“Cão sem dono” abre logo com uma cena de sexo quase explícito,
seguida do típico “day after”. Café e silêncio preenchem o vazio
entre Marcela e o apático Ciro, na cozinha do apartamento dele.
O filme é adaptação do romance “Até o dia em que o
cão morreu”, o primeiro do gaúcho Daniel Galera, destaque na
novíssima geração da literatura brasileira, nascida e criada na
internet.
A trama mostra a trajetória íntima da relação
amorosa de um jovem casal, desde seu nascimento, discreto e
cheio de jogos, até seu momento de revelação, em que eles perdem
o controle da situação.
Leia entrevista com os diretores Beto Brant e Renato Ciasca
Nas mãos da dupla de cineastas Beto Brant, de “O invasor” e “Ação
entre amigos”, e Renato Ciasca, seu parceiro habitual com
quem agora divide a direção, o livro de Galera ganha tintas
naturalistas e delicadas, que fazem com que os protagonistas
“saltem” vivos da tela e permaneçam na mente do espectador mesmo
depois do fim da sessão.
Recém-formado em Letras, Ciro é um cara ranzinza e perdido, sem planos, que não sabe o que fazer com seu diploma nem com sua vida. Ele divide seu apartamento com um cachorro de rua, que vem e vai quando quer. “Eu não sou dono dele, sou só um amigo”, diz Ciro a certo ponto.
Já Marcela é uma modelo vinda do interior que sonha rodar o
mundo, conhecer pessoas e colecionar experiências. Para ela,
esse objetivo é algo tão claro que a impede de entregar seu
coração a outros desejos que apareçam no caminho.
Filmado quase todo dentro de um apartamento, o
longa tranca o público com o casal entre quatro paredes. Somos
cúmplices do conflito que aos poucos nasce entre os
protagonistas e dentro de cada um deles. A direção acerta no tom
e no ritmo desse desenvolvimento, sem apelar para narrações em
off ou recursos fáceis para transmitir os pensamentos dos
personagens.
Brant e Ciasca acertam também na escolha do par principal, o excelente Júlio Andrade e a bela Tainá Muller (casada com o autor do original), que começa numa atuação tímida e cresce surpreendentemente na tela do meio para o fim do filme.
O carisma da estreante acabou rendendo o prêmio de melhor atriz
do Festival de Recife já em seu primeiríssimo trabalho. Além
disso, a opção por dois rostos desconhecidos do grande público
traz aquele frescor que tanto faz falta ao cinema brasileiro de
hoje.
“Cão sem dono” não foge da marca do cinema de Beto
Brant, que tem como fio condutor a violência, em suas mais
diversas formas. Entretanto, aqui ela chega disfarçada pelo
ceticismo e o vazio que escondem o mal-estar de uma geração, a
que o filme retrata com a complexidade merecida e faz bonito.