causado rusgas nessa relação durante as últimas décadas. Marrocos considera Ceuta e Melilla parte de seu território e vem tentando há séculos concretizar esse direito. Em 2007 e 2011, houve crises diplomáticas quando a Espanha sinalizou maior controle sobre ambas. Já em 2002, aconteceram combates entre as forças dos dois países por conta do controle de Perejil, pequena ilha desabitada que fica no Estreito de Gibraltar.

Se na diplomacia os laços entre os dois países são marcados por idas e vindas, a situação não é menos complexa quando se trata do futebol. Existem cerca de 800 mil marroquinos na Espanha, o que se reflete em sua seleção – alguns jogadores atuam em La Liga e Achraf Hakimi nasceu em Madri. Muitos moradores de Ceuta admitem que torcem pelos dois times e que ficarão felizes seja quem for o vencedor da disputa nas oitavas de final.

Por outro lado, há preocupações com possíveis casos de violência após o apito final. O que aconteceu em Bruxelas é um alerta para as autoridades espanholas: depois que Marrocos venceu a Bélgica na primeira fase, houve confrontos entre torcedores na ruas da capital. Grupos de torcedores ligados à extrema direita estão pedindo uma união para combater comemorações de marroquinos no país.

Essa atitude é parte do racismo e xenofobia a que os marroquinos muitas vezes estão expostos na Espanha. Segundo levantamento do próprio governo espanhol, pessoas desse grupo são vítimas em um de cada dez casos de crimes de ódio no país europeu. Em 2021, o assassinato de um marroquino por um ex-policial causou revolta em Murcia.

Novo equilíbrio?

No dia 25 de junho de 2018, espanhóis e marroquinos se encontraram no gramado do Estádio de Kaliningrado. Era a última rodada do Grupo B da Copa do Mundo na Rússia e os dois tinham objetivos distintos: os Leões do Atlas, vindos de duas derrotas, não tinham mais chances de classificação; já La Roja precisava de ao menos um empate para assegurar a vaga nas oitavas de final.

As diferenças de ambições não se reproduziram no gramado. Logo aos 13 minutos, Boutaib se aproveitou de trapalhada entre Iniesta e Sergio Ramos, arrancou sozinho e tocou na saída de De Gea para abrir o placar. Cinco minutos depois, Iniesta se redimiu e completou uma troca de passes tipicamente espanhola com assistência para Isco empatar.

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O atacante En-Nesyri
A bola entrando no gol de De Gea durante empate entre Espanha e Marrocos, em 2018. O atacante En-Nesyri, autor do gol, até hoje só jogou profissionalmente no futebol espanhol. (créditos: WikiMedia Commons)

As chances aconteciam para os dois lados, com boas defesas dos goleiros e uma bomba de Amrabat que acertou a trave e por pouco não se tornou um dos gols mais bonitos daquela Copa. Na reta final, En-Nesyri subiu para cabecear firme e mandar a bola às redes, sem chances de reação para o goleiro. Foi só nos acréscimos que a Espanha se livrou da derrota e espantou qualquer chance de desclassificação: Iago Aspas completou de letra um cruzamento da direita e cravou o 2 a 2.

Se em 2018 o equilíbrio foi surpreendente, desta vez é bem mais esperado. O Marrocos se classificou em primeiro lugar no Grupo F, à frente da atual vice-campeã Croácia e eliminando a sempre badalada Bélgica – com direito a vitória incontestável sobre o time de De Bruyne na terceira rodada. A base da equipe de quatro anos atrás se mantém, contando com Hakimi, do PSG, e Ziyech, do Chelsea, como os jogadores mais conhecidos.

Em caso de classificação, esses atletas podem ter seus nomes gravados nas páginas da história, assim como tantos outros que marcaram a longa e turbulenta contenda entre Marrocos e Espanha ao longo dos séculos.

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