REVISTA SEXTA FEIRA Nº8

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sexta feira n.8

antropologias artes humanidades

] [ periferia


sexta feira n.8

] [ periferia


crP- Brasil. Catalogação-na-Fonte

(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)

F492s Sexta Feira 8 Periferia I Florencia Ferra ri, Rose Satiko G . Hikiji, Va léria Macedo, Stelio Marras, Paula Miraglia, Sil vana Nascimento, Paula Pinto e Silva, Evelyn Schuler e Renato Sztutman, organizadores. São Pau lo: Ed. 34, 2006. 264 P·

r. Ant ropologia. 2. Artes. 3· Hum anidades. 4· Periferia. 5· Pobreza.

I. Ferrari, Florencia li . Hikiji, Rose Satiko G. I li. Macedo, Valéria. IV. Marras, Stelio. V. Miraglia, Paula. VI. Nascimento, Silvana. VII. Pinto e Silva, Pau la. VIII. Schuler, Evelyn. IX. Sztutman, Renato. X. Título.

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Humanidade por excesso e as linhas de fuga que se abrem para o gueto

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ANTONIO RAFAEL BARBOSA

Paradas do sucesso periférico

19

HERMANO VIANNA

Trajetos e trajetórias: uma perspectiva da antropologia urbana] [entrevista

30

JOSÉ GUILHERME MAGNANI

O lugar aonde as pessoas chegam antes da cidade

44

RENATO CYMBALI STA

A criação da "periferia" brasiliense: do concreto geral ao modernista

52

GUSTAVO LINS RIBEIRO

Redes virtuais e a centralidade de territórios periféricos ] [ entrevista

62

BERTHA BECKER

O escorpião, o sapo e a economia contra a política

75

HENRIQUE PARRA

85

TIARAJÚ o' ANDREA

IOO

EDUARDO MARQUES, VERA TELLES,

Visões de Paraisópolis: violência, mídia e representações Pobreza e criminalidade) [debate

PAULA MIRAGLIA E MARIA LÚ CIA MONTES

Tráfico e campos de concentração

r 32 THIAGO RODRIGUES

A potência terapêutica dos agentes comunitários de saúde

140 ANTONIO LANCETTI

Notícias de um cinema do particular] [entrevista

Santa Cruz: o mundo preenchido "De dentro do bagulho": O vídeo a partir da periferia Periferia, cinema e violência Seis vezes periferia ] [ verbetes Literatura e periferia no Brasil: uma breve antologia "Celso Garcia", mais que avenida

148 JOÃo MOREIRA SALLES I64

CLÁUDIA MESQUITA

183

CLARISSE C. ALVARENGA E ROSE SATIKO G. HIKIJI

205

ANDRÉA BARBOSA

2

r3

245

BRUNO ZENI

249 ROBERTO LOEB


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Editorial

Configurações de centro e periferia, que sempre dependem doestabelecimento de uma certa perspectiva, estão sujeitas a substantivações de diversas ordens, tais como territórios físicos delimitados (bairros, regiões, países, continentes etc.), redes de sociabilidade ("manos", "boys", "galera da zona leste" etc.), enunciados e práticas culturais (raps, sambas, vídeos, programas de rádio, revistas, livros, assim como manifestos do crime organizado ou construções midiáticas veiculadas em TV, jornal, cinema etc.) e políticas públicas (o Estado com seus equipamentos e políticas, as ONGs e demais configurações da sociedade civil organizada). Nessas diferentes circunscrições, "ser" da periferia- palavra que vem do grego peri, "em volta de"-pode estar associado ora a um processo de sujeição, ora a um processo de subjetivação. O primeiro ocorre nos casos em que se é objeto de políticas públicas precárias, limitantes, subjugadoras e por vezes arrasadoras, ou de práticas domesticadoras e assistencialistas pseudo-piedosas de algumas "entidades", ou do clientelismo de certos representantes

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de comunidades; e o que não dizer de imagens redutoras, homogeneizantes e estigmatizadoras produzidas em muitas reportagens, romances e filmes pelos que olham a periferia de fora e de cima, e que só têm olhos para a privação e a destruição. "Ser" da periferia pode, ao revés, significar assumir-se como sujeito de discursos e práticas, recobrando uma posição central para uma dita periferia geográfica ou sociológica. Em algumas circunstâncias, políticas públicas, parcerias não-governamentais, comunidades de base e dispositivos midiáticos acabam por operar como canais maximizadores de criatividade, produtividade e novidade, subvertendo o vetor da sujeição. Em outros casos, no entanto, discursos e práticas reativas podem verter em violência e destruição, inclusive se apropriando de códigos e configurações institucionais do aparelho de Estado, como no crime organizado. Com efeito, os processos de subjetivação têm lá as suas vicissitudes. A cartografia dessas linhas de força, com suas assimetrias e desestabilizações, faz coexistirem e se tensionarem reciprocamente criatividade, privação, transformação, sujeição, revolta, destruição, domesticação, arte, inquietação, entre tantos outros

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movimentos. Por meio do traçado de nossos colaboradores, esta foi a embocadura desta Sexta Feira, gue privilegiou a experiência da cidade. Cortando o volume, a fachada da avenida paulistana Celso Garcia, gue conecta vários bairros, temporalidades, gentes e estéticas ao longo de seu extenso e intenso itinerário do centro rumo à zona leste (e vice-versa). Como a avenida, os textos transcorrem de modo contínuo, sem com isso deixar de nuançar os diferentes relevos e matizes de seu conteúdo. Pontuando todo o volume, trechos literários dão lugar às mais diferentes vozes, todas elas ávidas por traduzir a experiência periférica. Próximo ao final, alguns verbetes buscam fazer convergir de modo mais didático e genealógico-e sem gualguer intenção de esgotar o tema ou promover um inventário enciclopédico-a idéia de periferia e certas temáticas às quais ela esteve associada no campo das Ciências Sociais. Na interação dessas formas-artigos, ensaios, entrevistas, debates, verbetes, prosas, canções, poemas, imagens -, buscamos cartografar periferia menos como território de encapsulamento do gue como multiplicidade irredutível, onde nada está dado de antemão ao mesmo tempo em gue tudo é possível, oscilando da

subjetivação à sujeição, da subversão à substancialização, da resistência à resignação. Não a simples recusa ou aceitação da periferia versus o centro, ou tampouco a impossibilidade de reverter posições gue podem se nos revelar de maneira endurecida. Mas sim reconhecer, no centro, seu devir-periferia, como na periferia, simetricamente, seu devir-centro. SETEMBRO DE 2006


Compre o preço

Ronaldo Bressane

Acabei de voltar da tal da butique Daslu. Fui lá ver o show do Marcelo 02, tá ligado? Ele memo. O cara tá nos pano, mano. Ele é agora patrocinado pela Mandi, jão, se liga. Uma roupa de grife aí que abriu uma loja na Daslu. Eu descolei um convite VIP com um truta meu que trampa na copa. ltaim , certo? Uma par de quarteirão lotadaço de man in black e Cherokee e Audi e o caralho a quatro. Caipirinha ice na faixa. Bati mó larica. Qual é? Umas paradas à pampa pra comer, umas mina de elite memo, tudo loira, velho, o cabelo num reflexo só, luzes, aqueles pelinho no braço, mó perfume no ar, perfume, perfume. 02 mandou bem. Apareceu o Seu Jorge, na estica. Ele também é artista Mandi. Levou um tanto aí pra desfilar, mais a roupa que ele quiser, o ano inteiro, saca? Os nego se trata. Tinha muito maurício, é lógico, mas cê queria o quê? 02 lembrou que nóis tamos se organizando pra desorganizar, tamo desorganizando pra se organizar. Falou do tal do Chico Science. E do tal do Bezerra da Silva. Tinha um vídeo mostrando o Gracie lutando e fazendo os músculo pular.

Tinha um vídeo mostrando uns carinhas pegando onda. Eu tiro é onda, manda o 02. E o povo obedece. O povo? Tinha uma loira de dois metro de altura na minha frente. Uma hora subiu no palco o Thaíde, tá ligado? Que tempo bom, que não volta nunca mais. Ele pediu pra galera agitar a mãozinha dum lado pro outro. Mano, nunca vi tanto Rolex e Bulgari na minha fuça, pra lá, pra cá, pra lá, pra cá, tava pra fazer mó funça. Gumex no cabelo e camisa pra dentro da calça com cinto. E uns playboy com pano de officeboy. Eu já vi tanta coisa, jão, eu não me impressiono mais com nada. Tá tudo certo. E não é que os playba tava cantano direitinho as parada? 02 falava que representa o pesadelo do hip hop. E os maurício curtia! Qual é? D2 falava que você é você, não importa de onde é. 02 falava VAMO FAZÊ BARULHo? Outra hora subiu o cara dono da Mandi, tá ligado? O dono da parada subiu no palco e 02 e Seu Jorge pedira pro cara soltar um sambinha. O cara deu uma reboladinha mais ou menos. Mas tá limpo. Foi o batismo dele, né não, jão? O cara curte os movimento, é nóis tamém, por que não, velho? Só porque o cara é playboy? Mó discriminação. E falar em discriminação, pô, aí, não podia fumar cigarro na Daslu, velho. Mas eu vi umas perua fumano. Até tive

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uma noinha de puxar meu dubom, mas eu que não queria queimar tudo até a última ponta ali, velho, dá licença. Fala sério, jão, uns tiozinho sacando tudo, a Caras, o Estadão, a Folha, o Nizan Guanaes, o Rogério Gallo, o cara da F/Nazca, a Daniela Cicarelli, uma par de modelo, uma par de segurança. Eu tiro é onda, mandou o 02. Eu vim do Rio de Janeiro a Nova York levado pelo som, no Andaraí, no Brooklin, só tem sangue-bom, vou te explicar como é que eu faço pra sair dessa merda, eu tô sempre ligado, e mantenho minha mente aberta, com dinheiro é muito fácil, todo mundo é feliz, eu quero vê tirá onda sem dinheiro como eu fiz. Tá tudo dominado. Qual é? Eu tipo tava curtindo o show mas tipo achei meio sinistro, tá ligado? Tipo: num sei, uma hora eu colei numa parede e fiquei meio assim noiado que ia dar um vomitão num terno Armani e ia fazer merda. Eu sempre acho que vou fazer merda uma hora, e aí faço. Mas pra desencanar dei uma olhada nos preço dos pano: jaqueta de dez conto. Dez mil conto. Tinha uns caras vendendo apê de 500 metro quadrado. Tinha uma foto do Malcolm x de barão, numa beca muito louca, do lado de umas foto de uns rei, de uns figura elegante, em cima de uma estante onde a gravata mais na moral custava 400 conto.

Achei louco o negão ali, tipo símbolo de status pros maurício. Jão, ali, terno, sapato, meia, cristal, charuto, livro, vestido, perfume, carro, tudo está à venda, jão, tudo à venda. Tinha uma loira de dois metro de altura que ficava tipo me zuando e passando o rabo dela no meu nariz, aqueles sapato me agulhando o pé, foda. E o perfume, velho. Os cara se trata. VAMO FAZÊ BARULHo? Eu ouvi uns caras falando que era um acontecimento histórico, o D2 na Daslu. Tipo o encontro de dois mundos, jão, mas eu não vi nada disso. Eu não vi porra nenhuma de dois mundos se encontrando e nem que a vaca tussa eu vou acreditar que Marte vai invadir a Terra, tá ligado? Eu vi que as minas da faxina tavam usando roupas de minas da faxina, tá ligado? Então tá tudo certo, tipo. Eu pisei num chiclete que uma loira jogou no chão, mano, e ela me olhou dum jeito como se olha um extintor de incêndio, saca. O 02 deu uns berro contra a MTV, morou? O 02 ganhou 3 VMBS semana passada. O 02 tava nuns panos da hora. Qual é? Eu fiquei assim meio zuado com aquelas caipirinha ice. Eu queria dar um rolê, mas pra todo lugar que eu ia o chão era branco e tava cheio de man in black em volta e aqueles maurício com malha em cima do ombro, morou, mano? Eu ouvi um cara dizer pra outro que o


Thaíde, o cara não levou nenhum cachê, pra cantar no show do D2, ganhou foi uns rs conto em roupa que tirou direto na loja. Tá certo, jão. O som tava da hora. Foi me dando um negócio a hora que eu vi, que, porra, na real, tudo ali era igual. Era todo mundo igual aquela merda. Os playba sabia todas as músicas do 02. O D2 lembrou do Sabota, rapé compromisso. O n2 gritava VAMO FAZÊ BARULHO! Mas ninguém fazia barulho, mesmo, na real. Tipo, eu soltei uma bufa, a porra dos salgadinho me fudeu o lombo, mas acho que ninguém sacou, morou. Eu também não vi ninguém tirando uma fumaça, aí fiquei meio na miúda, nem quis acender minha ponta. Na real, eu vi que eu tava sozinho, velho, muito sozinho. Tinha vários retrato na parede, uns rei, umas modelo, um lance assim meio pop, é pop art que fala, eu acho. E tinha aquela foto do Malcolm x em cima de uma gravata Zegna por 497 contos. Todas as roupas tinham preço, tudo ali tem preço, ali você não compra a roupa, compra o preço. O show acabou, todo mundo curtiu, todo mundo aplaudiu os cara, os cara foram ali na elite e desenvolveram o discurso. Na rua, eu vi uns figuras combinando de ir comer num japonês. Lógico que a parada dos cara tem a ver com a rua, mas, na boa, qual o pobrema se play-

boy curte o som dos cara? Eu fui saindo fora de fino e até vi o D2 botando o carrinho do filho dele no porta-malas da Pajero dele. O mano tem vez, a vez chegou, né, jão. A minha, igual, chega também um dia, tá ligado? Tipo. Eu fui andando ali pelo ltaim meio rápido, porque tou ligado que bumba pra quebrada é só até a meia-noite. Fui andando na minha, andano, andano, andano. Até que sentei no ponto e tudo começou a rodar, a rodar, a rodar, e aí meu deu um troço e aí fudeu. Chamei o hugo memo, velho, vomitei toda a parada dos salgadinho de salmão e das caipirinha ice, gorfei tudo, mano, mó jato, foda, mó nojeira tudo em cima de mim. Tou fudido, jão, é o único pano de balada que eu tenho, minha mãe vai me dar um esporro. Me limpei num jornal, tá limpo. n2 mas mantenha o respeito. Vou ter que jogar fora e comprar outro. Mas foda-se. Rapé compromisso, e fudido por um, fudido por mil. Qual é? Acabo de voltar da tal da butique Daslu. Fui lá ver o show do Marcelo n2, tá ligado? Ele memo. Na procura da batida perfeita. Ano que vem, se eu descolar uma boiada dessas, vou de novo.

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Humanidade por excesso e as linhas de fuga que se abrem para o gueto

Antonio Rafael Barbosa

~O INTOLERÁVEL

O que é intolerável? Diga o que é intolerável para você. Uma resposta (dentre tantas possíveis) foi enunciada em I9JI, na contracapa de um livreto que levava justamente o título de lntoleráble: "são intoleráveis os tribunais, os tiras, os hospitais, os asilos, a escola, o serviço militar, a imprensa, a televisão, o Estado" (Eribon, 1990: 208). Quem o publicava era um grupo recém-criado por iniciativa de Michel Foucault. Atendia pela denominação Groupe d' lnformation sur les Prisons e, como o nome já diz, dentre todas as instituições inaceitáveis, a prisão era o alvo privilegiado do exame e da denúncia. Os jovens na França, no ano de 2005, também foram às ruas diante do intolerável. A morte acidental de dois adolescentes, ao fugir de uma batida policial, propiciou o início de uma cadeia de eventos que fez arder as banlieues (periferias, bolsões de emigrantes e seus filhos, onde grassa o desemprego) por muitos

dias seguidos. Tragédia anunciada. Não foi a morte de um outro rapaz, filho de imigrantes, quinze anos antes, que fez eclodir um levante que, se não teve a magnitude desse, ao menos era idêntico em seus principais elementos-a perda de uma vida, a revolta dos jovens, as bombas incendiárias, as estratégias de enfretamento, a ação policial originária e subseqüente? Deixando a França, atravessando o Atlântico e toda a América do Norte. Os acontecimentos em Los Angeles em 1992 trazem a intifada para dentro da cidade, onde se levanta o gueto d e South Central. O motivo ? O espancamento brutal de um motorista negro em uma batida policial e a posterior absolvição dos quatro policiais brancos envolvidos. O antídoto é o próprio veneno (como na França de 1990 e 2005): mais polícia. E se ela não dá conta, então a Guarda Nacional e os marines estão prontos para coibir a desordem pública. O que foi feito na época. O saldo final: 45 mortos; 2.400 feridos; ro.ooo presos. Dois acontecimentos que guardam uma semelhança entre si (para além da constatação de que aconteceram em áreas pobres de grandes cidades e que são apenas os dois exemplos mais conhecidos dentre uma infinidade de outros levantes da m esma na-


tureza): em ambos um limiar foi atingido. Um ponto sem retorno.

distanciado que se satisfaz com o exotismo). Não tanto em razão

Uma linha que uma vez ultrapassada não permite mais retornar

dos contextos nacionais ou regionais onde estão inseridas, mas em

ao estado de coisas anterior. Nesse caso, isso aconteceu porque os limites estavam sendo testados. Tentava-se esticar cada vez mais a corda, transformar aquilo que é inaceitável em algo possível (e

razão do percurso histórico que as constituiu como formações sócio-espaciais distintas em tais contextos (Wacquant, 2001: 9). Como se articulam com as cidades das quais fazem parte? Como

com o tempo, corriqueiro). Surge, então, a linha de corte, a linha que marca a ruptura definitiva. E daí por diante já se é ou se faz outra coisa. O limiar do intolerável reinventa a resistência.

seus habitantes conduzem suas vidas dentro das "comunidades" e fora delas, ao "descer", como se diz nos morros do Rio, para o

São muitos os nomes: favela, morro, comunidade, periferia, cortiço, mocambo, palafita, vila, jardim. Poblacione (Chile), viLla miséria (Argentina), cantegril (Uruguai), rancho (Venezuela),

banlieue (França), guetos e barrios (América do Norte), inner city (Inglaterra) (cf. Wacquant, 2001). Por toda parte, seus habitantes experimentam, em um grau maior ou menor, alguma modalidade de estigma ou preconceito. São "áreas de risco", lugares a serem evitados, territórios do crime, da violência, da droga. Senão isso, lugares onde se concentram a pobreza e o abandono. Assim são representados. Mas importa perceber (sob o mesmo nome ou com nomes diversos) as diferenças e similitudes existentes entre essas comunidades. (O que é impossível se optamos por um olhar

"asfalto"? Como traçam seu caminho entre a integração e a segregação experimentadas, entre o pertencimento e a inclusão? Sobre elas, sobre as recentes revoltas (o caso do Rio de Janeiro nós vamos examinar adiante) um velho direito permanece na impossibilidade de realização de um outro. O "direito de alojamento", criado e sustentado sobre a promessa de um "direito à cidade" que nunca se realizou (Virilio, 1996: 21). Se as primeiras gerações de imigrantes (voltemos ao caso francês) ainda podiam se contentar com esse estado de coisas, com uma participação marginal ou periférica na vida da cidade, provando, talvez, em alguns momentos, das benesses materiais e espirituais oferecidas, seus filhos já não se satisfazem com isso. Querem mais, demandam uma participação no consumo de bens (inclusive os ditos "culturais" ou,

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propriamente ditos, "imateriais") e na igualdade de direitos (de segunda e terceira gerações) e oportunidades no mesmo momento em que tudo se paralisa e retroage (o precário "direito de alojamento" já não é facultado às novas gerações de imigrantes-o que permite classificar essas populações como "ilegais"). Um velho pertencimento social está por ser abandonado. Se um dia tais localidades serviram de verdadeiros celeiros de mão-de-obra de baixa qualificação prontos para alimentar a indústria e o setor de serviços, hoje já não servem mais. Experimenta-se, para o tempo que se inaugura, a erosão do estado de bem-estar social, com a conseqüente dissolução da rede de proteção social; a desindustrialização; o desassalariamento; e a afirmação crescente do mercado informal. Experimenta-se, em resumo, a obsolescência humana. E a pergunta que martela na cabeça dos gestores das políticas públicas é: o que fazer com essa humanidade por excesso que simplesmente não tem mais utilidade econômica e política identificável? /t)p DISCIPLINA E CONTROLE

Num pequeno artigo (embora extremamente denso) escrito em 1990, Gilles Deleuze aponta para a efetuação gradativa de um novo regime de poder. (Ele irá utilizar as ferramentas conceituais

fornecidas por Foucault-a lista dos intoleráveis, reproduzida antes, é a própria rede disciplinar). Diz Deleuze: Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos xvm e xrx; atingem seu apogeu no início do século xx. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro; cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola( ... ), depois a caserna( ... ), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência.( ... ) Mas o que Foucault também sabia era a brevidade desse modelo( ... ). Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. ( ... )Os ministros competentes não param de enunciar reformas supostamente necessárias. ( ... ) mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares (1992: 219-20; grifos do autor).


Uma das principais diferenças entre as sociedades disciplinares e as sociedades de controle é que a rede disciplinar comporta suas

negócios. Ou retirando dali aqueles que representam um perigo ainda maior: os que atacam os transeuntes, os que atravessam

brechas, seus espaços e durações intersticiais. É o espaço da rua, o espaço-tempo entre os meios de confinamento: quando é possível

as ruas como lobos ao traçar suas linhas de fuga. E no horizonte cinza, limite intransponível da rede disciplinar, a prisão. Está ali para abrigar aqueles para quem os meios de confinamento setornaram espaços interditados (passar por ali só reafirma essa interdição). Uma vez que a polícia e a prisão capturam entre, deixando que cada formação de meio lide com seus desviantes à sua maneira: castigos, sanções administrativas ou trabalhistas, expulsão dos

ao operário se desligar da fábrica, ao estudante abandonar seus cadernos, ao soldado retirar a farda. Isso fica claro quando examinamos o principal aparelho de desterritorializaçãol reterritorialização do regime disciplinar: a polícia. Tal instituição teve como missão inaugural zelar pelo arejamento desses espaços intermediários. (Daí por que Foucault irá dizer que a polícia está em toda parte, que ela inclui tudo). De que maneira o fez? Acelerando a circulação para dentro e para fora dos meios de confinamento, evitando o surgimento de aglomerações que representavam, por si mesmas, focos potenciais de instabilidade. Tal é a palavra de ordem por excelência sob o regime disciplinar: "circulando!". Ainda deveria esvaziar as ruas daqueles que representavam a ameaça de transformá-las, mesmo que de modo caricatura!, em novo meio disciplinar: os que fizeram dela a sua casa; a constituíram com outros "arruaceiros" numa grande família; os que nela "botaram a banca" dos seus

seus quadros etc. Mas o que estamos deixando para trás? Em primeiro lugar, os pólos conceituais-massa e indivíduo-em torno dos quais se constitui a sociedade disciplinar. Já não temos indivíduos, mas dividuais (Deleuze, 1992: 222): subjetividades fracionadas que operam e se desenvolvem por modulação e não mais por moldagem (quando da travessia do indivíduo pelos meios de confinamento). Dividuais-cada um torna-se uma fábrica em si mesmo, com seus patrões, seus operários trabalhando, suas máquinas rangendo nos porões e relógios espalhados pelo corpo. Cada um é um pequeno tribunal, com seus juízes, policiais e réus, com seus

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pequenos criminosos nos quais a lei ainda não conseguiu pôr as mãos. Cada um é o seu próprio terapeuta, enquanto se proliferam os livros de auto-ajuda. Já não é mais necessário que nos ordenem o que fazer, que nos indiquem uma posição na fila ou na linha de produção. Saber onde intervir, com quem se associar, como criar suas próprias linhas de produção é a própria garantia de permanecer empregado. Não são mais indispensáveis os diplomas e as cartas de recomendação que assinalam o término de nossos períodos de formação e a conseqüente capacitação para o cumprimento de uma tarefa. A formação se torna interminável e fica a cargo do próprio aprendiz e de sua capacidade de acessar o conhecimento (o acesso substitui a propriedade como símbolo e suporte da riqueza). N ão é mais necessário um número de matrícula, que indica sua posição na massa, ou uma assinatura, por onde corre a linha da trajetória genética de um indivíduo. É -se convidado à existência não mais como um "produtor disciplinado" mas como um "consumidor controlado" (Sibilia, 2002: 30-8). Nossas identidades tornam-se targets, cifras compostas por diversas senhas, códigos e cartões magnéticos, por nossas potencialidades e d esejos de consumo. A dívida, a capa-

cidade de se endividar e consumir é, hoje, o passaporte para a cidadania. Passamos a existir para o consumo e o consumidor, ele mesmo, é um produto a ser vendido e a ser comprado (é a mercadoria que os spammers negociam na web ). Por outro lado desaparece, sob o novo regime, o segundo pólo disciplinar: a massa cuja estratificação (molarização) implicava as di vagens de classe. Uma "multidão plural de subjetividades" (Hardt e Negri, 2oor: 79; grifo meu) toma o lugar daquela e os bancos de dados, carregados com os perfis de consumo, tornamse os novos instrumentos de estratificação da multidão. (A noção de classe passa a ser utilizada de maneira banal como sinônimo de capacidade de consumo; completamente dissociada do modelo marxista de análise das relações de produção). Tendo mesmo o controle policial a se adequar ao novo estado de coisas: além da proliferação dos circuitos de vigilância eletrônica, temos uma infinidade de etiquetas miniaturizadas que se colam nos produtos para que não sejam furtados. Temos coleiras eletrônicas para humanos sendo testadas (os celulares,pagers e laptops já cumprem, de certa maneira, esse papel, ao permitirem que as empresas achem seu pessoal em qualquer lugar. Mas estes ainda podem ser


desligados-ou você já não pode mais desligar o seu?). Temos rastreadores de celulares que permitem a captura de traficantes ou a escuta de conversas entre os presos. Temos a expectativa de que futuramente confluam os bancos de dados criminal e mercadológico. Captura pelo consumo. A polícia ainda mantém seu Batalhão de Choque (um corpo policial talhado para as demandas do regime disciplinar-como o nome já diz, está destinado a acelerar a trombada, o choque direto com qualquer manifestação de rua. Uma máquina humana que tem como alvo a massa). Mas hoje investe cada vez mais na criação e reprodução de grupamentos especiais, seus "homens de preto" (o BOPE da PM do Rio de Janeiro, a coRE da Polícia Civil, o soE no Sistema Penitenciário). Tais grupos apontam para uma mutação significativa na composição dos organismos policiais. São corpos desterritorializados, fundamentalmente criados para funcionar como bando, para identificar, caçar e aniquilar outros bandos (de criminosos). Juntam-se a eles os grupos especializados em limpar não mais a rua (da massa ou dos "miasmas" políticos produzidos pelas aglomerações) mas as auto-estradas, combatendo os bandos de traficantes e suas blitz (GETAM e Grupamento

de Vias Especiais no Rio de Janeiro). A ênfase na circulação e na velocidade ganha uma outra potência, uma outra dimensão nas sociedades de controle. Humanidade por acesso a quem é dada a possibilidade de existir contra aquela que se vê excluída por excesso, paradoxalmente num mundo em que não existe mais um fora. Pois essa é uma das principais características das sociedades de controle: a inexistência de processos de exclusão e inclusão em espaços extensivos. Já não é possível estar fora, à margem do que quer que seja. Estamos todos na "terceira margem do rio" (Rosa, 1981), derivando, sem sair do lugar. (E daí a ambigüidade que marca os discursos sobre as comunidades pobres - "inclusão pela exclusão" etc.). Para além da crise dos meios de confinamento, é o espaçotempo intersticial que desaparece e, com ele, seus personagens (os velhos malandros capturados como moscas em torno das m áquinas de vídeo-pôquer). O espaço-tempo se comprime em cada um: já não há divisa entre o tempo de trabalho, de descanso ou diversão; já não d eixamos de ser alguma coisa para nos tornamos um outro; já não há lugares onde não podemos ser encontrados; já não há resultados que não sejam resultados de um combate.


Perde-se ou ganha-se o tempo todo. Losers and winners-o modelo norte-americano de avaliação das performances toma conta dos corações e mentes. O que fazer, então (retomo a pergunta que deixei no ar antes de enveredar nessa digressão sobre disciplina e controle), com a massa composta pelos que não têm mais utilidade identificável para os senhores do capital, com a multidão de excluídos em um mundo sem espaço de exclusão, sem um fora? A prisão-o velho ponto de escape da rede disciplinar? Vê-se bem a encruzilhada: o estado de São Paulo necessita construir uma cadeia para 700 homens, por mês, para dar conta da demanda atual. É possível? Mais do que isso: é desejável? É justo? Que belo lugar sobre a Terra seria esse . .. Deleuze já enunciava em seu artigo de 1990 (:224): "pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento". /f:yo A MORTE ANDA DE MOTOC ICLETA

"Conter populações hoje é uma tarefa radicalmente diversa em comparação com o passado". A frase da antropóloga Manoela Cunha (2002: 48) nos remete ao centro do problema: como conter essa população relegada aos guetos e favelas? Olhar para a linha

por onde corre o limiar do intolerável, no Rio de Janeiro, pode nos fornecer a resposta. Existe um momento em que os moradores dos morros e favelas tomam as ruas, queimam ônibus, levantam bloqueios nas vias públicas. Na quase totalidade dos casos, o grito contra o intolerável brota em razão de uma violência policial injustificada: as balas "perdidas" que vitimam moradores "inocentes" (não envolvidos com o tráfico). Em alguns casos ainda (mas não todos), tais manifestações podem resultar do extermínio brutal e covarde de jovens envolvidos com o tráfico. Quando já estão rendidos e são levados para o "pico" (parte alta do morro onde se dão as execuções) ou fuzilados ali mesmo onde se renderam. As mortes cotidianas (em número altíssimo), resultantes das guerras do tráfico pela disputa de um território ou em confronto direto com a polícia, não geram manifestações. O grito fica preso na garganta. Por onde passa a linha de separação entre o que deve morrer e o que deve viver? - essa é a indagação (biopolítica) que surge, trazida pelo intolerável. E viver em que condições? -agora que nos vemos cercados de preocupações difusas sobre a "qualidade de vida", da "vida que é possível" ou da "sobrevida". Aos


jovens das favelas restam algumas alternativas entre a velocidade e a paralisia. A primeira delas é acreditar no passado, no arranjo disciplinar que fez de tais comunidades pobres depósitos de mão-de-obra de baixa qualificação. Uma má escolha. Ou, ainda permanecendo no objetivo de adentrar o mercado formal, acreditar no futuro, investindo todas as suas energias em sua própria qualificação profissional. Mas não é, definitivamente, no quadro atual, um caminho aberto para muitos. A segunda maneira é-lá onde se mistura velocidade e paralisia-estar na correria. O mercado informal é a inserção mais atrativa que se abre para a maioria. Se bem-sucedido, pode pleitear sua cidadania pelo consumo. Porque nas ruas não vai encontrá-la, ainda caminha por lá o velho paquiderme da polícia de choque (agora substituído pelas guardas municipais) que irá se encarregar de lhe atazanar a vida. Resta uma terceira alternativa, quedar-se molemente sobre o batente da porta e esperar pela assistência. Essa virá na forma de uma "bolsa" -auxílio de qualquer coisa (alimentação, escola etc.), garantindo o direito à sobrevida. Não saia daí, não se "envolva" com o crime, porque quando formos aí tudo irá continuar "bem" para você. Vida em suspenso, paralisia garantida pela máquina

de Estado. E ainda ganha o direito à cidadania política, pelo voto naquele que te alimenta. TV, um pouco de álcool e maconha, quando for possível. Como na prisão. As favelas transformadas em prisões sem grades. O problema numérico do confinamento solucionado, a rede de controle criando sua exterioridade para dentro, criando suas dobras. (Isso pode ser feito se não houver resistência, como aconteceu recentemente na França. Daí o imenso perigo contido em tais levantes). A quarta alternativa é montar no corpo da velocidade. Embarcar em uma linha de fuga que pode ser dita suicidária ou de destruição. Entrar para o movimento (como é conhecido o comércio de drogas nas favelas do Rio). Vida louca, vida bandida, vida com prazo de validade determinado. O máximo do consumo possível no mínimo de tempo. Inaugurando a segunda modalidade de captura do Estado [e do mercado] disponível aos moradores das favelas: o extermínio. Espera-se que o caô venha a se instalar nas ruas no Rio de Janeiro? Um levante simultâneo dos grupos armados que dominam o tráfico nas centenas de comunidades espalhadas pela cidade? Improvável, neste momento. A própria polícia e o aparelho carcerário se encarregam da manutenção das divisões entre


as facções. Não será desse modo que os jovens ganharão as ruas. H oje os jovens envolvidos no crime as atravessam nos bondes que pa rtem para os assaltos ou para a tomada de territórios. Vetores da insegu rança, referendando a demanda por m ais segurança (principal palavra de ordem nas sociedades d e controle), abraçados com a morte na garupa de uma motocicleta. Por fim, uma outra linha de fuga possível que se abre para os jovens das comunidades. Mas essa, ao contrário do tráfico, é uma linha da vida, uma vez que implica na recriação dos códigos de comportamento; na reinvenção dos modelos e relações de produção; no redirecionamento da conexão e do acesso através de canais alternativos; na redefinição do consumo (trazendo para dentro dessa dimensão, tão central para o tempo que se inaugura e tão naturalizada, o desconforto, o questionamento sobre a necessidade, a utilidade, o desejo e a satisfação). O Hip -hop é o modelo, o ponto de abertura, um exemplo atual para o que virá. Talvez, não o caô, mas o caos criativo já esteja ganhando as ruas. No ritmo das batidas dos DJS, na voz dos Mcs, dissolvendo a pa ralisia e o convite para o extermínio que é endereçado aos jovens das comunidades pobres. Estreitando os limites do intolerável, inaugurando o futuro.

ANTONIO RAFAEL BARBOSA é doutor em antropologia pelo M useu Nacional/uFRJ e bolsista do PRoooc, Universidade F ederal Fluminense (uFF}.

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Re fe rências bibliográficas

CUNHA, Manuel a I vone. Entre o bairro e a prisão: tráficos e trajetos. Lisboa: Fim d e sécu lo, 2002. DELEUZE, G illes. Conversações. Rio de Janeiro: Edito ra 34, 1992. ERIBON, Didier. Michel Foucault (1926- 1984) . São Paulo: Compa nhia d as Letras, 1990. HARDT, Michael e NEGRI, Anton io. Império. Rio d e Ja ne iro: Record, 2001. ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José O lym pio Editora, 1981. SIBILIA, Paula. O homem pós-<Jrgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais . Rio d e Jan eiro: Rel ume-Duma rá, 2002. vrRruo, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Libe rdade, 1996. WACQUANT, Lo.ic. Os condenados da cidade: estudo sobre marginalidade avançada. Rio d e Jane iro: Revani FASE, 2001.


