O grito de silêncio – de Edvard Munch à pós-modernidade

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Eduardo Argüelles, cardiologista e artista plástico

Este artigo foi originado por uma curiosidade, por um questionamento: qual seria a obra de arte que melhor expressaria o mundo atual, este em que vivemos? Creio que haveria, se não consenso, provável maioria se alguém propusesse “O Grito”, de Edvard Munch.

Para entender tal ligação, é necessário discutir, com algum detalhe, cada um dos personagens envolvidos: o artista, a obra, o ser que somos e o mundo em que vivemos, a pós-modernidade.

O ARTISTA

Edvard Munch foi um pintor, gravador e desenhista nascido em meados do século XIX (1863) em Adalsbruk, pequeno lugarejo próximo a Oslo, no que era, então, o Reino Unido da Suécia e Noruega. Filho de médico militar de fervorosa religiosidade, Munch foi orientado a seguir a carreira de engenheiro, mas logo desistiu para se dedicar inteiramente à pintura e à arte. Fortalecia a decisão, o fato de Munch ter convivido com a arte e a sua história desde cedo, através de familiares próximos.

O artista tornou-se órfão de mãe aos cinco anos, perdendo sua irmã primogênita e preferida, Johanne Sophie, quando eram ambos ainda adolescentes. Posteriormente, viu falecer, ainda jovem, uma outra irmã e conviveu com a insanidade mental de uma terceira por toda a vida, fechando o círculo familiar de perdas com a morte do pai. De compleição frágil e vítima de enfermidades, Munch sofreu com a doença, a frustração, a dor e a morte por toda a juventude, o que lhe causou reflexos graves como a adição ao álcool, angústia, ansiedade, depressão e medo pelo restante de sua existência.

Em 1880 iniciou-se na pintura, viajando a Paris em 1885 e 1889. Nesta segunda ida, como fruto de premiação artística, permanecendo na França por cerca de quatro anos. Em 1892 viajou para Berlim, local em que desenvolveu seu estilo mais marcante, logo passando a fazer parte do círculo mais prestigioso de artistas e intelectuais da cidade.
Entre 1880 e 1885, ainda na Noruega, Munch desenvolveu rápido aprendizado na Escola de Artes e Ofícios de Oslo, produzindo sob a influência do estilo dos impressionistas franceses. Tal prática se acentuou, naturalmente, em Paris, o que fez com que Munch seja citado, equivocadamente, em algumas biografias, como pintor impressionista. Pinceladas largas e traços sequenciais em obras em pastel apresentam semelhanças com o trabalho do grupo francês, havendo, inclusive, alguns em que Munch parece sutilmente se inspirar no divisionismo de Signac, ao pintar paisagens de sua terra natal, da França e da Alemanha. Importante salientar, no entanto, que ainda antes de viver em Paris, Munch já ensaiava os primeiros passos na temática e no estilo que marcaria a sua obra: emoções e sentimentos humanos, em particular os seus próprios.

É de 1885-86 o primeiro quadro, de uma série de seis, em que Munch retrata Sophie sentada e com a cabeça acomodada em um travesseiro, vítima da tuberculose. Enfermidade que havia acometido fatalmente a mãe do artista e que levaria também Sophie à morte. Munch continuou pintando versões da “Menina doente”, mesmo após a morte de Sophie, utilizando apenas a lembrança da cena, demonstrando como o fato real havia impregnado de forma indelével e dolorosa a mente do artista.

Na década de 90 do século XIX e na primeira década do século seguinte, Munch atravessa seu período mais fértil e original, ao expressar, em imagens, sentimentos recolhidos do seu inconsciente mais profundo, frutos das experiências dolorosas de que era vítima.

É desse período a maioria de suas obras mais conhecidas e celebradas: “Death in the sickroom” (1893), “As mãos” (1893), “Ansiedade” (1894), “Puberdade” (1894-95), “Vampiro” (1895), “Melancolia da noite” (1896), “Separação” (1896), “A voz” (1896), “O beijo” (1897), “Herança” (1897), “Metabolismo” (1898-99), “Autorretrato no inferno” (1903), “Inveja” (1907), além das cinco versões de O grito, tema deste texto.

