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Por Irlan Simões

Jornalista e pesquisador do futebol

Rio de Janeiro


As semanas finais do ano de 2023 reservaram fortes emoções para os torcedores do Sport Club Internacional e do Club Atlético Boca Juniors. Mas não tinha bola rolando, nem time em campo.

Dois semifinalistas da última Libertadores, Inter e Boca convocaram suas torcidas para outro tipo de decisão: as tradicionais, disputadas e massivas eleições presidenciais. Com recorde histórico de participação em ambos os casos.

No dia 9 de dezembro, a contagem dos votos registrou a participação de 29.796 sócios do Internacional no pleito que reelegeu Alessandro Barcellos, superando em uns 735 votos a eleição de 2020 (o recorde anterior). A grande maioria desses votos se deu on-line, modelo adotado pelos colorados há alguns anos.

Pouco depois, no dia 18 de dezembro, com votação presencial no gramado de La Bombonera, o número de votantes da eleição do Boca Juniors foi ainda maior. Superando a eleição anterior (2019) em mais de 5 mil votos, o pleito de 2023 mobilizou nada menos que 46.402 sócios xeneizes para a eleição do ídolo Juan Román Riquelme, que foi vice-presidente na gestão que se encerrou.

Lista atualizada de grandes eleições de clubes pelo mundo, após pleitos de 2023 no SC Internacional e no CA Boca Juniors — Foto: Irlan Simões

Os dois pleitos foram movimentados por contextos políticos parecidos: as diretorias reeleitas contaram com o apoio de movimentos dispostos a romper de vez com o domínio de poderosos grupos que comandaram esses clubes por muitos anos. Longe de alianças acríticas, esses apoios táticos de movimentos de torcedores de arquibancada fizeram grande diferença no resultado final.

Do lado do Internacional, o longevo, sempre forte, mas também muito criticado Movimento Inter Grande (MIG) saiu derrotado mais uma vez. Do lado do Boca Juniors, a escolha por Riquelme foi a garantia de que os grupos vinculados ao ex-presidente Maurício Macri, reunidos no movimento Unidos Por Boca, não voltariam a dar ordens em La Bombonera.

Embora seja injusto chamar as gestões reeleitas de fracassadas, é fato que os dois projetos vencedores não puderam apresentar muitas taças como trunfos eleitorais – razão que também ajuda a explicar votos tão disputados, numerosos e politicamente acirrados. Por conta disso, discursos políticos de renovação, modernização e democracia pesaram mais do que o convencional apelo à continuidade, tão comum em eleições do tipo.

No Internacional, quase metade dos votos da chapa vencedora foi mobilizado pelo grupo O Povo do Clube, que apesar da aliança na eleição, ainda se apresenta como independente – o grupo também emplacou 44 dos 150 novos conselheiros eleitos em 2023.

No Boca Juniors, pesou a mobilização de rua do grupo Boca es Pueblo, que há anos denuncia as intenções dos aliados de Mauricio Macri de transformar o Boca Juniors em uma "sociedade anónima deportiva" (SAD), uma espécie de "SAF da Argentina".

Oriundos de culturas torcedoras e políticas diferentes, Internacional e Boca Juniors acabaram apresentando histórias muito importantes para imaginar o futebol do futuro e o futuro dos demais clubes.

Em tempos de tanto fatalismo quanto à inevitabilidade do modelo de SAF, há clubes associativos democráticos e populares – como são esses dois, seus rivais e tantos outros por aí –, que estão superando consecutivamente seus recordes de participação eleitoral.

O modelo associativo pode até dar razões para ser questionado, só não pode ser ignorado em sua pujança, renovação e poder de mobilização (logo, de geração de receitas também). O que se vê é um crescimento inédito do número de associados. Após alguns meses de fidelidade comprovada, esses se tornam eleitores aptos e votantes e proporcionam eleições dessa magnitude.

Para entender amiúde como cada clube funciona, seria preciso observar os principais fatores de afastamento do torcedor: o custo da associação ao clube e o direito político concedido à modalidade local de “sócio-torcedor”. Nesse quesito, o Internacional é parte de um grupo minoritário de clubes brasileiros com eleições diretas e massivas.

Enquanto na Argentina esse quesito é praticamente padronizado (assembleias gerais anuais de apreciação de contas e uma eleição para diretoria a cada três ou quatro anos), no Brasil há uma enorme variedade de planos, custos, prazos e modelos eleitorais, algo que dificulta a própria classificação dos modelos (fechado/aberto; restrito/popular; direto/indireto; etc.).

Há outros países que se destacam pelas grandes eleições de clubes, como Uruguai, Portugal, Espanha, Egito, Turquia, Alemanha (cujos clubes não aparece na tabela porque realizam eleições em meio a assembleias mais longas, que não são apenas eleitorais). Há ainda outros países com associações menos numerosas ainda ativas, como Países Baixos e Suécia.

Um elemento particular do Brasil é o chamado “Conselho Deliberativo”. Esse órgão, de certa forma, ainda é um resquício de um tempo em que as associações eram mais fechadas, mas foi alvo de reforma em muitos clubes. Em muitos deles, passou a ter composição proporcional, estabelecida de acordo com a quantidade de votos na eleição.

Há também os clubes que excluíram ou limitaram drasticamente a concessão de títulos de membros com poder eterno de voto no Conselho Deliberativo, que não precisam ser eleitos (conselheiros vitalícios, natos, beneméritos ou outros).

Como a figura do Conselho Deliberativo não existe na Argentina, as medidas mais importantes passam sempre pela Assembleia Geral (totalidade dos sócios), logo, não há essa espécie de “órgão mediador” ou “poder legislativo”. O que pode ser bom e ruim ao mesmo tempo.

No Internacional, além da vitória de Alessandro Barcellos, o destaque maior ficou pela quantidade de votos do movimento O Povo do Clube: quase 8 mil votos para o Conselho Deliberativo. O grupo passou a ter 91 conselheiros de um total de 300 membros.

No Boca Juniors, a ausência dessa estrutura mediadora dificulta a representatividade de um grupo como o Boca es Pueblo, mas também dá à Assembleia Geral um papel mais importante nos rumos do clube (para além da eleição em si).

Como se percebe, essas duas eleições massivas suscitam várias questões úteis para a reflexão. Clubes são organizações plurais, heterogêneas e capazes de mobilizar dezenas de milhares de indivíduos por um mesmo objetivo, mesmo em um momento de divisão como um processo eleitoral.

De forma mais especial, essas duas eleições indicaram: quea participação política nos clubes associativos tem crescido consideravelmente; que o nível do debate político tem se elevado, mostrando maior maturidade e menor apego aos resultados esportivos imediatos; que há uma incidência cada vez maior de torcedores sem "sobrenomes", vindos das arquibancadas e dedicados a defender bandeiras pouco usuais aos velhos dirigentes; e que a vivência política dos torcedores nos clubes não é exatamente uma antítese das SAFs, mas pode prejudicar a narrativa da inevitabilidade do modelo.

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