Querô, uma reportagem maldita

Plínio Marcos

Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua, ou nasce cagado de arara. Não tem por onde. Assim é que é. Uns têm tudo logo de saída. Os outros só se estrepam. Não têm arreglo. É um puta de um jogo sujo de dar nojo. Eu vim na pior. Com urubu pousado na minha sorte. Me entralhei de saída. O filho da puta do meu pai encheu de porra a filha da puta da minha mãe e se arrancou, deixando a desgraçada no "ora veja, tô choca". Eu não cheguei a ver o jeito que tinha seu focinho. E, se o corno na hora que saiu largou a grana em cima da mesinha, acho que nem a vaca que me pariu olhou a fuça do bestalhão. A gronga toda está aí. Não entendi até hoje, e não vou entender nunca, por que a piranha da minha mãe não deu um nó nas trompas. Ou por que não me soltou num purgante desses de fazer cagar até as tripas. Eu teria virado anjo. Estaria melhor. Mas não. Mulher doida, teve que bancar. Me botou no mundo, na bosta do mundo. Botou, se picou d e desespero e se largou desta pra melhor. Quem me contou esse lance foi a Ju. Ela era colega da minha mãe no puteiro da Violeta,

uma cafetina gorda, remelenta, porca, que tinha gonorréia até na alma. A Ju viu tudo com seus olhos que a terra vai comer um dia, se é que ainda não comeu. Foi um perereca de entortar patuá. Um salseira cavernoso, a minha chegada. No primeiro berro, a cafetina remelenta já berrou mais alto: -Tira esse pestinha daqui. Bota ele na roda das freiras. Joga ele lá. Criança em casa de mulher não presta. Criança dá azar. Espanta freguês. Minha mãe ainda quis dobrar a Violeta: -Eu vou pra onde? Eu quero criar o nenê. É meu filho. Eu quero ele. Mas não teve arreglo. A velha bruxa não se tocou: -Eu que vou saber? Quero que se dane! Não mandei ninguém parir. Agora se vire. Aqui é que não pode ficar. E fim de papo. Não teve mais quás-quás-quás. Minha mãe e eu fomos pro olho da rua. Pra comemorar a liberdade, minha mãe me embrulhou num xale, me largou na porta do puleiro da velha porca e se abilolou de vez. Meteu cachaça na caveira até transbordar pelas orelhas, ou até acabar a grana. Sei lá. O que sei é que, quando estava bem chapada de pinga, bebeu querosene. Foi pras picas. Mas devagar.

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Devagarinho. Saiu do boteco e foi cair na porta da igreja do Valongo. Custou paca pra ir pro beleléu. Ficou um cacetão de tempo no chão se contorcendo como uma minhoca. Gemia, chorava, vomitava, cagava, mijava, chamava por Deus, pelos santos, pedia por mim. Tinha um monte de gente vendo. Mas ninguém se doía. Ninguém chamou ambulância, nem porra nenhuma. Aqueles veados miseráveis eram todos surdos pra dor dos outros. Estavam a fim de ver a palhaçada e não iam se arredar dali. Sabe como é. Não é todo dia que uma putana bebe querosene. E depois, nas quebradas do mundaréu, é de lei "cada um, cada um".[ ... ]

Paradas do sucesso periférico

Hermano Vianna

iUo DIA 8 DE DE ZEMBRO DE 2004

Feriado de Nossa Senhora da Conceição em Belém do Pará. A festa propriamente dita aconteceu ontem de noite, quando-na praia de Oiteiro - os terreiros de umbanda e candomblé fizeram suas oferendas para Iemanjá, juntando uma multidão que os jornais calculam entre 30 e 70 mil pessoas. Hoje as ruas estão vazias. Eu sigo para o bairro Jurunas, território central para a cultura popular da cidade, acompanhando três documentaristas- Vladimir Cunha, Priscilla Brasil e Gustavo Godinho-que estão filmando Brega S.A., sobre o comércio local/informal de música brega. Fomos visitar o DJ Beto Metralha, um dos principais, senão o principal, produtores do tecnobrega. Jurunas é um bairro bem diversificado em termos sociais. Ricos e pobres vivem lado a lado. A redondeza que visitamos é habitada pela classe média baixa, às vezes bem baixa, com urbanização precária, considerada local perigoso, território de "gangues". Mas nada que se compare com uma favela carioca. Tem


aquela pobreza considerada "digna" para padrões brasileiros. Não há barracos. Mesmo assim, a maioria das edificações aparenta estar permanentemente em construção, para dar lugar às novas pessoas que vão se agregando, sobretudo através do casamento de filhos, ao núcleo familiar. A casa onde fica o estúdio de Beto Metralha não foge à regra. O estúdio, situado bem aos fundos, está realmente em reforma para abrigar novos equipamentos e novas salas de gravação. Várias pessoas transitam de um cômodo para outro da casa. Não sei quem mora ou trabalha ali. Beto nos recebe com enorme hospitalidade. Interrompe o que estava fazendo pa ra nos mostrar as novidades do tecnobrega, incluindo sua tendência mais recen te, o cybertecnobrega, ou cybertecno, para os íntimos. Conversamos sobre o peculiar esquema mercadológico que a música mais popular do Pará encontrou para sobreviver e prosperar. Passo a entender melhor como tudo funciona. O tecnobrega é a nova evolução eletrônica de um dos estilos mais populares que a música popular brasileira já produziu. Sua origem mais remota, se não quisermos ir mais longe entre antepassados seculares da tradição romântica nacional, é a jovem-guarda

dos anos 6o, rock básico e ingênuo, tocado com guitarra, baixo e bateria. Quando Roberto Carlos quis virar cantor adulto, acompanhado por orquestras, a jovem-guarda migrou para o interior, mas manteve público fiel entre as camadas mais pobres de nossa população, passando a ser chamada pejorativamente de brega. O brega floresceu primeiro no Goiás de Amado Batista, depois foi passear no Pernambuco de Reginaldo Rossi e acabou montando seu mais recente quartel-general no Pará. Os primeiros sinais do tecnobrega foram ouvidos no verão (que no Pará se vive no meio do ano) de 2002, mas tomou realmente conta das festas populares em 2003. É o velho brega, com batida mais acelerada, feito só com sons produzidos em computadores. Parece um Kraftwerk de palafita, composto sob calor equatorial por quem escutou muito carimbá, cúmbia, zouk e Renato e Seus Blue Caps - e não domina ainda totalmente os recursos do cut-and-paste que hoje estão na base dos softwares de produção musical. Há cinco estúdios que gravam tecnobrega na cidade. Eles recebem a visita semanal de "intermediários", que passam ali para escutar as novidades. Os estúdios podem produzir cerca de

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duas músicas novas por dia. Os intermediários escolhem as músicas de que mais gostaram, as que acham que têm mais chances de virar sucesso, e as levam para quem fabrica os cos, imediatamente distribuídos para os camelôs que vendem o produto final para os consumidores em compilações que incluem obras de várias bandas, produzidas em vários estúdios. Não são cos piratas, pois os cos oficiais, que poderiam ser realmente pirateados, são cada vez mais raros. Os músicos não têm mais gravadoras nem o custo de prensar os discos, imprimir as capas ou distribuir os produtos - esse custo todo fica por conta das fábricas caseira de cos, dos camelôs e de seus sistemas nãooficiais de indústria e comércio. Os discos, para seus autores e produtores, são vistos apenas como meio de divulgação. E muitas vezes seus grandes sucessos são metamídia: as músicas elogiam DJS, programas de rádio (como o Mexe Pará) e de TV, aparelhagens (como são chamadas as equipes de som que animam as festas paraenses). Um novo grande sucesso foi feito em homenagem à kombi que anda pela periferia de Belém anunciando as festas da aparelhagem Rubi. Um cantor e compositor que estava g ravando no estúdio

de Beto Metralha me disse que não pode sentir alegria maior que quando escuta suas canções tocando nos camelôs do centro de Belém. Ele sabe muito bem que não ganha nenhum dinheiro com a venda dos discos, mas isso não importa mais. É fundamental que sua música seja vendida nos camelôs para se tornar sucesso e sua banda seja convidada para fazer shows ao vivo, nas festas de periferia da cidade (as festas de aparelhagem), onde vai ganhar dinheiro para sobreviver. Os estúdios de gravação, por sua vez, também doam suas produções para o mercado dos camelôs, para as rádios, para a aparelhagem. Não funcionam mais como gravadoras, que vivem da venda de discos. Vivem agora do dinheiro que as bandas pagam para gravar suas músicas. Quanto mais sucessos produzirem, maior clientela vão ter. O mercado do tecnobrega deixa portanto de ser centralizado: não há mais um elemento na cadeia produtiva com poder para controlar todas as outras etapas, papel que as g randes g ravadoras continuam a exercer no mercado de música pop oficial. No tecnobrega de Belém, o dinheiro e o poder são divididos entre muitos parceiros diferentes: o músico, o produtor, os intermediários, a fábrica caseira de cos, os distribuidores para


camelôs, os camelôs, os programas de rádio, os donos das aparelhagens, os DJS. Os sucessos são produzidos pela atuação conjunta de todos esses empreendedores, quase todos eles informais. Se há um espaço de destaque no circuito tecnobrega, é o da festa de aparelhagem. É ali, e não nas rádios, e não nas listas de discos mais vendidos, que os sucessos são definidos, no contato direto com o público de dançarinos. As rádios tocam o que as aparelhagens tocam, e não o contrário. E as bandas têm certeza do sucesso quando são contratadas pelas principais festas para apresentações ao vivo. As aparelhagens são instituições típicas da cultura popular paraense. Existem há quase cinco décadas. Nesse período, passaram por várias "evoluções", o termo nativo que denomina astrocas anuais de equipamento que as grandes aparelhagens realizam para manter o interesse do público, que valoriza a introdução das últimas novidades tecnológicas em matéria de som e luzes. São equipamentos ambulantes, gigantescos e potentíssimos, uma verdadei ra parede eletrônica com caixas de som, amplificadores, televisores e computadores empilhados uns sobre os outros, que circulam pelos salões de festa da cidade a cada fim de semana.

Vi, há quinze anos, as aparelhagens ainda tocando discos de vinil. Os DJS passaram a usar cos, depois Mos e agora só trabalham com MP3s, mixando os sucessos do tecnobrega com o auxílio de mouses e teclados, controlando tudo a partir da tela plana de seus computadores. Eles têm o mesmo fascínio diante da última tecnologia que o público. Nesse sentido são completamente diferentes de DJS de música eletrônica da classe média brasileira que se organizam em movimentos pró-vinil, tentando manter a tradição analógica da discotecagem. O pessoal das aparelhagens não vacila na hora de jogar fora os equipamentos antigos. Querem ser reconhecidos como os pioneiros, os primeiros a adotar as novidades. O público valoriza essa atitude. As festas mais concorridas são justamente aquelas nas quais as aparelhagens apresentam suas novas "evoluções", cujas principais atrações em termos tecnológicos são guardadas como segredos de estado até a estréia, para evitar a cópia pelas concorrentes. A visão é impressionante: quando as novidades são apresentadas, os fã-clubes das aparelhagens (sim, as principais aparelhagens têm vários fã-clubes, que freqüentam todas as festas uniformizados e elaboram coreografias especiais para diferenciá-los dos outros dançarinos) vão ao delírio, com braços

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para cima, como se estivessem saudando a aparição de uma divindade, o totem da tribo eletrônica da periferia de Belém do Pará. No estúdio do Beto Metralha, conversando sobre esses assuntos, e comparando o tecnobrega com outros universos musicais, eu passei a contar - como se fosse uma novidade que iria surpreender a todos - que a banda Pixies, uma das mais importantes do recente rock norte-americano, deixou de ter uma gravadora, agora vende diretamente seus cos para os fãs via internet, e desenvolveu outra linha de produtos que para mim era revolucionária: quando o público saía de um show já encontrava o co com a gravação do show que acabara de acontecer à venda. Eu elogiava a idéia como uma inovação importante para um mercado fonográfico que procura saídas para a digitalização da cultura e a facilidade de cópias: as pessoas iriam comprar o co para guardá-lo como uma recordação querida, pois era o show do qual tinham participado. Beto Metralha olhou para mim com expressão de desinteresse e disse que as festas de aparelhagem já faziam aquilo há anos. Realmente: algumas aparelhagens, ao lado do computador principal, usado pelo DJ para suas mixagens, agora também apre-

sentam um outro computador que grava toda a festa, e no final já consegue prensar uma quantidade razoável de cos para venda imediata. Os DJS são espertos: usam e abusam do microfone para, por cima das músicas, cumprimentar os fã-clubes e outros dançarinos ou convidados ilustres (como músicos, produtores) presentes na festa. Essas pessoas acabam comprando o co, pois além de conter a seleção musical que acabam de dançar, ainda trazem a prova de que são respeitadas pelo DJ. É como comprar o jornal pois sua foto está publicada na coluna social. Beto Metralha me contou que usa esses cos como divulgação do seu trabalho, mostrando ao mesmo tempo como as músicas que produziu têm feito sucesso e como sua presença na festa é valorizada pelos principais DJS do Pará. /'t;la DIA 10 DE DEZEMBRO DE 2004

Já estou em Manaus. Ainda é floresta amazônica mas a cultura local é totalmente diferente da de Belém. Aqui ninguém conhece o tecnobrega. A música mais popular nas festas lotadas da peri feria da cidade é o forró de novas bandas como Aviões do Forró, Pipoquinha da Normandia, Caviar com Rapadura, música geralmente desprezada pela elite intelectual amazonense e brasileira.


É um estilo que começou a aparecer no Ceará, onde os músicos

É também um mercado paralelo, nacional, que nada tem a ver

locais não hesitaram em introduzir instrumentos eletro-eletrônicos nas suas gravações e apresentações ao vivo, acabando com o reinado dos instrumentos convencionais-a sanfona, o triângulo e a zabumba-considerados a essência do forró "de raiz", ou o verdadeiro forró (mesmo tendo sido definido por Luís Gonzaga, em momento já adiantado do século xx, e usar um instrumento como o acordeão, tão alienígena no Brasil quanto o sintetizador). Por isso merece as mais severas e impiedosas críticas de tradicionalistas e defensores de "música de qualidade". Mas tal bombardeio crítico, e ausência de divulgaç~n na grande mídia, não impediu que a nova música se espalh " c rapidamente pelo país nas festas das classes mais pobres (c .no sempre brinco, parodiando o carnavalesco Joãozinho Trinta: intelectual rico é que gosta de raiz, pobre gosta de tecnologia ... ) Não consigo comprar esse tipo de música nas lojas de discos do Rio de Janeiro, onde moro. Mas sei que elas circulam nas festas de forró cariocas. Descobri como elas chegam na cidade quase por acaso. Um dia, saindo de casa, vi um vendedor ambulante apresentar os novos cos para um porteiro do prédio vizinho.

com as grandes gravadoras ou programas de rádio ou TV de grande audiência. Meus amigos ricos nunca ouviram essas músicas. Mas é só entrar numa festa de periferia, de qualquer grande cidade brasileira (sobretudo aquelas que atraem muitos migrantes nordestinos), para escutar os sucessos cantados pelas multidões. Em Manaus, resolvi passar no camelódromo do centro da cidade para comprar uma coletânea com as novidades. Queria um co de áudio normal. Numa rua inteira lotada de camelôs, não encontrei. Eles só vendiam cos-vídeo ou ovos de forró (ao lado de cópias piratas de games para computador, GameCube ou Playstation 2). Foi para mim uma grande surpresa: não sabia nem que essas bandas, que não costumam aparecer na televisão de alcance nacional, já costumavam lançar ovos. Mas mais impressionante foi descobrir que seu público já tinha aparelho de ovo em casa para assistir aos shows de suas bandas de forró preferidas. Um mercado audiovisual também paralelo (que inclui inúmeras produtoras de vídeo especializadas em gravar shows no interior do Nordeste) me era apresentado assim de supetão, ali no meio da floresta amazônica.


Logo entendi rápido o que estava acontecendo ao olhar os bares da periferia da cidade. Há anos, todos têm televisores para distrair a clientela. Também são comuns sistemas de som, para as horas mais animadas. Hoje em dia é mais barato comprar um aparelho de DVD, que também toca cDs de vários formatos de áudio (incluindo MP3), do que um sistema de som razoável. Portanto muitos bares, no lugar das programações normais das televisões abertas, agora exibem sua própria seleção de vídeos piratas, que podem ser comprados nos camelôs a menos de 10 reais. É nesse mercado que o audiovisual forrozeiro atua. Um mercado que pouco a pouco também chega aos lares da periferia, que começam a comprar aparelhos de DVDS e televisores com som mais potente, aposentando seus velhos 3 em I sonoros. Por isso os camelôs de Manaus não entendiam minha insistência por CD de áudio "normal". Eu me sentia um personagem surgido do passado longínquo, através de um túnel do tempo. Todo mundo me olhava com curiosidade paleontológica. Até que um camelô me ofereceu: "serve MP3?" Não serviria, mas minha curiosidade foi maior: por 10 reais eu podia comprar um disco de 210 músicas. Foi naquele momento que realmente me convenci

que a indústria fonográfica como conhecemos (mesmo com iPod e iTunes) já havia acabado. Como competir com um camelô que vende canções por menos de 2 centavos de dólar cada uma? E eu ainda barganhei e comprei todas as 210 por 7 reais! Tenho forró para o ano inteiro! r.,. DIA 9 DE JUNHO DE 2004 Entro em duas lojas oficiais de discos em Cuiabá. Quero fazer as coisas dentro da lei. Procuro os últimos lançamentos do lambadão cuiabano, a música mais popular nos bailes das periferias urbanas do Mato Grosso. Sou tratado pelos vendedores com espanto ou com aquela cara de superioridade que significa algo assim como "nosso estabelecimento não lida com essas baixarias, saia já daqui". Era quase como se estivesse tentando comprar coca-cola numa loja xiita de produtos orgânicos. Percebo que não estão me escondendo nada: não têm mesmo lambadão para vender. Ninguém compra esse tipo de música em loj as. C laro: vou para aquele camelódromo da beira do rio e me esbaldo- economizando muitos reais-com os piratões de Os Maninhos (Volume VI-Bailão em Mato Grosso!), Banda R Som (O Melhor do Lambadão de MT - Seu Problema é Muito


Chifre na Cabeça), Stillo Pop Som (Ao Vivo), Banda Real Som (Te Amo Demais), Mega Boys (A Banda do Momento) e ainda a sensacional coletânea da Cabana da Dudu. A lambada chegou em Cuiabá trazida por mato-grossenses que foram trabalhar nos garimpos da Amazônia nos anos 70 e 8o. Pousando no cerrado, ela se misturou ao rasqueado, ao siriri e à polca paraguaia (já devidamente eletrificada, soando como um rhythm and blues pantaneiro), e deu no lambadão, que continua sua trajetória mutante absorvendo influências do vaneirão gaúcho, da axé music e do sertanejo, ou qualquer outra música que venha a fazer sucesso realmente popular no Brasil. O público logo entendeu que aquilo não era exatamente (ou não era apenas) uma lambada. Percebeu que estava ouvindo uma criação matogrossense-e começou a dançar exatamente como fazia nas festas tradicionais de siriri, "folclore" local, onde o público feminino domina e as mulheres podem ficar agarradinhas, d e rosto colado, girando sem parar pela pista de dança numa grande roda. Pelos ingredientes da mistura, e também por essa apropriação pouquíssimo ortodoxa daquilo que é considerado "autêntico", mesmo quem nunca escutou nada pode perceber que o resultado

não é feito para agradar os movimentos anti-baixaria (que muitas vezes são apenas movimentos elitistas, que pretendem doutrinar o povo a gostar da "qualidade", definida arbitrariamente-é claro -segundo concepções estéticas geralmente caducas). Pena, para mim pelo menos, que o território do lambadão seja ainda restritivamente regional. Impossível comprar essas músicas, ou mesmo me manter informado sobre seus novos lançamentos, tanto no Rio de Janeiro quanto na internet. itJ1o CENTRO/PERIFERIA

Citei esses três exemplos-do tecnobrega paraense, do forró amazonense e do lambadão mato-grossense - para mostrar como as músicas mais populares do Brasil contemporâneo - as que realmente colocam o povo para dançar nas festas mais animadas e que são cantadas nas ruas das grandes cidades do país-não são as mais tocadas no rádio, não aparecem em programas de televisão, não são lançadas pelas grandes gravadoras. Seus sucessos são geralmente desprezados pelos críticos que escrevem nos grandes jornais. Seus artistas não são convidados para os milhares de debates e seminários que discutem "cultura popular". É como se fossem populares demais para serem autenticamente populares.


Poderia citar muitos outros gêneros musicais que sobrevivem também nessa estranha zona de penumbra (a que junta sucesso de massa com invisibilidade na mídia oficial de massa), como o funk carioca (que, apesar de seu sucesso momentâneo fora das favelas, continua ignorado pelas gravadoras e pela maioria das rádios e das Tvs), o vaneirão pop gaúcho, as novas vertentes da música baiana (o arrocha e o samba duro dos putões e das periguetes, por exemplo), a maioria das duplas sertanejas de Goiás e Mato Grosso do Sul - e tantos outros. Isso sem falar de lojas das favelas cariocas (e outras favelas brasileiras) que fabricam cos, com as músicas que o freguês escolher (baixadas imediatamente da internet), em ro minutos, ainda com capas personalizadas. São todos novos mercados de consumo cultural que proliferam à margem da indústria cultural oficial, cada vez mais minoritária. Resta então saber quem realmente está na periferia. Basta fazer uma visita aos camelódromos dos centros oficiais do Rio (ali do lado dos edifícios da Petrobrás, do BNDES e da Caixa Econômica Federal) e de São Paulo (ali do lado da mais importante bolsa de valores do país), que se parecem tanto com as centenas de m ercados informais de outras cidades brasileiras, para ver que

a fronteira centro-periferia passou a rebolar mais freneticamente do que a egüinha pocotó, do funk do Me Serginho. A própria idéia de inclusão digital, cultural ou social, tem que ser repensada-ou descartada-diante dessa situação. Quando falamos de inclusão, partimos geralmente da suposição que o centro (incluído) tem aquilo que falta à periferia (que precisa ser incluída). É como se a periferia não tivesse cultura, tecnologia ou economia. É como se a periferia fosse um dia ter (ou como se a periferia almejasse ter, ou seria melhor que tivesse) aquilo que o centro já tem (e por isso pode ensinar a periferia como chegar até lá, para o bem da periferia). É como se as novidades tecnológicas ou culturais chegassem exclusivamente pelo centro, ou fossem criadas no centro, e lentamente se espalhassem-à custa de muito esforço civilizatório-em direção à periferia. Nos exemplos acima vemos que a periferia não esperou que o centro apresentasse as novidades. Sem que o centro nem notasse, inventou culturas digitalizadas que podem muito bem vir a indicar caminhos para o futuro do centro, que não parece conseguir d esenvolver por si próprio nenhum "plano de negócios" consistente para lidar com a nova realidade tecnológica.


Quando viajo pelo Brasil, fora das zonas ricas e oficiais do eixo Rio-São Paulo (mas muitas vezes a apenas poucos passos dos seus centros de poder), fico sempre com a seguinte impressão: o país cultural oficial, mesmo o retratado na mídia de massa, parece uma pequena e claustrofóbica espaçonave, em rota de fuga por universos paralelos, cada vez mais afastado do país real, da economia real, da cultura da maioria-e provavelmente a caminho do desastre financeiro ou do esgotamento de energias criativas. Do lado de fora (na realidade em todo lugar), as periferias das cidades inventam com velocidade impressionante novos circuitos culturais, e novas soluções econômicas- por mais precárias ou informais que sejam - para dar sustentabilidade para essas invenções. Presto atenção especial aos circuitos festivos, que sempre atraem multidões todos os fins de semana. Hoje, quase todas essas festas - conseqüência também do descaso do poder público e do desprezo dos bem-pensantes - proliferam na informalidade. Repito: o grande e real hit-parade do Brasil é totalmente independente da indústria cultural oficial e "legal". De certa forma, essa economia artística informal é produto de uma inclusão social conquistada na marra, quando a periferia

deixa de se comportar como periferia, ou deixa de conhecer o "seu lugar", o lugar que o centro desejava que para sempre ocupasse (o lugar daquele que sempre espera ser incluído, que sempre acha que é do centro que virá sua libertação). O Brasil vai ter que se acostumar com essa "inclusão" forçada, de baixo para cima, feita assim aos trancos e barrancos. Enquanto isso o centro parece não conseguir deixar de lado esta nostalgia perversa de um país que "perdemos", quando os pobres e seus costumes "bregas" eram invisíveis, a não ser num ou noutro livro de Gilberto Freyre (e Jorge Amado, é claro), ou num ou noutro filme de Glauber Rocha, ou numa noitada no Zicartola. Quando contei sobre a nova economia do tecnobrega para o DJ Marlboro, principal produtor do funk carioca, ele não ficou nem um pouco espantado e apenas comentou: quando os camelôs e intermediários se aliarem aos músicos com contratos de exclusividade, uma nova indústria fonográfica central estará nascendo. Retruquei: mas aí aparecerão as novas periferias. E assim por diante. Não há como conter ou controlar as novidades e as dificuldades que a digitalização da cultura trazem para os antigos modos analógicos de comércio de cultura. Ou da economia em geral.


As festas de aparelhagem de Belém do Pará, de forró em Manaus, de lambadão em Cuiabá, de funk no Rio, de arrocha do Recôncavo Baiano mostram a vitalidade de uma economia paralela/periférica brasileira e mundial, que não aparece mais nas estatísticas do Ministério da Fazenda ou do Trabalho, nem pode ser domesticada nos acordos cada vez mais frágeis da Organização Mundial do Comércio. Como cantam os Racionais Mcs, periferia é periferia, em qualquer lugar. Essa letra é mais verdadeira do que nunca. Cada vez mais, a periferia toma conta de tudo. Não é mais o centro que inclui a periferia. A periferia agora inclui o centro. E o centro, excluído da festa, se transforma na periferia da periferia. H ERMA NO VIANNA

é antropólogo e criado r do programa Central da Periferia

(Tv

Globo).

Reino dos bichos e dos animais é

o meu nome Stela do Patrocínio

Ainda era no Rio de Janei ro, Botafogo Eu me confundi comendo pão Eu perdi os óculos E le ficou com os ócu los Passou a língua nos ócu los pra tratar os óculos com a língua E la na vigilância do pão sem poder ter o pão Essa troca de sabedoria de idéia de esperteza Dia tarde noite janeiro fevereiro dezembro Fico pastando no pasto à vontade Um homem chamado cava lo é o meu nome O bom pastor dá a vida pelas ovelhas Eu estava com saúde Adoeci Eu não ia adoecer sozinha não Mas eu estava com saúde Estava com muita saúde


Me adoeceram Me internaram no hospital E me deixaram internada E agora eu vivo no hospital como doente O hospital parece uma casa O hospital é um hospital

É dito: pelo chão você não pode ficar Porque lugar de cabeça é na cabeça Lugar de corpo é no corpo Pelas paredes você também não pode Pelas camas também você não vai poder ficar Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar Porque lugar de cabeça é na cabeça Lugar de corpo é no corpo

Trajetos e trajetórias - uma perspectiva da antropologia urbana ] [ entrevista com José Guilherme Magnani

corpo editorial

A trajetória de Magnani confunde-se com a da antropologia urbana no Brasil. É o que se poderá depreender desta entrevista com o professor de antropologia na Universidade de São Paulo, estudioso dos fenômenos sociais da cidade e na cidade, tanto no centro quanto na periferia. Tais fenômenos dão a perspectiva da antropologia urbana, defendida por Magnani, que propõe como objeto a "interação" de agentes ou grupos sociais com o espaço. Trata-se, diz ele, de "reconhecer a presença dos diversos grupos no espaço da cidade e sua articulação com as instituições e equipamentos urbanos". A cidade aparece, aí, etnograficamente recortada com base em categorias sócio-espaciais, e sempre dinâmicas, como as de trajeto e circuito, mancha e pedaço. São termos, alguns deles nativos, que Magnani reelaborou como categorias, e que seguem guiando suas análises e as de outros pesquisadores do Núcleo de Antropologia Urbana (NAu), sediado na usP.


Dessa perspectiva sócio-espacial, mas também histórica e política, Magnani aborda o tema Periferia. Foi nos bairros populares de São Paulo, na década de 1980, que o então estudioso de cultura popular deparou-se com a política em fenômenos de lazer. Daí entender, também, o lazer em fenômenos da política. Desde então, a antropologia urbana vem enfrentando a periferia, seja como categoria nativa, seja como noção teórica, não raro de ambas as formas. Esta entrevista foi concedida em junho de 2005, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da usP, ao corpo editorial da Sexta Feira. A elaboração em tópicos das questões reflete as perguntas e os temas propostos ao entrevistado.

r.,

UM TRAJETO SUL-AMERICANO

Minha trajetória começou com a formação em ciências sociais pela Universidade Federal do Paraná, mas, em razão da militância estudantil (eu era presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras), sofri um processo do governo militar e, condenado pela lei de Segurança Nacional, optei pelo exílio. No Chile, dediquei-me ao mestrado sobre o tema dos contos orais camponeses, na FLAcso, Faculdade Latino-Ame-

ricana de Ciências Sociais. Isso começou em 1970, exatamente no período da experiência socialista chilena com Salvador Allende. Como era a época do boom do estruturalismo, d a lingüística à antropologia, eu trabalhei com semântica estrutural. A escolha de estudar os contos camponeses tinha também uma motivação ideológica. Nessa época, no Chile, todos os objetos de estudo ficavam contagiados pelo clima socialista, e era difícil fazer uma pesquisa que não estivesse ligada com a "grande questão", que se deu com a eleição de Allende. Mas a "grande questão", para mim, era investigar a ideologia dos camponeses que, desde uma certa perspectiva marxista, era tida como reacionária, conservadora, pois não se ajustava à proposta de vanguarda e transformadora. A questão era saber se realmente a ideologia dos camponeses terminava servindo de obstáculo para a experiência socialista. Mas em vez de fazer perguntas, aplicar questionários, eu resolvi trabalhar com o imaginário deles. Daí meu interesse pelos chamados contos fantásticos, para descobrir quais eram os núcleos ideológicos que regiam aquelas narrativas. Na verdade, era uma região de pequenos proprietários, que moravam no sul do Chile, na província de Talca, sem interesse ne-


nhum em política, sem nenhuma vinculação ao projeto socialista. E exatamente porque eles não tinham interesse é que eram um bom tema de estudo. Quando em 1978 voltei ao Brasil, entrei em contato com a Dra. Ruth Cardoso. Como meu mestrado era ligado à cultura popular, só que camponesa, eu continuei na área de cultura, mas agora de cultura urbana, em função de ter voltado ao país e escolhido morar numa cidade como São Paulo. E aqui tive então contato com manifestações e grupos de cultura popula r em contexto urbano. if'Jio MARGEM E CENTRO

A professora Eunice Durham tem uma visão muito clara do processo entre o final dos anos 1970, início dos 1980, que levou a antropologia a se tornar mais visível no ambiente acadêmico brasileiro. Até então, as ciências sociais que estavam mais em evidên cia eram a sociologia e a ciência política, em função do próprio teor da discussão central, que era sobre o modelo de desenvolvimento, com suas implicações sociais, econômicas e políticas. A sociologia, com o arcabouço teórico marxista, tomava os atores sociais em termos de sua divisão em classes sociais e sua práxis

na chave da luta política, sendo os protagonistas desse processo o Estado, os sindicatos, os partidos de esquerda. Esses eram os atores sociais de interesse para a análise das ciências sociais, mas não faziam parte dos tradicionais recortes de estudo da antropolog ia. E la seguia estudando temas e personagens de certa forma à margem daquele processo: povos indígenas, a população rural, a família, a religião, tradições populares-nada que estivesse no centro dos grandes acontecimentos e dos debates. Mas o desfecho das lutas e conflitos naquela conjuntura fez com que mudasse o foco do interesse- inclusive do ponto de vista dos atores declaradamente políticos. Saem da cena os agentes institucionais e aparecem outros protagonistas, agora n a qualidade de moradores. Se vocês se lembram, foi então a época dos estudos sobre os movimentos sociais urbanos. O foco deslocou-se das classes sociais para os moradores da periferia e suas condições de vida, sobre os quais não se conhecia quase nada. Em que eles acreditavam? O que comiam ? Onde e como moravam ? De que maneira resolviam seus problemas de saúde? Como reconstituíam, no contexto urbano, seus laços de parentesco? Essas questões pareciam pouco relevantes do ponto de vista de um certo tipo


de análise sociológica e política pa ra o qual o que importava era identificar seus interesses de classe, determinados pela posição ocupada no plano da estratificação social. E justamente na hora em que se pergunta sobre quem são esses protagonistas, a antropologia é que é chamada a responder. Assim, a antropologia se torna mais visível porque seu foco, seus objetos de estudo, passam para a cena política com uma carga e significado que não tinham anteriormente. É aí que começa uma abordagem dos atores sociais, não como atores políticos institucionais, m as como portadores de culturas diferenciadas, e que remetiam aos processos migratórios. Quem primeiro levanta essa questão é a sociologia, nos estudos de m ovimentos sociais urbanos, mas ainda na chave da política. E é interessante notar que são as mulhe res que tomam o primeiro plano, porque são elas que estavam nos bairros, no transcorrer da vida diária, enqua nto os homens estavam nas portas d as fábricas, lutando como membros da classe operária. As mulheres estavam na periferia, lutando também, mas sem aparecer politicam ente. Elas se tornam, digamos assim, um sujeito político, pois são elas que começam a reviravolta através, entre outras estratégias de ação, dos famosos

movimentos de abaixo-assinados reivindicando creches e vários outros serviços e equipamentos urbanos, como iluminação pública, transporte etc. Trata-se de um n ovo jeito de fazer política, mais ligado à consciência das carências urbanas, ao modo de vida, às necessidades do dia-a-dia, ao "direito à cidade". É quando surge a periferia como um locus de pesquisa, diferente da fábrica ou do partido político. Essa confluência entre conjuntura política e intelectual explica a visibilidade que a antropologia com eça a ter n esse m om ento. A pesquisa antropológica reencontra a política no cotidiano. As perguntas, agora, eram sobre a vida das pessoas no bairro, seus vínculos de sociabilidade, suas formas de religiosidaJe e saúde, sua culinária, os m ovimentos de moradia, sistemas construtivos, uso do tempo livre. Este último tema, contudo, era tido com o o menos im portante. Em todos os outros havia um certo cha rme em se estudar, mas o lazer era uma coisa inusitada. Isso porque o lazer não tinha estatuto de uma questão relevante para se entender o m odo de vida da periferia. Era o marginal do marginal. Mas com o os antropólogos gostam sempre de toma r


as coisas pela margem-acham eles que estudando a margem podem ter acesso ao centro das coisas-, lá fui eu fazer estudo sobre o lazer e tendo, ainda por cima, de justificar um doutorado sobre esse tema. E meu recorte empírico foi sobre uma modalidade muito tradicional de lazer, o circo-teatro. itJ1o CULTURA E POLÍTICA