Também nesse período a história registra a pior fase do estado psicológico do artista, com o aprofundamento do uso do álcool e episódios de delírio e alucinação, culminando com sua internação, durante meses, em hospital psiquiátrico, entre 1908 e 1909.

A partir de 1910, sua obra perde em relevância, ao abordar temas de menor impacto, em particular, retratos, autorretratos, cenas do cotidiano e inúmeras paisagens, em especial as de Asgardstrand, localidade a sudeste da Noruega e ao sul de Oslo, junto à costa do fiorde de Oslo. Esse e outros fatos demonstram que, mesmo nos longos períodos passados fora da Noruega, Munch sempre retornava ao seu país de origem para, finalmente, ali passar seus últimos vinte anos de vida, quatro dos quais sob a brutalidade da bota nazista que invadira a Noruega em 1940.

Munch faleceu em Oslo, em 1944, após ter salvo grande parte da sua extensa obra da intolerância predatória do nazismo, que a considerava como parte integrante de uma “arte degenerada”. Apesar dessa e de outras avaliações equivocadas, Munch pode ser considerado como um dos maiores nomes da arte mundial recente, principalmente por ter sido o principal precursor do expressionismo, movimento que extrapolou o campo da pintura para se manifestar, também ricamente, na escultura, arquitetura, literatura, música, dança, assim como no teatro e no cinema.

A OBRA: O GRITO

“O Grito”, obra célebre de Edvard Munch, não é peça única, mas uma série de cinco trabalhos compostos por quatro quadros e uma litogravura. Esta última feita em 1900 e que deu origem a várias cópias em papel. Os quadros foram realizados sobre tela ou cartão, utilizando tinta a óleo, têmpera ou pastel, nos anos de 1893,1896 e 1902. Como em outras ocasiões – “Menina doente”, “Mulheres na ponte”, “Meninas na ponte”, “O beijo” – as repetições de “O Grito” são bastante semelhantes entre si, não sendo claras as razões para o fato, relativamente raro entre os grandes nomes da pintura mundial.

Dois trabalhos da série “O Grito” não tinham, originalmente, esse nome, mas termos que expressavam, literalmente, angústia e desespero.

São muitas as teorias acerca da origem das paisagens e da figura humana retratadas na série; desde quadros de Gauguin e Van Gogh, até imagens arqueológicas. Parece mais provável que, pelo menos na primeira versão (1893), Munch tenha sido vítima de alguma alucinação provocada pelo álcool. Exausto, teria vislumbrado algo como “sangue e línguas de fogo” acima do fiorde de Oslo. Segundo a descrição do próprio artista, além da visão, teria ocorrido a percepção fantasiosa e auditiva de um “grito infinito” perpassando a natureza. Após pintar o fundo sob tal sensação, o artista teria pintado a figura humana em primeiro plano, expressando nela, claramente, a emissão de um grito. Na realidade, o grito vinha da intimidade, talvez inconsciente, do próprio Munch.

Em toda a série, assim como em outros trabalhos de caráter expressionista, Munch utilizou cores fortes para expressar sentimentos, comportamentos e emoções, sem preocupação maior com a imagem real, em interpretações absolutamente pessoais. A figura humana que emite o grito é despojada de detalhes. É algo próximo a uma figura pintada por uma criança ou um adolescente, mas transmite forte impressão de angústia, ansiedade, desespero, dor, pânico e perplexidade. Todo o conjunto é sinuoso, deformado, antecedendo o recurso da deformação utilizado nos trabalhos expressionistas que viriam depois.

“O Grito” é a obra mais conhecida de Munch, mas em vários outros trabalhos o artista norueguês revela sua genialidade ao transformar em imagens emoções, instintos e sentimentos. Sua obra catalogada abrange cerca de 1.800 trabalhos, sendo a Galeria Nacional de Oslo e o Museu Munch, também em Oslo, os locais em que se concentra a maioria do seu acervo disponível à visitação. O enorme prestígio atual do artista e o valor comercial de suas obras explicam o roubo e o assalto de dois exemplares da série “O Grito” nos dois museus citados. O mesmo se aplica à compra, em 2012, por 120 milhões de dólares, do único exemplar da série em mãos de colecionador particular.
Seu “grito” continua vivo e, mesmo sem som, tirou do silêncio o sofrimento e a dor que o artista sentia, transformando uma imagem simples e estática no ícone do que se poderia chamar de o “grito do silêncio”.

