A Copa do Mundo terá 736 jogadores. De todos os continentes,
todas as raças, todos os gostos, os mais diferentes. Entre eles está Benoit
Assou-Ekotto. Um sujeito que não gosta muito de futebol, fala com
impressionante desenvoltura sobre políticas sociais e adoraria conhecer as
favelas da Rocinha e da Cidade de Deus durante o Mundial. Ele vai enfrentar o
Brasil no dia 23 de junho, em Brasília.
Quando se digita o nome do lateral-esquerdo camaronês nos
sites de pesquisa, uma das expressões que surgem é: “Ekotto odeia futebol”. Não
é bem assim. É que em 2010, ele deu uma entrevista ao “Guardian”, da
Inglaterra, e disse que encarava o futebol apenas como profissão, e não uma
paixão. Era uma resposta ao presidente do Lens, seu ex-clube, que o acusou de se
transferir por dinheiro.
- Quando algum jogador vai para o clube dele, qual o motivo?
Por que acham bonito? Todos, quando vão para um trabalho, é por dinheiro - disse na época.
Tamanha sinceridade causou estranheza, mas não é a única
característica marcante do lateral. Totalmente engajado em causas sociais, ele
tem uma fundação, a BAE32, que incentiva os jovens a seguirem carreiras nos
ramos da ciência, tecnologia, engenharia e matemática.
Titular da equipe do técnico Volker Finke, Ekotto, de 30 anos, quer
aproveitar sua passagem pelo Brasil para “conhecer pessoas e se tornar um homem
melhor”. Bem humorado, ele concedeu uma entrevista por e-mail ao GloboEsporte.com e confirmou que não é lá muito fã de futebol, apesar de também citar jogadores atuais e antigos. Ele se encanta mesmo ao falar de gente.
- Eu espero que possamos usar a Copa do Mundo para encorajar
um ou dois meninos ou meninas a sonharem um novo sonho.
O Mundial também servirá para Ekotto e seus companheiros
tentarem se recuperar do vexame de 2010, quando os Leões Indomáveis, como é conhecida a seleção de Camarões, perderam as três partidas na
África do Sul. O jogador, emprestado atualmente no Queens Park Rangers, disse
que será preciso defender o orgulho do grupo. Ele também fez elogios a Neymar e
previu que, um dia, ele será o melhor do mundo. Mas, hoje, ainda está abaixo de
jogadores como Messi, Cristiano Ronaldo, Luis Suárez e Ibrahimovic. Confira a íntegra:
O que você espera da
Copa do Mundo no Brasil? Será especial disputar essa competição no país que é
pentacampeão e onde nasceu Pelé?
A Copa do Mundo é um torneio especial. Daí, você tem uma Copa do Mundo no
Brasil depois de uma na África. Melhor impossível. Acho que vai ser um torneio
maravilhoso, e também será memorável ter a melhor competição de futebol do
mundo na casa de Pelé, Tostão, Cafu, Ronaldo, Ronaldinho e, é claro, Roberto
Carlos. Ele não era um mau lateral-esquerdo...
Como está a
preparação dos Leões Indomáveis para a Copa do Mundo? Você acredita que
Camarões, Croácia e México vão lutar pela segunda posição do grupo ou uma delas
pode surpreender o Brasil?
Nossa comissão técnica está trabalhando duro para garantir que estejamos
prontos e sejamos competitivos no grupo. Vamos nos preparar bem para cometermos
todos os erros durante a preparação. Assim, saberemos o que não fazer quando
for pra valer. Estamos em um grupo forte, com bons times, então teremos de ser
compromissados, profissionais e ambiciosos. Eu já joguei ao lado do Modric,
Corluka e Niko Kranjcar, da Croácia, e o Giovanni dos Santos, do México. Então,
pelo menos os jogadores não são desconhecidos para alguns de nós. No início,
estaremos todos iguais. O Brasil estará em casa, assim como a última Copa foi
na África do Sul. A Alemanha não venceu em casa em 2006. Então, enquanto eles
têm a vantagem de estar em casa, nós não podemos nos resignar a brigar pelo
segundo lugar antes de a bola rolar.
Qual a importância de
Samuel Eto’o para a seleção? A experiência dele pode fazer a diferença em
partidas tão equilibradas?
Temos sorte de ter a qualidade e a liderança de uma estrela do futebol
mundial como Samuel Eto’o. Ele poderia acrescentar qualidade a qualquer equipe,
mas dá isso aos Leões Indomáveis. Ele foi feito para os grandes eventos, sabe
como lidar com pressão e expectativa, e o que pode representar para o time.
Você chegou a
conhecer o Julio César no QPR? O que acha dele? O fato de ele estar jogando
agora pelo Toronto, na MLS, pode ser um problema para o Brasil?
Julio é um cara muito legal. Foi um prazer e um privilégio passar um tempo
com ele no QPR. É importante para ele ganhar tempo de jogo. Ele pode fazer
parte da Copa do Mundo, e espero que faça porque a Copa é a vitrine para o que
há de melhor em nosso esporte e ele é, definitivamente, um dos melhores. No
Toronto, ele vai jogar e ficar em boa forma para servir ao Brasil se for chamado.
Ele tem muita experiência, sabe o que representa e o que precisa para ser o número
1 do Brasil. Mas ele não é tão bom quanto meu amigo Charles Ijanje (goleiro da
seleção de Camarões). Hahaha!
Qual é o objetivo de
Camarões na Copa do Mundo?