Aqui, no então departamento de Ciências Sociais da FFLCHiusP, o debate de onde surgiu minha pesquisa sobre a cultura popular e o circo-teatro ainda girava em torno de uma pergunta: a cultura popular é conservadora ou é progressista? A questão mais geral que subjaz a esse debate, ideologia versus cultura, já estava presente, por exemplo, nas propostas do Centro Popular de Cultura (cPc) da UNE. Então eu fui estudar o circo-teatro com a mesma perspectiva que estudei os contos camponeses: o que nos dramas ou nas comédias circenses existe de transformador ou conservador? Foi essa a pergunta inicial que orientou a minha hipótese. Tanto quanto os contos camponeses, o circo-teatro era uma manifestação cultural popular e d e longa tradição. Tratava-se de uma dramaturgia que tinha dupla origem: no melodrama do século XIX e na Comedia Dell' Arte do século XVI. De certa maneira,

havia uma continuação entre esses dois recortes de pesquisa. Só que lá foi um enfoque sociológico, e aqui mais antropológico. Essa dicotomia, ideologia versus cultura, era muito instigante e a gente lia Gramsci que, dentro da tradição marxista, oferecia uma perspectiva teórica para entender a questão da cultura popular e de como certos núcleos podiam ser trabalhados em função da ideologia. Líamos também Richard Hoggart, o fundador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, na Universidade de Birmingham, que estudou a cultura da classe operária inglesa e os jovens dos anos 1950 que entram em contato com a mass medium. Sua questão era saber, de um lado, como se mantém o tradicional na cultura de massa e, de outro, de que forma ela se transformava. A antropologia permitia visualizar a política onde ela não aparecia, ao menos não explicitamente. Nas análises correntes geralmente era vista na forma canônica da luta de classes, em torno do aparelho do Estado ou ainda referida ao mundo do trabalho. D escobrir que há relações de poder no âmbito do dia-a-dia, nas relações de gênero, nas lutas por equipamentos urbanos, isso era uma novidade. E outro autor que ajudava a pensar essa micro-

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política nas relações do cotidiano e até nas relações pessoais era o Foucault. Mas era na etnografia que isso se tornava palpável. Era possível pensar a política de um jeito mais refinado até, observando as formas por meio das quais ela permeia as relações sociais de uma maneira mais sutil, para além dos lugares convencionais onde já se sabe que ela existe. A antropologia, dessa forma, levantava uma questão nova com seu método particular de fazer pesquisa. E nossos "objetos" de estudo emergiam politizados: as mulheres no movimento feminista, os gays no movimento homossexual, os moradores em suas associações etc. eram dignos de ser analisados não apenas como movimentos formais, mas como espaço de soluções criativas e novas. Também a Escola de Chicago, na época, nos dava retaguarda teórica e histórica. Ela foi um referencial tanto para a antropologia urbana na usP quanto para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Neste, a linha privilegiada foi mais o "interacionismo simbólico" no estudo das chamadas "camadas médias". Aqui na usP, os estudos foram mais orientados pelas pesquisas de comunidade, até por influência e contato com a Escola de Sociologia e Política. Assim, o que nos levou a tomar a periferia como um lócus de pesquisa foi, por um lado,

aquela conjuntura dos movimentos sociais urbãnos e, por outro, a questão política que estava presente por causa da emergência dos novos atores sociais. E, no meu caso em particular, a etnografia abria novos caminhos para o entendimento do lazer no cotidiano da periferia. ii';lo O LAZER INSURGENTE

Meu desafio era demonstrar a importância do lazer, que comecei a considerar como uma via de acesso para entender as representações e os valores dos moradores da periferia. Mas era preciso argumentar, convencer, pois essa perspectiva não era, de forma alguma, consensual. Tratava-se de um tema de estudo que parecia exigir um esforço argumentativo extra, como se esse objeto de estudo não fosse consistente, fosse um tema menor. No entanto, a questão do lazer surge, historicamente, como um subproduto da dinâmica das relações sociais inauguradas pela revolução industrial, que contrapunha o mundo do lazer ao mundo do trabalho. Em outras formações sociais como os povos caçadores e coletores, por exemplo, ou em sociedades camponesas, a questão do tempo livre é englobado por outros sistemas classificatórios como a passagem das estações, o regime de chuvas, o calendário religioso. A


conquista de um tempo livre arrancado às horas de trabalho foi fruto de uma luta histórica da classe operária. Então, há um paradoxo muito interessante: o tempo de descanso é funcional para o sistema produtivo mas foi conseguido pelo movimento operário, pois o capital só incorporou o tempo livre como necessário à manutenção da força de trabalho depois daqueles primeiros momentos do capitalismo selvagem, quando o trabalhador era apenas mais um insumo, consumido e jogado fora, porque havia um exército de reserva à disposição. À medida que o trabalho se torna mais especializado, passava a ser interessante para o capital manter os trabalhadores n o sistema. E para isso era preciso que eles tivessem o necessário descanso, para reposição de suas forças físicas e psíquicas. Só que quem conseguiu isso foram os operários, e seu segmento mais avançado. Se vocês lembrarem, foi o movimento anarquista que deu um conteúdo político para o lazer naquele contexto. Os próprios anarquistas reivindicavam um tempo livre para poder desenvolver uma cultura própria, com seus saraus, seu teatro, seus encontros. Então, desde o primeiro momento, a questão do lazer assume um forte caráter político. Era o direito fundamental ao ócio, inclusive

como afirmação de classe. Cabe lembrar o famoso livro de Paul Lafargue, genro de Marx, O direito à preguiça. Mas o tema do lazer, nas pesquisas acadêmicas, nunca foi entendido nessa perspectiva. Foi sempre considerado como algo acessório, desimportante. A questão era, portanto, como formular as perguntas. Do ponto de vista formal do sistema, não havia o que perguntar, pois na lógica do capital, a pergunta sobre para que serve o lazer já estava respondida de antemão: o lazer serve para repor as forças gastas no processo produtivo. Mas, e se eu fosse perguntar diretamente a eles, aos trabalhadores, lá onde eles moram, sobre o que significa o lazer, como eles desfrutam o tempo livre? Assim, em vez de ficar com a resposta já dada pela lógica do sistema, a estratégia era ir atrás daqueles que fazem o lazer. Este foi o desafio: ir a campo em busca dos atores sociais e, com essa estratég ia, surgiu uma perspectiva nova sobre o tema. O projeto tinha sido montado tendo como recorte empírico uma modalidade específica de lazer, o circo-teatro, não apenas como cultura popular, mas como algo que incorporava formas tradicionais de dramaturgia. O melodrama do século XIX estava presente na organização estrutural dos dramas circenses, assim como a


comicidade típica da Commedia dell'Arte nos sketchs. A figura do palhaço foi pensada como trickster, e a partir daí dava para recuperar, tendo como referência as análises de Antonio Candido, a ética do malandro. Só isso já dava uma análise interessante. Mas em contato com os atores sociais, em campo, fazendo etnografia, surgiram outras questões, e com maior rendimento. r.,.

LUGAR, O PEDAÇO

Minha pergunta inicial era: o discurso veiculado nas representações circenses é conservador ou progressista? E a resposta que obtive foi mais ou menos essa: importa pouco o conteúdo da cultura popular, o que importa é que ela é um espaço de construção de vínculos e ocasião de sociabilidade. Em outras palavras: eu perguntei "o que é?" e eles me responderam "onde". Eu tinha um objeto de pesquisa muito específico e, quando ele começou a ser ampliado em seu recorte, abriu pistas para ser analisado em uma rede mais ampla, o que não estava previsto no projeto. Daí passei a prestar atenção no fato de que a extensão dessa rede se desdobrava no espaço. Quando, por exemplo, eu percebi que o circo era uma entre outras opções de lazer da periferia, esta já não aparecia como uma paisagem monótona e cinzenta nem se opunha de maneira

homogênea ao centro. Deparei-me com uma riqueza de formas através das quais as pessoas passavam o tempo livre que, logicamente, não eram aquelas com as quais nós, do lado de cá da avenida marginal, estávamos acostumados. Dei-me conta de que excursão de farofeiro era lazer, que festa de aniversário, batizado ou casamento eram lazer, que futebol de várzea e saída de iaô eram também lazer, no sentido de ocasiões e espaços de encontro, sociabilidade. E, bom, já que eles têm essas formas de lazer, como elas são organizadas? Era preciso fazer uma etnografia, e comecei por construir um sistema de classificação: o lazer não era indiferenciado, havia lazer de idosos, de crianças, de jovens; na chave de gênero, havia diferenças entre lazer de mulher e de homem, no recorte espacial era em casa, fora de casa, no bairro, e por aí vai. Foi na elaboração desse sistema classificatório que apareceu o termo "pedaço" numa oposição que distinguia atividades desfrutadas "no pedaço" versus "fora do pedaço". Dessa forma, sem que eu tivesse previsto, ali estava uma categoria nativa que, reelaborada, teve rendimentos posteriores, pois inaugurou toda uma reflexão que redundou no estabelecimento de uma "família" de categorias, como trajeto, mancha, pórtico, circuito.


r,.,

O SER E O ESTAR DA PERIFERIA

Como termo no interior de uma relação, periferia só pode ser entendida em oposição ao centro. O centro é o lugar de uma mais rica provisão de equipamentos urbanos e serviços. Já a periferia, com uma população mais carente, é desprovida de infraestrutura básica, não conta com o amparo do poder público. Em suma, estes eram os dois núcleos da oposição: a periferia marcada pela carência, o centro marcado pela presença dos equipamentos urbanos. Essa contradição (e sua constatação) é que estava na raiz dos chamados movimentos sociais urbanos. No caso de São Paulo, a constituição e o reconhecimento d a função de suas sucessivas centralidades terminaram produzindo o seu contrário, o espaço periférico. Do famoso triângulo que desenha espacialmente o centro histórico, sai um vetor, na direção sudoeste, em cuja esteira se desenvolve um processo de ocupação que pode ser pontuado, nos diferentes ciclos econômicos, por ondas migratórias. Os trabalhadores, de origem européia, por exemplo, tinham suas habitações ao lado e em torno das fábricas, nas vilas operárias. São, porém, progressivamente empurrados para regiões mais distantes e desprovidas de equipamentos. Bom,

essa é uma questão mais complexa; a literatura reconhece o centro histórico, em seguida o centro expandido na avenida Paulista e depois, mais recentemente, o núcleo da avenida Berrini. Cada vez que ocorre e se consolida essa mudança, os moradores tradicionais são expulsos para regiões mais longínquas. No Rio de Janeiro, a localização da população mais pobre nos morros não os afasta para longe da cidade. Aqui, em São Paulo, essa oposição espacial periferia versus centro se torna mais evidente e com mais sentido. De uma certa forma, há uma continuidade que vai da segregação espacial à segregação de direitos, e, morar em periferia, ser da periferia, sempre significou ausência do Estado e dos equipamentos urbanos. Em termos mais antropológicos, porém, aconteceu com o conceito de periferia o mesmo que com o conceito de cultura, conforme descreveu Sahlins no artigo "O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um "objeto" em vias de extinção". Segundo esse autor, no momento em que a noção de cultura é problematizada pelos antropólogos, ela é assumida pelos atores sociais; pois bem, o mesmo ocorreu com a noção de periferia. Quando deixa de ser uma categoria operati-


va em temos de dicotomia espacial (pois há condomínios de luxo em bairros afastados, assim como presença de pobres e moradias precárias em regiões centrais), ela é assumida, por exemplo, no discurso dos rappers, com uma conotação positiva, enfatizando não já a carência, mas o pertencimento. Há aí uma certa visão propositiva, segundo a qual "ser da periferia" significa participar de um certo ethos que inclui tanto uma capacidade para enfrentar as duras condições de vida, quanto pertencer a redes de sociabilidade, a compartilhar certos gostos e valores. Essa conotação aparece de forma mais contundente na noção de "quebrada", conforme foi detectada em etnografias realizadas no Núcleo de Antropologia Urbana: entre jovens, reconhecer alguém como da mesma "quebrada" significa localizá-lo numa rede bem concreta de pertencimentos e, ao mesmo tempo, como participante de uma condição geral de vida, marcado, sim, pela violência, mas também pela coragem e por uma determinada estética. Então, quando os "boyzinhos" querem cantar rap, curtir hip hop e até mesmo sair para um "rolê" de pichação, eles têm que se vestir como moradores de periferia, para não destoar. "Comunidade" é outra categoria que também foi apropriada de

uma forma bem particular e seu significado não necessariamente se ajusta à noção clássica. Há um certo paralelismo nessas reelaborações, que podem ser protagonizadas tanto pelo pesquisador, quando identifica uma categoria nativa ainda presa à prática social restrita e localizada que lhe deu origem, e procura dar-lhe um estatuto mais universal, como pelos próprios atores sociais que se apropriam e dão outros significados a noções já consagradas. Se "pedaço" pôde ser aplicado a outros contextos, mostrando bom rendimento analítico, "periferia" já não tem uma referência basicamente espacial, não se opõe de forma polarizada a "centro" nem é um estigma. it,. NOVO TEMPO LIVRE

Certamente que o conflito e a violência estão presentes no dia-adia das grandes cidades, mas minha entrada na dinâmica urbana via estudo do lazer, do tempo livre, permitiu um enfoque diferente, ofereceu um contraponto à visão corrente da metrópole como espaço do caos e da fragm entação. Apesar das duras condições objetivas de vida cotidiana-o trânsito, a realidade do desemprego e sub-emprego, a falta, ou melhor, a perversa distribuição dos equipamentos e serviços urbanos etc., esta cidade, de 17 milhões


de pessoas, funciona. As pessoas não apenas "sobrevivem", mas vivem nela, protagonizam soluções criativas e arranjos coletivos em suas práticas de devoção, de encontros, de religiosidade, de ocupação do tempo livre etc. Aquela minha preocupação inicial, de argumentar que o lazer era um tema legitimo, "digno" de ser estudado, mudou. O montante de recursos atualmente envolvidos com as atividades da área do entretenimento-que se chama, significativamente, indústria do lazer-é um indicativo da importância que ele passou a ter. Tecnicamente, e de uma forma rápida, pode-se caracterizar o lazer como o conjunto de atividades que ocupam o tempo livre, ou seja, aquela porção d e tempo liberado de atividades consideradas obrigatórias. Mas, atualmente, o usufruto e o estudo do lazer se desvincularam do mundo do trabalho. Ele é um valor em si, encarado em outra perspectiva, a da qualidade de vida, o que inclui não apenas condicionamento físico ou consumo de bens culturais, mas aprimoramento até mesmo no plano espiritual, como pude comprovar na pesquisa que fiz sobre a religiosidade contemporânea na cidade d e São Paulo. Os termos usados são "cultivo do eu", aprimoramento de potencialidades pessoais, descoberta da "lenda pessoal", busca da

prosperidade, ampliação de oportunidades etc. A prática religiosa, por exemplo, já não é, para muitos, uma obrigação, mas passa a ser um espaço de curtição, de encontro com pessoas que compartilham gostos e valores livremente escolhidos. Há um imenso investimento no lazer, que não se define mais em oposição ao trabalho. Ao contrário, muitas vezes o trabalho é somente uma forma de ganhar dinheiro para usufruir melhor e de forma mais criativa o tempo livre. Isso tem a ver com mudanças na própria lógica do trabalho: para gerações anteriores, ficar desempregado era uma situação desestruturante, pois o emprego organizava toda a vida social, afetiva, familiar, psíquica. Era uma referência central e sua perda desestabilizava todo o resto. Hoje o trabalho informal, as atividades do chamado terceiro setor, das ONGS e outras modalidades de trabalho, desde os bicos temporários até assessorias, consultorias, estágios, etc. introduziram outra lógica, diferente, por exemplo, daquela que regia o trabalho em ritmo de produção fabril. O trabalho informal permite outro tipo de contato com a cidade e com outros atores sociais, o que é uma novidade. Há ainda poucos estudos sobre esse lado do trabalho informal principalmente em


relação a uma geração mais jovem; ele ainda é interpretado na chave da falta, por oposição ao trabalho formal. Entretanto, além de aspectos de sociabilidade, é notável a maleabilidade com que se passa de uma atividade para outra nesse universo informal. r.,. PROJETOS, ONGS Essas mudanças se refletem no campo das políticas públicas. Ao lado (e às vezes em lugar de) de uma preocupação com políticas de emprego, o que se vê é um discurso sobre a necessidade de investimento na área de lazer como forma de oferecer alguma ocupação aos jovens em situação de risco, como se diz, para tirá-los das ruas. Esse discurso é incorporado, inclusive, pela população local em bairros da periferia; é comum escutar de mães, por exemplo, que "meu filho está procurando um projeto e ainda não achou". É na periferia que os "projetos", as ONGs, encontram a matéria prima para a elaboração de suas propostas e permitem um interessante contato entre moradores e pessoas de fora. Mas ONG é muito diferente das antigas associações de moradores, que representavam uma interface entre os moradores e os aparelhos de Estado. As ONGS até passam pelo Estado, mas vão procurar financiamento, entre outras fontes, em instituições internacionais.

Amplia-se aí o raio de atuação dessas entidades, pois oferecem não apenas uma estrutura, mas também uma linguagem específica, incorporada já no discurso e nas estratégias dos próprios moradores. Hoje, é muito mais promissor dizer que se faz parte de uma ONG do que de uma associação de moradores. Assim, se toda ONG tem que ter um pé fincado na população local, não dispensa, entre seus quadros, profissionais e estudantes de fora, e assim se faz a ponte. Esta junção é uma novidade. r.,. ANTROPOLOGIA URBANA Não acredito que se possa aplicar à periferia aquela distinção- "antropologia da cidade ou na cidade" -que se popularizou a partir da conhecida afirmação de Geertz, de que os antropólogos estudam não as aldeias, mas nas aldeias. Se em algum momento houve uma espécie de antropologia"na" periferia, por esta haver se tornado o lócus privilegiado de muitas pesquisas, não se pode dizer que hoje a tendência seria uma antropologia"da" periferia. Penso que os múltiplos significados do termo, seja como recorte espacial, seja como ethos, como sinal de pertencimento, marca de distinção, podem perfeitamente ser englobados nas temáticas mais gerais da antropologia urbana.


Aliás, essa é uma questão a ser enfrentada, pois ainda não está resolvida a velha pendenga de diferenciação frente à etnologia indígena. Pessoalmente considero que, para pensar o fenômeno urbano em sua complexidade, não há necessidade de muitos malabarismos pós-modernos, ou de buscar modelos em outras áreas como urbanismo etc.; se nos mantivermos fiéis ao legado da disciplina e, principalmente, ao método etnográfico, creio que podemos oferecer modelos explicativos criativos e originais. Nessa empreitada, a inspiração continua vindo dos clássicos e o interlocutor privilegiado d eve ser a etnologia indígena. Para mim, a especificidade da antropologia urbana reside na estratégia de combinar, de articular duas ordens de fatores: de um lado, os atores sociais em sua múltiplas determinações e, de outro, a paisagem e os equipamentos urbanos com os quais e nos quais interagem - não como um mero cenário, mas como produto da prática social desses mesmos agentes. Se eu trabalhar só com paisagem, corro o risco de fazer geografia urbana; se a ênfase recair nos atores sociais, então é sociologia. Eu tenho que pensar na interação entre ator social versus paisagem, equipamentos, instituições urbanas, procurando identificar os arranjos desses atores

e com eles construir modelos. Essa junção é que dá a perspectiva de uma antropologia urbana. Mas é a aplicação do método que faz o diferencial. Considero que uma abordagem "de perto e de dentro" dá a medida do que seja uma aproximação etnográfica. Isso não significa, lógico, submergir nas particularidades, ser tragado pelos estudos de caso; chamei de "a tentação da aldeia" o perigo de pensar que os recortes significativos constituem isolados na paisagem urbana. Cada um dos grupos pesquisados tem, sim, seu "pedaço", seus membros se reconhecem por gostos, linguajar, roupas e acessórios distintivos, mas não se encerram em guetos. Ao contrário, mantêm relações entre si e com outros segmentos, usam a cidade, percorrem-na em trajetos reconhecidos, e fazem parte de circuitos mais amplos. Na verdade, esse é o objetivo mais geral, seja qual for o recorte da pesquisa: o que importa mesmo é procurar entender a dinâmica urbana, distinguir suas várias escalas, desde a da cidade interiora na até a da metrópole. Para além dos muros, das grades, dos espaços fechados, é possível ler a cidade em outra chave. Penso que este é um elemento estruturante da vida urbana: a constituição de espaços públicos onde os diferentes, não


obstante suas particularidades-de religião, de gostos, de origem social, de genealogias-podem se encontrar, apesar de todas as dificuldades, para o velho ritual das trocas, em suas mais surpreendentes modalidades. Mas são justamente aquelas categorias-pedaço, trajeto, mancha, circuito, pórtico-que permitem recortar totalidades de sentido, que se interligam, ao longo das quais transcorre a prática social dos agentes. São totalidades construídas pela análise, não se confundem com algum tipo de fronteira dada, pré-estabelecida. Não há temas ou objetos de estudo in natura. Tudo depende da perspectiva. E para não deixar nenhuma dúvida quanto ao alcance da visão "de perto e de dentro", penso que o tempo todo ela deve estar temperada, relativizada com a perspectiva de um "olhar distanciado", o único através do qual estruturas e processos de mais longa duração se revelam.

Cidade invisível

Esta é a cidade onde nunca estiveenquanto mostra com o indicador no mapa o caminho provável pa ra se chegar ao destino. Era uma fáb rica, como todas as fábr icas, na periferia. Tin ha sido ferramentista, mas se aposentou quando a fáb rica fechou, ou mel hor, q uando venderam a fábrica, muda ram o nome e mantiveram os donos. Ficou desanimado. Mas até hoje

H eitor Ferraz


-disse enquanto se perdia por uma rua de nome Rosário, ou Nossa Senhora, passando por um riacho soterrado, ou canalizado, prédios pintados de rosa, o quase fogo das favelasaté hoje tinha saudade do cheiro da fábrica, do barulho da fábrica, do macacão de trabalho.

O lugar aonde as pessoas chegam antes da cidade

Renato Cymbalista

No final do século xrx, foi arruado o bairro de Campos Elíseos em São Paulo. Foi o primeiro bairro da cidade que não surgiu de um simples desmembramento de uma gleba, mas de um loteamento planejado. Iniciava-se na cidade a era de empreendimentos que transformavam a terra urbana em uma mercadoria propriamente capitalista. Antes constituídas pelo espaço negativo dos edifícios, agora as ruas urbanas começavam a definir-se como espaço público restante do parcelamento do solo. Seguiram-se outros loteamentos desse tipo, ainda no século xrx: Higienópolis-que tem esse nome por ter sido o primeiro bairro urbanizado com sistema de saneamento - e a Avenida Paulista. No século xx, o padrão se consolidou, com a decisiva atuação da Companhia City na urbanização de vastas porções d e terra a sul e oeste da cidade, constituindo os bairros do Jardim América, Pacaembu, Sumaré, City Pinheiros, City Lapa e C ity Butantã, entre outros.

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Além desses loteamentos acolherem a elite da cidade, consolidaram no imaginário da população a idéia, que permanece até os dias de hoje, do que seria um "bairro bom": aquele onde se sucedem, mais ou menos nessa ordem, o plano urbanístico, o arruamento, o provimento de infra-estrutura (redes de água, iluminação e gás), calçamento, construção de espaços públicos, venda de lotes e, finalmente, a edificação privada, quase sempre de residências unifamiliares. Esse tipo de urbanização perpassou todo o século xx como uma das maneiras de crescimento da cidade, principalmente no cone sudoeste, onde vêm se acomodando as classes altas e média-altas da cidade. Entra em cena a Lei. Embora em nenhum momento fosse majoritária, a forma descrita acima de expansão da cidade acabou sendo adotada como norma, e as regulamentações da cidade acabaram por adotar os padrões acima como a única modalidade plenamente legal de parcelamento do solo para fins urbanos. No entanto, sabemos que a maior parte da população de São Paulo nunca teve a possibilidade de ocupar a cidade dessa forma . O século xx foi também um período de mudanças na maneira como os pobres instalaram-se na cidade. O explosivo

crescimento populacional, significando um brutal aumento nos preços da terra, a transformação de grandes grupos da população de inquilina em proprietária, que ocorreu mesmo entre os pobres, e a transformação do padrão de transporte, dos trens e bondes que produziram uma cidade densa e compacta, rumo aos automóveis (para os ricos), ônibus (para os pobres) e caminhões (para a carga), acabaram mudando a forma de organização dos bairros populares, dos superdensos bairros operários das primeiras décadas do século (Brás, Bom Retiro, Barra Funda, Belém), em uma ocupação muito mais espalhada, apresentando diversos graus de densidade e infra-estrutura, mas com uma característica em comum: a primeira coisa que chegava eram as pessoas. Bem-vindos às periferias da maior cidade do país. As periferias proliferaram principalmente nas vertentes de expansão norte e leste de São Paulo, mas permearam também as regiões sul e oeste. Mais recentemente atingiram municípios da Região Metropolitana e além, e também as áreas que foram designadas na década de 1970 como áreas de proteção aos mananciais, nos extremos sul, sudeste, oeste e norte da cidade. Essa "outra cidade", que supria a gigantesca demanda por


localizações por parte dos mais pobres, obedeceu a uma lógica de constituição quase inversa à dos "bairros bons", ou seja, aquilo que foi considerado adequado, salubre e por fim regular: em prim eiro lugar, chegam as pessoas, comprando lotes irregulares ou ocupando as franjas não comercializadas da cidade. A ocupação dos lotes se dá basicamente por meio da autoconstrução: nas horas de folga, feriados e fins de semana, os moradores da periferia estendem por anos a construção progressiva de suas moradias, recorrendo a serviços especializados apenas quando estritamente necessário e, por vezes, convocando a solidariedade dos amigos e vizinhos para executar as etapas que exigem esforço mais concentrado. A famosa feijoada ou o churrasco na laje é oferecida em retribuição ao apoio coletivo recebido dos colegas para a concretagem de uma laje autoconstruída. A rede de solidariedade funciona não só baseada na perspectiva da recompensa, mas também porque quase todos, mais cedo ou mais tarde, terão que recorrer a ela para completar suas casas. Nas décadas de 1970 e 1980, as periferias de São Paulo, interpretadas na chave da dicotomia capital-trabalho, alcançaram novo patamar como objeto de estudo. Lúcio Kowarick cunha a

expressão "espoliação urbana", que define como "o somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, apresentados como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência, e que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho" (1993: 62). A periferia adquiria um novo estatuto no imaginário acadêmico. Não era apenas a mera expressão dos assentamentos pobres ou o instrumento de reprodução do capitalismo excludente, que caracterizava a industrialização e o crescimento econômico ocorridos durante grande parte do século xx na Região Metropolitana de São Paulo. Além de expressar social e urbanisticamente a desigualdade de uma sociedade que nunca deixou de ser composta majoritariamente por pobres, e que recentemente vinha acolhendo enormes levas de pobres expulsos das regiões rurais, as periferias longínquas, d esprovidas de infra-estrutura e distantes das oportunidades de emprego podiam também ser tratadas como instrumento de reprodução dessa lógica excludente. Tornava-se visível a cidade como uma gigantesca máquina de empobrecimento de muitos e enriquecimento de alguns, por meio


da retenção especulativa dos terrenos ociosos situados entre as áreas consolidadas e as periferias, que passavam por valorizações fenomenais à medida que os investimentos públicos e privados iam chegando às franjas. Por meio do enriquecimento dos donos de frota naquela que se transformou na maior rede de ônibus do mundo. Por meio do rebaixamento ainda maior dos custos de reprodução do trabalho, obtido com a autoconstrução da moradia nas horas de folga, feriados e fins de semana, "essa magnífica fórmula que o capitalismo dependente deflagrou para rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho, compatibilizando alta taxa de acumulação com salários crescentemente deteriorados" (Kowarick 1993: 64). O trabalhador, que não extraía de seu trabalho condições de comprar uma moradia, tinha que recorrer a alternativas de produção de moradia, baseadas principalmente na exploração de sua própria capacidade de trabalho nas horas de folga. Explicava-se em parte como, apesar de os salários estarem decrescendo, a economia expandia-se às custas das taxas de milagre econômico. Não por acaso, os anos de maior crescimento econômico da Região Metropolitana de São Paulo, as décadas de 1950

a 1970, foram também os de maior expansão periférica baseada no trinômio loteamento periférico, casa própria e autoconstrução.l As periferias e a pobreza na cidade vêm desde então se transformando significativamente na cidade. A década de 8o foi de grande crise de emprego e renda transformando definitivamente as periferias de "bairros operários" em territórios da vulnerabilidade social. A década de 90 foi de surgimento de grandes empreendimentos nas periferias, como hipermercados e shopping-centers, que exploram o potencial de consumo que efetivamente existe mesmo nas periferias mais pobres. Alguns outros novos elementos que têm surgido, que posso lembrar de cabeça, sem consultar um só livro: o crescimento da violência, o surgimento de grupos de contracultura, como o hip-hop, o surgimento da sociabilidade promovida pelas igrejas evangélicas. Definitivamente, a periferia do início do século XXI não é a mesma periferia operária da década de 1970.2 A imagem do trinôm io é de Nabil Bonduki, que a utili za em vá rios trabalhos.

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Para um panorama dos novos processos e abordagens da periferia de São Paulo, ver a edição "Periferia revisitada" da Revista Espaço e Debates (42).


Mas voltemos aos elementos de permanência, aqueles que não se transformaram. Não porque são mais importantes, mas porque acabaram por moldar todo um saber, toda uma prática de alguns grupos de moradores dessas regiões, e também do Estado, para lidar com essa "outra cidade", sempre incompleta, sempre precária. Uma vez garantido o abrigo mínimo para a sobrevivência mais básica, a batalha do morador da periferia bifurca-se. Do ponto de vista do espaço privado, os trabalhos de consolidação, expansão, adaptação da moradia à realidade da família que vai mudando prolongam-se por anos, muitas vezes pela vida toda. Mais um quarto para separar pais de filhos, um puxadinho nos fundos para alugar, complementando a renda da família, sobre a laje mais um andar para o filho que casa, ou cada vez mais freqüente, a venda de uma laje para conhecido ou desconhecido, que constrói a sua casa, muitas vezes coberta por outra laje que é também vendida. A construção da moradia absorve a poupança de vidas inteiras, as famílias freqüentemente têm contas permanentes com as lojas de material de construção, verdadeiros bancos de financiamento para a moradia de baixa renda.

Do ponto de vista da interface com o poder público, a batalha assume contornos ainda mais complexos. Para aqueles que ocupam as partes regulares da cidade, o acesso ao título de propriedade, à infra-estrutura, à coleta de lixo é algo que parece "natural", e o acesso aos serviços de água e luz ocorre com apenas um telefonema. Para os que moram na periferia, a história é bem diversa. A origem ilegal dos loteamentos coloca muitos moradores em uma situação indefinida, do ponto de vista dos direitos, em relação a tudo aquilo que costumamos chamar de cidade: equipamentos, infra-estrutura, propriedade. Tudo isso tem que ser conquistado durante anos de luta, por meio de processos tortuosos e muito esforço nas horas que poderiam estar sendo utilizadas para o trabalho, para o descanso, para o lazer. O direito de permanência, a linha do ônibus, a ligação das casas às redes de luz e água, a iluminação pública, a creche, a escola, o posto de saúde são duramente negociados ao longo dos anos, muitas vezes envolvendo compromissos como votar para este ou aquele candidato nas próximas eleições, pagar propina para este ou aquele fiscal, fazer vista grossa para as irregularidades, fazer uma vaquinha para pagar um advogado que defenderá a comunidade contra


ameaças de despejo ou ações de reintegração de posse. Na periferia, talvez mais do que em qualquer outro território na cidade, expressa-se o "poder do atraso" das relações de clientelismo tão típicas da nossa política.3 Uma das mais árduas lutas é pela titulação da terra, mediada por um cipoal de dificuldades, instrumentos jurídicos, parâmetros urbanísticos, sentenças, pareceres técnicos, jurisprudências. Isso, quando o morador não descobre que comprou um lote em área pública, área de risco, ou área de preservação ambiental permanente, o que pode tornar o acesso ao título-lembre-se: é a primeira coisa a que o morador regular tem acesso-em algo ainda mais distante. Nessa via crucis, os moradores da periferia vão aprendendo que o Estado brasileiro não é um só, mas muitos, desarticulados e com interesses freqüentemente contraditórios: câmara dos vereadores, subprefeituras, se3

José de Sou za Martins (1994) é quem cunha a expressão "poder do atraso", evocando as relações de patrimonialismo e clientelismo que, a despeito de serem herdadas de períodos passados de nossa história , dão conta de se reproduzir e se reatuali za r no presente e futuro de nossa sociedade.

cretarias, promotorias, procuradorias, corregedorias, ministério público em suas diversas varas, empresas públicas ou privadas prestadoras de serviços ... A chegada da regularização e dos investimentos envolve freqüentemente um dos principais personagens da periferia: o vereador, ou candidato, muitas vezes originário desses bairros, que se oferece como a ponte entre as reivindicações da comunidade e o Estado. Em São Paulo, quem institucionalizou essa relação foi Jânio Quadros, que, após criar comitês eleitorais em quase todos os bairros da periferia, foi eleito prefeito na década de 1950, e logo transformou esses comitês em Sociedades de Amigos de Bairros, instância que mediava as reivindicações das comunidades junto à prefeitura. Na verdade, as SABS eram território do prefeito e dos vereadores aliados, que intermediavam a chegada dos investimentos públicos às periferias, em troca de votos nas sucessivas eleições municipais. Dessa forma, baseado na existência de inúmeros bairros incompletos na cidade, e nas relações promíscuas entre o poder Executivo e Legislativo envolvendo a chegada da infra-estrutura e dos equipamentos públicos, a mesma classe política perpetuou-se no poder por décadas.