O MUNDO EM QUE VIVEMOS

PÓS-MODERNIDADE – MANIPULAÇÃO, PASSIVIDADE, VIGILÂNCIA
O grande Império ocidental (e ainda mundial) capitaneou extraordinário desenvolvimento científico e tecnológico que atingiu várias e importantes áreas de interesse humano, como saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, comunicação à distância e acesso à informação imediata. Todas elas de certo modo contaminadas pela visão mercantilista e o papel secundário destinado aos valores humanísticos, perfil característico da pós-modernidade e do seu sustentáculo teórico, o neoliberalismo econômico.
Enquanto isso, multiplicaram-se e se tornaram mais visíveis os preconceitos que sustentam a pobreza, a fome, a homofobia, a misoginia, o armamentismo, o fanatismo político, a intolerância religiosa, a devastação ambiental, o trabalho escravo, o racismo e as múltiplas intervenções militares que continuam a vitimar centenas de milhares de inocentes em significativa parte do mundo. Nele, o homem privilegiado e supostamente moderno desfrutando de inesgotável tecnologia, porém passivo, dataficado, vigiado, manipulado, silencioso e enganado.

COMUNICAÇÃO, INFORMAÇÃO E deformAÇÃO
Caberiam aqui várias reflexões ao nos debruçarmos sobre os fenômenos que determinaram e determinam o uso da tecnologia da informação como indutora da construção de um projeto hegemônico que atingiu todas as áreas fundamentais da vida em sociedade, como a ética, a economia e a política. Modificando ou introduzindo várias práticas culturais, sejam as de cunho pessoal, a cultura anima, sejam as de cunho coletivo, a cultura antropológica. Hábitos, costumes e moral de caráter globalizante, mas com identidade única e bem definida.
Antes do advento da pós-modernidade, do ponto de vista da criação, circulação e consumo de produtos culturais, dois tipos bem definidos poderiam ser reconhecidos: os produtos destinados às elites e aqueles oferecidos às massas populacionais periféricas.
A comunicação doméstica, de baixo conteúdo, desprovida de imagem e passiva, já produzida pelo rádio, foi enormemente transformada e ampliada em natureza, qualidade, audiência e conteúdo com o aparecimento da televisão, gerando o acesso simultâneo e quase universal das populações urbanas ao novo meio eletrônico, iniciando um processo de mescla social do consumo cultural até então inexistente. Nesse período, ocorreu também o desenvolvimento rápido e a oferta diversificada de várias outras mídias, cada uma com sua linguagem própria, caracterizando um amplo e novo processo de convivência das mídias e da desejada e sutilmente imposta modelagem cultural através delas.
A disponibilidade tecnológica, instrumental-operacional, dos meios de comunicação culminou com o desenvolvimento da rede mundial de computadores, a internet, e a sua utilização posterior para a comunicação interpessoal, doméstica, informal e instantânea através das redes sociais. A comunicação transportada pelas diversas mídias no espaço cibernético e atingindo, simultaneamente, amplas camadas elitizadas e periféricas de populações globalizadas.
Mesmo com o aparecimento dos canais fechados de televisão e das plataformas de uso mais restrito, teoricamente destinados a um público mais “seleto”, a redução do custo das assinaturas e dos acessos deixou as novas tecnologias ao alcance do grande público, capaz de absorver programação extremamente diversificada e orientada ao entretenimento digital.
A partir de tão complexo, torrencial e sedutor apelo, o mundo vem vivenciando enorme transformação em seu perfil cultural, adotando hábitos e costumes radicalmente diversos dos anteriores, em acentuado e rápido processo de perda de identidade e de homogeneização cultural.
Obrigado a operar instrumental tecnológico em constante e autoritária atualização, podemos descrever o homem moderno como um ser dependente, perplexo, solitário, silencioso, “adaptado” e híbrido em frente a uma tela luminosa, seja ela de computador, televisão ou telefonia celular.

