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Gustavo Endres quer manter "imagem vencedora" como paizão e dirigente

Em entrevista exclusiva, campeão olímpico em Atenas fala de sua aposentadoria aos 39 anos e passa a limpo quase duas décadas de "sacrifício prazeroso" ao vôlei

Por Canoas, RS

 








Sexta-feira à tarde e lá estava Gustavo Endres. Aos 39 anos, percorrera uma vez mais o caminho de cerca de dez minutos entre sua casa e o Ginásio La Salle. Trajeto corriqueiro nos últimos dois anos e meio de Vôlei Canoas, primeiro clube que defendeu em sua terra, o Rio Grande do Sul. Ao pisar a quadra, repetiu ataques, manchetes, levantamentos e bloqueios, todos movimentos ainda mais prosaicos em sua vida. Também pudera. Foram quase 20 anos de carreira como jogador profissional, encerrados na última terça-feira, em Taubaté, quando anunciou sua aposentadoria após a derrota de sua equipe nas quartas de final da Superliga. Um ponto final simbólico para uma trajetória polvilhada de conquistas pela seleção brasileira.

O Gustavo detentor da medalha de ouro dos Jogos Olímpicos de Atenas, hexacampeão da Liga Mundial de Vôlei, bi da Copa do Mundo e dono de um dos melhores bloqueios do mundo fica marcado na história de uma geração mais do que vencedora no esporte nacional. Entra em cena o Gustavo dirigente. O adeus das quadras não significa o adeus ao esporte. Endres assumirá um cargo na diretoria do Canoas. Está obstinado e engajado a fazer crescer a modalidade em seu estado natal e manifesta revolta ao desvio de dinheiro de parte dos cartolas da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV). Crítico, se sente "traído" pelo escândalo.

Também vem à tona o Gustavo "paizão" de Eric, 15 anos, e Enzo, 11. Que põe a mão na massa. Seja em casa, ao cultivar sua horta pessoal e cuidar do jardim, ou para incentivar - e bem de perto - os pupilos, que pretendem seguir os passos do pai.

Gustavo Endres aposentadoria (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)Gustavo recebe o carinho dos filhos após o treinamento (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)


Não havia motivo melhor para que o ex-jogador voltasse às quadras. Dali, observou atento aos movimentos dos filhos. Elogiava a cada acerto e fazia provocações a cada erro. Não resistiria por muito tempo. Encerrado o treinamento, entrou em ação para trocar passes com os pupilos. Esqueça, porém, o Gustavo líder, por vezes provocador, e obstinado a vencer em meio a muitas cobranças. Ali, eram só sorrisos, piadas e risadas de um pai coruja. A única disputa entre o trio é vinculada à altura. Com 1m90cm, Eric afirma que crescerá até os 2m15cm. Enzo, 1m61cm, diz que vai até os 2m18cm. Gustavo, com 2m03cm, garante que nenhum dos dois passará o pai.

- Nunca cobrei eles para seguirem a carreira do voleibol. Minha única exigência é que pratiquem esportes e que cuidem um pouco da alimentação. Só peço que eles se dediquem ao máximo, assim como foi a minha carreira no vôlei. Esse é o ensinamento que eu tive na minha carreira que quero passar para eles - destaca o campeão olímpico e pai zeloso.

O ex-meio de rede recebeu o GloboEsporte.com na tarde da última sexta-feira para apresentar sua Canoas e (ao menos tentar) resumir sua carreira vitoriosa em uma carona de carro entre o Ginásio La Salle e sua casa (confira no vídeo acima). Relatou suas principais conquistas e alegrias, em meio a inúmeros títulos, e algumas tristezas. Foi derrotado na final olímpica de 2008, mas sofreu ainda mais ao ver o irmão, Murilo, ficar com a prata em 2012. Lamentou a falta de exposição do vôlei, mesmo diante dos triunfos sob o comando de Bernardinho e revelou ainda que deixou as quadras com um sonho em aberto: ser campeão da Superliga. Põe nos filhos e no Vôlei Canoas a "responsabilidade" de cumprir tal missão.