Eventualmente, após a lenta e progressiva chegada dos investimentos, que perdurou por algumas décadas, os bairros periféricos acabaram por se transformar em locais razoavelmente bem infra-estruturados. A população deixou de depender tão fortemente dos "favores" do Estado. Mas outros processos já estão em curso. As ex-periferias estão agora mais próximas da imagem de um bairro. É claro que notaremos, para sempre, que a origem de bairros como a Vila Maria, a Vila Formosa, o Tatuapé é distinta de bairros constituídos mais ou menos na mesma época, de forma regular, no cone sudoeste da cidade: o arruamento irregular, a falta de espaços públicos, as calçadas mínimas, a falta de comunicação entre os bairros são alguns dos elementos que nos indicam facilmente a origem não projetada desses bairros. Por outro lado, é também evidente que, ao longo das décadas, as periferias acabaram sendo melhoradas pelos investimentos públicos e também da população em suas casas e negócios. Essas antigas periferias tornaram-se mais atraentes para as classes médias. Os terrenos valorizaram-se. Com a regularização dos loteamentos e a titulação das casas, vão chegando as contas: luz, água, IPTU, contribuições de melhoria. Isso ocorre tanto na escala

da cidade-os antigos bairros periféricos, com os investimentos e o crescimento urbano, mais próximos do centro, vão mudando de perfil-quanto na escala dos próprios bairros-algumas partes, em geral as mais bem situadas do ponto de vista do transporte, da segurança da posse, da infra-estrutura ou das condições de edificabilidade do terreno, vão se qualificando, enquanto outras continuam precárias, constituindo quase que "periferias das periferias". Os mais pobres, aqueles que lutaram pela chegada da infra-estrutura, são os mais prejudicados pela atuação das leis de mercado sobre os preços da terra na periferia: alguns vendem suas casas em situações de urgência. Aqueles que conseguem permanecer têm problemas para encontrar alternativas de moradia para seus filhos nas redondezas. Mas, enquanto isso, já surgiram outros bairros precários onde os filhos dos moradores das antigas periferias encontrarão possibilidades de moradia compatíveis com a sua renda, em favelas ou em novas periferias, alguns quilômetros adiante, onde a lógica do clientelismo e dos currais eleitorais pode se reproduzir, onde se reinicia a luta dos mais pobres pela chegada de infra-estrutura e investimentos públicos. A periferia, agora, já está em outro lugar.

so


RENATO CYMBALISTA é d outor pela FAu/ usP, pesquisador do In sti tuto Pólis e professor na

Quarto de despejo

Carolina Maria de Jesus

Escola da C idade. É também autor de Cidades dos vivos: arquitetura e atitudes perante a

morte nos cemitérios do estado de São Paulo (Anna Blume!FAPESP).

Refe rências bibliográficas

KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

MARTINs, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. NERU. Periferia revisitada. Espaço e Debates (42). São Paulo: Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos-NERU,

2001.

Levantei às 7 horas. Alegre e contente. Depois que veio os aborrecimentos. Fui no depósito receber. .. 6o cruzeiros. Passei no Arnaldo. Comprei pão, leite, paguei o que devia e reservei dinheiro para comprar Licôr de Cacau para Vera Eunice. Cheguei no inferno. Abri a porta e pus os meninos para fora. A D. Rosa, assim que viu o meu filho José Carlos começou impricar com ele. Não queria que o menino passasse perto do barracão dela. Saiu com um pau para espancá-lo. Uma mulher de 48 anos brigar com criança! Às vezes eu saio, ela vem até a minha janela e joga o vaso de fezes nas crianças. Quando eu retorno encontro os travesseiros sujos e as crianças fétidas. Ela odeia-me. Diz que sou preferida pelos homens bonitos e distintos. E ganho mais dinheiro do que ela. Surgiu a D. Cecilia. Veio repreender os meus filhos. Lhe joguei uma direta, ela retirou-se. Eu disse: "Tem mulher que diz saber criar os filhos, mas algumas têm filhos na cadeia classificado como mau elemento". [ ... ]Veio a D. Silvia reclamar contra os meus filhos. Que


os meus filhos são mal educados. Mas eu não encontro defeito nas crianças. Nem nos meus nem nos dela. Sei que criança não nasce com senso. Quando falo com uma criança lhe dirijo palavras agradáveis. O que aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior. Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu caráter. A única coisa que não existe na favela é solidariedade. Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres saíram, deixaram-me em paz por hoje. Elas já deram o espetáculo. A minha porta atualmente é teatro. Todas as crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatórios. Elas aludem que eu não sou casada. Mes eu sou mais feliz do que elas. Elas têm marido. Mas são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade. Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas têm que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. À noite, enquanto elas pedem socorro eu tranqüilamente no meu barracão ouço valsas vienenses.

A criação da "periferia" brasiliense: do concreto geral ao modernista

Gustavo Lins Ribeiro

Há alguns anos fui convidado por um partido político de esquerda a participar de um evento para discutir Brasília e sua "periferia" com um auditório bastante diversificado. Após várias considerações feitas pelos participantes da mesa redonda sobre as cidades satélites e o chamado entorno, assentamentos em Goiás ao redor do Distrito Federal, uma pessoa do público se levanta e protesta: -Quero dizer que não sou de periferia de lugar nenhum, que onde eu moro é o meu centro e que há muita coisa interessante e inteligente acontecendo lá! Respondi imediatamente que, para a antropologia, a colocação era muito bem-vinda porque os antropólogos, em grande medida , trabalham nas chamadas "periferias" e sabem que há vida inteligente e interessante em todas as partes. Porém, aquela breve intervenção espelhava uma questão muito mais ampla. Talvez em certos tipos de barganhas políticas e processos de construção identitária alguém possa aceitar, quem sabe estratégica e


provisoriamente, ser classificado como periférico. Mas mesmo assim é complicado. Na verdade, podemos afirmar que dificilmente alguém goste de ser chamado de periferia. Por quê? Simples, periferia é uma categoria relaciona!, ser periferia significa estar em uma posição inferior, subordinada, vis-à-vis a um centro que exerce poder. Dentro das muitas definições de poder, uma das mais eficientes é aquela segundo a qual poder é a capacidade que um indivíduo, ou uma coletividade, tem de interferir no ambiente do outro. Todos nós temos poder de interferir nos ambientes dos outros, mas, na verdade, não gostamos muito de que os outros interfiram no nosso ambiente, mesmo que estejamos cansados de saber que isso ocorre a cada instante. Então, o que significa tudo isso? Que ao falarmos de relações centro/periferia estamos falando de relações de poder entre partes. Mais ainda, estamos falando de uma certa economia política do poder, tanto quanto de uma certa história, geografia e geopolítica do poder. Não pretendo fazer aqui nenhuma historiografia da noção de periferia. Na verdade, partes dos seus significados podem ser vistas travestidas em outras noções em diferentes momentos his-

tóricos. Enfim, não eram bárbaros os não-gregos? Não eram primitivos e selvagens os não-civilizados? Que tal subdesenvolvido? Mas, certamente, para o sentido contemporâneo de periferia, é fundamental a década de 1960, marcada pelos trabalhos do genial economista argentino Raúl Prebisch - que imprimiu sua marca na Comissão Econômica para a América Latina (cEPAL). Com a consolidação e disseminação da teoria da dependência, as expressões centro-periferia afirmaram-se no panorama intelectual e político internacional, associadas, em geral, a interpretações marxistas do sistema capitalista mundial. São antigas as críticas às idéias de centro e periferia. Talvez a mais comum seja aquela que acusa tal interpretação de professar o dualismo. Mais recentemente, com o impacto tanto da discussão sobre capitalismo transnacional, globalização (especialmente da noção de espaço global fragmentado), quanto do pós-modernismo (avesso a grandes totalizações e propenso a valorizar fragmentações), centro e periferia ganharam renovadas críticas. Primeiro, "descobriu-se" que há periferias no centro. Que novidade! Percebe-se que o sul de Bronx, na cidade de Nova York, é miserável, que as Apalachianas são miseráveis, e assim por diante. Depois, que as relações


entre fluxos e espaços fragmentados globais criam geografias que tornam caducas idéias de centros, uma vez que a volatilidade do capital contemporâneo poderia transformar tudo em periferia. Um exemplo marcante é aquele, nos anos r98o, de operários na Nova Inglaterra, nos EUA, que chegam à sua fábrica para trabalhar e se encontram com um cartaz: Mudamos para a Jamaica! Por fim, criam-se oxímoros como centralização descentralizada para interpretar a fluidez do capitalismo flexível. É comum encontrar afirmações do tipo "em tempos de capitalismo transnacional e de acumulação flexível as noções de centro e periferia não se sustentam por serem demasiado rígidas". Mas, curiosamente, algumas páginas depois, o mesmo autor deixa escapar "centro" ou "periferia" de novo no seu texto. Como explicar a persistência da idéia de centro e periferia? Acho que ela se deve à sua eficiência em telegrafar diferenças de poder, igualmente persistentes, nas geografias e geopolíticas, por mais cambiantes que elas possam ser. De qualquer forma, tudo isso aponta para um mal-estar que, espero, vá além dos freqüentes modismos. Afinal, centro e periferia já existem há mais décadas do que a maioria das noções nas ciências sociais, disciplinas sempre

ansiosas pelos produtos que a fábrica de novidades acadêmicas precisa gerar. Parece-me, assim, que apesar de reguladas, criticadas, colocadas entre aspas, problematizadas, as noções de centro e periferia ainda continuarão conosco, de uma forma ou de outra. Será possível, de fato, um mundo sem centro e periferia? Minha pergunta equivale a dizer: será possível de fato, um mundo sem diferenças de poder que se expressem econômica, espacial, social e politicamente? i'&fo DE VOLTA AO CONCRETO MODERNISTA

Brasília, ou melhor, o Distrito Federal (DF) brasileiro e sua configuração espacial provêm um excelente exemplo para vermos como, historicamente, constroem-se periferias. Antes de tudo, uma rápida pincelada a respeito do que o DF significa para o Brasil. Brasília foi o novo elemento na história da geopolítica republicana no século xx que problematizou a concentração de poder político no Rio de Janeiro e em São Paulo. Desde uma "periferia", Goiás, instaurou-se um outro eixo de poder até agora não totalmente deglutido por antigas e poderosas elites estaduais. Lembremos que, até recentemente, a criação da nova capital federal era contestada por certas parcelas, obscuras, sem dúvida, da inte-

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lectualidade carioca que clamavam por um retorno da capital ao Rio! De alguma forma, continuavam acreditando na versão voluntarista, personalizada da história, segundo a qual a construção e transferência da capital federal se deveram ao sonho iluminado de Juscelino Kubitschek e não ao profundo e histórico processo de incorporação de novas áreas ao sistema capitalista integrado. Brasília também representa um dos poucos exemplos que contradizem a eficácia do tropicalismo, o orientalismo que naturaliza os brasileiros como presos à exuberância natural e cultural dos trópicos. Afinal, em Brasília, o que chama a atenção não é a natureza dada, a beleza geográfica, mas a capacidade de realização e criação. A "periferia de Brasília" (leia-se periferia de Brasília sempre com aspas; é relativismo antropológico que me guia) só pode ser entendida historicamente em relação ao seu centro. De fato, hoje existem muitas periferias em Brasília. Algumas, como todas, nasceram precariamente, mas não são mais necessariamente periféricas, como a cidade de Taguatinga, por exemplo, prova cabal de que os termos das relações podem, felizmente, mudar. Definamos a equação. O centro é Brasília, aqui compreendida como

o Plano Piloto, a cidade modernista projetada por Lúcio Costa e tombada como patrimônio mundial pela UNEsco, a cidade dos postais que carrega consigo todos os benefícios e malefícios de ser capital federal. Dentre os benefícios, altos índices de desenvolvimento humano, maior renda per capita do país e, fato que os brasilienses mais gostam de propagandear, alta qualidade de vida. Dentre os malefícios, os significados negativos geralmente atribuídos à cidade (ilha da fantasia, fora da realidade do país, e outros piores) graças à confusão total entre vida cotidiana na cidade e sua função de capital federal, confusão em geral feita por aqueles que conhecem a cidade pela mídia ou no seu trajeto aeroportoEsplanada dos Ministérios. O papel cêntrico do Plano Piloto no DF tem se mantido relativamente estável. Entretanto, dado tratar-se de uma cidade planejada e tombada, Brasília já começa a encontrar o seu limite físico. O Plano Piloto está cada vez mais cercado, de perto, por novas periferias, dessa vez de classe média, um movimento iniciado em 1968 com o Guará, e intensificado, a partir de 1989, com o boom do Setor Sudoeste e dos muitos condomínios irregulares, invasões de classe média.


Se o centro aparenta maior estabilidade, essa, no entanto, não é a história das periferias. Hoje, no DF, existem I5 cidades satélites. A última, ltapoã, foi criada em janeiro de 2005. Essa proliferação certamente se deve ao neo-populismo goiano-brasiliense em cuja cartilha a troca de lotes públicos por votos configura-se como a forma mais eficiente de manter o poder e o crescimento urbano "ordenado", não importando se tais práticas simplesmente engrossem os fluxos de migrantes historicamente ávidos pelas benesses da capital federal. De qualquer forma, a proliferação das cidades satélites só pode ser compreendida se considerarmos a construção de Brasília e a força centrífuga que ela gerou. ity. O CAPITAL DA ESPERANÇA E A "cRIAÇÃO" DE PERIFERIAS

André Malraux chamou Brasília de "a capital da Esperança". Ele, como milhares de brasileiros que se deslocaram para a construção da cidade, acreditavam que a construção da capital federal representaria um novo momento nas relações sociais entre os brasileiros. Na realidade, foi um capital de esperança usado para estabelecer uma cidade de classe média onde nunca houve espaço para os trabalhadores, a despeito das aspirações socialistas de Lúcio Costa embutidas na elaboração do Plano Piloto. Brasília exemplarmente

ilustra a freqüência com que o planejamento acaba sucumbindo à força sociológica da economia política pré-existente. Em 1957, quando as obras efetivamente começaram, ficou claro qual seria o esquema de recebimento dos trabalhadores. O território onde seria construído o Plano Piloto era praticamente desabitado. Próximas, apenas a colonial Luziânia (século xvm) e Planaltina (r859), pequenas localidades no interior de um estado então parcamente integrado às dinâmicas da economia-política nacional. Foram basicamente delineadas três grandes áreas habitacionais onde ocorreria a reprodução da vida no território da obra até 21 de abril de 1960, a data politicamente definida da sua inauguração. A primeira área, hoje conhecida como Candangolândia, localizava-se próximo à entrada sul do Plano Piloto e destinava-se aos acampamentos da companhia governamental proprietária e administradora do projeto, a NOVACAP. A segunda, hoje conhecida como Vila Planalto, localizava-se nas proximidades da área mais importante da obra, a Esplanada dos Ministérios, em especial a Praça dos Três Poderes, a ponta do Eixo Monumental onde o Estado brasileiro se representa arquitetônica e urbanisticamen-

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te. Tratava-se de um conjunto de acampamentos privados das muitas empreiteiras da construção civil que vieram participar da obra. A terceira área complementava o esquema. Ao contrário das outras duas, onde só podiam ingressar pessoas empregadas na NOVACAP ou nas empreiteiras privadas, tratava-se de um centro geral de serviços que, por ser aberto a todos, chamou-se de Cidade Livre. Havia apenas uma questão, a Cidade Livre, hoje conhecida como Núcleo Bandeirante, devia ser destruída no dia da inauguração de Brasília, pois tinha caráter provisório. Ali se concentrou a maioria das pessoas atraídas pelo empreendimento que, sem sombra de dúvidas, representava a maior frente de trabalho do Brasil à época. Por se tratar de uma dinâmica social típica de fronteira em expansão, dominada ademais pela construção civil, uma atividade quase exclusivamente masculina, o universo social criado implicava uma forte distorção demográfica. Em determinadas áreas, como na Vila Planalto, havia a incrível proporção de dezessete mulheres para cada cem homens, quando, em geral, esses números são equilibrados em diferentes populações humanas. Como resultado, instala-se na Cidade Livre uma grande zona de prosti-

tuição. Para controlar uma enorme e crescente massa de homens (a população do território da obra chegaria rapidamente, em 1959, a 6o mil pessoas) a NOVACAP cria uma polícia famigerada, aGuarda Especial de Brasília (cEB). Dentre as muitas violências cometidas pela GEB, inclui-se o tristemente célebre massacre da Pacheco Fernandes Dantas, como se designa o tiroteio, em fevereiro de 1959, no acampamento da empreiteira homônima, onde ao menos um operário morreu. Nenhum outro acontecimento, na época da construção até a inauguração de Brasília, deixou tão clara a profunda ambigüidade jurídica que se instalou no território da obra. Formalmente, tratava-se ainda do Estado de Goiás, afinal só em 21 de abril de 1960, uma nova unidade da federação, o Distrito Federal, passaria a existir. Entretanto, de fato, a lei na construção da cidade era a NOVACAP, justamente a companhia proprietária e interessada na manutenção do estafante Ritmo Brasília, isto é, 24 horas de superexploração da força de trabalho, uma infinidade de "viradas" sucessivas e um acúmulo enorme de horas-extras. Não por acaso, logo os muitos, não raro fatais, acidentes de trabalho começaram a acontecer. Tratava-se de uma população de trabalhadores imobilizados pelo sistema acampamento-grande, obra


totalmente à disposição da lógica do capital em nome da construção, literalmente, da nação. A dinâmica centrífuga da expulsão dos trabalhadores do interior do território da obra, assim como dos novos e vulneráveis migrantes para as periferias do Plano Piloto, tem como marco zero o mês de maio de 1958, quando o governo foi "surpreendido" com a chegada de aproximadamente 5 mil "flagelados" da grande seca que ocorria no Nordeste. Instalaram-se ao lado da já inchada Cidade Livre e, com a intenção de manipular o pacto populista, denominaram a invasão- "construída" com lona, papelão e sobras de material de construção- Vila Sarah Kubitschek. Da remoção desse aglomerado surgiu Taguatinga. Foi nessa área que foram reassentados os flagelados nordestinos. A primeira cidade satélite aparecia então como uma cidade tipicamente proletária. Sua implantação visava "solucionar" o problema habitacional que chegava a níveis insustentáveis. Foi, portanto, uma cidade arrumada para conter uma situação, respondendo a pressões imediatas. Ruía a utopia de Lúcio Costa que previa uma Brasília onde ricos e pobres convivessem usufruindo o mesmo espaço urbano. O Plano Piloto encontrava desde já a sua verdadeira vocação de

paraíso da classe média. Estava traçada a primeira linha definitiva do mapa da configuração espacial urbana por classes do Distrito Federal. A partir daí, estabelece-se a solução das cidades satélites como maneira de manter o Plano Piloto imaculado da presença da tão incômoda classe operária. Estamos diante da gênese da contradição Plano Piloto/Cidades Satélites. O operariado é mantido na periferia, enquanto os funcionários da administração federal tinham assegurado seu domínio sobre a "cidade mais moderna do mundo". Em setembro de 1959 fecha-se a barragem do Paranoá para o enchimento do lago da cidade. O avanço das águas implica orecuo da Vila Amauri, outra invasão de migrantes proletários que existia, desde princípios de 1958, encostada aos acampamentos da Vila Planalto, mas que foi propositadamente colocada abaixo da cota mil, altura máxima que alcançaria o Lago do Paranoá. Cobras, lagartos, ratos, baratas, excrementos, passam a invadir a casa dos operários que a toque de caixa são transferidos para mais uma cidade satélite, Sobradinho, e também para Taguatinga. No ano seguinte, obedecendo ao mesmo processo de retirada de moradias operárias, apareceria também o Gama.


Com a proximidade da inauguração da capital, ganha força o problema da Cidade Livre. Como sabemos, ela era um núcleo provisório que deveria desaparecer e se tornaria ilegal a partir de 21 de abril de 1960. A área em que se localizava não estava prevista para ser uma cidade satélite. Entretanto, já em 1959, a população da Cidade Livre, em grande medida apoiada em um comércio forte, passa a lutar pela criação do Núcleo Bandeirante, através do Movimento Pró-fixação e Urbanização do Núcleo Bandeirante. Após muitas idas e vindas a cidade é efetivamente criada em janeiro de 1962, já no governo de Jango Goulart. Com a fixação do Núcleo Bandeirante cumpre-se mais uma etapa da configuração espacial por classes do Distrito Federal. Porém o processo evidentemente continuou e ainda perdura. Em 1971, a enorme invasão do IAPI, vizinha ao Núcleo Bandeirante, era transferida para uma área atrás de Taguatinga, através da Campanha de Erradicação de Invasões (cEI). Estava criada a Ceilândia, obedecendo à mesma lógica centrífuga histórica. Logo, na mesma direção, passa a existir o "entorno" do Distrito Federal, cidades como Valparaíso e, mais recentemente, Águas Lindas, esta última um caos urbano "fundado" em 1997 e que hoje já pos-

sui cerca de r5o mil habitantes. Samambaia, a menina dos olhos do modelo brasiliense-goiano de populismo, instala-se em 1989, mesmo ano em que é fundada a cidade do Paranoá, remoção de uma favela que vinha crescendo desde a época da construção de Brasília. Na década de 1990, surgiriam ou se consolidariam, na mesma linha, Santa Maria, Riacho Fundo, Recanto das Emas e São Sebastião. No Distrito Federal, hoje vivem mais de 2 milhões de pessoas, número que em muito cresceria se acrescentássemos o entorno goiano. Para que se tenha uma idéia do tamanho da importância das cidades satélites no presente, veja-se que Ceilândia, com seus 350 mil habitantes (a maior cidade do DF), Taguatinga (250 mil), Samambaia (170 mil), estão quase conurbadas em uma área com cerca de 8oo mil pessoas. Comparando-se esse total à população do Plano Piloto (cerca de 325 mil) percebe-se que, no Distrito Federal, como em outros lugares, o que define o centro não é a quantidade de pessoas que nele vivem, mas a capacidade do centro de exercer poder sobre os que, apesar de nele não viverem, são por ele atraídos e mantidos em relações de dependência reais ou fictícias.


r.,

O SERTÃO VAI VIRAR MAR: PROBLEMATIZANDO CENTRO/PERIFERIA

Levemos ao paroxismo os próprios termos contidos na lógica centro/periferia. Afinal, o que nos faz crer nessa lógica? Que só existe felicidade possível se todos os lugares forem centros? Que o destino de todas as periferias é lutar constantemente por se tornar centros? Isto é, que algum dia vamos chegar lá apesar das cambiantes hierarquias entre periferia e centros (afinal, Brasília é periferia de Nova York. Será Manhattan o hiper-centro?) Ou, ao contrário, que o destino de todas as periferias (ou da maioria delas) é continuar para sempre como periferias? Que espécie de prisão conceitual é essa? O atentado às torres gêmeas de Lower Manhattan mostrou que a exacerbação da flexibilidade pode ser levada ao extremo pelas "periferias", quando aviões civis são transformados em armas de destruição massiva. No mundo pós-11 de setembro, a exacerbação da flexibilidade não se encontra apenas nas mãos dos operadores do capitalismo eletrônico-informático com suas pastorais de mundos virtuais, articulações de lares eletrônicos, cheios de "teletrabalhadores" que podem viver onde quiserem, inclusive nas periferias para aqueles mais infensos aos subprodutos das me-

galópoles (poluição, violência, estresse urbano, por exemplo). No esquema centro-periferia, o que ganhamos em simplicidade metafórica de designação das diferenças, perdemos em sofisticação e complexidade. Essa perda nos faz confirmar (ou reafirmar) imagens, no mais das vezes definidas pelos poderosos, sobre os outros e sobre nós mesmos. Assim, espera-se que os da periferia sejam e se comportem (em todos os aspectos) como periféricos e os do centro de maneira equivalente. Se tal fosse o caso, não haveria o que designei, em outro lugar, de cosmopolitismo provinciano e de provincianismo metropolitano. Afinal, como muitos professores universitários brasileiros sabem, muitas vezes é melhor ser centro na periferia, do que periferia no centro. Quem disse que o melhor lugar do mundo é o centro do centro? Prefiro fechar repetindo o que disse aquele ouvinte irritado com a classificação de sua cidade como periferia de Brasília: -Quero dizer que não sou de periferia de lugar nenhum, que onde eu moro é o meu centro e que há muita coisa interessante e inteligente acontecendo lá! 6o


GUSTAVO LINS RIBEIRO

é professor do Departamento de Antropologia da Universidade

Parque industrial

Patrícia Galvão, Pagu

de Brasília.

Observação Não poderia ter esc rito esse texto sem recorrer à minha dissertação de mestrado, O Capital da Esperança. Brasília: uma grande obra da construção civil (r98o, Programa de Pós-Grad uação em Antropologia Social, UnB); nem ao meu artigo "A rqueol ogia de uma Cidade. Brasília e suas cidades satélites", in Espaço e Debates 2 (5): II 3-24, Março/junho I982.

São Paulo é o maior centro industrial da América do Sul: O pessoal da tecelagem soletra no cocoruto imperialista do "camarão" que passa . A italianinha matinal dá uma banana pro bonde. Defende a pátria. -Mais custa! O maior é o Brás! Pelas cem ruas do Brás, a longa fila dos filhos naturais da sociedade. Filhos naturais porque se distinguem dos outros que têm tido heranças fartas e comodidade de tudo na vida. A burguesia tem sempre filhos legítimos. Mesmo que as esposas virtuosas sejam adúlteras comuns. A rua Sampson se move inteira na direção das fábricas. Parece que vão se deslocar os para lelepípedos gastos. Os chinelos de cor se arrastam sonolentos ainda e sem pressa na segunda-feira. Com vontade de ficar para trás. Aproveitando o último restinho da liberdade. As meninas contam os romances da véspera espremendo os lanches embrulhados em papel pardo e verde.


- Eu só me caso com trabalhador. -Sai azar! Pra pobre basta eu. Passar a vida inteira nesta merda! -Vocês pensam que os ricos namoram a gente a sério? Só pra debochar. - Eu já falei pro Braulio que se é deboche, eu escacho ele. - O Pedro está ali! -Está te esperando? Então deixa eu cair fora! O grito possante da chaminé envolve o bairro. Os retardatários voam, beirando a parede da fábrica, granulada, longa, coroada de bicos. Resfolegam como cães cansados para não perder o dia. Uma chinelinha vermelha é largada sem contraforte na sarjeta. Um pé descalço se fere nos cacos de uma garrafa de leite. Uma garota parda vai pulando e chorando alcançar a porta negra. O último ponta-pé na bola de meia. O apito acaba num sopro. As máquinas se movimentam com desespero. A rua está triste e deserta. Cascas de bananas. O resto de fumaça fugindo. Sangue misturado com leite. Na grande penitenciaria sociai os teares se devam e marcham esguelando. [ ... ]

Redes virtuais e a centralidade de territórios periféricos ] [ entrevista com a geógrafa Bertha Becker

Valéria Macedo

O cenário da entrevista era o amplo apartamento que se abria para o mar de Copacabana. Mas é sobretudo para a paisagem amazônica que Bertha Becker nos remeteu, e para onde volta com assiduidade desde a década de 1960. Formada em geografia e história, essa carioca se define como uma pesquisadora autodidata, cuja trajetória acadêmica pouco convencional (seu título de livre-docência, por exemplo, não foi precedido pelos de doutor e mestre) nunca prescindiu de exaustiva pesquisa de campo. A obra de Bertha Becker é primordialmente voltada para questões geopolíticas concernentes à Amazônia, historicamente tomada pelo Estado nacional como uma fronteira de expansão, mas que hoje, ela salienta, já constitui inequivocamente uma região em si. E, mais que isso, a Amazônia vem sendo considerada na configuração geopolítica global como um dos eldorados do mundo contemporâneo. Por concentrar boa parte da água doce e das florestas do planeta, seu território adquire posição central em meio aos fluxos


virtuais de capital, de informação e de tecnologia, em grande medida controlados pelas grandes potências. Esse é um dos temas de reflexão de Bertha Becker, professora emérita na Universidade Federal do Rio de Janeiro (uFRJ) e consultora de políticas públicas em projetos no âmbito de uma série de ministérios - Meio Ambiente; Integração Nacional; Ciência e Tecnologia - , bem como membro do Grupo Consultivo Internacional (IAG) do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7), vinculado ao governo federal, de 1993 a 2004, entre outros cargos que ocupa ou ocupou em instâncias públicas e privadas.

As noções de centro e periferia ainda constituem ferramentas analíticas relevantes na abordagem da geopolítica mundial? Como essas categorias podem ser manejadas e que configurações revelam? A primeira coisa que eu queria dizer é que as noções de centro e periferia são dinâmicas na geopolítica mundial. Os Estados Unidos, por exemplo, foram uma semi-periferia inglesa que passou a ser centro. Mas é preciso escapar da concepção linear de crescimento econômico, de que o país vai crescer e será centro um dia. Seja como for, centro e periferia são categorias usadas há muito tempo

e por diversos autores, por exemplo, Lênin. Com a globalização, o conceito ficou borrado. Há redes que entram no meio da periferia e criam um núcleo de alta produtividade. Há assim periferias dentro do centro e há centros dentro da periferia. Quais os principais divisores de águas no século xx no que diz respeito a novas configurações geopolíticas? Particularmente, em que medida a Eco 92 e a queda do muro de Berlim representam marcos de novas centralidades e periferias? Não há dúvida que sempre existiram mercados globais, mas a globalização atingiu novas formas com o avanço científico e tecnológico. Houve uma expansão sem precedentes das redes de telecomunicação, das redes de informação e das mercantis também. Hoje se tem, como nunca antes, ciência e tecnologia como fontes de poder. As redes transfronteiras mudaram o significado da soberania dos Estados e o poder do território. Antes, os territórios dos Estados-Nação, com suas leis, eram bem demarcados e defendidos. Agora, meus filhos, as redes entram em qualquer lugar! A autonomia dos países foi muito abalada. Sobre a soberania também haveria muito o que dizer, mas o que eu quero destacar é o papel da ciência e da tecnologia como fontes de poder na nova configuração geopolítica.


A outra coisa é a questão ambiental, que está muito ligada a tudo isso. Ela emergiu sobretudo devido à tecnologia de satélites. Isso é uma coisa linda da geopolítica, as visões foram se transformando à medida que a tecnologia avançou. Quando o homem saiu e viu a terra de fora, passou a conhecer o globo terrestre e perceber seu estado de degradação. Antes só se conheciam pedaços. Mas a percepção da depredação da natureza nunca foi unívoca. Pra uns, ela fez emergir a questão de gaia, da valorização da vida, da causa ambientalista. E, pra outros, ficou muito claro que a natureza estava se transformando num bem escasso e portanto mais valioso, do ponto de vista da economia. Então coexistem duas lógicas. Uma lógica de matriz cultural, o amor à natureza. Outra, a lógica econômica, da acumulação e da geopolítica. Houve assim a convergência para o mesmo projeto de preservação de duas raízes muito diferentes, com motivações distintas. No caso do Brasil, o movimento ambientalista é muito forte desde o final da década de 1980. E houve também o interesse das potências mundiais em apoiar a criação de Unidades de Conservação, que são um capital natural como reserva de valor para uso futuro: os tais "estoques de biodiversidade". Com

a percepção de sua escassez, a natureza começou a ser utilizada em novos patamares tecnológicos, que diminuem a degradação. Mas onde estão as tecnologias? Nos países centrais. E onde estão os grandes estoques de natureza? Nos países periféricos ou semi-periféricos, ou ainda em espaços não-regulamentados juridicamente, como os fundos marinhos, um dos grandes eldorados do mundo contemporâneo. Os Estados querem estender sua jurisdição para poderem incluir os fundos marinhos. Tem ocorrido muita briga nesse processo de regulamentação. Antigamente, o mar territorial era onde o tiro de canhão alcançava. Um barato! Agora, imagina, todo mundo quer tomar conta do mar! Então, há vários níveis de divisão da plataforma submarina. E a Antártida? Além dos fundos marinhos, a Antártida é outro ·eldorado disputado pelas potências. Está todo mundo lá se engalfinhando. E a Amazônia é o terceiro grande eldorado. Dado que em grande medida os centros de desenvolvimento tecnológico e concentração econômica não coincidem com os centros de estoque de recursos naturais, como se dá atualmente o jogo entre virtualidade e territorialidade na geopolítica mundial? O que ocorre é uma baita disputa internacional pelos estoques de natureza. A


geopolítica de hoje não é mais como a de antigamente, em que se guerreava para a conquista de territórios. Hoje ficou muito caro conquistar territórios, sustentar colônias ... Então a pressão se faz na tomada de decisão sobre o uso do território. Há pressões de diferentes tipos, e são muito fortes na Organização Mundial do Comércio, nos diferentes fóruns globais e no mercado de projetos de manejo dos recursos naturais. Há uma disputa das potências nesse sentido. Ao mesmo tempo em que existem as organizações ambientalistas, preocupadas com a vida mesmo, existem também as potências interessadas em capital natural, que entraram no m ercado d e projetos para manter a floresta em pé visando seu uso futuro, que aliás já está começando. Assim, está em curso um processo de mercantilização dos componentes da natureza, como o ar, a água e a biodiversidade. Mercados que tentam ser regulados transformando bens essenciais em mercadorias fictícias. Por meio dessa ficção, componentes da natureza geram mercados reais, que são os grandes fóruns globais. Então, pra mim, o Protocolo de Quioto nada mais é do que um grande mercado de ar. Tem gente que acha que estabelecer cotas de carbono é ótimo. Eu acho péssimo, pois você permite que, através de investimentos

nos chamados países periféricos para manter a floresta em pé, as grandes potências continuem arrebentando por lá, emitindo tudo que quiserem na atmosfera. E ainda passam a ter domínio sobre as nossas florestas! E como você vê a questão das patentes nesse contexto? O mercado de patentes é uma vergonha mundial em termos de geopolítica. O que eles retêm, o que pressionam os povos que têm os bens naturais, é um absurdo. Sob tamanha pressão, os países ditos periféricos não conseguem fazer uma legislação adequada, como é o caso do Brasil até hoje. Isso atrapalha enormemente o uso consciente da biodiversidade. É uma das coisas mais sérias do mundo contemporâneo. O mercado de patentes está se desdobrando no mercado da vida, da biodiversidade. Ele está em mãos pesadas. O que não se conseguiu ainda foi organizar o mercado da água. Existem mil agências tentando fazer um acordo global, mas não conseguem. O Brasil já está atrasado para pensar o que deve fazer com a água, já que possui quase 20 % da água doce do mundo. Enquanto isso, a Usaid [United States Agency for Internacional Development] está fazendo um imenso programa de regularização e utilização da bacia amazônica inteira. Tudo será


financiado por Washington e executado por Washington. Nesse imenso projeto, na minha opinião, não ficou claro qual é o papel dos governos, porque eu também vejo a coisa do ponto de vista da geopolítica. Não adianta vir com história da carochinha, porque embaixo há sempre interesses muito fortes das grandes potências. Como a multiplicação do que você chama de movimentos transnacionalizados atualiza as relações geopolíticas de centro e periferia? Em que medida se associam e em que medida conflitam com as unidades políticas do Estado-Nação? Grandes potências têm feito articulações coletivas temporárias, as chamadas shijiing coalitions, que se deslocam no tempo e no espaço, segundo seus interesses. Fizeram nas Malvinas, no Golfo Pérsico, em uma série de guerras contemporâneas ... e eu acho que o que fizeram na Amazônia com o PPG-7 foi o lado civil da shijiing coalition. Contra a depredação da Amazônia, havia a luta legítima dos ambientalistas, mas havia também o interesse das grandes potências nos estoques de biodiversidade. E ntão foi feito um Programa Piloto que a rticulava as potências em shijiing coalition com o governo brasileiro-e isso foi um enorme avanço, pois o governo jamais havia permi-

tido qualquer atuação externa na Amazônia-, somando os interesses das potências com os inte resses do ambientalismo. Por causa disso, o Programa tem lá suas contradições internas, m as foi basicamente uma coalizão do G-7 para atuar num espaço específico temporariamente. É a face civil da shiji coalition, que em outros contextos resultou em guerra. Mas é complexo, você não pode olhar a coisa só de um lado. E u não acho que o PPG-7 é um programa santo, só para a preservação da floresta, e também não é só interesse geopolítico. Foi uma negociação que resultou nisso, então ao mesmo tempo em que se tinha a criação de Unidades de Conservação com sentido de proteção ao futuro do planeta, elas eram criadas com sentido de estoques de natureza. A turma é esperta! No início, o Programa era essencialmente preservacionista. As populações locais não tinham o menor valor. Eram uma pedra no sapato. Então houve uma verdadeira guerra dentro do PPG-7- Nós, que participamos do IAG, guerreamos ali dentro, particularmente com o Banco Mundial. Eu acho que se trata de uma visão muito estreita, porque pra mim só tem con servação da natureza se você tiver uma população engajada. Eu ainda ponho os homens acima de tudo. É um ponto de vista, já que pra muita

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gente a natureza está acima. Então era uma coisa que eu militava profundamente. E nós conseguimos mudar o significado do PPG7· Na reunião de Cuiabá, em 2oor, quando foi estabelecida uma segunda fase do Programa, esse passou a ter como foco o desenvolvimento sustentável. Foi uma vitória, mas mesmo esse desenvolvimento tem significados diferentes para os diversos atores. As coisas não são unilaterais e simples, envolvem ação e concepções diferentes. Como caracterizaria a "economia de fronteira", termo cunhado por você, e os fluxos e redes de intercâmbio e poder que coexistem no contexto amazônico? Sabe por que eu viajo pela Amazônia toda

e falo com todos os tipos de pessoas? Porque eu gostaria de poder captar o que é a visão de cada um. É claro que não vou conseguir nunca, mas pelo menos tento integrar a diversidade dos pontos de vista. Foi assim que eu descobri a fronteira. Essas concepções locais são imensamente diferentes das regras estabelecidas em Brasília, que resultam em pontos de vista unilaterais. Por isso eu não posso ver o ambientalismo sem considerar o outro lado, que é a geopolítica. Você tem que entender isso para poder atuar e formular políticas. Há enormes conflitos de interesses na Amazônia.

