Por Nadine Wojcik, Deutsche Welle


Ilustração do livro 'O pequeno príncipe' — Foto: Divulgação

Ainda me lembro perfeitamente de quando, uma noite, minha mãe apareceu com O pequeno príncipe no meu quarto. "Nossa, deve ser um livro incrível", pensei, ao vê-la folheando o volume com tanto cuidado e solenidade.

Os desenhos daquele garotinho de cabelos louros espetados e calça e blusa verde me encantaram. Mas a história... me deixou perturbada! Que horror, um planeta tão pequeno assim, é como uma prisão! E essa rosa esquisita, maldosa: por que ele gosta tanto dela? E por que fica amigo da raposa, para depois abandoná-la?

Enquanto minha mãe lia para mim os breves capítulos, em ritmo cadenciado, eu não tinha coragem de dizer como achava a história desagradável. Enquanto a cultura pop celebrava aquele que é provavelmente o mais famoso herói infantil moderno, com xícaras, quebra-cabeças, camisetas e filmes, eu mantinha distância desse bizarro menino extraterrestre.

Não é coisa de criança

O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, conta a história de um garoto que vive num planeta minúsculo, com uma rosa exigente, dois vulcões ativos e um extinto, além dos pés de baobá, que ele vive combatendo. A flor e o principezinho não se dão bem, ela é rabugenta e exigente. Então ele decide partir, numa viagem em que pesquisa sete planetas. A última estação é a Terra, onde ele encontra um aviador que fez um pouso forçado no deserto.

Agora, 80 anos após o lançamento da primeira edição, em 6 de abril de 1943, eu quis dar mais uma chance a esse conto da carochinha moderno. Li os 27 capítulos de uma vez só. E dessa vez eles me tocaram: a linguagem simples, os desenhos singelos – eles enganavam.

Não é uma história infantil, mas, antes, uma lembrança do nosso lado infantil. O livrinho trata das questões realmente grandes, que só os adultos se colocam, como amor, solidão, morte. Então, não é de espantar que eu, menina da escola primária, houvesse sentido nitidamente: aqui está se falando de algo importante, algo que eu (ainda) não posso entender. A leitura por um adulto, em tom sério, me espantou.

Último livro de um apaixonado aviador francês, O pequeno príncipe foi primeiro lançado em Nova York. Quando, três anos mais tarde, saiu a edição francesa, o hoje celebrado autor não estava mais lá para vê-la: em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, ele saíra num voo de reconhecimento e nunca mais retornara.

Amor pela aviação, literatura como hobby

A carreira de piloto de Antoine de Saint-Exupéry, nascido numa família nobre de Lyon em 29 de junho de 1900, começou com voos sobre Paris, para turistas. Na década de 1920, ele trabalhou sucessivamente em Toulouse, Casablanca e Dacar, e assumiu a chefia do aeroporto do então Protetorado Espanhol em Marrocos, onde salvou diversos colegas forçados a pousar no deserto.

Mais tarde transferiu-se para a Argentina, onde atuou como correio aéreo noturno. Em suas repetidas tentativas de estabelecer recordes de voo, sobreviveu a duas quedas: entre Paris e Saigon, e entre Nova York e a Terra do Fogo. Quando a Segunda Guerra começou, em 1939, foi recrutado e presenciou a blitz aérea das Forças Aéreas alemãs no nordeste da França.

Paralelamente à aventurosa carreira de aviação, durante certas etapas de sua vida Saint-Exupéry escreveu romances muito apreciados. Porém, mesmo sendo laureado com prêmios literários, ele se considerava, em primeiro lugar, um piloto de carreira, e escritor amador.

De início, 'O pequeno príncipe' decepcionou seus leitores: em vez de um romance de aventuras, um conto agridoce, ilustrado pelo próprio autor. No entanto, ali também estão eternizados episódios da biografia de Saint-Ex, como o chamavam os amigos: assim como seu narrador, ele teve uma pane, caiu num deserto e sobreviveu durante vários dias sem água, até que uma caravana o resgatasse.

Certo é que ninguém poderia ter sonhado que esse livrinho se tornaria não apenas o mais conhecido, mas também o mais vendido da França: mais de 200 milhões de exemplares, em traduções em 340 dialetos e idiomas, inclusive o dos inuit, dos tuaregue e dos maia, além da língua fictícia klingonês, da série de TV Jornada nas estrelas (Star Trek).

"É cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando"

"Desenha-me um carneiro", é a primeira coisa que o pequeno príncipe diz ao aviador que caíra no deserto. "Quando o mistério é muito impressionante, a gente não ousa desobedecer. Por mais absurdo que aquilo me parecesse, a mil milhas de todos os lugares habitados e em perigo de morte, tirei do bolso uma folha de papel e uma caneta."

O piloto desenha três carneiros, todos são rejeitados. Perdendo a paciência e ansioso por consertar o motor de seu avião, ele acaba por desenhar uma caixa e diz: "O carneiro que tu queres está dentro." Para sua grande surpresa, o excêntrico garoto fica maravilhado.

Eu, em criança, não fiquei. Não percebia a genialidade dessas falas. Minha fantasia infantil era bem desenvolvida, mas se estão me lendo um livro, então, por favor, direito e até o menor detalhe. Hoje, essa passagem me convence plenamente: é uma ode à fantasia, à lucidez infantil sem ideias preconcebidas.

"As pessoas grandes nunca entendem nada sozinhas. E é cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando", escreveu Saint-Exupéry no primeiro capítulo.

Sabedoria de vida para todos

O livro transborda de sabedorias de vida: "Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos" é possivelmente a mais conhecida, e vive reaparecendo nos álbuns de poesia e nas tatuagens de parede dos estúdios de ioga. Mas, ao lado das considerações sobre amor, amizade e morte, o livro também contém crítica social.

Assim, antes de chegar à Terra o pequeno príncipe viaja por seis asteroides, e em cada um tem um encontro fora do comum: um monarca que busca súditos; um vaidoso que quer ser admirado; um bebedor que bebe para esquecer a vergonha de beber; um acendedor de lampiões que obedece cegamente os regulamentos; um geógrafo que explica o mundo, mas nunca o viu; um homem de negócios que pensa ser dono das estrelas.

O negociante parecia tocar meu professor de francês (claro, na aula a gente leu Le petit prince no original). Eu não me dava com ele: era um homem desagradável, soturno, que obviamente não gostava de crianças. Mas ao ler sobre o homem de negócios obcecado por números, incapaz de pensar em qualquer outra coisa, de tanto contar as estrelas, até esse professor de repente ficou suave e cuidadoso. Como se quisesse nos transmitir algo importante. Uma lição de vida? Ou talvez um arrependimento: o que foi feito dos meus sonhos infantis?

"As pessoas grandes já foram crianças, mas só poucos se lembram", escreveu Saint-Exupéry logo no início de sua obra-prima. Como poucos outros livros, O pequeno príncipe lembra como é ser criança. E talvez por isso permaneça eternamente jovem, mesmo 80 anos depois da primeira edição.

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