Por Lua Lacerda*, g1 PB


O enorme quadro 'Independência ou Morte', de Pedro Américo, é uma das principais atrações do Museu do Ipiranga, em São Paulo — Foto: Fábio Tito/g1

Considerado a certidão de nascimento do Brasil, o quadro 'Independência ou Morte', do pintor paraibano Pedro Américo, é uma das principais imagens que simbolizam a proclamação da independência ocorrida em 7 de setembro de 1822. Porém, hoje já se sabe que o episódio não foi tão glamuroso quanto representado na obra. Mas o que há de ‘'fiel à realidade’ e o que há de ‘criação do artista’ no quadro de Pedro Américo?

A tela, finalizada em 1888, é uma representação idealizada do momento em que D. Pedro I declarou a Independência do Brasil, afirma Fabrício Morais, professor de história do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). “Sua elaboração não tinha como prioridade o caráter imediato da representação”, explica.

A preocupação de Pedro Américo não foi com a reconstituição da cena, tampouco mostrar o que realmente aconteceu. “Podemos dizer que o maior interesse foi ressaltar a importância daquele gesto para a criação do Brasil. Como se as nações pudessem ser construídas por um passe de mágica, um estalar de dedos, um simples desembainhar de espada”, diz o historiador Fabrício Morais.

O quadro deve ser pensado a partir do contexto de crise final do Império brasileiro e da necessidade de construir uma representação que exaltasse a já decadente monarquia, comandada pelo filho do personagem principal, D. Pedro II, explica Fabrício.

Para o historiador, a tela possui um poder de síntese, que revela a intenção de transpor para a imagem o discurso do governo imperial a respeito do ideal de nação brasileira.

Não devemos esquecer que o índice de analfabetismo no Brasil era muito alto – apenas 25% da população sabia ler e escrever – e as imagens eram um bom caminho para passar a mensagem governamental, explica Fabrício Morais.

O salão nobre do Museu do Ipiranga, em São Paulo, foi feito sob medida para receber a obra de Pedro Américo. Ele levou cerca de um ano e meio a dois anos para concluir a pintura, fruto de uma encomenda do governo imperial.

O que é criação?

“Praticamente tudo!”, afirma Fabrício Morais.

O enorme quadro 'Independência ou Morte', de Pedro Américo, é uma das principais atrações do Museu do Ipiranga, em São Paulo — Foto: Fábio Tito/g1

O riacho do Ipiranga não estava no local apresentado no quadro. “Pedro Américo sabia que a montaria de D. Pedro não era aquela que foi retratada, também sabia do incômodo gástrico que acometia o futuro imperador do Brasil e tinha consciência que cometia ‘uma violência à topografia’, nas suas próprias palavras, ao colocar o riacho do Ipiranga tão próximo da cena retratada”, explica Fabrício.

Além disso, os trajes retratados também não correspondem à realidade. O também historiador e escritor paraibano Bruno Gaudêncio explica que “Dom Pedro I, príncipe regente da época, não estava nos trajes adequados que expressariam esse acontecimento tão importante, nem a sua cavalaria”.

Dom Pedro I estava em cima de um burro e com as vestes mais simples e a sua cavalaria também, tudo foi redefinido, afirma Gaudêncio.

Em um livreto artístico publicado após a conclusão da obra, “Pedro Américo escreve que ‘a realidade inspira, mas não escraviza o pintor’. Esse texto é onde ele explica porque fez o quadro dessa forma, ou seja, sem se prender à realidade. O artista ressignifica a realidade”, explica Bruno Gaudêncio.

“Ele fala sobre essas decisões e escolhas no livro, só não dá detalhes. Por exemplo, ele não fala que Dom Pedro I estava em cima de um burro e com dor de barriga, como hoje a gente sabe que aconteceu. Mas ele fala que Dom Pedro estava cansado, desanimado, com roupas simples comparadas às que ele geralmente usava no Rio de Janeiro. Então não tinha glamour, só ressignificou a cena dando um teor mais oficial”, diz o historiador Bruno Gaudêncio.

Segundo Gaudêncio, as principais alterações do artista são “as roupas, os animais, a topografia, o riacho, o local, o casebre (que já era outro)”.

A figura do caipira, que é um alimento adicionado na obra para dar ideia de brasilidade, diz Gaudêncio.

Pedro Américo sabia como foi a cena real

Pedro Américo, artista plástico paraibano — Foto: Reprodução/Além do Ipiranga

Pedro Américo, é fundamental elucidar, sabia das imprecisões históricas da sua obra, diz Fabrício Morais.

“Contudo, o pintor paraibano escolheu construir uma cena que deixava de fora justamente os detalhes que poderiam afetar as intenções épicas do quadro”, explica o professor Fabrício de Morais.

Antes de começar a produzir a obra, o artista “fez toda uma pesquisa, visitou o riacho do Ipiranga, chegou a conversar com dois ou três personagens que foram testemunhas da época. Pesquisou sobre os adornos, pesquisou as roupas, pesquisou a topografia do local e também se baseou em estudos de outros pintores sobre acontecimentos semelhantes”, destaca Bruno Gaudêncio, historiador e escritor paraibano.

Significa que Pedro Américo estava ciente de que a realidade não era tão pomposa quanto suas escolhas criativas fazem parecer. “Ele tinha plena consciência de que se tinham poucos registros documentais, testemunhais do acontecimento em si, então ele fez várias entrevistas, pesquisou em textos publicados na época”, explica Bruno Gaudêncio.

“Quando Pedro Américo pesquisa, percebe que não foi tão pomposa assim a situação, isso está registrado em vários livros”, diz Gaudêncio

Segundo o escritor, “ele fez uma pesquisa, mas ele tentou redefinir para dar um teor mais oficial, teoricamente justo, segundo os parâmetros dele para um acontecimento que é considerado a certidão de nascimento do Brasil.”

‘Versão de sucesso’

Detalhe da moldura do quadro 'Independência ou Morte' no Museu do Ipiranga, em São Paulo — Foto: Fábio Tito/g1

O quadro de Pedro Américo é reproduzido à exaustão até os dias de hoje e está presente no imaginário da população brasileira. Como exemplo, o professor Fabrício resgata o episódio ocorrido em 1922, ano do centenário da Independência. “Reproduções do quadro eram distribuídas para os jovens que assistiam ao desfile cívico do dia sete na Cidade da Parahyba (atual João Pessoa)”, resgata.

Nesse sentido, por mais que não seja o que realmente aconteceu, o sucesso da versão criada por Pedro Américo é gigantesco.

“Até hoje, quando entro em sala de aula e falo que o tema da nossa conversa é o processo que levou à independência do Brasil, a primeira referência dos jovens alunos e alunas é esse quadro”, conta o professor Fabrício Morais.

*Sob supervisão de Jhonathan Oliveira

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