Desde o advento ampliado da fotografia, nos anos finais do século XIX, a imagem vem sendo ressignificada e ampliada em importância e uso. A revolução imagética atingiu todos os setores da atividade humana, da medicina à corrida espacial, da inteligência artificial a “selfies” e tatuagens universais. Na comunicação, multiplicaram-se os botões e as funções do dedo humano, já em parte substituído pelo comando de voz e com futuro previsto para a resposta comunicativa obedecer ao simples olhar ou até mesmo, na era pós-humana, ao próprio pensamento. O homem instalado em crescente comodidade e praticidade, convidado a se entreter e se informar, porém induzido sutilmente a não pensar.
Não seria impertinente constatar que as novas tecnologias visuais disponíveis para a inesgotável escolha individualizada, assim como o amplo espaço destinado à intercomunicação cibernética resultassem na sensação de conhecimento pleno e no exercício de uma nova subjetividade, desafiada nas 24 horas do dia pela torrente comunicativa.
A comunicação massiva se horizontalizou, mas na busca de audiência universalizada perdeu em verticalidade. Tal perda se acentuou pela prática de estratégias de manipulação que envolvem repetição associada à omissão, caracterizada pelo silêncio, a não notícia. Todo o conjunto a serviço do objetivo maior, a percepção, ou seja, “o resultado final de experiências influenciadas por fatores ideologicamente manipulados pelos emissores da comunicação”. A esses fatores de manipulação se somam as chamadas influências naturais como família, amigos, professores, valores pessoais hierarquizados, religião e ambiente de trabalho, permitindo entender a criação e solidificação de mecanismos internos que resultam em inarredáveis interpretações “individuais” da realidade, em “modelos mentais petrificados, em sua maioria forjados de modo inconsciente”. Crenças, generalizações e preconceitos capazes de originar enganosa interpretação pessoal da realidade. É a conhecida “minha opinião”, não necessariamente submetida ao fato, à realidade e ao compromisso prioritário com a verdade. Na prática, a obediência inconsciente ao grito sutil de quem manda e o silêncio acomodado de quem deve obedecer.
Grito sutil da comunicação de massa que visa promover a informação eficiente através da comunicação não violenta, ou seja, aquela na qual se constrói a suposta informação com empatia e estratégias amparadas nos interesses de quem emite e nas expectativas ou necessidades, espontâneas ou criadas, do receptor, buscando atendê-las. Como regra, as conhecendo ou as criando artificialmente de forma prévia.
Nesse ponto, se torna importante enfatizar que comunicação e informação constituem fenômenos diversos.
A comunicação funciona, na prática, como algo semelhante aos nossos sentidos. É o instrumento, o veículo de transporte de estímulos ou símbolos, em si mesmo neutro. À mente humana cabe reconhecer o estímulo, no caso, a informação em linguagem conhecida, para, em seguida, interpretá-la, completando o ciclo comunicacional com a sua aceitação, rejeição ou indiferença. A informação, contudo, não é neutra. Carrega em si determinado conteúdo que contém significados ou busca ressignificações, teoricamente ainda dependentes da interpretação crítica do receptor. Esse processo é recorrente e contínuo, demandando decisões e escolhas que, em seu conjunto complexo, nos definem. Quando não exercemos a crítica, no entanto, o conteúdo informacional é automaticamente introjetado, transformado em conhecimento e arquivado como memória, construindo suposta opinião.