Dar nosso melhor. Quando a Copa acabar para nós, deveremos saber que
chegamos tão longe quanto nosso talento e esforço permitiam, demos tudo que
tínhamos. Dessa vez, temos que dar 100% e mostrar nossos pontos fortes. Fomos
uma decepção na África do Sul e estamos trabalhando duro para ter a chance de
compensar os erros de quatro anos atrás. Primeiramente para nossos irmãos e
irmãs camaroneses, depois para a África como um todo e os muitos fãs ao redor
do mundo, que amaram e torceram para Camarões através das últimas Copas do
Mundo, vestindo nossas cores e dançando como Roger Milla (atacante histórico do país, que disputou os Mundiais de 1990 e 94).
Por último, para nós mesmos, jogadores e comissão técnica. Somos os Leões e
devemos defender nosso orgulho.
O que você sabe sobre
o futebol brasileiro? Os clubes, técnicos, estádios?
Eu realmente não assisto a futebol, então tenho de ser honesto e dizer que
não sei muito. Conheço o Maracanã apenas porque ouvi seu nome muitas vezes ao
longo dos anos. Sei que o campeonato do país está bom e forte novamente porque
muitos jogadores estão voltando da Europa para o Brasil, e muitos estão ficando
mais tempo no país antes de irem para a Europa. Mas, realmente, não sou um fã
de futebol a ponto de conhecer clubes, técnicos, estádios, etc. Entretanto,
estive com o Gomes (goleiro) durante muitos anos no Tottenham e meu irmão
Sandro é um cara fantástico. Há também o Paulinho, que assinou com o Tottenham
quando conheci o Julio no QPR. Na Inglaterra, há muitos jogadores brasileiros,
desde Fernandinho, no Manchester City, até Willian, Oscar, Ramires e David Luiz
no Chelsea, Coutinho no Liverpool e Rafael no Manchester United. Acho que você
pode fazer uma seleção brasileira com jogadores que estão ou já estiveram na
Inglaterra, e essa seleção pode vencer a Copa do Mundo.
O que você acha do
Neymar? Ele está no mesmo nível de Messi e Cristiano Ronaldo?
Acho que é como se Ronaldo e Messi tivessem uma liga própria. Neymar é
bom, estou certo de que ele chegará a este nível e, talvez, possa
superar. Mas, agora, esses caras são diferentes. Eles, Ibrahimovic, Suárez e
alguns outros. Eu me lembro que antes
um bom atacante só tinha de chegar aos dois dígitos e, se fizessem 20 gols, “wow”!
Esses caras estão marcando 30, 40, 50... É inacreditável. Eu joguei contra
Ronaldo no mês passado, em Portugal, e vi seu ritmo, força, habilidade, visão,
fome... É incrível. Eles são consistentemente diferentes, e é assim há muitos
anos. Não é apenas uma temporada, são várias.
Você é muito engajado
nas questões sociais e o Brasil tem uma gama de problemas e desigualdades entre
as pessoas. Você quer conhecer algo em especial no país, algum lugar ou alguma
pessoa?
Eu sou muito apaixonado pela história humana. Muitas vezes, nos esquecemos de
que nosso mundo é sobre pessoas e não coisas. O Brasil é uma grande potência
mundial agora e, como africano, conheço muitos de nossos líderes
sócio-políticos que veem o Brasil como um diagrama para o crescimento. Estou
excitado com o Brasil em nível humano porque é a casa da maior diáspora
africana no mundo. É também uma das economias emergentes mais fortes e pode ser
um bom exemplo para países pequenos como o meu. Estou trabalhando com minha
fundação, a BAE32, para lançar uma plataforma que encoraje a educação e o
emprego na ciência, tecnologia, engenharia e matemática para os jovens.
Educação é importante, sem ela não podemos construir povos, conexões e nações. Há
problemas sociais em todos os lugares, o único caminho para reduzi-los é
encontrar soluções que permitam o crescimento das pessoas. No coração de toda desigualdade
está a educação e, para mim, não é só se você aprende ou não, mas o que você
aprende e como é ensinado. Espero que possamos usar a Copa do Mundo para
encorajar um ou dois meninos ou meninas a sonharem um novo sonho.
Recentemente, dois
jogadores brasileiros, Arouca e Tinga, foram vítimas de racismo, entre outros
casos de menor repercussão. Qual deveria ser a punição para casos de racismo no
futebol?
É sempre uma tragédia quando uma pessoa é julgada apenas pela cor de sua
pele. É frustrante que possamos mandar o homem à lua, mas não sejamos capazes
de ver que, como humanos, nós temos mais coisas em comum do que diferenças,
independentemente da cor da pele. Se os alienígenas chegarem à Terra, não vão distinguir
os diferentes tipos de pessoas... Para eles, seremos a mesma espécie. Mas sou
apenas um jogador de futebol, minha colaboração é jogar, entreter. Os
administradores estão mais bem equipados para fazer as leis. Eles devem
estabelecer leis e regras que reflitam o mais ambicioso apelo à dignidade
humana.
Se você tivesse uma
semana de férias no Brasil, o que gostaria de fazer ou de ver?
Sou um cara muito preguiçoso e gosto do sol. Então, suponho que me deitaria
em alguma praia e apenas dormiria. Bem... Vou precisar de internet rápida para poder
assistir a “Band of Brothers” (série
norte-americana de televisão). Mas, se não me permitirem ser preguiçoso,
dormir e ver televisão, eu gostaria de visitar algumas favelas e conhecer jovens
apenas para ouvir seus sonhos. Um dos meus colegas me falou sobre um interessante
projeto na Rocinha, no Rio, e eu gostaria de ver isso. Há a Cidade de Deus, que
se tornou famosa pelo filme. Eu não gostaria de fazer passeio de turista, e sim
de conhecer pessoas, jovens, ouvir suas histórias, ver alguns de seus desafios.
Conhecer humanos cujo dia-a-dia seja diferente do meu e aprender algo novo.
Talvez, como ser um homem melhor. Aqueles que parecem ter menos sempre têm mais
a dar.