E não se pode esquecer hoje em dia os governos estaduais, que têm um papel enorme. Não se pode esquecer a sociedade civil organizada, que também passou a ter um papel importante. E não se pode esquecer a cooperação internacional, que é fundamental na Amazônia hoje. Em outra época era o Estado brasileiro que decidia, executava e financiava o plano. Desde antes de Juscelino, na era Vargas, o Brasil fora alçado à categoria de semi-periferia, combinando o atraso na área social com investimentos na indústria nacional. Também é preciso levar em conta o projeto dos militares de integrar o território. Com isso, eles levaram as redes para a Amazônia! As telecomunicações. Antes lá só se ouvia a Voz da América, de Cuba. A rádio brasileira não chegava nos confins da Amazônia. Vocês hão de convir que para qualquer governo, ainda mais os militares, há a questão do controle do território. As redes vieram para integrar, para fechar circuitos nacionais que estavam concentrados apenas no Sudeste. Em termos de estradas, só tinha a Rio-Bahia, que não era muito antiga. Depois Juscelino fez a Belém-Brasília, a primeira grande articulação para a Amazônia. Tem também a zona franca de Manaus, que todo mundo é contra, mas eu acho que foi uma iniciativa interessante. Criar


uma indústria no meio do extrativismo, e que hoje em dia está ultradinâmica, diga-se de passagem, tendo um desenvolvimento tecnológico forte. Mas em meados da década de r98o, o Estado entrou numa crise sem fim. As teles tiveram então um papel fundamental, permitindo que as populações locais se articulassem com as ONGS e os agentes externos.

co, do Ministé rio das Relações Exteriores, e defendi a idéia de que os futuros diplomatas deveriam conhecer o Brasil antes de representá-lo no exte rior. Organizei então uma expedição para a Amazônia, época em que comecei a viajar e pesquisar a região. E nunca mais deixei a Amazônia.

Como você sintetizaria o avanço da ocupação da Amazônia como

Amazônia hoje? De modo geral, eu distingo três macrorregiões na

fronteira de expansão? A pecuária no Brasil, até a década de r96o,

Amazônia brasileira hoje. Há o arco do povoamento consolid ado, a Amazônia oriental-cortada pelos eixos e mais vulnerável à degradação e à ocupação desregulada-e a Amazônia ocidental - pouco habitada, onde se concentram as Terras Indígenas e postos militares. A primeira dessas macrorregiões ficou conhecida como arco do desmatamento ou arco do fogo. O maior desmatamento ocorre no Mato Grosso e no Pará. Os extremos do arco são os estados que barraram o desmatamento. Este atingiu o sul do Acre, por meio do processo de colonização que trouxe pecuaristas, mas foi barrado por Chico Mendes. No outro extremo está o Amapá, que é um dos estados mais florestados da Amazônia. Ambos barraram a expansão da fronteira nas décadas de 1970 e 8o ao longo das rodovias, que formaram duas pinças enormes em torno

ocupou basicamente áreas de campo: caatinga, cerrado e campos do Sul. Minha primeira pesquisa, nessa época, foi sobre o sistema de abastecimento de carne no Rio de Janeiro, o que me levou até Minas Gerais, onde a pecuária já estava começando a ocupar áreas de mata. As pessoas deram pouca atenção a isso. Era o governo do Juscelino, da indústria do automóvel, da ampliação das redes de energia e transporte. Os matadouros estavam se transformando em frigoríficos e então começou a se organizar a pecuária no Sudeste brasileiro. Para investigar esse processo, fui ao triângulo mineiro, depois fui ao oeste de São Paulo e encontrei por fim os desbravadores da Amazônia, que estavam abrindo a mata no norte de Goiás. Nessa época eu lecionava no Instituto Rio Bran-

Quais seriam as particularidades e vicissitudes mais relevantes na

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da mata: a Belém-Brasília e a Brasília-Cuiabá, e ainda a Porto Velho-Rio Branco. Ao longo delas o Estado induziu a fronteira por meio de créditos e incentivos fiscais. Mas o desmatamento maior foi mesmo no Pará, porque no Mato Grosso e no Tocantins na verdade se ocupou muito mais cerrado, e não mata. Não se fala em desmatamento do cerrado, de modo que o desmatamento se deu principalmente na borda da floresta nas décadas de 1970 e 8o. Acontece que se desenvolveu a soja no Mato Grosso, e ainda está se desenvolvendo e se expandindo. E a pecuária. E a exploração da madeira. Hoje a média populacional na Amazônia é de menos de um habitante por km 2 • Já na região chamada arco do desmatamento há 5 habitantes por km 2 • Por isso eu acho mais apropriada a designação de arco do povoamento consolidado. Não se trata mais de uma fronteira de expansão! Se você considerar Mato Grosso, Maranhão, Pará, existem grandes cidades, então eu acho que ficar chamando isso de arco do desmatamento é uma coisa obsoleta. Foi um arco do desmatamento, e ainda tem muito fogo na borda, próximo ao Xingu, que é onde tem efetivamente a mata. Mas no restante há já uma economia organizada, uma produção de soja que é das maiores do mundo, com tec-

nologia avançada-não nego que com problemas ambientais-, empresas mirabolantes e com uma tal logística, que hoje são elas que estão ordenando o território com suas desordens paralelas. Então faz sentido ficar chamando isso de arco do desmatamento? É a mesma coisa que chamar o Rio de Janeiro de pântano em vez de metrópole. Aquela faixa enorme da Amazônia é uma faixa de povoamento consolidado. O que está acontecendo na área da soja, no Mato Grosso, é a expansão da fronteira interna, ou seja, no interior das propriedades, já que nem sempre se cumpre a lei ambiental de preservar 8o% na mata amazônica e so% nas zonas de transição. Outra coisa é o que está acontecendo na porta da floresta. Aí é expansão de frente nova mesmo, que parte de São Felix do Xingu, ao norte do Mato Grosso, e de Rondônia, e que está indo para o sul do estado do Amazonas e para o sul do Pará, em direção à Terra do Meio. É preciso então distinguir o desmatamento nas fazendas já povoadas do avanço efetivo da fronteira. A Amazônia central, ou o que sobrou da Amazônia oriental, é a área mais vulnerável, porque é a que foi e vai ser cortada pelas rodovias. Uma dessas frentes parte de São Felix do Xingu,


é a Cuiabá-Santarém (BR- 163). Minha opinião é que se ela é a região mais vulnerável, é preciso acelerar a política conservacionista e a economia em moldes sustentáveis. A terceira macrorregião seria a Amazônia ocidental, que é a mais preservada, onde se concentram as Terras Indígenas e com forte presença militar. Nessa área é onde existiriam maiores chances de partir para o desenvolvimento sustentável efetivamente, encontrando nichos de mercado para aproveitar a floresta. É preciso também pensar a Amazônia em termos continentais. Não se pode desconsiderar a zona transnacional. E eu vejo Manaus com potencial de grande capital da Amazônia transnacional. Mas cooperação não equivale a integração. Falar em integração tem vários riscos, e é preciso ficar bem claro que o Brasil não quer ser imperialista. Pensando centro e periferia como categorias relacionais, qual a posição periférica da Amazônia e qual sua centralidade? A Amazônia

mudou enormemente no final do século xx. Muita gente ainda acha que a região é uma mera fronteira de expansão demográfica e econômica. Mas digo que a Amazônia hoje é uma região em si. Ela já tem 20 milhões de habitantes. Tem uma estrutura econômi-

ca diversificada. Tem mineração, tem indústria, tem telecomunicações, tem sistemas produtivos diferenciados e tem atores novos e atuantes: os governos estaduais, a cooperação internacional, empresários que não são só os aviadores da borracha, e a sociedade civil organizada, que é algo que nunca se tinha visto antes. Mas eu acho que ela não tem uma representatividade autêntica justamente porque as novas políticas participativas e os projetos econômicos não capilarizam, sua linguagem não é adequada, não dialoga com a maneira como o povo vê e lida com a natureza. O domínio dos militares, e depois o ambientalismo na década de 1990, essas coisas todas não incidiram homogeneamente nos estados. A Amazônia ficou extremamente diferenciada em função de seus antecedentes históricos, do povoamento da região, da geografia, das condições naturais e do modo pelo qual ela foi impactada pelo processo mais recente de ocupação. Na região do Tapajós, por exemplo, eu já fui lá umas duas ou três vezes e não encontrei uma única instituição do estado do Pará. Eu não estou exagerando! É uma terra de ninguém. Hoje você tem madeireiros derrubando toda a mata. No caso do Alto Solimões, é o fim do mundo! Eles estão completamente isolados.

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E qual a maior demanda da população na Amazônia? A presença do Estado. É o que todo mundo quer, fazendeiro, peão, índio, ribeirinho. Por diferentes razões. Os fazendeiros porque querem as regras claras sobre o que podem desmatar e o que não podem. Isso, entre aqueles que seguem as regras ... Para as populações pobres, a presença do Estado é para defesa e assistência. Para não tirarem a terra deles, para fazer estradas vicinais. O que se tem no Alto Solimões é um brutal contrabando de madeira feito por brasileiros com madeireiras peruanas. No Alto Javari, é uma loucura! E o governo do Amazonas não faz nada. Eu estou achando que as políticas estão obsoletas. Por exemplo, acho criminosa a reprodução do modelo de assentamento rural. É assentamento de miséria. Você joga aquele pessoal no meio da floresta, onde não tem estrada, não tem luz, não tem nada. Só é permitido desmatar 20 hectares e, com o nível de tecnologia que eles têm, não produzem nada, não têm mercado para os produtos. Para se ter uma idéia, 70% é o índice de evasão dos assentamentos! Preciso dar mais um indicador? A minha proposta é de criação de fazendas coletivas, fazendas solidárias, em que se junta um grande número de assentados

em uma enorme área. Iniciativas na Amazônia têm que ter escala pra enfrentar a situação da soja e a expansão da pecuária. Se você junta os 20 hectares de 50 assentados formando uma grande fazenda, tem-se um bloco florestal preservado e uma grande área desmatada que pode ser utilizada com uma produção decente. Pode ter um núcleo de educação, de saúde. Também, fazer parcerias com instituições de ciência e tecnologia para investigar qual o tipo de produto que deve ser colocado nessa fazenda, em uma localização acessível ao mercado. Não pode ficar jogando a turma no meio da mata! Por mim o governo não daria mais título de terra neste país. Nem para grande nem para pequeno. Porque no fundo os pequenos nunca vão ter um título. Eles acabam vendendo a posse porque precisam de dinheiro, ou são laranjas dos grandes. Eu só daria concessões. Como a questão do território e das redes virtuais de informação, poder e bens se articulam junto à população local no contexto amazônico? Eu vejo dois pontos fundamentais aí. Uma é a questão

da terra. Todo mundo quer terra. É uma gula pela terra que é historicamente construída. Terra como patrimônio, como reserva de valor, como status social, como poder político. Terra não para


produção, é isso que eu quero chamar atenção. É trágico! Você se apropria de milhões e milhões de hectares e produz nada. Isso foi introduzido no século xx, inclusive na cabeça dos produtores familiares. O caboclo antes vivia da pesca, do extrativismo, e a propriedade não era uma questão. É preciso tentar eliminar essa concepção malévola da terra como patrimônio. Mas vivemos em um sistema capitalista e não há como deixá-los excluídos do sistema. A minha proposta é criar cadeias produtivas de biodiversidade, que vão desde o âmago da floresta, em que os indivíduos fazem o que fizeram a vida inteira (extrativismo, artesanato, o que for), agregando valor em uma outra etapa, pesquisar nos centros de tecnologia e chegar até a indústria. Essa é a única maneira que eu vejo de se conservar a floresta: fazer a inclusão social e desenvolvimento econômico. Em 2003, fizemos o belíssimo Plano para a Amazônia Sustentável (PAs), juntando o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Integração. É um plano geral, com cinco eixos: produção sustentável com tecnologia avançada, gestão ambiental e ordenamento do território, inclusão social, infra-estrutura para o desenvolvimento e novo padrão de crédito. Os governadores dos

estados do Norte o aprovaram, mas até hoje não foi aprovado no Congresso. Eu acho que o que o governo Lula perdeu de oportunidades por não ter aprovado o PAS em 2003, ele não tem idéia! A segunda questão é que a população local tem um pensamento completamente diferente de tudo o que técnicos, redes e associações trazem. Aquilo não capilariza, não capilariza. As políticas públicas para a Amazônia estão se defrontando com o substrato da mentalidade das instituições informais, que são historicamente construídas, que não estão escritas, que estão na cabeça das pessoas e passam de geração para geração. E isso é a instituição informal: a cabeça das pessoas; como elas percebem, sua concepção de natureza. Minha pergunta é por que depois da redemocratização teve tanta participação e não houve melhoria nas condições de vida da população. Por exemplo, foram criados os conselhos gestores municipais, mas o que se vê ali via de regra é clientelismo, núcleos de poder em que não circula informação. Os aspectos ruins da sociedade brasileira são transplantados para muitas dessas associações e conselhos. Então você tem que tentar formar o que se chama de capital social na Amazônia. Se não fizer isso, é difícil melhorar as condições de vida da população.

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Esta entrev ista, rea lizada em

20

de agosto de

2005,

contou como a colaboração de Steli o

O rio

Marras, Renato Sztutma n e A ri stóteles Ba rcelos Neto.

VA LÉR IA MACE DO

é do co rpo editorial da Sexta Feira.

[ .. . ]Tudo o que encontrei na minha longa descida, montanhas, povoados, caieiras, viveiros, olarias, mesmo esses pés de cana que tão iguais me pareciam, tudo levava um nome com que poder ser conhecido. A não ser esta gente que pelos mangues habita: eles são gente apenas sem nenhum nome que os distinga; que os distinga na morte que aqui é anônima e seguida. São como ondas de mar, uma só onda, e sucessiva.

João Cabral de Melo Neto


A não ser esta cidade que vim encontrar sob o Recife: sua metade podre que com lama podre se edifica. É cidade sem nome sob a capital tão conhecida. Se é também capital, será uma capital mendiga. E cidade sem ruas e sem casas que se diga. De outra qualquer cidade possui apenas polícia. Desta capital podre só as estatísticas dão notícia, ao medir sua morte, pois não há o que medir em sua vida. Conheço toda a gente que deságua nestes alagados. Não estão no nível de cais,

vivem no nível da lama e do pântano. Gente de olho perdido olhando-me sempre passar como se eu fosse trem ou carro de viajar. É gente que assim me olha desde o sertão do Jacarará; gente que sempre me olha como se, de tanto me olhar, eu pudesse o milagre de, num dia ainda por chegar, levar todos comigo, retirantes para o mar.

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O escorpião, o sapo e a economia contra a política 4

Henrique Parra

Às margens de um rio, um sapo e um escorpião se encontram. O escorpião, educadamente, cumprimenta o sapo e pergunta: -Sapo, eu preciso atravessar o rio, quero chegar à outra m argem. Mas eu não sei nadar, seria incapaz de fazê-lo sozinho. Será que você poderia me aj udar e me levar nas suas costas até a outra margem? 4

Aviso ao leitor: neste artigo desenvolvo algumas reflexões a partir de uma experiência pessoal no Programa Oportunidade Solidá ria. Assumo, portanto, um ponto de vista bastante parcial, que não reflete a opinião de outras pessoas do Programa. Espe ro que o texto motive outras discussões e que possa ampliar a diversidade de opiniões sobre o tema, gerando um conhecimento mais complexo. Também não dedicarei muito tempo a uma descrição detalhada da implementação do Programa, e tampouco J e seus resultados e aspectos mais positivos. Sobre estes, indica rei uma bibliografia específi ca no decorrer do texto.

A idéia aqui é olhar para as dificuldades e problemas e provoca r reflexões.

O sapo, surpreso pela pergunta, lhe responde: -Mas escorpião, se eu levá-lo em minhas costas você vai me picar e eu morrerei! A essa proposição o escorpião responde logicamente: - O ras, eu não sou suicida. Você acha que eu estou louco? Se eu te picar eu também morreria afogado, é óbvio. Você pode confiar em mtm. -É .. . faz sentido! Está bem, eu posso levá-lo ao outro lado, respondeu o sapo. O escorpião sobe nas costas do sapo e ambos começam a travessia. O sapo está habituado ao ambiente, o trajeto lhe parece tranqüilo. O escorpião seguro nas costas do sapo ainda troca algumas palavras com ele, que devido ao esforço não pode falar muito, pois precisa se concentrar no exercício. Ele nada, nada, nada . . . E is que, no meio do rio, repentinamente, o sapo sente um fisgão nas suas costas. Primeiro, sente um calafrio, depois uma queimação, e diz: - Escorpião, por que você me picou? Não vê que agora ambos vamos morrer? - Sinto muito sapo! Não pude evitar. .. Essa é a minha natureza!


Proponho, neste instante, que pensemos o escorpião como as ações econômicas hegemônicas. O sapo, por sua vez, parece-me o social, ou o próprio tecido social. A travessia do rio corresponderia à história do presente e a outra margem, ao futuro. A ecologia entre o sapo e o escorpião é a própria vida humana na Terra, sendo que a discussão e o conflito entre ambos é produtora da Política. É ela que define o local dos corpos e sua participação no mundo, ou a parte de cada um no todo e o próprio "destino" do processo. Felizmente, as imagens que tal história possa mobilizar serão sempre mais ricas em significados que este texto, limitado à reflexão de alguns desafios e vicissitudes dessas relações por m eio de um recorte específico. A travessia do sapo e do escorpião talvez ajude na interpretação de algumas das dificuldades enfrentadas na implementação do Programa Oportunidade Solidária, objeto de análise deste artigo. Para dizê-lo de forma muito sintética, o Program a Oportunidade Solidária (osoL) foi concebido e executado pela Secretaria do D esenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (soTS) durante a gestão petista no Município de São Paulo (2001-2004) como parte de um conjunto de nove programas sociais complementares

que visavam distribuir renda e criar condições para geração de trabalho sob diversas formas (autônomo, emprego, cooperativoassociativo, microempreendimentos).5 Na teoria, os nove programas deveriam funcionar de m aneira integrada, complementar e transversalmente. Na prática, a coisa era muito mais complexa.6 Se por um lado os programas 5

Para conhecer o processo de elaboração e implementação dos Programas Sociais da soTSIPMSP em detalhes, ver Pochma nn, 2002.

6

Para ter acesso aos resultados finais dos Programas, bem como às pesquisas externas de avaliação d a Estratégia Paulistana de Incl usão Social ver Poch man n, 2004.

Apesar d os limites à "Estra tégia Paulistana", vale d estacar alguns d os

resultados atingidos: a distribuição direta d e recursos fin anceiros aos benefi ciários; a maneira como os programas foram im plementad os tendo em vista o estabelecimento de direitos cidad ãos (com base em critérios de universalização no acesso baseados em lei) orientados por novos padrões de política social; indução ao desenvolvimento local, uma vez q ue os recursos alocados às fa mílias eram combinados a outras in iciativas do governo m un icipal segundo critérios territoriais, permitindo uma circulação de recursos nos distritos de m aior exclusão socioeconômica, desencad eando sinergias locais.


tiveram uma enorme abrangência (no total chegaram a envolver aproximadamente 490 mil famílias), isso significou desafios tanto no nível local como no nível macroestrutural, que muitas vezes escapavam às ferramentas disponíveis a um governo municipal (ainda que se tratasse de uma cidade-global). Cito, por exemplo, os impactos de uma política nacional de juros altos que, na elevação de apenas um ponto percentual encerraria, em um mês, algumas dezenas de milhares de postos de trabalho na cidade de São Paulo. Ou seja, sem sincronia entre as políticas locais e federais os resultados poderiam ser rapidamente desconstruídos. Descrito o contexto em que se localiza o tema de nossa discussão, voltemos a ele: o Programa Oportunidade Solidária.? Pensado originalmente como um programa de formação de empresas populares, rapidamente tornou-se evidente que, junto à população beneficiária (dado o grau de precariedade e fragilidade social), tal tarefa não poderia limitar-se a cursos d e capacita7

Para conhecer a implem entação e as transformações sofridas pelo Programa veja: Schwangber, Angela M., Praxedes, Sandra

&

ma Oportunidade Solidária", in: Pochmann, 2003.

Parra, H enrique. "Prog ra-

ção nos moldes "sebrarianos". Foram então adotadas estratégias de incubação desses empreendimentos com a assessoria direta de uma rede de cerca de 15 quinze "incubadoras", que eram em sua maioria organizações não-governamentais (associações, institutos e cooperativas) e programas extensionistas ligados a universidades da cidade de São Paulo. Com o passar do tempo, o Programa foi ampliando sua área de atuação para dar conta das necessidades das microempresas, cooperativas e associações em formação pelos beneficiários. Assim, o que pretendo discutir é como a fragilidade dos empreendimentos em termos da sua sobrevivência econômica é de natureza política. Ao mesmo tempo, talvez a maior dificuldade enfrentada pelo Programa tenha sido justamente a de instituir um campo político dentro do qual poder-se-ia interrogar as condições de atuação desses empreendimentos, ou seja, criar um campo político para instalar uma clivagem e desnaturalizar, portanto politizar, as próprias condições/determinações em que a atividade econômica está encerrada. Ora, a constituição de uma empresa não é uma simples equação. A primeira questão a ser enfrentada foi : como gerar


renda em regiões onde há baixa atividade econômica, dado que os programas foram primeiramente implementados em áreas de extrema pobreza? Em seguida, como iniciar um empreendimento com zero de capital? Ou ainda, como fazer com os limites de qualificação profissional dos beneficiários? E como melhorar a qualidade dos produtos e serviços oferecidos por eles? Ou ainda, como desenvolver circuitos de distribuição, comercialização e consumo? Como disponibilizar tecnologia aos produtos e processos para agregar valor, e que tecnologias seriam adequadas a esses empreendimentos? Ao longo de três anos e meio de existência, o ProgramaS procurou, junto à rede de incubadoras que vieram a constituí-lo, desenvolver um conjunto de instrumentos necessários à viabilização econômica dessas iniciativas, que pudessem, por sua vez, dar respostas a algumas das questões expressas acima. Entretanto, a precariedade dos recursos estava determinada também pelas

próprias condições de implementação do Programa e por outras razões que explorarei mais adiante.9 Pode-se dizer que o osoL passou a existir inspirado por um "movimento social" ainda em gestação, que reúne um conjunto bastante heterogêneo de experiências. De uma certa maneira, todas essas iniciativas "alternativas" procuram enraizar socialmente as relações econômicas (intra e extra-empreendimentos) por meio de regulações pautadas por princípios democráticos e solidários (autogestão e cooperação, em detrimento de heteronomia do capital e competição intercapitalista). Tais experiências têm sido agrupadas sob diferentes denominações, que também conformam um campo de disputa entre elas: economia solidária, socioeconomia-solidária, autogestão, cooperativismo, associativismo, entre outras. 9

A própria inexistência de um marco legal adequado a essas iniciativas econômicas (como regulamentá-las juridicamente?) limitava as possibilidades de fomento. Por exemplo, como utiliza r o poder de compra do Estado para in-

8

Os resultados finais e uma ava li ação geral do Programa foram recentemente

centivar e fortalecer a produção inicial de empreendimentos econômicos que

publicados na França. O livro será lançado em breve no Brasil: Schwangber,

tinham objetivos sociais (inseridos dentro de uma política de geração de traba-

Praxedes

lho e renda)? Para isso, seria necessá rio instituir novas regulamentações.

&

Parra,

2005.


Se, por um lado, a origem de algumas dessas experiências já soma mais de dois séculos de vida, de outro, elas tiveram uma recente florescência no Brasil na segunda metade dos anos 1990, impulsionadas sobretudo por instituições não-governamentais de fomento (como associações, institutos e programas universitários extensionistas) que estimularam processos de organização popular, operária, rural e urbana, que buscavam outras formas de geração de renda. Muito rapidamente, já no início do século xxi, alguns governos municipais, estaduais e mais recentemente no nível federal, passaram a integrar algumas das reivindicações dessas iniciativas às suas ações governamentais. O Programa Oportunidade Solidária é um exemplo disso. Com a mesma velocidade (tenho a impressão de que até mais rapidamente), foram criadas ações governamentais (não se trata de políticas públicas) que procuravam dar resposta a questões que não estavam formuladas de maneira madura ou consciente por de esse movimento em gestação. Ou seja, apesar de esse movimento ter conseguido de forma ágil (pelo menos na escala histórica) sensibilizar os novos governos para que adotassem ações de fomento a essas iniciativas, ainda não havia propriamen-

te um campo político instituído pelo conjunto de atores ligados a tal temática para dar efetividade a essa agenda. Ainda que o governo tivesse a percepção da necessária intervenção no campo político, esse entendimento, pelo menos nas condições de desencadear ações sociais mais amplas, não era manifesto nem reivindicado de maneira articulada pelo conjunto dos atores. A percepção de que a viabilidade dos empreendimentos populares formados depende de um conjunto de fatores internos e externos a eles aponta para outros problemas. Para desenvolver instrumentos de apoio às empresas de trabalhadores, restaria saber as especificidades desses instrumentos para que se pudesse conciliar as particularidades internas dos empreendimentos e responder simultaneamente às exigências do mercado em que estes estão inseridos. Costuma-se perguntar, equivocadamente, se os empreendimentos autogeridos são eficientes. Melhor seria indagar o que é eficiência, e em que condições essa eficiência se realiza. As possibilidades de existência e de sobrevivência dos empreendimentos populares e solidários-ou mais genericamente das empresas de trabalhadores que se orientam por princípios autogestionários- estão diretamente relacionadas à dimensão social


e política que permeia todas as relações econômicas. O sucesso de um determinado modo de produção depende da distribuição das forças sociais e políticas na sociedade. A eficiência de determinada forma organizativa e tecnológica é também o resultado de um arranjo de forças sociais que combinam fatores técnicos (que conferem vantagens competitivas) com fatores sociais e políticos que criam um ambiente econômico propício para tais técnicas. A própria eficiência surge como o reflexo de uma relação de poder, que traduz uma capacidade de mobilizar recursos materiais e simbólicos a seu favor. Por exemplo, a relação entre os direitos, os títulos de propriedade e as responsabilidades dos indivíduos para com a produção e a distribuição da riqueza socialmente gerada, modificam-se ao longo da história. Portanto, uma técnica nunca está dissociada de seu contexto social de origem, e a eficiência econômica só pode ser analisada na perspectiva histórica de sua relação com as demais instituições sociaislO. lO

Só para dar concretude a esta discussão, tomemos alguns exemplos: inexistência de capacitação técnica adequada aos empreendimentos populares, pois todo o conjunto de instituições estatais que prestam esse tipo de serviço está voltado para um outro modelo de relação de trabalho; a estrutura de financiamento público funciona apenas para certos tipos de empresas mas não é capaz de apoiar em condições aceitáveis outros modelos produtivos, uma vez que opta por um certo "tipo ideal" de empresa que é considerada a mais "eficiente"; as regulamentações fiscais incentivam alguns setores produtivos e penalizam outros; as tecnologias criadas visam reforçar determinados arranjos sociotécnicos (máquinas que fortalecem uma certa divisão sociotécnica do trabalho), e finalmente, a falsa universalidade dos processos licitatórios, um recurso bastante adequado para tornar o poder de compra do Estado um instrumento centralizador do poder econômico. Em poucas palavras, por detrás da aparente neutralidade das condições de competição intercapitalista existe toda uma

"No mundo que agora vi,lumbramus, tanto a taxa como a d ireção do crescimento econômico dependem da distribuição dos "títulos" econômicos, e como

e atividades, isso permite dizer que o desenvolvimento econômico reAete a po-

essa distribuição está ligada ao poder Estatal para privilegiar ou punir g rupos

lítica". (Piore & Sabe!, 1984: 38).

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configuração social que determina previamente as condições em que essa competição se dará, privilegiando alguns segmentos em detrimento de outros. Nesse caso, sugiro pensar a eficiência como a capacidade de mobilizar a seu favor um conjunto de fatores materiais e simbólicos que fortaleçam sua posição dentro de um campo de disputa. Portanto, como enuncia Lojkine, "deixa-se o domínio do econômico e do social, para abordar o campo político, no sentido forte do te rmo: o lugar de discussão e elaboração das regras de governo de uma sociedade por si mesma" (1999:228). É o questionamento, o conflito e a disputa sobre as condições e o conteúdo dessas regras que instituem a política. Tomo o conceito de "político" tal qual entendido por Ranciere (1996), como o ato de ruptura da forma como a riqueza social e a capacidade de autodeterminação estão distribuídas entre os diferentes grupos sociais que participam de uma certa comunidade. Nesse sentido, arriscaria dizer que o Programa Oportunidade Solidária e o conjunto de atores que dele fizeram parte (a rede de incubadoras e outros grupos ligados à temática da economia popular e solidária, bem como os beneficiários diretos do Programa)

não foram capazes de transcender sua esfera de atuação para o estabelecimento de uma ação política. Aponto a seguir alguns fatores mais amplos que formam o contexto das limitações enfrentadas: L No interior do próprio governo municipal não houve o convencimento da importância e relevância das estratégias propostas no fomento aos empreendimentos populares. Isso ficava evidente nas dificuldades internas encontradas para criar ações conjuntas e transversais com outros órgãos municipais, seja pa ra fortalecer iniciativas ou para buscar caminhos de institucionalização (no sentido de estabelecer um novo patamar normativo-legal). As ações de outros atores governamentais, ainda que permeadas de boa vontade, alternavam entre propostas assistenciais ou ações de mera sobrevivência marginal (economia da pobreza). Aqui, fomos incapazes de comunicar, debater e criar coletivamente um campo político efetivo no interior do próprio governo. 2 . As relações entre as entidades parceiras foram muito m arcadas por conflitos e disputas. Apesar dos significativos avan ços con seguidos, persistiram rivalidades d e cunho político-ideológico manifestas sob diversas formas, seja travestidas nas diferenças "metodológicas" de atuação ou no entendimento de qual deveria


ser o "papel do Estado", configurando diversas modalidades de relação Estado-sociedade civil organizada. 3· Numa perspectiva ampliada (para além do próprio Programa), os dez anos anteriores de políticas neoliberais, a crescente desresponsabilização público-estatal, combinados à terceirização de algumas funções estatais para o setor não-governamental, criaram estruturas de financiamento que acabaram por instituir práticas anti públicas no seio da própria sociedade civil organizada. Reproduzindo muitos dos vícios das estruturas sindicais e partidárias, algumas ONGS procuram travar novas relações de caráter privatista, tomando o Estado como mero financiador de projetos individuais. Uma outra direção possível seria o fortalecimento dos espaços públicos e coletivos criados, contribuindo para melhor democratizá-los e portanto, efetivar sua dimensão política. Mas para isso seria necessário estabelecer outros critérios de participação e construir projetos em bases mais solidárias e públicas. Se por um lado havia essa "nova-velha" cultura do setor não-governamental, o próprio poder municipal também dispunha de instrumentos instituídos que dificultavam a fundação dessa esfera pública e democrática. Afinal, como democratizar a democracia?