CONHECIMENTO, PENSAMENTO, MEMÓRIA
Importante, nessa linha de reflexões sobre os vários atributos da mente humana e como eles são modernamente controlados, algumas considerações sobre fenômenos mediados por funções específicas da própria mente. Alguns, com frequência, não diferençados entre si, gerando conflitos e equívocos de atribuição e interpretação. É o que ocorre, por exemplo, entre conhecimento e o exercício do pensamento, da consciência crítica.
Vimos que a absorção não crítica da informação gera conhecimento, ainda que desprovido de cogito, indene à reflexão consciente, ao pensamento. Na realidade, qualquer que seja o nome que possamos dar aos atores do fenômeno, conhecimento e pensamento são atributos distintos que se constroem e que atuam de forma específica na mente humana, ainda que mantendo amplas, contínuas e necessárias interações. O conhecimento represado na memória, nutrindo o pensamento com a informação; o pensamento crítico, avaliando a informação e gerando um novo conhecimento, negando, validando ou enriquecendo a informação.
O conhecimento não tem aqui a conotação filosófica abordada no ceticismo ou nas tentativas de oposição aos céticos. Seria, apenas, o conjunto de informações recebidas e oferecidas em nossa experiência racional. Advém de processos e produtos múltiplos que nos são continuamente ofertados através do aprendizado formal e informal, aí incluídos todas as fontes e veículos de informação, e “arquivados” com maior ou menor retenção pela memória. Em tais processos, podemos ser receptores passivos ou buscadores ativos. Seria a “munição” que nos chega externamente e que nos vem através do outro, do conhecimento alheio, seja o outro ou o alheio um livro, um professor ou a experiência do cotidiano.
Diversamente, o pensamento é algo produzido internamente, refletindo o ser racional e sensível que somos. Utilizando a memória como instrumento, determina escolhas, identificações, individualidade. Em sua sedimentação crítica, nos define como ser pensante, cria identidade.
A cultura pós-moderna, fortemente calcada na informação, é fruto majoritário do conhecimento do outro, com o qual o receptor pode ou não se identificar. Visto desse ângulo, o conhecimento faria parte do passado, remoto ou recente, do já pronto, podendo tornar-se perigosamente acrítico e manipulável. Em termos da potencialidade da mente humana, o conhecimento é pedra bruta, não lapidada. Inversamente, a análise fundamentada do que nos é apresentado como informação, constitui o presente. O constante desafio ao pensamento crítico e à racionalidade em relação ao que nos circunda, o “aqui e agora”, o que nos permite criar e praticar valores, fazer escolhas no imenso e contraditório universo das alternativas físicas e metafísicas. Envolve o racional e o sensível em complexas interações, cuja intimidade material mais profunda desconhecemos, mas que define quem somos. Na realidade, somos o que praticamos, expresso em escolhas e comportamentos.
Elementos e condições perenes, irrecorríveis, que sequer sabemos se existem, como “alma”, “destino”, “índole” e “caráter”, se existissem, a priori participariam impositivamente desse processo, dificultando a aceitação do conceito de “livre arbítrio”. Ao contrário, ideia, intuição e pensamento especulativo seriam fruto independente e livre do processo sensitivo-racional, refletindo a existência de um olhar criativo, voltado para o futuro, para o que ainda não é, para o que ainda não existe.

A ERA PÓS-MODERNA
A tecnologia de comunicação na era pós-moderna envolve, necessariamente, todos os elementos e fatores discutidos. Se expande e se impõe através das mídias de massa, propondo valores através de poderosos vetores específicos de convencimento, que ressaltam a sua suposta supremacia. Há evidente e consciente equívoco na apropriação indébita e contraditória de expressões destinadas a imprimir um caráter progressista, vanguardista e evolutivo aos valores da contemporaneidade. Na realidade, a cultura pós-moderna é, em vários aspectos, conservadora, inserida na concepção autoritária de mercado e na lógica conservadora do capital globalizado e do neoliberalismo.
Na era comunicativo-informacional que vivemos, um perverso processo envolvendo e objetivando fusão cultural acrítica, passividade intelectual e informação torrencial, repetitiva e fortemente ideologizada, vem resultando em homogeneidade submissa de “gostos” e comportamentos, assim como obediência ao “politicamente correto”. Produzindo a falsa sensação de plenitude do conhecimento, liberdade intelectual e uso responsável da subjetividade. Fenômenos ilusórios e potencialmente determinantes de ignorância política, ideologias excludentes, fragilidades éticas, comodismo e inquietante silêncio.