- Sou muito compensado, realizado, mas faltou a Superliga, que pesou na minha carreira. Quem sabe os meus filhos não realizam o sonho do pai. Ou quem sabe o Vôlei Canoas? - destaca. - Vou tentar passar minha experiência, minha imagem de vencedor para que a gente possa fazer esse projeto (do Canoas) ir cada vez mais longe.

> Confira a íntegra da entrevista com Gustavo Endres:

GloboEsporte.com - A sua aposentadoria do vôlei foi algo planejado há mais tempo ou a decisão foi tomada recentemente?
Gustavo - Ela veio sendo pensada durante toda essa temporada que passou. Já no ano passado, tive esse pensamento de parar. Conversei com a minha esposa, minha família e com clube, e achamos melhor fazer mais uma temporada. Foi uma decisão bem tranquila.

A Olimpíada de Atenas foi muito especial. Nós trabalhamos durante quatro anos para chegar àquele momento no máximo da nossa forma técnica, tática e emocional. Era uma filosofia de muito sacrifício e de muito altruísmo.
Gustavo Endres

Na entrevista após a partida, ainda em quadra em Taubaté, você disse que sua esposa, Raquel, deveria estar chorando em casa. Foi um momento de emoção, mesmo?
Ela falou que ficou muito emocionada, não chegou a chorar, mas sentiu muita alegria, muita felicidade porque agora não teria a competição com o vôlei. Eu seria exclusivamente dela. É uma etapa que termina, e uma nova que vai começar, como dirigente. É claro que quero ficar no vôlei, que é o que eu sei fazer, o que sempre quis fazer. Vou tentar passar minha experiência, minha imagem de vencedor para que a gente possa fazer esse projeto cada vez mais longe.

Você permaneceu quase 14 anos na Europa, depois atuou durante três anos no Pinheiros, até se transferir ao Canoas. Por que você optou por essa mudança para uma equipe de menor expressão na Superliga? 
Tive o prazer de jogar pelo Pinheiros durante três temporadas, um contrato de três anos, praticamente inédito no vôlei, aí, tomei essa decisão. Queríamos ficar mais na Itália, mas devido a essa continuidade de projeto, vim para cá. Aí, quando acabaram esses três anos, escolhi o Canos porque é a equipe do estado em que eu nasci, que eu mais me identifico, onde minha imagem é mais forte. Também teve essa proposta de ser um administrador, de estar na gestão. Isso me atraiu e me fez tomar essa decisão de voltar para o Rio Grande do Sul.

Gustavo Endres aposentadoria (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)Gustavo Endres aposentadoria (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)

Até por que você nunca jogou no Rio Grande do Sul. Essa volta ao estado natal tem a ver com isso?
Isso, eu acho que pegou o lado emocional de voltar para cá. Nunca tinha sido campeão gaúcho, agora sou tricampeão gaúcho. Mas me identifiquei muito. No primeiro momento, no dia que vim para cá, vi que seria uma equipe diferente. Com um projeto social de ajudar uma cidade. E isso pesou muito.

Ouro olímpico, seis Ligas Mundiais, duas Copas do Mundo... Faltou alguma coisa para você conquistar na carreira?
Sou muito compensado, realizado, mas faltou a Superliga, que pesou na minha carreira. Quem sabe os meus filhos não realizam o sonho do pai. Ou quem sabe o Vôlei Canoas?

Eu sinto como uma traição, realmente. Não só a mim, mas a todos os jogadores de vôlei.
Gustavo, sobre o escândalo da CBV

Hoje (sexta-feira) você acompanhou o treino dos seus filhos, nas categorias de base do Vôlei Canoas. Você cobra muito eles? Como é essa relação? 
É bem tranquila. Nunca cobrei eles para seguirem a carreira do voleibol. Eles fizeram outros esportes, também. Minha única exigência é que pratiquem esportes e que cuidem um pouco da alimentação. Quando estávamos na Itália, escolheram o basquete, quando voltaram, fizeram um pouco de judô, agora vieram para o Sul, nós criamos as categorias de base do Vôlei Canoas, para a gente começar esse projeto. Convidei, e eles prontamente se dispuseram a fazer parte das equipes. Mas eu não cobro que sejam jogadores de vôlei. O que eles escolherem para a vida deles não importa. Só peço que eles se dediquem ao máximo, assim como foi a minha carreira no vôlei. Esse é o ensinamento que eu tive na minha carreira e que quero passar para eles.