4· Numa outra dimensão, os beneficiários do Programa tinham pouca relação direta com o poder público. O fato de serem as ONGS executoras da ação governamental criava inúmeras mediações entre o poder público e o beneficiário final. Isso dava margem a várias distorções: a) maior distanciamento entre cidadão e Estado; b) estabelecimento de relações assistenciais, dependendo da forma de atuação da ONG; c) criação de vínculos clientelistas entre ONG e beneficiários; d) não percepção do Programa como um direito, mas como um benefício oferecido por um ente privado, afinal quem estava lá na "ponta" não era o Estado, mas a entidade x ou Y. Se a opção política do governo e também as limitações estruturais para se fazer de uma outra forma levaram a esse modelo de implementação de uma ação governamental (parceria público-privado), deveríamos pensar em criar outros mecanismos de controle social e de maior participação direta dos beneficiários finais nos fóruns de gestão, avaliação e deliberação no interior do próprio governo. 5· Inexistência d e um movimento social d e economia popular e solidária. Apesar da quantidade, diversidade e pluralidade de entidades que atuam nessa temática, o perfil mais presente dos


atores envolvidos é o de entidades de fomento. Não há, por parte daqueles que efetivamente integram e constituem os empreendimentos populares e solidários, um grau de organização, mobilização e percepção política da sua atuação. Estamos muito mais no plano de uma ação de sobrevivência econômica imediata do que no de uma ação política emancipatória. Nunca é demais lembrar, num momento em que as fronteiras andam um pouco obscurecidas, que articulações entre ONGS não configuram necessariamente um movimento social. Tal confusão se evidencia na diversa produção discursiva que envolve o tema, bem como nos problemas de representatividade política expressa em vários fóruns sociais (municipais, estaduais e nacionais) em que se reúnem esses atores. Escrevo este artigo num momento bastante particular da história política brasileira que nos convida a radicalizar ainda mais o pensamento e a prática política. Mas, enfim, acho que no fundo o problema é o próprio esgotamento da política tal qual a conhecemos. Assim como no dilema do sapo e do escorpião, precisamos reinventar a política (e toda a incerteza que a constitui) sem o que estamos condenados às essencialidades mais bárbaras (como a do escorpião ou do sapo). Se as formas já enfraquecidas de fazer

"política" tornaram-se meras forças gestionárias e de controle da vida, permeadas por diferentes mecanismos privatistas (também presentes no campo da sociedade civil organizada, na esfera cultural, sindicatos, partidos políticos, empresarial etc.), só nos resta inventar e/ou reconhecer outras formas de fazer política. Confesso que sem o ato fundador da Política tenho dificuldade em imaginar uma ecologia que não seja entrópica neste planeta. © Creative Commons. Atribuição-uso não-comercial-compatilhamento pela mesma licença

2.0

Brasil (É livre a reprodução para fins não comerciais desde que a fonte e

o autor sejam citados. O material produzido a partir dessas fontes também deverá ser registrado com uma licença Creative Commons http://creativecommons.org/. Ao fazer isso você colabora para a livre produção e circulação de conhecimento).

HENRIQUE PARRA

é cientista social e fotógrafo. Trabalha atualmente em projetos de mi-

diativismo e produção alternativa de conhecimentos.

• LAVILLE,

Referências bibliográficas Jean-Louis et a/li (org.). Action publique et economie solidaire, une perspective internationale. Saint-Agne, Éditions Érés, 2005.


LOJKINE, Jean. O tabu da gestão: a cultura sindical entre contestação e proposição. São Pau-

Manguetown

Chico Science e Nação Zumbi

lo, OP&A, 1999, p. 228. PIORE, Michael & SABEL, C harles. The Second Industrial Divide: Possibilitiesfor Prosperity. Nova York, Basic Books, 1984. POCHMANN, Márcio (org.) Desenvolvimento, trabalho e solida riedade: novos caminhos para

a inclusão social. São Paulo, Ed. Cortez!Ed. Fundação Perseu Abramo, 2002. ---.Outra cidade é possível. São P aulo, Ed. Cortez, 2003. ---.Políticas de inclusão social: resultados e avaliação. São Paulo, Ed. Cortez, 2004. RANC IERE, Jacques. O desentendimento. São Paulo, Ed itora 34, 1996. scHWANGBER, Angela M. & PRAXEDES, Sandra & PARRA, H enrique. "Programa Oportunidade Solidária", in: Pochmann , Mareio Márcio (org.) Outra cidade é possível, Ed. Cortez, São Paulo, 2003 . - - - . " Le Programme Opportunité Solidaire: la const ruction d 'une poli tique publi que d 'économie solidaire" in LAVILLE, Jea n-Louis et alli (org.) Action publique

et economie solidaire, une perspective internationale. Éditions Érés, 2005.

Ha ha ha .. ./Estou enfiado na lama/ É um bairro sujo/ onde os urubus têm casas I e eu não tenho asas/ Mas estou aqui em minha casal onde os urubus têm asas/ Vou pintando, segurando as paredes/ do mangue do meu quintal! Manguetown// Andando por entre becos/ andando em coletivos/ ninguém foge ao cheiro sujo/ da lama da Manguetown/ Andando por entre os becos/ andando em coletivos/ ninguém foge à vida suja/ dos dias da Manguetown// Esta noite sairei/ Vou beber com os meus amigos .. ./ Ha!/ E com as asas que os urubus me deram ao dia! eu voarei por toda a periferia! vou sonhando com a mulher/ que talvez eu possa encontrar/ E ela também vai andar/ na lama do meu quintal! Manguetown// Andando por entre os becos/ andando em coletivos/ ninguém foge ao cheiro sujo/ da lama da Manguetown/ Andando por entre os becos/ andando em coletivos/ ninguém foge à vida suja! dos dias da Manguetown//


Visões de Paraisópolis: violência, mídia e representações

Tiarajú D'Andrea Fui no mangue catar lixo/ Catar caranguejo/ Conversar com urubu Fui no mangue catar lixo/ Catar caranguejo/ Conversar com urubu

Mas a favela nunca foi reduto de marginal I A favela nunca foi reduto de marginal I só tem gente humilde marginalizada I e essa verdade não sai no jornal I a favela é um problema social

Eu sou favela CO MPOSITORES: NOCA DA PORTELA, SERGIO MOSCA, INTÉRPRETE: BEZERRA DA SILVA

/tJp INTRODU ÇÃO

Em outubro de 2003, atos de violência desestabilizaram a relativa paz existente na favela de Paraisópolis, locali zada na zona sul do município de São Paulo e encravada no meio do bairro do Morumbi, um dos mais ricos da cidade. O presente artigo pretende discutir algumas interpretações e representações sobre a referida onda de violência a partir do ponto de vista de diversos agentes sociais que lá vivem e atuam. Tal mapeamento de versões pode revelar como esses agentes definem-se em relação aos outros e como todos, imersos no contexto de Paraisópolis, lidaram com a repercussão


dada pela imprensa ao fato. Por fim, faremos uma análise de como o entorno de Paraisópolis condiciona representações sobre o local. itJit. SURPRESAS NO TRABALHO DE CAMPO

O trabalho realizado em campo pode ter os mais distintos desdobramentos, muitos deles bem diferentes dos objetivos iniciais de uma pesquisa. Pois é justamente sobre acontecimentos inesperados que trata este artigo, acontecimentos que acabaram por se fazer reveladores de estruturas sociais difíceis de serem acessadas. No mês de outubro de 2003, dando seqüência a uma pesquisa etnográfica sobre as redes sociais existentes na favela de Paraisópolis'', morei no local durante uma semana, na casa de 11

A referida pesquisa procurou analisar como redes sociais (de parentesco, de conterrâneos, de vizinhança, familiares, relig iosas e associativas) agem distribuindo benefícios e atenuando situações de vulnerabilidade. A escolha de Paraisópolis deveu-se a sua peculiar localização. Encravada no meio d e bairros de alto poder aquisitivo, o contraste nos fazia supor que a comunidade era bem pobre. Contudo, ao final da pesquisa pôde-se constatar que a localização desdobra-se de diversas maneiras em ativo econômico a Paraisópolis. Os resultados da pesquisa podem ser encontrados em Almeida

&

D'Andrea, 2004.

uma moradora ligada aos trabalhos sociais realizados no bairro. A referida estadia teve início no domingo, 12, e estendeu-se até o sábado, r8 de outubro. Na semana prévia ao referido trabalho de campo, ao entrar em contato com moradores de Paraisópolis, fui de antemão avisado de que "o clima não estava bom". Sem deixar de lado os objetivos iniciais da pesquisa, porém movido por uma arriscada inquietação, dediquei-me então a entender a referida sensação de intranqüilidade. Após entrevistar vários moradores, antes e durante minha presença no local, tive uma certa dificuldade de encontrar um nexo, um fio condutor da história, ou m esmo uma explicação convincente para os fatos que estavam ocorrendo. Dizia-se que tiros haviam sido escutados, ou que pessoas diferentes haviam sido vistas transitando. A rede de boatos também operava bem, plantando histórias e fazendo da ficção uma verdade. Ao menos na minha experiência pessoal naquela semana, em nenhum momento fui surpreendido por tiros, correrias ou sensação de pânico. Concretamente, a moradora que me abrigava apenas aconselhou: "evita transitar pela favela à noite", conselho esse que, sinceramente, nem sempre foi respeitado.

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Ao terminar o trabalho de campo, o pesquisador foi surpreendido por uma avalanche de reportagens, noticiadas em manchetes garrafais e em extensas matérias televisivas, que davam conta da violência em Paraisópolis.J2 O ponto de partida da cobertura realizada pela imprensa foi uma chacina ocorrida em um bar da comunidade, na segunda-feira, 20 de outubro, onde foram mortas três pessoas. A partir disso, Paraisópolis passou a estar no centro das atenções do jornalismo policial do país. A cobertura do episódio foi imensa, sendo notícia até no programa de maior destaque do telejornalismo brasileiro, o Jornal Nacional. As versões do que ocorria em Paraisópolis variavam pouco de reportagem para reportagem. Em geral, dizia-se que mem-

bros do Pcc (Primeiro Comando da Capital) coordenados por "Luisl3", antigo morador do bairro, estavam tentando invadir a favela para tomar pontos de venda de drogas pertencentes a "Tenório"l4. Para isso estavam andando pelas ruas de Paraisópolis e m edindo forças com o g rupo dominante local, tendo provocado até uma chacina. Outra forma de o grupo supostamente invasor marcar presença era através do "toque de recolher imposto aos 65 mil moradores" IS, impedindo a população de sair de suas casas depois de determinada hora. 13

O nome é fictício.

14

O nome é fictício. N a época, Tenório exercia uma forte liderança na comunidad e, sendo a referência quando o assunto era o uso da força . Sua posição d e destaque emanava de uma consolidad a e extensa rede de conterrâ neos e

12

Algumas d as manchetes foram : "Chacina aumenta clima d e terror na Paraisó-

pa rentes, muitos deles ligados ao comércio local, e que se espraiava por toda

polis" e " PM diz que proibição é boato", ambas na pagina 5 do Jornal Agora de

a comunidade. E sse g rupo tinha por missão "m anter a ordem", penalizan do

22hohoo3. "Tráfico decreta toque de recolher em fa vela", na Capa e "Trafi -

mo radores com "desvios de conduta" e reprimindo a ação de bandidos no lu-

cantes em g uerra põem favela Pa raisópolis em toque d e recolher" na p. A7 do

gar. Vale ressalta r que nunca foi provada uma possível ligação do g rupo lide-

Diário de São Paulo de 22hohoo3 e "G uerra pelo pod er na favela Paraisópolis", na P·7 do jornal da Tarde de 22h ohoo3.

rado por Tenório com o tráfi co de d rogas.

15

Diário de São Paulo. São Paulo, p. A7. 22lrohoo3.


~ A VERSÃO LOCAL

Estupefato com as notícias que chegavam aos lares de todo o país, apenas cinco dias após minha saída de Paraisópolis, uma desconfiança transformou-se em pergunta: haveria na cobertura da imprensa uma desproporção com os fatos ocorridos? A referida pergunta impeliu-me a voltar a Paraisópolis. A partir disso, e baseando-me em conversas que tive com a população e com a polícia, ainda num momento de tensão, pude constatar que os acontecimentos ocorridos foram bem distintos do que foi noticiado pela imprensa. A reconstituição dos fatos pode traduzir-se, em suma, da seguinte forma: Luis é um delinqüente conhecido há anos na comunidade. No começo de 200_3, Luis usou um barraco em Paraisópolis como cativeiro de uma menina seqüestrada no Morumbi, o cativeiro foi descoberto pela polícia e o bairro saiu nos jornais. Esse fato fez despertar a ira de Tenório, que fez represálias a Luis e expulsou-o do local. Tempos depois, Luis foi preso pela polícia. Do presídio e por celular, coordenou a "invasão" à favela de Paraisópolis, realizada por dois motivos aparentes: tomar o poder de Tenório, vingando-se deste, e abrir um ponto de venda

de drogas na comunidade. Ao que parece, Luis teria organizado traficantes conhecidos seus, reunindo cerca de 50 homens, para tal intento. A primeira atitude de Tenório frente aos acontecimentos foi a de entrar em contato com o DEIC, que passou a vasculhar as ruas do local. Segundo o presidente da União de Moradores, a polícia já sabia o que estava acontecendo e havia destacado homens seus para descobrirem à paisana onde se localizavam os homens de Luis, faltando pouco para o caso ser resolvido. Contudo, uma atitude impensada mudou os rumos da história. O artífice de tal ato foi um sobrinho de Tenório. Sem a anuência ou mesmo o conhecimento deste, o dito sobrinho "reuniu dois ou três e foi dar tiro nos caras que estavam numa laje, e assanhou eles". Como vingança, o bando de Luis, na noite da segunda-feira, 20 de outubro, matou três pessoas em um bar. Outras quatro pessoas foram baleadas mas escaparam com vida, uma delas era o sobrinho de Tenório, alvo da chacina. A partir desse episódio, a briga que era "de um contra dois ou três", nas palavras do responsável pelo policiamento na região, ganhou proporções inimagináveis.

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Tal episódio, como relatado acima, acabou virando manchete de todos os meios de comunicação, seja mídia impressa, rádio ou TV. No entanto, a ênfase dada pela cobertura midiática referia-se a dois episódios que jamais existiram: a) A guerra entre traficantes em Paraisópolis; b) O toque de recolher. Pelo observado, o caso mais gritante de distorção dos fatos se deu na terça, 21/ro, quando o jornal SPTV vespertino, da Rede Globo de Televisão, noticiou que o toque de recolher começava às três da tarde. Segundo lideranças comunitárias, essa informação foi colhida pela reportagem com algum morador desinformado, ou mesmo se sugeria que tivesse sido inventada e veiculada no telejornal. Oficialmente, não houve nenhum toque de recolher, nem por parte do bando de Luis, nem por parte de Tenório, que pedia apenas que as pessoas evitassem sair à noite. Mas o poder da informação errônea da televisão foi tão grande que às três horas da tarde nenhuma viva alma andava pelas ruas do bairro. E nfim, a própria Globo foi quem deu o toque de recolher. No que tange à referida tautologia, cito Pierre Bourdieu: "insensivelmente, a televisão, que se pretende um instrumento de registro, torna-se um instrumento de criação de realidade" (1997: 29).

r,y.

OS AGENTES SOCIAIS E A VIOLÊNCIA

No dia 30 de outubro de 2003, como toda última quinta-feira do mês, reuniu-se o Fórum Multientidadesl6 de Paraisópolis. Nesse dia, para além da rotina de discussões comumente realizadas pelo Fórum, os acontecimentos do mês fizeram a discussão "pegar fogo", como resumiu uma liderança local. A sala estava cheia e grande parte das associações do local via-se representada. A impressão que se tinha era a de que ninguém queria perder a reunião e, pela primeira vez em sua história, o Fórum contou com a presença da polícia. No transcorrer da reunião, sobraram acusações, reclamações e pedidos. O fato é que a presença de tanta gente distinta num mesmo lugar pôs à luz como cada um dos 16

O Fórum Multientidades é o espaço onde os representantes das associações, oNcs, lideranças locais e moradores se encontram e se organizam de forma a buscar soluções para os problemas da comunidade, maximizando seus esforços. Um dado que nos chama atenção é a crítica das organizações à passividad e dos morad ores que, segundo os dirigentes das associações, não busca m a resolução de seus problemas nem a reivindicação de seus direitos. Há críticas também ao estado paternalista.


agentes sociais de Paraisópolis se posiciona em relação aos outros, ao poder público e à comunidade. Num ponto, porém, todos concordavam: a imprensa havia exagerado. No que tange ao presumido "toque de recolher", participantes foram unânimes em dizer que esse jamais existiu, ocorrendo evasão escolar por medo de alunos e pedidos de precaução por parte de diretores de escola. Por outro lado, Tenório foi denunciado como sendo um dos protagonistas da violência no local, ao brigar contra Luis pela manutenção dos supostos pontos de venda de drogas. Até hoje, nunca foi comprovado um possível envolvimento de Tenório com o tráfico de drogas. Sobre o fato, o Major da polícia, responsável pela segurança da região na época, afirmou o seguinte: "há tempos que Paraisópolis é um local onde não existe nem o pequeno o tráfico" .17A presença da polícia foi 17

um pedido do presidente da União de Moradores, que na reunião emitiu a seguinte frase: "eu não vou alimentar o que aconteceu em Paraisópolis. O negócio está ruim, e eu preciso de parceiros, por isso trouxe a polícia aqui". A exposição da polícia pontuou bem como pensa a corporação. O argumento central de toda a apresentação do Major na reunião foi a de que é preciso haver uma aliança entre a polícia e a população no combate à criminal idade, coisa que nunca ocorreu em Paraisópolis. Para o Major, a maior segurança surge quando a população denuncia à polícia atos ilícitos, isentando esta de fazer um ostensivo patrulhamento que, segundo ele, causa poucos resultados e cria conflitos com a própria população, uma vez que a polícia não sabe diferenciar os moradores e a índole de cada um deles: "dois policiais andando a pé têm quatro olhos apenas. Imagina toda a favela ajudando a polícia e ligando pra d enunciar", sentenciou.

A tese do policial pode ser reforçada pelas constantes afirmações da população local de que o comércio de drogas não existia em Paraisópolis. Para ilustrar tal

tráfico de drogas, vale citar a frase de Luis, o suposto invasor, reproduz ida pe-

situação, vale d escreve r uma anedota ouvida certa vez de estudantes morado-

lo O Estado de S. Paulo, no Caderno C idades de 04/t 1hoo3: Paraisópolis seria

res do Morumbi que, ao entrarem em Paraisópolis perguntando sobre bocas-

uma "mina de ouro inexplorada", justamente pelo potencial comercial do local

defumo, foram expulsos a pedradas. Ainda sobre a referida inexistência de

devido ao entorno rico.

90


Por outro lado, o Major enalteceu as qualidades e oportunidades da comunidade de Paraisópolis, que segundo ele são por si só uma prevenção contra a violência, "nenhuma favela do Brasil tem o apoio que Paraisópolis tem", afirmou. Para o Major, a melhor solução em Paraisópolis seria o policiamento comunitário, "uma rede de pessoas ligando para a polícia, pois as melhores armas são a inteligência e a informação" e concluiu: "não tentem ser polícia, liguem para a gente", e deixou o número do disquedenúncia. Ficou implícito na fala do Major uma certa mágoa da corporação em relação às organizações do bairro que não viam a polícia como uma parceira a quem se deva recorrer, ao contrário, aos olhos da população e dos líderes comunitários, a polícia sempre foi mal vista, "polícia quando chega, chega atirando" ou "polícia não separa bandido de trabalhador" foram algumas das frases emitidas pelas lideranças locais e que já fazem parte de todo um vocabulário estudado pela literatura sobre violência e pobreza (Zaluar, 1994b). Em relação à cobertura da imprensa, houve críticas também por parte da polícia. Desde os primeiros momentos de vio-

lência, o Major afirmou que as denúncias sobre toque de recolher "não passam de boato"l8, afirmando que tal fato nunca havia ocorrido em Paraisópolis. O policial também buscou desmentir o que foi noticiado pela imprensa sobre a presumida invasão do Pcc. Segundo o Major, não foi tal grupo que coordenou a invasão, pois "o Pcc não entra com revólver 38", afirmou. Por sua vez, o presidente da União de Moradoresl9, mostrou-se indignado com a cobertura da imprensa. Segundo ele: "a imprensa é irresponsável e sensacionalista. Botaram toda a culpa em Tenório, que era quem nada tinha a ver" e "quanto mais falam na TV, mais os bandidos ficam contentes". Representante legal da comunidade, a maior preocupação 18 19

Agora. Polícia. 22hohoo3. Podemos entender a figura do presidente da União de Moradores como sendo o mediador entre o legal e o ilegal em Pa raisópolis. Sua boa relação com o poder público é em boa medida responsável pelas melhorias que o bairro obteve nos últimos tempos. Por outro lado, mantinha relações de cumplicidade com Tenório, conterrâneo e parceiro na busca de soluções para alguns problemas do bairro, sobretudo os que dizem respeito à pacificação.


do presidente da União de Moradores era a de que as notícias veiculadas pela imprensa trouxessem algum prejuízo aos projetos que são realizados na favela por gente "de fora", por isso sua preocupação maior foi a de ter boas relações com o poder público e tranqüilizar os responsáveis pelos projetos assistenciais para que estes não interrompessem seus trabalhos, fenômeno que em certa medida acabou ocorrendo. Por outro lado, o argumento norteador do agir de algumas lideranças comunitárias, independentes da União de Moradores, foi o seguinte: sem pressão popular, o poder público não cumpre sua responsabilidade, não podendo nunca a população perder de vista as responsabilidades do governo, sem, no entanto, deixar de se mobilizar. Nota-se nesse discurso uma herança do tipo de ação e linguagem empreendidas pelos movimentos populares da década de 1980, representados principalmente pelas Comunidades Eclesiais de Base. Em relação à atuação da polícia, essas lideranças comunitárias foram as que teceram as mais ferozes críticas. Diferentemente dos representantes do poder público e das ONGS "de fora" de Paraisópolis, as ditas lideranças tinham um vínculo muito maior

com a população, tanto por terem nascido no local como por serem em princípio expressões de suas reivindicações. Diante do posicionamento da polícia, que questionava o fato de nunca ser chamada em Paraisópolis, as lideranças afirmavam que isso se devia ao medo à corporação. Nas palavras de uma líder: "a PM não quer parceria, quer fazer lobby, quer confiança que não foi construída historicamente com a sociedade". Ainda que de forma velada, as lideranças comunitárias preferem o mando conhecido de Tenório ao agir da polícia. Para elas, a polícia não sabe lidar com a antítese bandido-trabalhador. Para o morador, a polícia é alguém "de fora" que rompe os códigos e normas estabelecidos, não sabendo lidar com a espacialidade e as especificidades do local. Como a polícia conhece poucos e maltrata todos, é facilmente criada a figura do bandido-herói (Zaluar, 1994b), representada nesse caso por Tenório. Contudo, o relacionamento da população com Tenório também é ambígua, visto que este protege mas reprime o que considera "abuso", assentando sua autoridade moral também no medo. Notadamente, uma certa percepção dicotômica entre dentro e fora está muito presente no imaginário das supracitadas


lideranças (e também da população em geral). Exemplos dessa percepção são frases do tipo: "quem está querendo tomar conta é o pessoal de fora, a turma daqui não mexe com ninguém", ou "ninguém vai sair daqui, toda comunidade está empenhada em normalizar a situação". De certa forma, sentindo-se acusado, o representante da polícia perguntou a todos os presentes se sabiam que havia um poder paralelo em Paraisópolis e o que cada um deles fazia contra isso. Essa pergunta do policial punha em evidência as ten sas e mal explicadas relações entre as lideranças, e principalmente a rede de ONGS, sobretudo as "de fora" e o poder de mando não oficial exercido por Tenório. A posição das ditas ONGS é ambígua. Em geral apóiam a intervenção da polícia, sobretudo em momentos de instabilidade, e isso ficou claro na referida reunião Multientidades, quando uma moradora do entorno rico, representante de uma associação, pediu uma salva de palmas à polícia ali presente. A polícia é bem vista pelas associações por representar a ordem no Estado democrático de direito, tão prezado por essas associações. Ao terem por meta levar cidadania e inclusão à população favelada,

devem também pautar seu discurso nas regras do pacto social. Por outro lado, sabem as associações que a autoridade legítima era a de Tenório, capaz de pacificar o local para que a violência não transbordasse para os ricos bairros vizinhos a Paraisópolis, e permitindo que todas as associações desenvolvam seu trabalho no local. Nunca houve uma denúncia séria por parte das associações em relação a Tenório e a alguns atos de violência por ele cometidos contra os moradores que cometem "abusos". Tal silêncio denota uma cumplicidade com esse mando provavelmente porque, no entender dessas associações, efetivamente o poder público representado pela polícia jamais conseguiria pacificar Paraisópolis. Enfim, se no discurso o apoio à polícia é total, em outras esferas que não a da segurança, as associações têm posições de antagonismo em relação ao Estado. Por várias vezes, represen tantes dessas associações declararam-se independentes, não vinculando a nenhum tipo de órgão público o trabalho que faziam, "tirando do próprio bolso" para ajudar em Paraisópolis. "Eu não estou nem aí com eles [o poder público]. Se eles não fazem, eu e a população vamos fazer", foi uma das frases ouvidas. Vemos nessas situações e discussões três modos distintos de


pensar e atuar na comunidade. De um lado, as lideranças que pregam a organização e a participação popular como forma de pressão sobre o poder público ausente. De outro, está a postura populista institucionalista do presidente da União de Moradores, que defende o uso das instâncias legais, visto que a elas representa, propondo o uso do poder político do grupo do Fórum Multientidades para pressionar as autoridades públicas a atenderem as demandas da comunidade. Quando necessário, porém, o referido presidente ultrapassa os limites da institucionalidade, recorrendo ao auxílio de Tenório. Uma terceira corrente é formada pelos líderes das ONGS "de fora", que, numa concepção politicamente liberal, pregam a auto-organização e o Estado mínimo. As três correntes no entanto com pactuam tacitamente com o poder de Tenório, capaz de garantir a relativa paz de Paraisópolis num local esquecido pelo poder público.

r.,

PARAISÓPOLIS, MORUMBI E A MÍDIA

Os discursos sobre o crime produzem explicações, interpretações e preconceitos. Ao cristalizar-se um discurso estigmatizante, que diretamente associa violência e pobreza, justifica-se a repressão, bem como a segregação espacial e social. No caso em pauta, no-

ta-se como duas imagens fortes foram agregadas às notícias sem que houvessem ocorrido: "o toque de recolher" e a "guerra entre traficantes". Assim, notícias pré-fabricadas, prontas para ir ao ar em momentos de instabilidade, acentuam a dramaticidade dos acontecimentos. Mas quem se importa se de fato ocorreram ou não tais fatos? O importante não é esclarecer ou transmitir a realidade do que acontece, o que vale no discurso é manter uma coerência com os pressupostos estabelecidos e abolir as contradições. Um sistema simbólico não suporta o inexplicável, e a forma mais fácil de manter a ordem simbólica condicionadora de práticas sociais é adequar a realidade ao que se pensa dela, e não o contrário. Como afirma Caldeira: "as narrativas de crimes elaboram preconceitos e tentam eliminar ambigüidades" (Caldeira, 2000:28). O mal-estar generalizado em Paraisópolis com relação à imprensa ocorre pelo estigma que esta impõe à população do local. Esse estigma é a lente com a qual os não-habitantes de Paraisópolis, via de regra, enxergam a mesma, e que se contrapõe socialmente a status, a marca impressa aos habitantes do Morumbi. Ao associar o nome de Paraisópolis à violência, esse fato pode acarretar inúmeros desdobramentos negativos na vida de cada

94


um de seus habitantes, como por exemplo a vergonha do próprio bairro e a queda da auto-estima, dificultando as relações sociais em geral. Também pode resultar em um aumento na dificuldade de conseguir emprego no entorno rico ou fora dele, ou então num tratamento negativamente diferenciado por parte da polícia ou na fuga de projetos assistenciais, entre outras conseqüências. O discurso do medo e o espetáculo da violência a ele associado já tiveram por conseqüência estigmatizar inúmeros bairros, que depois levam anos para tentar recuperar a imagem, como os casos do Jardim Ângela e da Cidade Tiradentes em São Paulo, e da Cidade de Deus no Rio de Janeiro. Essa questão da violência foi tão incômoda e discutida na comunidade justamente pela relativa paz existente no local. O número de homicídios ocorridos em Paraisópolis na época estava abaixo da média do município como um todo e era menor do que o de qualquer outra favela ou bairro da periferia de São Paulo.20

Contudo, o poder do entorno rico em dar visibilidade aos acontecimentos é grande e sua rede de relações com a mídia espetaculariza os acontecimentos21, não se importando com os possíveis desdobramentos negativos que a imagem abalada da favela pode ter. A repercussão na imprensa comprovava a força política dos habitantes do entorno, preocupados em mobilizar a sociedade civil e o poder público para uma intervenção. Para o entendimento da questão, cabe ressaltar que Paraisópolis por muito tempo correu o risco de ser removida, abrindo a possibilidade para investimentos imobiliários. A remoção não foi possível, mas ter Paraisópolis as características violentas de qualquer outra favela distrito de Vila Andrade tinha 73.649 habitantes no censo de 2000. Isto posto, podemos afirmar que a população da favela corresponde a uma parte importante da população do distrito. Assim sendo, mesmo que fosse imputado a Paraisópolis todos os homicídios ocorridos no distrito, a m éd ia não cresceria tanto, ficando próxima ou pouco acima da méd ia do município.

20

Segundo dados da F undação Seade, no ano de 2003 houve 41,38 homicíd ios

21

Segundo um antigo repórter da Agência Estado: "vizi nhos dos prédios sun tu-

para cada roo mil habitantes do distrito de Vila Andrade, onde se localiza

osos ligavam para a redação do j ornal da Tarde para reclamar dos tiroteios que

Paraisópolis, abaixo da média da cidade, que foi de 47,19. Segundo o

freqüentem ente assustavam a região" (Cintrão, 2001).

IBGE,

o


seria um preço que a população do Morumbi não pagaria, e não paga. A "cruzada civilizatória" empreendida pelas associações "de fora" é uma face desse projeto e a propaganda na imprensa, outra. A peculiaridade de Paraisópolis em relação às outras favelas da cidade, expressa no fato de ser esse um local com uma elevada estrutura de oportunidades (Almeida & D' Andrea, 2005), tem como contrapartida um maior controle social, que pode ser observado no tratamento dado pela imprensa aos atos de violência que ocorrem em seu interior. Ou alguém acha que as chacinas ocorridas nos bairros distantes das zonas sul e leste do município têm a mesma repercussão? Localizando-se Paraisópolis e Morumbi distantes do chamado centro da cidade, mas de certa forma na periferia do denominado quadrante sudoeste, centro financeiro de São Paulo, a relação entre o vizinho pobre e o vizinho rico é nitidamente de centro e periferia, e permeada pela ambigüidade. No Morumbi localizam-se os postos de trabalho que empregam a mão-de-obra barata de Paraisópolis. Dessa forma, seus habitantes necessitam desses trabalhadores da mesma forma que os evitam com guaritas de segurança e ruas curvas e descontínuas que dificultam a circu-

!ação (Almeida & D'Andrea, 2004; Caldeira, 2ooo). O Morumbi então se configura como centro, absorvendo a mão-de-obra22, controlando socialmente e, sobretudo, condicionando o ponto de vista que a sociedade como um todo tem de Paraisópolis. Em geral, a sensação do local do status em relação ao local do estigma é uma mescla de paternalismo, medo e raiva. Paternalismo expresso nos inúmeros trabalhos sociais existentes em Paraisópolis; medo visualizado nas sucessivas denúncias a órgãos de segurança e à imprensa; e raiva daqueles que, além de desvalorizarem o metro quadrado, ainda são os potenciais assaltantes de seus carros nas esquinas do bairro. 22

Esse fenômeno se expressa de forma clara se analisa rmos osurvey aplicado em Paraisópolis em 2002, indicando que 20% dos postos de trabalho ocupados pela população do local concentram-se em serviços domésticos, 12%, em serv iços de limpeza e zeladoria, ro%, em serviços de segurança e transporte e cerca de ro%, em construção civil e manutenção predial. Cabe ressaltar que esses números denotam mais da metade dos postos de trabalho da população de Paraisópolis, e todos eles expressam serviços domésticos necessários à manutenção das mansões e condomín ios fechados (Comin, 2004).


Por sua vez, Paraisópolis revela sua condição periférica em relação ao Morumbi na dependência que a favela tem do bairro. Dependência esta expressa nas relações de trabalho, nas intervenções d o poder publico e na presença ou ausência de ONGS, que em certa medida está condicionada à pacificação do lugar e, sobretudo, à imagem de Paraisópolis. É por esses cuidados com a imagem que muitos do local voltaram-se contra as notícias veiculadas pela imprensa. Talvez o fato23 que melhor sintetiza os acontecimentos ocorridos em Paraisópolis naquele outubro tenha sido a entrevista reali zada pelo SPTV com a representante da Associação de Moradores do Morumbi, que clamava por paz na região. Foi a última entrevista da reportagem, ou seja, a palavra final de Paraisópolis é dada por alguém do entorno.

~ PARAISÓPOLIS HOJE

Passados alguns anos dos fatos relatados e discutidos neste artigo, muita coisa mudou em Paraisópolis. Talvez o mais importante acontecimento seja a urbanização do Complexo Paraisópolis, há tempos nos planos de gestões municipais e estaduais e por fim em andamento, ainda que lentamente, devido a empecilhos jurídicos. Não por acaso, tendo em vista sua localização, Paraisópolis é a primeira fa vela da cidade onde o projeto está ocorrendo 24. 24

Após a in frutífera tentativa de remoção na década de 8o, e do g rande número de projetos socia is que aportaram em Pa raisópolis, sobretudo na década de 90, podemos entender a urbanização do local como um terceiro momento da relação triang ula r entre poder público-entorno rico-Paraisópolis. Em curto prazo, uma das conseqüências do pro jeto é a remoção d ireta de parte dos

23

Sobre televisão e relações de poder, afirma Bourdieu: "Essas são coisas tão

moradores, à guisa de desadensamento da á rea. Em longo prazo, sabe-se q ue

g rossas e tão grosseiras q ue a crítica m ais elementar as percebe, mas ocultam

muitos habitantes sairão devido aos encargos advindos da regularização fun -

os mecanismos anônimos, invisíveis, através dos quais se exercem as censuras

diária, como água, luz e

de toda ordem que fazem da televisão um formidável instrumento de manu-

a urbanização funcio ne como uma espécie de "integração" de Paraisópolis à ci-

tenção da ordem simbólica" (Bou rdieu , 1997: zo).

dade, representando, no plano simbólico, o tão esperado desaparecimento da

IPTU.