Mesmo em um mundo polarizado ideologicamente, a dominação econômica, tecnológica e informacional vem se impondo, conduzindo à alienação social e ao individualismo. Nesse cenário, a informação passa a ocupar papel relevante como instrumento de uma nova cultura. Banal, descartável, evanescente e fluida, como convém ao interesse do cooptação intelectual e ideológica e ao consumo alienado e de massa.
O conceito de progresso baseado na produção e mercantilização em larga escala, assim como no desenvolvimento incessante de novas tecnologias, necessitaria de instrumentos adequados de adesão e convencimento, visando o consumo. Daí a importância visceral da cultura, o papel central do “entretenimento” e da indústria cultural fortemente homogeneizante e globalizada.
O controle das mídias atuando através da saturação extrema como sutil condutora de uma sociedade global subordinada ao tripé ideológico “tecnologia-mídia-consumo”, cujas raízes últimas, teóricas e sociológicas, talvez se escondam em sofisticadas estratégias definidas em órgãos de inteligência. Na prática, um consumo repetido e redundante, mas que atende às demandas planejadas por ideologias baseadas em vaidade, individualismo, hedonismo, exclusão, egoísmo e autoexaltação. Experiências e emoções fluidas nas quais a tecnologia atua como elemento aglutinador, unindo mídia e consumo, moldando um “mundo tecnológico”, descrito por Heidegger como “valores essenciais da modernidade e subordinados a interesses por ela determinados”.
A cultura pós-moderna serve, na verdade, a uma visão ideológica de inspiração neoliberal e instrumental, que resulta em desconstrução da heterogeneidade, das identidades e da diversidade cultural, limitando a capacidade cognitiva e a sensibilidade, ao criar relações ideológicas definidas pelo mercado e a ideologia que o sustenta: investimento, competição, consumo, lucro e acumulação. Em um mundo globalizado, obediente a decisões centralizadas e com movimentação financeira em escala industrial. Um produto cultural, refém de sentenças pragmáticas que determinam que o que não está na mídia, não está no mundo, o que independe de tecnologia deve desaparecer.
A obsessão desconstrutiva está presente no cotidiano do planeta globalizado e tecnologizado, no exercício penoso de dolorosa autofagia, na qual a tecnologia recente destrói a que a precedeu e que será inexoravelmente destruída pela que a sucederá. Fenômeno que repercute em hábitos, costumes e comportamentos, forjando uma cultura fluida, homogeneizada e em processo acelerado de identidade única.
Então, cabe a pergunta: não progredimos nada? O mundo, tão dinâmico, é e será sempre o mesmo?
O progresso ocorreu e o mundo mudou. O penoso e difícil processo civilizatório produziu frutos que resultaram em menor transgressão física entre Estados, e do “eu” em relação ao “outro”. Leis e punições intrínsecas a elas desestimulam confrontos e infringências. Muitas soluções foram encontradas e estimuladas, mas o aumento acentuado da população, a péssima distribuição de bens e da riqueza produzida e a consequente e cruel desigualdade social resultaram em novos gargalos e cronificaram antigos problemas. Certamente o cenário e as roupagens mudaram, mas os atores são os mesmos, perplexos em sua “essência” e nas contradições que dela derivam, agora agravadas pelo mercantilismo e o empoderamento da falsa subjetividade que favorece a manipulação contínua e fortalece o ego, o individualismo e as “certezas” equivocadas. Na prática, a tecnologia da comunicação-informação manipulando os fios de um teatro de marionetes. Nesse teatro, a desconstrução da cultura é vista apenas como um detalhe.
A vida como objetivo maior de uma desconstrução que, em razão da linguagem dominantemente imagética, encontra pouca gente disposta a ouvir e pensar. Em particular, o contraditório, envolvidos que estamos no entretenimento e na passividade que “ajudam a viver” na simples aceitação do cômodo e na obrigatoriedade do parecer feliz. Mais de cem anos depois, continuamos, coletivamente, a padecer dos mesmos males que Munch padecia individualmente. Ao contrário dele, no entanto, “engolimos” nosso grito. Por razões várias não nos damos conta do fenômeno ou fingimos que ele não existe. O uso em larga escala de ansiolíticos e antidepressivos ajuda na negação da realidade, no confronto permanente com o fim do óbvio, da verdade e do fato e na aceitação do silêncio do grito e os ecos inexistentes de tal silêncio.
Quem sabe, como Munch, um grito, o grito do silêncio, nos aliviasse e, magicamente, nos devolvesse a capacidade de ver a realidade, de desfrutar a verdadeira liberdade e de despertar em nós a fraternidade que refutamos em nome do individualismo, do egoísmo e da comodidade. Um grito que cotidiana e explicitamente nos recusamos a dar, mas que permanece, corrosivo, letal, depressivo e silencioso dentro de nós. Sim, o mundo mudou, o progresso ocorreu, mas, a despeito do muito que foi feito, resta TUDO por fazer.

earguelles@globo.com

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