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Por Por Marina Pedroso


Não sei qual é a da minha tara por montanhas. Posso ter sido uma cabrita montanhesa em outra vida, claro, mas acho que meu subconsciente entende a subida como uma jornada da heroína – o chamado à aventura e a todas as provações físicas e mentais que, se superadas, te levam ao topo. Mais do que isso: um ato de rebeldia contra todos os limites que dizem existir para uma mulher. Antes de continuar, vou me apresentar: sou Marina Pedroso, jornalista, e estou viajando sozinha há meses.

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

Talvez por instinto, assim que vi no mapa um tal de Monte Kilimanjaro na fronteira entre Tanzânia e Quênia, ambos países no meu roteiro, decidi que colocaria na bucketlist da volta ao mundo que comecei no início de dezembro de 2019, antes de toda a pandemia acontecer. Correm os rumores de que muitos que se aventuram por lá experienciam uma transcendência espiritual. Fora os burburinhos e olhos atentos sobre a possibilidade de topar com um leopardo rondando a montanha...

Digo que foi por instinto que aceitei o chamado porque subir o Kilimanjaro foi de longe a coisa mais difícil que já fiz. Houve um momento em que achei que a mente fosse fragmentar, o corpo desmanchar. Eu subestimei a montanha, mas também a mim mesma – encontrei uma força que não vinha dos músculos e foi o que me fez chegar no cume.

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

Fui sem saber que era o quarto dos sete maiores cumes e a mais alta montanha isolada (que não pertence a uma cadeia, como os Andes ou os Himalaias) do mundo. Os 5.898m que emergem da planície da savana e culminam no Uhuru Peak também dão ao Kilimanjaro o título de teto da África.

Fui sem desconfiar que, pelo menos na rota Machame, eu seria a primeira mulher brasileira em 2020 (e, pelo andar da carruagem, talvez a única) a chegar lá. Fui sem imaginar que cairia em um golpe, que encontraria o tal do leopardo e que eu mesma faria o inimaginável. Mas fui certa de que seria uma jornada.

Mas por que a Machame Route?

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

Na verdade, queria fazer a Coca-Cola Route, a mais fácil. Amo/sou Dora Aventureira, mas pelo sedentarismo dos últimos meses e por ter um histórico com joelhos inflamados, achei que seria o mais sensato. Porém, o dono da agência explicou que a taxa de pessoas que conseguiam chegar ao pico era mais baixa do que em outras rotas justamente porque era subestimada – e então sugeriu fazer a Machame em 6 dias, que podia ser de maior dificuldade, mas também fazia um percurso de aclimatação melhor já que os acampamentos ficavam em uma altitude sempre menor do que o ponto mais alto da trilha de cada dia. Eu estava com Glauco, um amigo brasileiro que fiz em Zanzibar e, como também faríamos alguns dias de safári pelo Serengeti, nos foi oferecido um bom desconto pelo pacote e topamos. Só mais tarde é que perceberíamos a cilada…

Perrengues de outro mundo

Os dois primeiros dias foram leves. Cheguei a sentir dor de cabeça no início, sintoma do mal de altitude, mas foi fácil me distrair: é impressionante a transição da paisagem da floresta para a Moorland, uma das cinco zonas naturais que compõem o ecossistema do Kilimanjaro. A névoa vai ganhando corpo e há árvores e arbustos com redemoinhos modelando as folhas e galhos secos de tal maneira que me lembravam o céu de A Noite Estrelada, de Van Gogh.

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

Também foi no começo que constatei um primeiro perrenguito: no meio do frio tremendo, na primeira noite que passei na Eureka, nossa barraca, percebi que os sacos de dormir eram os mesmos do safari – ralinhos de tudo e com problema nos zíperes. É... considerando que avançaríamos na altitude e que as temperaturas cairiam cada vez mais, pude declarar um “alô, Houston, we have a problem”.

Andávamos uma média de 10 km por dia, cerca de 7 a 8h de trilha e, lá pelo terceiro o corpo deu os sinais que eu temia: as pontadas nos joelhos se converteram em dores agudas e soube que não tinha mais volta – a partir dali, seria uma negociação constante para seguirmos apesar delas. Fora isso, toda manhã passava por um ritual de tortura ao colocar as botas – via estrelas a cada centímetro que escorregava os pés para dentro e a cada passo dado por conta da pele aberta nos calcanhares e de duas unhas roxas.

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

Mesmo assim, minhas pernas me levaram adiante por vales com coqueiros alienígenas e planícies desérticas. Escalaram muralhas que, se tivessem me dito terem sido o local de gravação de cenas de Game of Thrones, não duvidaria. Quando avistei uma fenda rochosa colossal e um enxame de trilheiros atravessando-a como formigas, percebi o quanto éramos pequenos diante da montanha que ousávamos conquistar. Nem todos ali teriam sua permissão para alcançar seu cume e fiquei me perguntando quais critérios separavam aqueles que conseguiriam. Seria uma seleção natural? Uma orquestra regida pelo maestro Kilimanjaro? Ou tínhamos algum livre-arbítrio sobre a natureza das coisas?

É golpe que chama?

O acampamento base (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
O acampamento base (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

No quarto dia, desmontamos a barraca e partimos para mais uma bateria de 7 horas de subidas. Quando chegamos no Karanga Camp, fomos informados da insanidade do itinerário: enquanto todos os outros trilheiros da rota já estavam montando as barracas, pararíamos apenas para o almoço e seguiríamos direto para o acampamento-base, que ficava a outras 4 horas de distância. Então, descansaríamos 2 horas e, às 23h daquele mesmo dia, iniciaríamos o ataque ao cume. A subida nos levaria +6 horas e, a descida, +3. Chegando de volta ao acampamento-base, descansaríamos somente 1 hora e iríamos direto para o próximo acampamento, já a caminho da saída do parque, por outras 2 horas. Aí é que dormiríamos.