Outra leitura possível de ser real izada é a de que


Sobre personagens citados no texto, vale dizer que o presidente da União de Moradores foi eleito vereador do município e o Major da polícia passou a outra função na corporação, ainda mais importante que a exercida no momento aqui relatado. Por fim, o poder de Tenório foi aos poucos diminuindo e a presença policial hoje é bem maior, inclusive com ações de repressão ao tráfico de drogas que, ao que tudo indica, passou a existir em Paraisópolis.

tana" In: R evista Novos Estudos Cebrap. São Paulo: Cebrap, n. 68, março, 2004. ---."Estrutura de oportunidades em uma Favela de São Paulo" In: MARQUES, Eduardo

&

TORRES, Haroldo (Orgs.) São Paulo: segregação, pobreza e desigualdades

sociais. São Paulo: Editora Senac, 2005.

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TIARAJÚ o' ANDREA é mestrando em Sociologia Urbana pelo Departamento de Sociolo-

IBGE. Cemo Demográfico de 2000, 2000.

gia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1994(a).

- - -.O condomínio do diabo, RevanluFRJ, Rio de Janeiro, 1994(b).

(CEM).

e

Referências Bibliográficas

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favel a. No plano discursivo, os jornais ratificam este argumento: E m manchete principal da capa, o Jornal da Tarde de 19/ o7hoos anunciou: "Favela de Paraisópolis, o novo bairro da cidade". Dias antes, em o6/o7hoos, o MetroNews estampava também na capa: "novo bairro", referindo-se ao lugar.


Cidade de Deus

Paulo Lins

Cidade de Deus deu a sua voz para as assombrações dos casarões abandonados, escasseou a fauna e a flora, remapeou Portugal Pequeno e renomeou o charco: Lá em Cima, Lá na Frente, Lá Embaixo, Lá do Outro Lado do Rio e Os Apês. Ainda hoje, o céu azula e estrelece o mundo, as matas enverdecem a terra, as nuvens clareiam as vistas e o homem inova avermelhando o rio. Aqui agora uma favela, a neofavela de cimento, armada de becos-bocas, sinistros-silêncios, com gritos-desesperos no correr das vielas e na indecisão das encruzilhadas. Os novos moradores levaram lixo, latas, cães vira-latas, exus e pombagiras em guias intocáveis, dias para se ir à luta, soco antigo para ser descontado, restos de raiva de tiros, noites para velar cadáveres, resquícios de enchentes, biroscas, feiras de quartas-feiras e as de domingos, vermes velhos em barrigas infantis, revólveres, orixás enroscados em pescoços, frango de despacho, samba de enredo e sincopado, jogo do bicho, fome, traição, mortes, jesus cristos em cordões arrebentados, forró quente para ser dançado,

lamparina de azeite para iluminar o santo, fogareiros, pobreza para querer enriquecer, olhos para nunca ver, nunca dizer, nunca, olhos e peito para encarar a vida, despistar a morte, rejuvenescer a raiva, ensangüentar destinos, fazer a guerra e para ser tatuado. Foram atiradeiras, revistas Sétimo Céu, panos de chão ultrapassados, ventres abertos, dentes cariados, catacumbas incrustadas nos cérebros, cemitérios clandestinos, peixeiros, padeiros, missa de sétimo dia, pau para matar a cobra e ser mostrado, a percepção do fato antes do ato, gonorréias malcuradas, as pernas para esperar ônibus, as mãos para o trabalho pesado, lápis para as escolas públicas, coragem para virar a esquina e a sorte para o jogo de azar. Levaram também as pipas, lombo para polícia bater, moedas para jogar porrinha e força para tentar viver. Transportaram também o amor para dignificar a morte e fazer calar as horas mudas.


Pobreza e criminalidade

] [debate

Colocamo-nos em situação de risco ao aproximar os termos deste debate. São conhecidos os efeitos perversos da associação rápida entre pobreza e criminalidade - estigma e parcialidade. Mas esse encontro não pode ser ignorado. A criminalidade é hoje um mecanismo de reprodução da desigualdade. Se há, ao longo dos últimos anos, um aumento sistemático da violência, os seus principais agentes e vítimas são homens jovens, não brancos, moradores da periferia das grandes cidades. A reflexão sobre a violência não é exclusiva ao meio acadêmico. Embasa intervenções governamentais e está presente nas estratégias de enfrentamento praticadas pelo cidadão comum. A violência é um dado concreto que atravessa o cotidiano dos grandes centros urbanos. Criando padrões de sociabilidade, a violência produz uma nova leitura da cidade, de sua organização espacial e arquitetônica, traça contornos inéditos no jogo entre centro e periferia. Se há consenso com relação à análise da violência, é o da impossibilidade de apontar um único agente explicativo. A vio-

lência, assim como a criminalidade, é fundamentalmente tratada como um fenômeno "multicausal". A constatação é apurada enquanto diagnóstico, mas, no vácuo criado pela indefinição, algumas categorias acabam por compor um repertório explicativo para possíveis razões da criminalidade nos dias atuais. Neste, a pobreza parece ocupar lugar privilegiado, seja no senso comum - que conjuga pobreza e criminalidade na explicação de um cotidiano ocupado pelo medo-, seja nas investigações sociais que tentam circunscrevê-la por meio de categorias como "exclusão social", "situação de risco" ou "vulnerabilidade social". Apostando na interdisciplinaridade como um bom caminho para uma reflexão sobre tal tema, urgente, atual e extremamente inquietante, a Sexta Feira e o Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo convidaram, em 13 de junho de 2005, quatro pesquisadores cujos campos de pesquisa e trabalho enfrentam em alguma medida o encontro entre os termos. Eduardo Marques, professor do departamento de Ciência Política da usP e diretor do Centro de Estudos da Metrópole (cEM), do CEBRAP, vem trabalhando com temas associados à formulação de políticas públicas, mapeamento e qualificação da pobreza ur-

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bana e desigualdade. Vera Telles é professora do Departamento de Sociologia da mesma universidade e tem extensa trajetória de pesquisa sobre cidadania, pobreza e mobilidade urbana na cidade de São Paulo. Paula Miraglia, além de co-editora da Sexta Feira, é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da usP (PPGAs), onde desenvolve pesquisa sobre homicídios e juventude, e trabalha, atualmente, com formulação de políticas públicas na área da prevenção da violência. Para costurar esse diálogo, convidamos Maria Lúcia Montes, professora aposentada do departamento de Antropologia da usP, que fez uso de seu trânsito entre a Filosofia, a Ciência Política, a Sociologia e a Antropologia.

A MULTIDIMENSIONALIDADE DA POBREZA E DA VIOLÊNCIA Eduardo Marques

Estas considerações são em parte produto de minhas reflexões e, em parte, produto de reflexões coletivas no interior do Centro de Estudos da Metrópole, do CEBRAP. Sou professor do departamento de Ciência Política e, numa mesa interdisciplinar, seria de se esperar que eu fosse falar de Ciência Política- mas eu não vou. Na verdade não existe um ponto de vista da Ciência Política sobre a pobreza. Eu tenho trabalhado intensamente sobre esse tema e temas correlatos, e os pontos de partida na literatura e no diálogo não estão associados à Ciência Política, mas muito mais à Sociologia e à Demografia. Como a violência não constitui meu tema de pesquisa, gostaria de centrar minha fala na associação entre pobreza e periferia, entre pobreza e território. Temos em nossas pesquisas estabelecido alguns argumentos sobre a importância do território e as dimensões territoriais do fenômeno da pobreza. Quando falamos em periferia, pensamos primeiro - numa


acepção corriqueira-na idéia de borda, lugar geométrico que está na parte exterior da cidade. Não é disso que estamos falando-às vezes territórios dessa natureza estão na borda, mas associados a conteúdos sociais muito específicos. Por isso, estamos falando de algo que congrega a sociologia - um determinado conteúdo social - com determinada localização geográfica. É a combinação dessas duas coisas que dá o conteúdo específico de periferia. A discussão brasileira sobre periferia surge nos anos 1970 com um viés específico e datado, inserida em um contexto que não era só acadêmico, mas político, da luta contra a ditadura. Surge especificando um conjunto de elementos que seriam d efinidores da periferia: um lugar não apenas mais distante do centro, mas com renda diferencial baixa ou próxima de zero, com conteúdos sociais muito precários, habitada por uma população mal inserida no mercado de trabalho, em boa parte desempregada, vivendo em condições de pauperização e submetida a condições de vida muito precárias, muitas vezes associadas à inexistência de ação estatal-a ausência do Estado é um elemento importante já neste momento, no final dos anos 1970. A periferia é definida como lugar da ausência de muitas coisas. O conjunto desses elementos

expressaria o que o professor Lúcio Kowarick, do departamento de Ciência Política da usP, chamou de espoliação urbana. A visão macro-sociológica-importante naquele momento e fundadora da sociologia urbana brasileira- permaneceu praticamente inalterada até os dias de hoje. Uma tarefa importante da atividade científica hoje é mapear a análise empírica, ir para campo e observar o que está acontecendo nesse espaço, analisar os dados demográficos e econômicos e descrever qualificadamente o que são esses espaços. Fizemos esse exercício nos últimos três anos no CEM. As descobertas podem ser resumidas em dois grandes campos. A primeira delas é a existência de uma generalizada e significativa mudança dos conteúdos sociais. Não existem dados quantitativos comparáveis nas décadas de 1970 e 1980 (o Censo de 1991 seria o mais longe que poderíamos chegar). Mas, se pensarmos na descrição macro-sociológica que se fez sobre a cidade de São Paulo no começo da década de 1980, e imaginarmos um material empírico a partir d essa descrição, comparando-o com o material empírico de 1991 e com o material de 2000, podemos observar uma significativa melhora.

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Outra característica importante é a heterogeneidade. As situações de pobreza e os territórios da pobreza são muito diferentes entre si. Isso diz respeito a padrões de localização de grupos sociais, a condições concretas dos espaços construídos onde vivem essas pessoas, a contigüidades que se estabelecem entre os padrões de segregação espacial no espaço - que têm uma enorme importância para explicar as situações sociais. Conseguimos observar que, exceto pela violência e em parte pela favelização, a situação social melhorou em quase todos os indicadores. No caso da favelização, com matizes, porque aumentou a proporção de moradores em favela, embora em ritmo menor do que ao longo da década de 1990. Mas os indicadores sociais dos moradores de favela sugerem uma melhora da situação social nesses espaços em ritmo superior ao resto da cidade, embora as favelas continuem num patamar muito inferior. No caso dos indicadores de violência, eles pioraram muito e de maneira disseminada. Isso é um paradoxo. A década de 90 foi ruim para a economia, com queda real e relativa na renda, aumento de desigualdade de renda dentro da cidade, mas os indicadores sociais em geral - de condições de escolaridade, de

saúde, acesso à escola, ao posto de saúde, aos serviços de assistência, ao conjunto de políticas que se distribuem para a população e as condições de vida concretamente medidas pela infra-estrutura urbana, e as condições habitacionais-tenderam a melhorar. Então se tem um aparente paradoxo, que parece uma revisita ao paradoxo que se construiu no começo dos anos 90- a partir dos indicadores sociais do censo de 1991 - e que veio a ser conhecido como o debate da "década perdida". Os anos de 8o no Brasil foram de muita vida política, movimentos sociais intensos, mobilizações e início da consolidação da democracia brasileira recente. Mas foi uma década muito ruim do ponto de vista econômico: inflação galopante, vários planos econômicos dando errado, o que os economistas chamam de stop and go na economia (cresce, não cresce; cresce, não cresce). Apesar disso, quando os indicadores do censo 1991 saíram, a maior parte dos analistas ficou impressionada porque quase todos os indicadores - exceto a renda - indicavam melhora. A interpretação foi que a pressão dos movimentos sociais e o caráter inercial das políticas do Estado teriam produzido essa melhora. O que temos na década de 1990 é mais paradoxal ainda.


Temos uma situação precária, extremamente difícil no mercado de trabalho, com crescimento importante do desemprego e surgimento de um desemprego estrutural-que não tínhamos antes-, um descolamento das curvas de crescimento e de emprego, um aumento intenso da precarização do trabalho de diversas formas e queda da renda. Não temos movimentos sociais expressivos pressionando o Estado brasileiro e os níveis locais de governo também vivem a intensificação de sua crise fiscal, com dificuldades de distribuir políticas. E, no entanto, os indicadores sociais melhoraram. Temos aí instaurado o paradoxo, que eu afirmo ser aparente. Isso porque tal paradoxo pressupõe que exista uma associação direta entre as condições econômicas-o mercado de trabalho, especificamente-e as condições de vida. A hipótese do CEM é que na verdade a frente de reprodução social é muito mais ampla. Envolve associativismo, redes sociais, sociabilidade, padrões de comportamento, práticas e isolamento produzidos pelo território. Estamos defendendo a idéia de que não existe paradoxo. Existe um problema de interpretação: elementos de economia não se transformam em elementos sociais diretamente. O que temos concretamente na cidade de São Paulo

e em outros lugares-é horrível usar esta expressão, mas para ser rápido-é um novo tipo, um novo perfil de pobreza, que não é pior ou melhor, mas é diferente. O que está presente nesse novo padrão? Uma população pobre, mas muito mais escolarizada, muito menos jovem, com grupos sociais mais idosos. O Mapa da Vulnerabilidade Social, realizado para a Secretaria de Assistência Social do Município de São Paulo, delimitou grupos sociais pobres e velhos, em termos relativos. A pobreza tem condições habitacionais diferentes das condições anteriores. A precariedade é diferente da outra. É marcada pela quase universalização das edificações estruturadas, de alvenaria, com piso e telhado acabados ou semi-acabados, que expressam, como diz Lúcio Kowarick, o esforço das famílias ao longo dos últimos vinte, trinta anos, autoconstruindo as casas em seus fins-de-semana e com dinheiro das férias. Isso é uma condição habitacional diferente da anterior. O segundo ponto é a idéia de heterogeneidade. As situações sociais são múltiplas: temos grupos sociais pobres de características muito diferentes entre si, sob o ponto de vista da estrutura da família, estrutura etária, padrões habitacionais, condições de


ocupação e lugares onde vivem. Não dá, portanto, para trabalhar com indicadores sintéticos. A presença dos indicadores sintéticos-febre no mundo da Demografia e da Sociologia-induz à idéia de que todas as condições sociais são paralelas entre si. Ao organizar as pessoas por escolaridade, ao mesmo tempo se usa o critério de renda, condição habitacional, velho-novo, tamanho da família etc. Mas o mundo é multidimensional, e a pobreza também. No máximo, temos que trabalhar com classificações, que cruzam tipos de coisas: tamanho da família ou estrutura etária com condições habitacionais, renda etc. Os indicadores sintéticos tentam fazer caber o mundo em uma dimensão única. A pobreza é multidimensional, e isso inclui a violência. Um dos poucos indicadores d e violência que o CEM tem trabalhado - o de homicídios-tem mostrado que as condições são muito heterogêneas também, mesmo em espaços pobres e periféricos. Isto é, tem espaços igualmente pobres que estão associados de maneiras muito diferenciadas a situações d e violência. O que quer dizer que a relação entre pobreza e violência não é unidimensional nem é fácil de explicar. Uma última questão que eu gostaria de colocar remete ao

território. Se você tomar, por exemplo, duas pessoas igualmente pobres, com características sociais similares de escolaridade, renda etc., que moram em famílias similares, têm igual cor da pele, mas moram em lugares diferentes da cidade, o futuro delas tende a ser diferente. É possível explicar a probabilidade de concluir o segundo grau na idade certa de maneira diferenciada. Também é possível mostrar estatisticamente que a localização pode penalizar pessoas que, igualmente pobres, tendem a ficar mais desempregadas que outras. Dizendo de outra forma, entre as muitas dimensões que a pobreza tem, o território está incluído. O território é uma dimensão das condições sociais e da pobreza de maneira mais específica. Isso tem a ver com isolamento social. Como as redes sociais, o território também produz isolamento ou integração. Os padrões de segregação produzem isolamento social. Entre duas pessoas igualmente pobres, aquela que vive em um lugar mais segregado tem piores condições de vida. Se isso é verdade, as políticas de combate à pobreza, de combate a situações sociais de privação, têm que ter estratégias territoriais.


ITINERÁRIOS DA POBREZA E DA VIOLÊNCIA

Vera Telles

De partida, devo dizer que não pesquiso violência urbana. Mas já faz alguns anos que estou envolvida em uma pesquisa sobre trajetórias urbanas nas periferias paulistas. E o problem a se impõe a cada dia, como evidência incontornável, seja porque está presente nos percursos e histórias de nossos entrevistados, seja porque afeta as condições do próprio trabalho de campo. Desde a primeira vez que fui a campo no final dos anos 1980 e, depois, várias vezes na década de 90 e agora, mais recentemente, há d e se reconhecer que alguma coisa mudou no correr de todos esses anos. No início entrávamos nos bairros escolhidos com facilidade: apresentávamos-nos, explicávamos os objetivos da pesquisa e éramos recebidos, sempre, com generosidade e disposição para responder às nossas questões. Hoje, é preciso, primeiro, a intermediação do que chamamos de "os nossos embaixadores" -algum morador ou liderança local que nos apresenta aos moradores e abre a possibilidade para seguimento do trabalho. Há algum tempo, víamos confirmado o que os bons traba-

lhos de antropologia flagravam nessas regiões: a violência sempre estava "do lado de lá", na outra rua, outro bairro, outro pedaço da cidade. Havia uma geografia simbólica da cidade feita de um jogo ambivalente de identidade e alteridade, no qual a violência era projetada para algum outro lugar, ao mesmo tempo em que eram construídos os "territórios de proteção". Hoje, a violência estrutura a narrativa que as pessoas fazem de suas vidas e circunstâncias de vida, não está mais "do outro lado". Sobretudo entre os mais jovens, falar de seus percursos é também fazer a contabilidade dos mortos, amigos de infância, colegas de escola, vizinhos: "meus amigos ? Estão todos mortos ... ". Assunto inescapável, tratar da violência, no entanto, é tarefa difícil. Os riscos de reativar a velha e persistente criminalização da pobreza é grande, quanto mais porque as evidências imediatas sugerem a proximidade entre pobreza e criminalidade violenta e é justamente nisso que se aloja o desafio para nós pesquisadores. Para evitar essa associação fácil e imediata entre pobreza e criminalidade, é preciso ter claro os vários planos em que a questão da violência pode e deve ser colocada: diversas problemáticas que se situam em escalas diferentes.

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Primeira escala de observação: o tráfico de drogas. Como mostra Alba Zaluar (cf. Integração perversa. Pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000), comparando com os anos 8o, a presença do tráfico de drogas, mais evidente e mais generalizada a partir da década de 90, altera radicalmente as características do que é nomeado genericamente de "violência urbana". Mas ao contrário do que se supõe, a rota do crime organizado é a rota da riqueza, não da pobreza. Comparando estados, regiões metropolitanas e municípios, Zaluar mostra com precisão que a concentração de pobres (e imigrantes) não significa necessariamente concentração de mortes violentas. Quer dizer: mata-se e morre-se nas cidades nas quais há muita riqueza em circulação. E isso confirma-se também por um lado, com base nas observações que podemos colher no trabalho de campo. Simplificando muitíssimo, eu diria que a situação de pobreza extrema não é o que vai alimentar o tráfico de drogas; mas vai alimentar o nosso conhecido clientelismo velho de guerra, mesmo que opere sob novas roupagens. A pobreza extrema está sujeita à lógica da urgência. A inteligência prática do clientelismo e da tutelagem - que a direita sabe manipular muito bem, e que a esquerda está também

aprendendo muito bem a operar-é atuar justamente nessa lógica da urgência dos tempos da vida, que não é o tempo da negociação política democrática. Voltando ao nosso assunto, não são essas parcelas muito pobres ou miseráveis que vão ingressar nas hostes do tráfico de drogas: isso também exige lá uma competência, que não é para qualquer um. Porém, o tráfico e a redes da criminalidade violenta afetam a sociabilidade cotidiana. E essa é a segunda dimensão importante a ser comentada. Em suas ramificações locais, o hom em envolvido no crime organizado mora nesses bairros, cresceu no pedaço, conhece "todo mundo", participa da sociabilidade local e também do jogo das reciprocidades morais do mundo popular. Mas, também como mostra Zaluar e como podemos observar no trabalho de campo, aos poucos vão-se introduzindo no universo popular códigos de lealdade que transbordam a "economia moral" local. E é isso justamente que pode provocar o desconcerto diante de mortes violentas que parecem escapar ao código moral costumeiro: mortes que "não fazem sentido". Diferente, por exemplo, dos "crimes de paixão", em que é possível entender as razões, apesar da condenação moral: "eu entendo o que ele fez" . Não é o que


acontece quando uma briga de namorados pode acionar uma solução violenta em que o "rejeitado" vinga-se matando a família toda da antiga namorada, sentindo-se poderoso para tanto justamente pela posse de armas. Ainda mais quando os desafetos cotidianos envolvem personagens envolvidos no crime organizado, e que acionam a solução violenta para assuntos, vamos dizer assim, corriqueiros. Então, essa é uma segunda escala de observação: a tessitura das redes sociais e o modo como vêm sendo afetadas pela presença do tráfico de drogas. Uma terceira dimensão a ser considerada: a chamada "violência costumeira", que não é em si novidade, sempre fez parte do jogo das relações sociais: essa solução violência "que faz sentido". A novidade vem do fato de que as regras das reciprocidades morais vêm sendo desestabilizadas. Pela presença do tráfico, certamente. Mas também pela fragilidade dos acertos quotidianos entre uns e outros em uma situação na qual a lógica mercantil se expande (vide a presença dos grandes equipamentos de consumo que hoje compõem a paisagem social das periferias, mesmo as mais distantes), ao mesmo tempo em que crescem as legiões dos "sobrantes" do mercado de trabalho. No jogo das reciprocidades

morais, na lógica da dádiva e contradádiva, em algum momento a "conta" tem que ser paga e isso pode introduzir um verdadeiro curto-circuito nessa trama de interações: a contradádiva hoje circula pelas vias de bens mercantis, quer dizer, é mediada pelo mercado. E é isso justamente que pode entrar em ponto de combustão. Mas isso também significa reconhecer que a sociabilidade local não pode ser vista sob o prisma de uma suposta "comunidade", como tem sido freqüente nos debates recentes. Vem sendo atravessada por lógicas e dinâmicas que transbordam o perímetro local (aliás, é também sob esse prisma que se deve situar a presença do tráfico de drogas, também ele regido pela lógica mercantil e também ele conectado a circuitos nacionais ou transnacionais). Mas isso nos abre um outro feixe de questões: se é verdade que as periferias urbanas estão muito alteradas (e os indicadores mostram isso) em relação às décadas anteriores, se temos hoje um outro padrão de urbanização, isso define um outro patamar em relação ao qual os problemas precisam igualmente ser situados: outros ou velhos problemas, redefinidos sob uma dinâmica urbana atravessada por mediações e lógicas que transbordam os perímetros locais.

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Essa, portanto, uma outra escala de observação: o feixe de mediações e articulações que compõem as realidades locais, mas que transbordam o seu perímetro imediato. Além das questões comentadas acima, vale a pena lançar ainda uma outra faceta: as redes de múltiplas ilegalidades que também compõem a vida urbana. Não se trata da ilegalidade "de sempre", tampouco apenas a reposição do tão debatido descompasso entre a "cidade legal" e "cidade ilegal". Mais do que a conhecida relação entre legal e ilegal, trata-se da indistinção entre o legal e ilegal, entre o lícito e ilícito. E isso passa, certamente, pela chamada economia informal, mas esta tampouco é a mesma em relação às décadas passadas. Também aqui temos uma mudança d e escala: o mais do que conhecido camelô, mesmo no muito distante e muito pobre Guaianazes, por exemplo, está conectado a uma rede de intermediários que acionam seja os circuitos da economia globalizada, seja os circuitos, aliás também globalizados, do chamado comércio de bens ilícitos de proveniência variada, tudo isso misturado com acertos no mais das vezes obscuros com fiscais da prefeitura ou subprefeitos que tentam sem sucesso regular o comércio clandestino e o uso irregular dos espaços urbanos. Ou então, para lançar mão

de uma interessantíssima observação de campo: o empregado de uma empresa terceirizada da Telefônica que presta serviços nas regiões distantes das periferias, que negocia com os moradores locais para instalar os "gatos" que se proliferam por todos os cantos (afinal, ele é empregado terceirizado de uma grande empresa privatizada, não tem o menor comprometimento com o chamado "bem comum", e alem do mais, é instável e muitíssimo mal pago: enfim, é um trabalhador precário). Muitas vezes é o chefe local do tráfico quem vai arbitrar esses acertos e definir os principais beneficiários da ligação clandestina da rede elétrica. Seria mesmo possível dizer que, nesse mundo social tão contrastado e tão difícil de ser vivido, é preciso saber transitar entre essas diversas fronteiras sociais, seus mediadores e suas conexões, é preciso saber lidar com seus diversos códigos e negociar as formas de vida, a cada momento. Ou isso, ou a morte matada. Ou então, a infelicidade do "pobre-coitado", o "pobre-de-tudo", a depender dos programas assistenciais que igualmente proliferam hoje nas periferias da cidade. É isso que podemos observar nesses territórios urbanos: para sobreviver, reinventa-se o Riobaldo da cidade.


Para terminar: se há diversas escalas a serem levadas em conta, é preciso também considerar que não se trata de escalas abstratas. São escalas situadas, que mobilizam atores, conexões, vínculos e relações que interagem com o local, que conformam territórios e compõem o jogo dos atores. Nós, sociólogos, ainda temos que aprender muito com os antropólogos, aprender com eles que a produção do conhecimento é sempre situada, nesses pontos em que a trama das relações e diferenças de escalas se concretizam. Se é verdade que essas situações estão atravessadas por redes em escalas diferentes em suas conexões e extensão, diria que o importante é entender o modo como essas conexões se produzem (os nós da rede, como se diz). É justamente aí que está o nervo exposto da situação atual. Se quisermos desfazer a associação fácil entre pobreza e criminalidade, então teremos que trabalhar com essas várias mediações, nesse jogo de escalas, que são as várias dimensões pelas quais os bairros periféricos estão sendo produzidos, e a cidade vem sendo produzida. Talvez por aí, possamos entender melhor não só a questão da violência, mas, sobretudo, identificar e entender os ordenamentos sociais que vêm sendo urdidos nos últimos tempos.

ÍNDICES DE POBREZA E O IDIOMA DA VIOLÊNCIA

Paula Miraglia

Tomo como ponto de partida minha pesquisa de doutorado: estudo e trabalho com o tema da violência, particularmente os homicídios, e é impossível pensar isso sem passar pela pobreza. Seja porque existe uma coincidência, em alguns distritos de São Paulo, entre as altas taxas de homicídio e um quadro agudo de pobreza, seja porque apesar do grande constrangimento das Ciências Sociais em geral em fazer essa associação, é impossível negá-la definitivamente. Há uma espécie de consenso de que é impossível associar imediatamente pobreza e criminalidade e pobreza e violência. Ao mesmo tempo, os dados também estão aí para mostrar que em muitos contextos não podemos fugir dessa associação, ou pelo menos dessa reflexão. Aproveito este momento, portanto, para fazer um exercício e pensar sobre as possíveis ligações entre a pobreza e os homicídios, e investigar os eventuais benefícios que essa aproximação pode trazer para esse tipo de reflexão. Partindo da idéia de pobreza, seria interessante considerar

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alguns dados. O Brasil é o sexto país mais populoso do mundo, tem a nona economia de acordo com dados do Banco Mundial. Paralelamente, é um país com grande concentração de renda e, conseqüentemente, de desigualdade. 36 milhões de pessoas no país vivem com um dólar por dia e aproximadamente 54 milhões vivem abaixo da linha de pobreza. Ao mesmo tempo em que a pobreza nos é familiar e próxima, ela é também muito distante, temos pouca intimidade com ela. Surge uma série de impasses e constrangimentos na hora de caracterizar a pobreza. Se é extremamente fácil apontar um pobre na rua sem hesitar, é muito difícil definir de que se trata a pobreza com a mesma precisão. Podemos pensar na pobreza na sua dimensão material essa seria uma primeira definição-e nesse sentido é possível ilustrá-la como a fome, o pouco acesso aos bens e serviços, problemas de moradia, saúde e educação. Há, no entanto, uma outra dimensão, bem m enos concreta que essa, mas também bastante contundente: um sistema de direitos baseado em privilégios, a pequena presença do Estado, um sentimento de injustiça, estigma e preconceito, que advém de uma situação de pobreza ou daquilo

que hoje se chama de exclusão social, vulnerabilidade social ou situação de risco. A pobreza hoje ganhou vários outros nomes, que tentam, com isso, circunscrevê-la, defini-la de forma um pouco mais clara. Para a formulação de políticas públicas e de indicadores, faz-se um esforço no sentindo de se alcançar um equilíbrio no que se refere a essa caracterização. Fala-se em pobreza relativa e pobreza absoluta, ou ainda na combinação desses dois conceitos. Pobreza ligada ao grau de desenvolvimento de um país ou de determinada região, ou a diferença de desenvolvimento no interior de uma mesma região, de uma mesma sociedade. A realidade brasileira pede a combinação desses dois modelos. O curioso, no entanto, é que o Brasil não tem uma definição oficial de pobreza. Há uma série de indicadores, há um esforço de criação de índices para medir, mas não há uma definição do que seria a "linha brasileira de pobreza". Há uma série de conseqüências imediatas para isso. A primeira é a dificuldade de avaliar e classificar programas sociais e políticas públicas de combate à pobreza. O Fome Zero é um bom exemplo. É uma política nacional de combate à pobreza, mas dia-


loga muito pouco com a pobreza que encontramos nos grandes centros urbanos. Ninguém está aqui passando fome, essencialmente. Isso revela a dificuldade em definir o que é a pobreza em um país com as dimensões brasileiras e com uma diversidade social, geográfica, econômica e demográfica como a nossa. Se olharmos para o resto do mundo, veremos que há várias versões de pobreza: falar de pobreza na Índia é falar de uma parcela enorme da população que passa fome, falar de pobreza na África implica necessariamente falar dos órfãos da Aids. No Brasil, nos grandes centros urbanos, falar de pobreza é indiscutivelmente falar de violência. Nesse sentido - e cumprindo meu papel de antropóloga da mesa-podemos nos perguntar se aviolência não é nossa versão local da pobreza. As ciências sociais têm feito um esforço enorme para desfazer essa associação, principalmente para evitar a idéia de que o meio seria capaz de produzir o comportamento desviante. Isso pode parecer simples e nada novo, mas há toda uma interpretação nessa linha. A Organização Mundial da Saúde, por exemplo, trata a violência como uma epidemia. É claro que mais em função dos números assustadores: de acordo com o último relatório

da oMs, a violência é o principal motivo de mortes por causas externas no mundo para pessoas entre 15 e 44 anos. As conseqüências interpretativas são imensas: é como se o meio fosse capaz de cultivar um delinqüente e como se a violência fosse contagiosa de alguma maneira. Sabemos que essas são representações fundamentais da idéia de epidemia. O esforço para dissociar aquelas duas dimensões, portanto, não é em vão. Para falar em violência nos grandes centros urbanos é preciso abordar o tema dos homicídios. Mas por que os homicídios são um assunto privilegiado? Em primeiro lugar, os números são devastadores. O Brasil tem hoje taxas de homicídio dignas de países em guerra. Isso se dá tanto no total da população, quanto, de maneira ainda mais contundente, na faixa etária entre 15 e 24 anos e, particularmente, em algumas regiões da cidade de São Paulo. Não gosto de usar os números como recurso dramático, mas acho que são um bom exemplo. Se temos hoje no Estado de São Paulo uma taxa de homicídio entre 23 a 28 para cada 100 mil habitantes, quando recortamos para a faixa etária de 15 a 24 anos, ela chega a 50 (homicídios por 100 mil habitantes). No Jardim Ângela, em 1995, essa taxa era de u5,2 e, de acordo com o índice

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de Vulnerabilidade Juvenil, no mesmo distrito, a média da taxa de mortalidade por homicídio dos anos de 1999, 2000 e 2001, para os jovens, homens, entre 15 e 19 anos foi de 438, 2. Esse número está caindo. A Unesco lançou uma pesquisa em 2005 - 0 Mapa da Violência de São Paulo - mostrando que há uma tendência de queda dos homicídios no Estado de São Paulo. A pesquisa fala de alguns casos específicos, entre eles o do Jardim Ângela. Em 1995, a ONU anunciou o Jardim Ângela como um dos bairros mais violentos do mundo. Claro que isso teve um impacto local do ponto de vista da organização e da mobilização social. Se hoje podemos falar em uma tendência de queda de homicídios no Jardim Ângela, isso se dá porque há intervenção do Estado, das ONGS, mas, sobretudo há uma mobilização social muito forte ali. O distrito, além de um lugar violento, tornou-se uma referência quando falamos em "associativismo". Não há dúvida d e que esse movimento é uma resposta ao estigma e à própria violência. Os homicídios também são um objeto privilegiado do ponto de vista da qualidade da informação, que costumamos não valorizar tanto na Antropologia. O homicídio é um crime que

tem baixa subnotificação e o motivo é óbvio: você tem um corpo ali e precisa dar conta daquilo. Mesmo que a polícia não tome nenhuma providência legal, ou que as conseqüências para quem cometeu o crime ou para a família da vítima nem sempre sejam observadas, inevitavelmente, ainda assim, o corpo é contabilizado de alguma maneira. E nesse sentido, temos uma "boa contagem" desse tipo de crime, sabemos que a qualidade das informações sobre homicídio é muito boa. Finalmente, uma outra razão para tomar os homicídios como objeto é porque eles dizem muito sobre um padrão de sociabilidade em algumas regiões de São Paulo. Eles colocaram para as políticas públicas e para a academia uma série de questões e d e impasses. Do ponto de vista das políticas públicas, a escalada dos homicídios e da própria violência fez com que os governos, em todos os níveis, começassem a pensar em estratégias específicas de combate à violência. Porque se continuarmos com essas taxas d e homicídio, vamos ter um problema demográfico sério muito em breve, porque quem está morrendo são os jovens, pobres e moradores da periferia. Pa ra as Ciências Sociais, os homicídios colocam uma sé-


rie de problemas de interpretação: o que eles estão dizendo, para além da criminalidade? A Vera Telles lembrou o tráfico. A entrada da arma de fogo é um dado fundamental que não pode ser desconsiderado porque ela muda completamente a sociabilidade entre as pessoas. Eu pensaria mais nessa sociabilidade entre pessoas que possuem armas de fogo do que no tráfico de drogas. Acho que deve ser feita uma distinção fundamental entre Rio e São Paulo. Não há pesquisas suficientes para realizar essa comparação, mas sabemos que o que se tem no Rio são verdadeiras empresas do tráfico, organizadas. São Paulo ainda não chegou lá, apesar da mudança no crime organizado e da substituição cada vez maior e mais rápida dos chefes. Existe o tráfico de drogas, sem dúvida, mas ele não se mostra tão estruturado como no Rio de Janeiro. E as pesquisas revelam que nos homicídios em São Paulo, em quase so% dos casos, as pessoas se conheciam, e mais de 6o% dos homicídios são atribuídos aos chamados motivos fúteis: uma briga de bar, uma briga entre vizinhos numa festa. E é o que tenho comprovado em minha etnografia. É claro que os motivos são fúteis para a gente, que faz essa qualificação, mas ainda assim estamos falando em

conflitos interpessoais que pertencem ao cotidiano dessas pessoas. O tráfico é um grande canal de entrada de armas de fogo-é impossível ignorá-lo-mas há também outras coisas a serem consideradas nesse contexto. Proponho então pensar de que maneira os homicídios tocam na relação entre pobreza e criminal idade. Se essa fosse uma relação tão imediata, poderíamos nos perguntar por que os moradores de periferia não vêm ao centro nos matar. Considerando a oposição entre pobreza e riqueza, entre periferia e centro, essa suposição faz muito sentido. No entanto, sabemos que não é isso que acontece. Eles estão se matando entre eles. Esses jovens ocupam hoje um lugar ambíguo de grandes agentes da violência urbana, mas também grandes vítimas dessa violência. Precisamos, portanto, novamente, nos perguntar de que maneira a pobreza orienta essas ações. Há um esforço hoje em dia para circunscrever a pobreza e para isso, recentemente, foram criados alguns índices. O Mapa de Vulnerabilidade Social, desenvolvido pelo CEM e o Índice de Vulnerabilidade Juvenil, criado pela Fundação SEADE, são dois exemplos interessantes. Em ambos a violência aparece como um indicador de vulnerabilidade.