Olhando para trás, em uma carreira de mais de 20 anos de voleibol, qual foi o momento mais marcante?
A conquista da Olimpíada de Atenas, em 2004, foi muito especial. Nós trabalhamos durante quatro anos para chegar àquele momento, àquele campeonato, àquela Olimpíada no máximo da nossa forma técnica, tática e emocional. Trabalhando muito essa filosofia de muito sacrifício e de muito altruísmo. De fazer o nosso papel, mas querendo que o jogador do lado fosse melhor ainda.

Mosaico - NA TRILHA DO PAI | Filhos de Gustavo Endres querem seguir carreira no vôlei (Foto: Editoria de Arte)Gustavo observa e põe a mão na massa em treino dos filhos (Foto: Editoria de Arte)


Naquela final, você cumpriu uma função que não é muito sua praia. Nos momentos finais da partida contra a Itália, você acabou como levantador. Como foi aquele episódio?
Para se ver como as coisas acontecem e são engraçadas. A bola sobrou para eu levantar, porque a gente tinha posto o Rodrigão para bloquear no lugar do Ricardinho para aumentar a rede. Ele  tocou na bola, ela sobrou para mim, eu saí correndo, levantei para o Giba, e a equipe italiana defendeu. A bola voltou para mim, eu levantei para o Giba, e ele fez o ponto. Então é muito legal porque você está preparado para coisas que você não faz normalmente no voleibol. Sobraram duas bolas e eu tive que fazer o levantamento para matar o ponto.

Tem que abrir mão de muita coisa, desde o casamento, os nascimentos dos filhos, aniversários que não tive como participar. É um sacrifício prazeroso, de defender seu país
Gustavo Endres

O quão importante foi o papel do Bernardinho para a sua carreira e para o vôlei brasileiro?
Ele revolucionou o vôlei masculino. Éramos egoístas, pensávamos só em ataque, queríamos ser só atacantes. E ele mudou esse conceito, porque nós temos uma variedade de ataque, com nossos grandes levantadores, a gente tinha uma facilidade muito grande. Era o último dos nossos treinamentos. A gente treinava muito bloqueio e defesa. O ataque sobressairia com nossos atacantes. Mas ele passava que, se nós soubéssemos defender, bloqueássemos e atacássemos, seríamos os melhores do mundo. Então, ele colocou isso na nossa cabeça. Esse é um dos grandes segredos que ele fez nesses 12 anos à frente da seleção. Sempre o trabalho de um fazer o melhor para que o outro seja o melhor.

Em contrapartida, o pior momento foi a derrota para os Estados Unidos na edição seguinte dos Jogos Olímpicos, em Pequim?
Não diria o pior momento, mas a pior derrota, por ser na Olimpíada, acho que foi. Perdemos para a equipe americana, que mais se encaixava contra nós, que ganhou vários jogos. Tínhamos dificuldades para ganhar, e eles ganharam de novo. Foi a derrota, pela importância do campeonato, a mais difícil. 

Gustavo Endres aposentadoria (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)Gustavo Endres cuida da casa na aposentadoria (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)


Em 2012, nos Jogos Olímpicos de Londres, você não estava presente, mas seu irmão, Murilo, e muitos ex-companheiros estavam. Como foi acompanhar aquela derrota tão dolorida para a Rússia?
Aquela ali. Foi muito difícil. Porque ganhamos o primeiro e o segundo set, e estávamos jogando muito bem mas na metade do terceiro, a equipe russa começou a equilibrar o jogo, depois, quando eles ganharam o set, eu vi que era difícil o Brasil ganhar a medalha. Eles fizeram uma mudança drástica na equipe, botou de oposto. Foi difícil por ser brasileiro, por ter sempre feto parte da seleção, mas também pelo meu irmão. Ele está sempre ali, na segunda Olimpíada dele, ele está na medalha de prata. Ele está buscando essa medalha de ouro, vai para a terceira, no rio. Eu fico triste por ele, mas eu sei que ele vai chegar lá. 