Quer dizer... desde o momento em que acordamos no 4º dia, deveríamos trilhar 22 horas para apenas 3 de descanso. Todos que estavam montando as barracas ali estavam fazendo a Machame Route em 7 dias e por isso não pulariam a pernoite como nós. Acordariam no dia seguinte para seguir até o acampamento-base e fariam o mesmo esquema de descansar um pouco antes de subir o cume às 23h, mas teriam uma noite a mais de descanso. Então percebemos a pegadinha. O desconto que havíamos conseguido no pacote não tinha sido um desconto, mas uma diária a menos. Há pessoas que realmente fazem a Machame em 6 dias por aguentarem o tranco, mas eu havia dito à agência que queria a rota Coca-Cola justamente por não confiar totalmente nas minhas condições físicas. O golpe, meu pai.....

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
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O cenário ainda conseguiu piorar. Insistimos para esticar mais um dia até descobrir que o cozinheiro tinha errado o cálculo e trazido menos comida e gás do que o necessário. Então, que jeito tinha senão seguir em frente? E fomos. Mas com a condição de que descansaríamos mais antes de atacar o cume – subiríamos somente na manhã seguinte.

A subida

Eram 11h. Cruzamos todo o acampamento, que parecia não acabar nunca. Íamos encontrando trilheiros que tinham partido ao ataque na noite anterior e que chegavam de volta àquela hora. Ninguém dizia uma palavra e dava pra ver a exaustão nos movimentos pesados e nos rostos queimados de frio. Muitos desciam quase desfalecidos e carregados pelos guias, que seguravam cada um em um braço e arrastavam o corpo trilha abaixo. Olhava a cena e só pensava: “credo!”

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

Logo nesse comecinho, senti meu coração acelerar demais e a pressão cair. Tontura, dor de cabeça. Ah, não... mal de altitude, agora? Depois de tudo que passei? Não! Continuei subindo. E subindo. Subindo. Subindo...

O grau de inclinação e a infinitude do trajeto eram inacreditáveis. Meus pés gritavam comigo, mas nem me importava mais. Um passo atrás do outro, mergulhava cada vez mais na minha cabeça. E então pensei na minha mãe, na minha avó, na bisa e em mil mulheres que vieram antes de mim e que não tinham tido as mesmas oportunidades que eu. Eu era a primeira da minha linhagem a chegar tão longe. Pude trabalhar e juntar dinheiro para bancar a viagem. Pude negar as caixas que diziam ser meu lugar por ser mulher e escolher meu caminho.

Senti uma série de acontecimentos e sacrifícios que aconteceram até então para que eu tivesse a liberdade de alcançar um cume – e elas estavam indo comigo. Como uma pirâmide de mulheres se sustentando para que eu pudesse chegar no topo. É isso: eu tinha a força de mil mulheres dentro de mim. Olhei pra montanha e soube naquele instante: ela não só me dizia que eu tinha sua permissão para chegar lá, como já estava no cume. O futuro já tinha sido decidido por todas as mulheres do meu passado.

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

E então, quando chegamos no Stellar Point, desabei em frente à placa e dei uma choradinha com a testa no chão. Foi uma alegria sem tamanho – até entender que aquele não era o Uhuru Peak. Isso quebrou minhas pernas. Foi como se eu tivesse liberado um bloqueio mental construído para não tomar consciência de toda a exaustão do corpo.

O guia disse que faltava pouco e seguimos caminhando pela neve, nos equilibrando na aresta da montanha. “Já estamos andando sobre ela”, pensava. “Mas cadê a placa? Se está perto, porque não a vejo?” A trilha estreita abria passagem na neve e, cada vez que eu via uma subida, levava um golpe mental: “você não vai conseguir, seu corpo não aguenta mais...”

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

Sentia como se o corpo estivesse se desfazendo pelo caminho. A cada minuto apoiava o peso todo do corpo nos bastões, arfava e torcia o rosto de dor. Fui cantando baixinho pra mim mesma que eu já tinha conseguido, lembrava que tinha a força de mil mulheres. E logo depois de passar por uma curva, vi a placa a cerca de 1km. Eu tinha chegado.

Arrastei os pés até abraçar um dos postes de madeira e comecei a chorar compulsivamente. Agradecia, ria, gritava, chorava ainda mais. Então, lá longe, vi Glauco na trilha. Sentei embaixo da placa, enfiei as mãos no rosto e segui chorando (gente, me deixa). Enxerguei o que minha mente não tinha permitido antes: a 5.895m, estávamos acima das nuvens de tal forma que poderia muito bem ser a vista de uma janela de avião.

Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour
Este relato da primeira brasileira a chegar ao topo do Monte Kilimanjaro em 2020 vai te emocionar (Foto: Marina Pedroso) — Foto: Glamour

O que faz com que alguém alcance seu cume? E o tal dos leopardos, existem mesmo?
Afinal, a montanha me respondeu. Não é sobre força física ou mental: o Kilimanjaro concede a graça da chegada aos fortes de coração. E são estes que também encontram os leopardos - segundo a lenda dos xamãs, esse animal de poder dá proteção espiritual para que a pessoa não se perca nem desista do caminho. Alguém duvida que eu estive cercada deles o tempo todo?

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