Ele revolucionou o vôlei masculino. Éramos egoístas, pensávamos só em ataque, queríamos ser só atacantes. E ele mudou esse conceito
Gustavo, sobre Bernardinho

Você tem algum projeto para ajudar a Seleção na busca pelo ouro nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016? Acha que a equipe está pronta para vencer?
Projeto, não, mas eu me coloco à disposição, se precisarem da minha experiência. Mas é uma equipe muito experiente, tem jogadores que jogam fora do Brasil, como o Bruninho, o Murilo, mas precisa de um título. Foi duas vezes vice-campeã mundial, foi vice-campeã olímpica, então o que falta é o titulo para ganharem mais confiança.

Entre todos esses anos de Seleção, tem algum companheiro que mais o marcou? 
Nesses oito anos da era Bernardinho, sempre fiquei no quarto com o Anderson e foi muito bacana, porque um motivava o outro, criticava o outro, falava o que o outro precisava melhorar. Ter um parceiro de ficar no mesmo quarto durante oito anos foi importante para mim e para ele. Ficamos oito anos debatendo voleibol. Então é um cara que eu levo para sempre.

Você fala muito em ter feito sacrifícios em sua carreira. Que sacrifícios são esses?
Sacrifício por causa da família. Tem que abrir mão de muita coisa, desde o casamento, os nascimentos dos filhos, aniversários que não tive como participar. Com uma família normal, não acontece isso. É um sacrifício prazeroso, de poder defender seu país, mas sabendo que está abrindo mão de certas coisas para conseguir essas conquistas. 

Mosaico - VÔLEI E FAMÍLIA | Gustavo exibe seus dois orgulhos na sala de casa (Foto: Editoria de Arte) Gustavo exibe seus dois orgulhos na sala de casa (Foto: Editoria de Arte)


Depois de todos esses títulos dessa geração e de tudo o que viveu, você considera que deixa as quadras com a missão cumprida em relação ao voleibol nacional?
Me sinto muito recompensado. Acho que o esporte me deu muito mais do que eu dei. Claro que por ser vitoriosa, nossa geração ficou marcada. Até pelo jeito de jogar, com muita velocidade, muita agressividade. Era muito intensa. Tinha... Não uma garra, mas um diferencial que fazia com que nós ganhássemos. Então fica isso aí, de ser um sacrifício pelo nosso país, mesmo.

Mesmo com tudo o que o vôlei nacional conquistou nos últimos anos, o esporte segue com pouco espaço na mídia. Isso o incomoda?
Eu sei que não tem concorrência com o futebol. Nunca vamos chegar ao status do futebol. Nunca. Mas o que a gente pede é que se tenha uma abertura para outros esportes. Não apenas para o vôlei. Estamos a pouco mais de um ano de uma Olimpíada em nosso país, na qual o Brasil pode bater o recorde de medalhas, e isso me deixa triste. Ver que não tem espaço para outros esportes. Que nunca mostram a marca dos outros esportes, dos patrocinadores, para que eles continuem incentivando ou até para atrair novos investimentos. É isso que me deixa triste e indignado. 

Gustavo Endres aposentadoria (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)A última camisa e a camisa do título olímpico, em 2004 (Foto: Eduardo Deconto/GloboEsporte.com)


Gustavo, você foi um dos atletas que liderou o movimento da vergonha dos atletas em relação ao escândalo da CBV. Você fala bastante do sacrifício por que você e todos os jogadores passam na carreira. Como você encara essa situação?
Eu sinto como uma traição, realmente. Não só a mim, mas a todos os jogadores de vôlei. Tanto que os principais jogadores das principais equipes e eu tivemos a ideia de colocar o nariz de palhaço para protestar. Ninguém é palhaço. Estamos fazendo o melhor pelo nosso esporte, estamos sustentando nossas famílias. Não são só jogadores de seleção, tem tantos outros que vivem do voleibol para sustentar suas famílias. Aí, você vê. Tem outros que estão desviando dinheiro para cunho próprio. É de se ficar indignado. Fizemos esse protesto e estamos de olho na CBV o tempo todo para que não aconteça novamente.

Deu para fazer o chamado "pé de meia" na carreira?
Deu, sim. Os principais  jogadores conseguem fazer o pé de meia, viver tranquilamente. Dá para fazer pé de meia, ou algum investimento. É só saber usar o dinheiro e não fazer nenhuma besteira, que dá para viver com tranquilidade. 

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