No caso dos jovens, no entanto, esses indicadores sofrem uma diferenciação de gênero: para as mulheres o grande indicador de vulnerabilidade é a gravidez precoce e para os homens é o homicídio, isto é, sua chance de morrer. As possibilidades interpretativas são infinitas se pensarmos que para uma mulher o grande indicador de vulnerabilidade é dar à luz e para o homem é morrer, mas para me concentrar no tema desse debate, eu queria pensar um pouco, a partir da minha etnografia, o lugar que o homicídio tem na elaboração desse novo padrão de sociabilidade. Não podemos dizer que os homicídios e a violência não dialoguem com a condição de exclusão, de vulnerabilidade, ou pobreza, mas acredito que eles dialogam com uma parte determinada dessa noção de pobreza, que não necessariamente aquela ligada à carência material ou às dimensões associadas à carência material. Acho que eles dialogam muito mais com uma dimensão relativa ao quanto a pobreza vitimiza, ao quanto ela suprime da sua autonomia, ao quanto ela nos faz, por exemplo, um objeto das políticas públicas ou de qualquer ação do Estado. Num contexto como esse, temos muito pouco espaço de manobra, temos muito poucas chances de fazer nossas próprias escolhas. Claro

que é muito difícil medirmos isso: "o quanto se pode fazer de escolha quando se é jovem", mas o que eu quero chamar atenção na pesquisa é o quanto o crime é apresentado como uma escolha frente a uma situação, como uma maneira de reivindicar um certo protagonismo, a sua capacidade de escolher e de determinar os rumos da própria vida. É uma escolha perversa, diante de um repertório talvez limitado de possibilidades. Ao mesmo tempo, não dá para acreditar que essas são as únicas escolhas, uma vez que num mesmo lugar, numa mesma região, há pessoas que vivem sob as mesmas condições e não necessariamente estão envolvidas com padrões violentos de sociabilidade. Mas o envolvimento ou não com o crime, em muitos casos, aparece com esse valor. Quer dizer, matar ou não matar é uma maneira de resolver um conflito. Observamos uma privatização da resolução de conflitos e uma maneira de resolver o seu problema- "já que ninguém está aqui para resolver, eu vou resolver e vou me colocar". Quer dizer, eu não vou ser objeto de políticas públicas, eu não vou ser objeto do medo de morrer-porque vocês imaginem que num lugar onde você tem uma taxa de homicídios tão alta, o medo também é um grande orientador de


escolhas-, mas eu vou ser o sujeito dessa ação: eu vou escolher quem eu vou matar, eu vou escolher o que vai acontecer com a minha vida. A pobreza enquanto dado, claramente não resolve a equação, uma vez que há bairros com um cenário sócio-econômico bastante semelhante ao do Jardim Ângela, mas que não reproduzem as mesmas taxas de homicídio. Da mesma maneira, tem muita gente no Jardim Ângela, aliás, a maioria, que não resolve tudo na bala. Mas ainda assim, parece inevitável pensar nesse conjunto de escolhas num contexto específico para refletir um pouco sobre uma maneira particular de viver e construir a idéia de juventude.

COMENTÁRIOS

Maria Lúcia Montes

Quando eu fui convidada para esse debate, logo respondi que não entendia nada de violência. Tive apenas, recentemente, uma experiência de extraordinária riqueza com a questão da violência quando fiz, com quatro dos editores da Sexta Feira, uma pesquisa para os Centros Educacionais Unificados (cEus) que estavam sendo implantados pela prefeitura, para a montagem de uma exposição em cada um deles, em 21 bairros da periferia de São Paulo. Foi também a partir dessa experiência que eu ouvi os relatos dos participantes do debate. É curioso que a antropóloga da mesa tenha falado em indicadores quantitativos e na necessidade de pensarmos de forma mais estrutural a violência, a criminalidade e a pobreza; que o cientista político tenha dito "eu não faço ciência política, porque não dá para fazer isso dentro da ciência política"; e que essa moça socióloga faça o que ela quiser, porque o olhar dela é inteiramente antropológico. Isso é muito saudável, significa que temos diálogo, que há fronteiras disciplinares onde as questões se cruzam,

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e isso traz muito bons resultados do ponto de vista da criação do conhecimento, como vimos pelas três apresentações. Eduardo Marques falou, primeiro, sobre os dados da pobreza, Vera Telles falou da violência, Paula Miraglia juntou violência e pobreza; eu vou tentar juntar de novo violência e pobreza, para fazer um comentário sobre as falas, a partir do que nós pudemos confirmar nas pesquisas em algumas periferias de São Paulo. Quando começamos a pensar o projeto da pesquisa para as exposições dos cEus, partimos da construção da periferia pelas Ciências Sociais, nos anos 70, que se tornou senso comum: a periferia é o lugar da falta, é o lugar da pobreza, e a pobreza se resume a tudo o que não se tem. A gente sabia disso, mas o que fez a gente ter um outro olhar para essa periferia foi pensar: "ali tem problema, tem falta, mas o que tem mais, além disso?". Fizemos o exercício quase lúdico de perguntar para eles: "o que vocês acham que vale a pena, apesar de tudo?". E as repostas foram muito ricas. Encontramos a questão da melhoria dos indicadores na periferia, apontada pelo Eduardo, em relatos que são quase a narração da conquista da natureza pela cultura. Quando a gente perguntava para os mais velhos como era antes, como era antiga-

mente, ouvia sobre um trabalho absolutamente insano de domar a natureza e transformar aquilo em território habitável; isso criou padrões de sociabilidade e solidariedade, porque, apesar de todas essas mudanças-e eu acho que vocês têm razão em apontar uma mudança - há ali uma raiz de outros padrões de sociabilidade, que são dados pelos próprios códigos de expansão da periferia que, sem um esforço coletivo e organizado, não teria sido transformada em bairros habitáveis onde seres humanos hoje moram. Isso tem a ver com a história: os anos 6o, 70 e 8o são marcados pelas últimas levas de migração: até então, uma população grande estava sendo jogada nesses bairros mais pobres da cidade, com ao menos uma expectativa de emprego. Nos anos 8o e, sobretudo, nos anos 90, a crise de emprego se alastra e, com isso, aumentam os problemas nesses bairros. Mas, simultaneamente ao fim da miragem do Eldorado, que trouxe muitos imigrantes para cá, eles chegaram à conclusão de que ou eles se viravam e resolviam os seus problemas, ou não teria como isso ser resolvido. Em termos históricos, esses são os anos da ditadura militar, momento em que a atuação da Igreja foi absolutamente crucial para criar a base a partir da qual os movimentos sociais come-


çaram a poder se organizar e se desenvolver nesses bairros da periferia. Neste momento, o que se dava não era exatamente a ausência do Estado; o Estado estava lá, negociando com gente que tem uma capacidade muito grande de saber do que estava falando, porque já tinha se organizado e resolvido - ou procurado resolver - por conta própria os problemas mais graves, esses de infra-estrutura, esgoto, água, luz etc, quer dizer, aquilo que é o mínimo que faz um território habitável nos centros urbanos. Em algumas regiões, ainda há problemas de infra-estrutura, como na zona norte, em cima da Serra da Cantareira, ou na beira da represa de Guarapiranga, espaços de ocupação mais recente, onde nem deveria ter gente, pela questão da poluição no que é fonte de abastecimento de água para a cidade. Mas em vários outros bairros da periferia, a melhoria estava dada graças à capacidade autônoma de organização e de luta dessas pessoas. Eu digo "autônoma", mas não podemos esquecer que havia esse trabalho da Igreja, nos anos 70 e 8o, e uma parte grande dessas lideranças tinha laços muito fortes com o PT (Partido dos Trabalhadores). O Eduardo Marques diz: "exceto pela violência, as coisas melhoraram". Nos 21 bairros de periferia onde nós entramos,

quando perguntávamos para as pessoas quais são seus maiores problemas, elas diziam: "desemprego e violência". Claro que a heterogeneidade precisa ser pesada. Cada bairro é um bairro, cada perfil é um perfil. No entanto, eu, antropóloga, que achava que ia encontrar coisas diferentes em cada lugar, fui obrigada a dizer que de fato havia constantes sociologicamente relevantes, e essa questão do desemprego e da violência como a grande marca hoje da periferia foi uma coisa que encontramos com diferentes componentes, diferentes lógicas, em diferentes redes de sociabilidade, mobilidade, sistemas de valores. Uma grande coisa que apareceu para nós todos nessa periferia foi a noção de coragem, uma capacidade absolutamente extraordinária de lutar, em condições de vida muito duras, muito difíceis, sem, no entanto, perder a garra, inclusive porque tem uma grande parte de população que é migrante. Então, vir para cá, enfrentar a cidade, conquistar um pedaço desse território e fazer disso um lugar onde eu crio os m eus filhos é uma vitória, tem um valor muito grande: é o que dá a sensação de desafio e de que a gente venceu esse desafio. No entanto, a violência mudou; concordo em gênero, nú-

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mero e grau. Encontramos uma infinidade de relatos na periferia, principalmente entre jovens, que dizem: "pensando bem, acho que, dos meus amigos de infância, só sobrou eu". Efetivamente, temos uma generalização da violência, sobretudo nessa faixa entre os r8 e 24 anos, o que é uma tragédia da ordem da atualidade. No Jardim Rosana, que é vizinho do Jardim Ângela, a Igreja começou a agir nos anos 70, quando percebeu que morriam em média 14 jovens por semana. A Igreja achou que tinha que fazer alguma coisa e começou a organizar um clube de futebol, "Juventude com Cristo". Aquela molecada agora tinha outra coisa para fazer, e, de fato, começou a diminuir o nível de violência na região. Isso foi a base de uma organização para a negociação de melhorias mais substantivas em termos de infra-estrutura para a área, com as propostas de políticas públicas destinadas à periferia. Mas, como lembra a Alba Zaluar, citada no debate, pensar que o tráfico é algo que caracteriza a periferia, porque está marcando o lugar da violência, é uma visão d e fato míope, de quem não vê a rede inteira das relações que estão envolvidas no tráfico. Porque, na verdade, quem morre é quem está lá na ponta, na fa-

vela, mas o que sustenta isso é um outro universo, com uma outra lógica, transnacional, supralocal, que produz mudança, inclusive, nos padrões locais de sociabilidade, valores e todo o resto. Marcos Alvito [autor de As cores de Acari: uma favela carioca; Rio de Janeiro: FGV Editora, 2oor] estudou a favela de Acari e teve o privilégio, num certo sentido, de ver a mudança no padrão. Quando chegou lá encontrou um chefe do tráfico que o pessoal dizia que era "o último da linhagem do Tonicão". O Tonicão era uma espécie de bandido mitológico. Você perguntava: "Escuta, tinha bandido aqui nessa favela?" E ouvia: "Não, bandido não tinha". "Mas e o Tonicão, matava?". "Matava, mas matava quando precisava". E como é quando precisa, a gente contabiliza isso como? Pela quantidade de mortes, pela qualidade das mortes? Acho que era uma mistura dos dois, até porque o Tonicão, todo começo de ano, comprava caderno, lápis, fazia uma reunião, chamava todas as crianças e dizia: "Olha, vão estudar, porque eu estou aqui nessa vida do crime, essa é minha sina, mas eu quero um futuro diferente para vocês". Então, claro, esse era o tempo em que havia os "sujeitos-homens". O Jorge Luiz era o último da linhagem do Tonicão, era ainda um "sujeito-homem". Mas o


Jorge Luiz foi morto na rivalidade característica de controle territorial do tráfico e subiu, no lugar desse moço, o que o pessoal de Acari chama de "os meninos". Não tem mais "sujeito-homem", agora são "os meninos" que mandam. E vejam que coisa espantosa: o Jorge Luiz tinha nome, sobrenome e, quando ele morreu, parou a favela. O "x", o "menino", não tem nome. Quer dizer, ele não é um "sujeito-homem" não por ser cronologicamente um menino, como de fato é, mas porque ele se desvinculou inteiramente dos laços territoriais com a comunidade. O n egócio dele é ganhar dinheiro e, para isso, quebrou o vínculo comunitário e armou um outro esquema de relações sociais e da conduta do tráfico, baseada n esse valor da riqueza, que foi feita para ser ganha a qualquer custo, entre outras coisas, com uma violência enorme, porque se sabe que ali um deles não dura mais do que 18, 20 anos. Marcos Alvito viu essa mudança, de quando se tem um padrão de bandidagem ligado ao tráfico de drogas, mas que ainda mantém vínculos com a comunidade, e esse outro momento, onde o valor do business e do dinheiro, e a lógica de fora e não a de dentro, passaram a dominar as relações internas na favela.

Um dia o Marcos descobriu a nova gíria que se usava: "saco", "deu saco". "Deu saco" significa que os donos do tráfico não se conformavam mais em apenas matar, eles picavam o sujeito e botavam naqueles sacos pretos de lixo. Nesse mesmo dia ele presenciou uma cena absolutamente espantosa: um "menino", da chefia do tráfico, chegou para um pai de família-normal, que estava no boteco, tomando a sua pinguinha às seis da tarde-e disse para ele: "Bom, me disseram aí que você sujou as coisas", fez, enfim, algo que não deveria, "e você sabe que isso é complicado, isso dá saco". E o sujeito ficou absolutamente lívido, paralisado. Claro que ele não tinha feito nada, claro que ele não tinha envolvimento nenhum com o tráfico, mas, dentro dessa outra lógica em que o sujeito não tem mais vínculos com a comunidade, era possível perfeitamente que aquilo fosse uma ameaça. Se alguém tivesse dito que ele tinha traído alguma regra qualquer da gente do tráfico, ele corria o risco de ser morto, picado e posto no saco! E enquanto o cara ficou catatônico, imóvel e mudo, o outro começou a rir. Aquilo era uma piada! O humor, na verdade, estava revelando um novo padrão de percepção das relações internas ao mundo da violência, que tornava perfeitamente plausível não

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só a piada, mas também que o sujeito fosse de fato morto, picado e posto no saco. Marcos percebeu naquela hora que a violência não era apenas uma fonte de medo para as pessoas, mas que estava se transformando numa fonte de terror, no sentido que Michael Taussig fala da "lógica do terror", como uma violência que perdeu a regra, da perspectiva dos membros da comunidade. Vera Telles tem toda a razão quando mostra como as lógicas das formas de sociabilidade, dos valores que pautam a conduta das pessoas, dentro desse círculo local que a gente chama de periferia, se alteram, e surge uma outra dinâmica, que tem relação com uma lógica mais ampla, que é a do tráfico no seu conjunto. E, evidentemente, para os moradores da periferia, isso implica a necessidade absoluta de negociar, negociar e negociar o tempo inteiro. No começo do ano passado, participei, com o José Guilherme Magnani, da Expedição São Paulo, uma pesquisa com 30 estudiosos das mais diferentes formações, em que percorremos a cidade em zonas diferenciadas. Uma das coisas que mais me deixaram espantada foi ver meus colegas chegarem no Jardim Rosana e se indignarem, quando viram que o presidente da Associação

tinha boas relações com "os meninos do lado de lá". Meus colegas diziam: "Como? Vocês não estão legitimando a bandidagem e o tráfico?". Eu queria morrer de aflição, diante da incompreensão daquela situação. Porque em diversos lugares, em Heliópolis, por exemplo, encontramos situações nas quais esse pessoal do tráfico era visto como o melhor aliado de professores, dos pais de família etc., para combater o tráfico! E como colocar isso numa exposição? Explicar que a melhor solução para lidar com o tráfico e a violência é fazer aliança com o tráfico "do bem"? Não dá, né? Era uma coisa complicadíssima para mim. Mas, ao m esmo tempo, eu tinha entendido como era para aquelas pessoas a necessidade do convívio cotidiano com o tráfico e a violência. Isso me faz pensar em duas coisas-e aqui eu encerro: violência, num certo sentido, é uma linguagem. Ela se traduz em homicídio, ela se traduz nessa hecatombe pior que uma guerra civil, nessa mudança de padrão de sociabilidade, mas ela tem um aspecto simbólico que faz com que ela funcione como linguagem no sentido de um sistema de comunicação. Um código através do qual você cria um sistema de comunicação. O pesquisador que chegava no bar, antes, podia dizer: "Vim aqui para pesquisar".


Hoje, se não tiver todas as ligações certas com a gente da favela, nem entra lá. Mas, no fundo, essas pessoas também estão esperando que tenhamos essa visão delas. Eles esperam que a gente chegue lá e diga: "Oh, meu deus, a periferia é violenta". E eles mesmos dizem que é. No entanto, ao mesmo tempo, ouvimos em Heliópolis um pessoal da escola, de fora da favela, dizendo que, quando está chateado, quando acha que o mundo está muito ruim, vai lá para a favela, porque, lá, já de longe começa a ouvir a música nordestina e ver o povo com as cadeiras na porta, conversando. Isso é uma coisa que a gente não imagina que exista nessa periferia. Quando pensamos a pobreza apenas pelo âmbito das lógicas sociais do mercado de trabalho, do tráfico etc., esquecemos das pequenas coisas que também estão ancoradas numa história que construiu um outro modo de sociabilidade para essa gente da periferia, e é nesse contexto que é preciso pensar o novo lugar da violência. A violência resulta talvez de um embaralhamento de valores. Como se a vida comum no mundo da pobreza tivesse perdido o sentido, por causa de uma lógica que tem a ver com a falta de oportunidade: eu quero o tênis, o outro tem, eu não tenho etc.

Mas eu acho também que a violência tem a ver com uma lógica muito mais global, e não apenas com a "logiquinha" da periferia e da pobreza; tem a ver com essa outra lógica da modernidade e a extrema valorização e urgência de viver o presente e ter prazer a qualquer preço, mesmo que ele seja o valor da vida, dos outros e st mesmo.

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DEBATE

Reunimos a seguir algumas das principais questões discutidas, a partir de temas levantados por Maria Lúcia Montes ou pelo público do debate. itJ1a "no JD. ÂNGELA" ou "No JD. ÂNGELA': Maria Lúcia Montes

Esse debate traz à tona um tipo de reflexão de metodologia, de antropologia urbana, que nos faz lembrar daquela lição do [Clifford] Geertz: a gente faz antropologia na aldeia, e não antropologia da aldeia. A cidade, o Jd. Ângela, o Jd. São Luís, o que quer que seja, funciona como a aldeia a partir da qual a gente faz antropologia na cidade, investigando a lógica da cidade. Hoje os estudos sobre periferia e violência estão mostrando que a gente tem que repensar, seriamente, questões de metodologia de trabalho em antropologia urbana, porque o "modelito da aldeia" simplesmente não existe. Não é o Jd. Ângela em si o problema, é o Jardim Ângela com tudo o que a metrópole põe dentro do Jardim Ângela.

itJ1a POBREZAS DIVERSAS, HETEROGENEIDADE E LÓGICAS DA PERIFERIA,

Eduardo Marques É preciso enfrentar centralmente a relação entre pobreza e violência, como fez a Paula aqui. Se perguntamos se há relação direta entre os fenômenos da pobreza e da violência, a resposta é não. Há lugares onde há pobreza, mas não há violência. O modelo de ocupação espacial também não é radial-concêntrico, como a literatura sempre disse: há, nas periferias, classe média e até alta, o que contradiz o modelo que a literatura defende. Mas, no centro não há pobres. As exceções são muito poucas. No caso da violência também é assim: não há homicídios - ou uma grande parcela de "crimes por motivos fúteis", no jargão dos analistas-em lugares ricos. Então, há alguma associação entre esses dois fenômenos. Por outro lado, se a pergunta é se a pobreza está associada ao ciclo de produção da violência, temos uma perspectiva um pouco mais interessante. Porque ainda entendemos pouco sobre quais são os mecanismos de produção da violência, e quais são os mecanismos de produção da pobreza. Eu estou engajado em parte nessa tarefa e tendo a concordar com a Paula Miraglia sobre as comparações com o Rio de


Janeiro. Existe uma tradição de estudos sobre o tema da violência no Rio que produziu uma massa crítica importante e influente em todo o debate. Então, a gente tende a transpor, muito facilmente ou muito rapidamente, dimensões que talvez não se dêem da mesma forma no Rio e em São Paulo. Isso não quer dizer que não tenha tráfico em São Paulo, que não te~ha porte ilegal de arma ou assassinato, mas isso acontece de um jeito diferente. Só que a gente tem que entender melhor. A heterogeneidade não é o caos. Há um padrão, mas um padrão muito mais multifacetado do que a descrição dominante, que é herdeira de uma interpretação macro-sociológica e que virou senso comum.

Vera Telles Eu gostaria de desenvolver a questão da heterogeneidade. Os indicadores melhoraram, mas o que é que significa isso? Para cada um desses indicadores, temos atores, rede sócio-técnica e um conjunto de mediações. A paisagem da periferia, mesmo em lugares muito pobres, mudou. Mudou porque a maneira como os bens sociais, ou todos os outros, circulam, também mudou. A primeira vez que eu pus os pés na periferia foi há mais de trinta anos, para fazer "ação política" com estudantes da usP. Era

ibe

"fim de mundo" mesmo. Aquilo que os nossos entrevistados hoje falam, que aquilo era mato, era mesmo! Era uma aventura circular por lá. Hoje você tem a presença de grandes equipamentos, de consumo, de uma rede pública que atinge a periferia- mas é evidente que isso não significa qualidade do equipamento. E isso muda o jogo de atores, padrões de sociabilidade, o mundo social vai sendo tecido com outras mediações. Tem duas coisas que são proliferantes nas periferias: as igrejas, nas suas várias versões, e as associações ditas comunitárias, que se proliferam tanto quanto vão se fazendo presentes os organismos de intermediação dos poderes públicos, pelas parcerias. Porque a política pública, sobretudo municipal, é executada através das parcerias das "comunidades" (com muitas aspas). E, em relação ao associativismo, temos que desconstruir esse universo, porque essas várias associações respondem também a lógicas distintas, com histórias d e enraizamento no território também distintas. Desde que as políticas públicas foram municipalizadas- a lógica da cesta básica, o programa do leite, a entrada das ONGS, as parcerias-, parte da dinâmica local foi se alterando. Há desde

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entidades filantrópicas tradicionalíssimas, que se convertem e viram "terceiro setor", até uma área de influência do clientelismo velho de guerra do Maluf, que dá cesta básica, se credencia, e vira associação para poder disputar recursos para distribuir cesta básica e para poder fazer parcerias com a tal da entidade multilateral. No meio disso, negocia-se com o tráfico de drogas, com os perueiros etc. Temos que ver de perto esse novo associativismo, pois existem coisas muito diferenciadas se cruzando aí. Como a igreja, esse associativismo das ditas entidades também não é um fenômeno local. Passa pelo perfil das políticas sociais e pelo perfil das parcerias, das ONGs, das agências multilaterais que vão proliferando, porque há disputa de recursos e muitas temporalidades misturadas. Temos que entender esse fenômeno tanto quanto as igrejas pentecostais. A farta presença de mediadores está produzindo uma melhora de indicadores, mas é preciso analisar essas mediações. Elas causam impacto na dinâmica "local" - entre aspas porque já não é mais local-, são atores, redes de extensões variadas, mais ou menos verticalizadas. Teremos que entender melhor essas dinâmicas.

A questão da heterogeneidade do território foi bem situada pelo Eduardo. Ser pobre no Jd. Ângela, ser pobre em Cidade Tiradentes, ou ser pobre no Jd. São Luís não é a mesma coisa. São diferentes tempos de assentamento, de consolidação de histórias, de mediações de acesso à cidade. Então temos que colocar esses territórios na escala de relação com a cidade. O diagrama de relações e, portanto, de circulação, de mobilidade, de acesso, altera a experiência urbana. Eu digo isso porque eu faço pesquisa em Cidade Tiradentes e no Jd. São Luís. No Jd. São Luís, os garotos da favela, no fim de semana, vão para a Vila Madalena, para o shopping Morumbi. Só não vão para o Shopping Iguatemi, provavelmente pelas razões que nós também não vamos [risos] ... E quando eles pegam o ônibus, eles passam pela Berrini. Vai pegar ônibus na Cidade Tiradentes! Você cai na estação Bresser. A experiência urbana é outra. O acesso à cidade, a cidade que é mobilizada, a cidade dos meus sonhos e dos meus pesadelos é outra. Então a heterogeneidade é uma questão local, mas a gente também precisa reintroduzir a dinâmica da cidade, da experiência da cidade. De um ponto de vista muito concreto, daquilo que para


mim é definidor da problemática da segregação, que é o acesso, que envolve as escalas de circulação. Por exemplo, na zona leste, Cidade Tiradentes, eu fui descobrindo o quanto o circuito têxtil é estruturante das vidas desse território. Você entra lá e começa a perceber que o fluxo migratório clandestino, boliviano e coreano, está lá, acionando redes de contratação que, por sinal, são mediadas por quem? Pelas entidades, que vão aumentar os indicadores do associativismo local. Quer dizer, a cidade inteira está colocada numa dinâmica, numa história regional que é diferenciada, num território que é diferenciado, mas a gente tem que fazer um jogo de escalas aí para poder recuperar o sentido dessa heterogeneidade, porque senão a gente cai numa visão localista dessa heterogeneidade. Ela é qualquer coisa menos local, nesse sentido. Eu perguntava para os meus colegas do Núcleo de Estudos da Violência (NEv) por que o Jd. São Luís é tão violento, se há uma enorme cobertura de serviços lá. Mas o jogo da violência é outro porque no Jd. São Luís a promiscuidade da riqueza e da pobreza é brutal. Ali era o coração do movimento operário, o coração das igrejas. Virou uma região muito próxima da dita "cidade global": o pessoal pega uma perua e em 15 minutos está na Berrini, e em

na Vila Madalena; ali é um território de todas as conversões: era reduto do PT, virou reduto do Maluf; se a gente quiser fazer daquele lugar um observatório da reconversão econômica, da reconversão urbana, da complicação política anos 90 e da mistura de tudo isso numa dinâmica territorial muito diferenciada, podemos ficar dez anos pesquisando lá. r., Maria Lúcia Montes Eu só queria alertar pra uma coisa: o associativismo nas igrejas não é apenas religioso. Descobrimos que não tem uma única instituição na periferia que não seja multifuncional: igreja é ao mesmo tempo distribuidora de leite, tem trabalho d e reciclagem pra criança etc. Em Pirituba descobrimos uma escola de samba que, além d e distribuir leite, tem uma escola para crianças deficientes. Quer dizer, as coisas mais absolutamente impensáveis se juntam por causa disso que a Vera colocava: a possibilidade de ter recursos e poder ter a legitimidade local negociadora, diretamente proporcional à capacidade de mobilizar recursos através dessas parcerias. Então não só a igreja não é uma forma exclusiva de associativismo, como nem a igreja é apenas igreja. Talvez, no caso das pentecostais, elas tenham uma dinâmica mais voltada para sua

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própria comunidade, num ciclo de ajuda mútua que não abre para essa rede social mais ampla das parcerias, como a gente encontra nas outras. Mas, enfim, igreja católica ou escola de samba, na verdade elas funcionam do mesmo jeito. Ou você multiplica as vias de acesso a recursos-e, portanto, multiplica a legitimidade para poder negociar em nome da comunidade-ou você deixa de existir nessas lógicas da periferia. r., HETEROGENEIDADE E CRIMINALIDADE, Pau/a Mirag/ia Voltando ao tema da distribuição da criminalidade em São Paulo, ela ocorre de maneira invertida: os crimes contra a pessoa estão concentrados na periferia, enquanto os crimes contra o patrimônio, no centro. Assim, o risco de morrer é muito pequeno no centro. A taxa de homicídios em Perdizes, onde eu moro, é algo entre 2,0 ou 3,0 para cada 100 mil habitantes. Sabemos que o medo, no entanto, é bastante democrático; se a criminalidade não afeta todo mundo de maneira igual, o medo acaba afetando, independentemente de você correr o risco ou não, e acaba orientando os padrões de sociabilidade, você vivendo na periferia ou não. Isso, no entanto, não é a regra e por isso é tão importante o exercício que estamos tentando fazer aqui. A Alba Zaluar

tem um estudo muito interessante sobre três bairros cariocas com perfis sócio-econômicos diferentes. O que o estudo mostra é que, comparativamente, os bairros mais pobres são os mais vitimizados pelos crimes contra a pessoa, mas, diferente daquilo que estamos falando sobre São Paulo, também são os bairros com as maiores taxas de crimes contra o patrimônio. Como pensar, nesse caso, o papel da pobreza? r., LEGAL E ILEGAL, Vera Telles Vou falar de uma observação de campo, nos lugares onde há, por razões longe de serem evidentes, muita concentração de mortes violentas e, portanto, de histórias de famílias com seus homens encrencados-para dizer o mínimo-, alguns deles presos. Tem toda uma mobilização de território que gira em torno da prisão, porque tem o policial que faz extorsão, porque tudo funciona na base da corrupção, para entrar dinheiro, para entrar cigarro, para conseguir proteção para o cara que está lá dentro. Tem um fluxo feminino que se organiza para garantir os seus homens na prisão. Com isso eu cheguei à conclusão de que prisão, hoje, é fluxo urbano. Tem os que saem evangélicos, os que montam grupos de rock, tem os que saem para pegar o controle da boca, os que saem


para o "bem", tem de tudo, mas de alguma maneira isso tudo forma uma trama muito intrincada porque as pessoas moram lá. Existe uma espécie de economia solidária, fortíssima, para garantir os seus homens presos e lidar com a extorsão da polícia, que é brutal. A rede é meio fractal. O sistema penitenciário é fluxo urbano onde tudo se mistura. r.;,. Maria Lúcia Montes O que são essas fronteiras entre o que é o legal e o ilegal, que se misturaram de um jeito tal, como nesse caso específico? O que você faz quando o sujeito que é o representante da lei e da ordem se torna o agente da corrupção? Você criou um sistema de uma tal complexidade de relações que é difícil saber o limite entre uma coisa e outra. Se os governantes lá em cima são os que burlam a lei, por que a gente não pode fazer o mesmo? Agora, eu te digo, fazer o mesmo, para "os de baixo", não é, necessariamente, organizar a violência. A pequena corrupção, o "jeitinho", tudo bem , acho que virou uma característica nacional e isso é uma grande reflexão para uma antropologia política e para uma ciência política. Mas o pressuposto de que antes a violência estava concentrada "neles

e com eles" e agora está nos atingindo, e que isso implica uma redistribuição geral de renda, eu acho que é uma visão meio Robin Hood do que é o banditismo na periferia, porque, na verdade, quem morre são eles, não somos nós. r.;,. Paula Miraglia Acho que a criminalidade é extremamente autoritária, e não podemos ter uma visão ingênua ou romântica, que já foi muito comum algum tempo atrás, tal como "criminalidade sustenta a família". A criminalidade é autoritária, impõe toque de recolher, decide quem pode e quem não pode ter arma, ela decide quem vai e quem não vai morrer. E talvez hoje esse aspecto seja muito mais proeminente do que era antes. Porque há tudo o que foi descrito-ausência de serviços básicos, acesso comprometido aos bens etc.-e você é obrigado a conviver com o tráfico e enxergar ali algum tipo de benefício. Eu gostaria de completar dizendo que é de fato importante olhar criticamente para a polícia, sabendo que ela é corrupta e, muitas vezes, está de mãos dadas com o tráfico-aquilo que o Luiz Eduardo Soares chama de "banda podre"-, mas tem uma parte da polícia que é vítima da incapacidade da própria polícia

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de garantir a lei. Isto é, você tem o policial que mora na periferia do lado do bandido, que não seca a farda no varal, mas sim escondido, porque o vizinho não pode saber que ele é policial, e que volta de ônibus e, portanto, não pode voltar fardado para casa. Tudo isso porque tem medo de ser descoberto policial e sofrer represálias na própria comunidade. Nesse sentido, podemos dizer que a perversão do sistema é completa; não dá para pensar só em um lado. ~CONTRATO sociAL À BRASILEIRA?, Paula Miraglia É difícil pensar num "Contrato Social à brasileira". Eu particularmente sou partidária e defensora do Estado de Direito e não quero pensar que no Brasil esse modelo esteja descartado. Agora, não é um modelo estático e precisa ser compreendido de acordo com as dinâmicas impostas por novos padrões de sociabilidade. ~Maria Lúcia Montes Eu fui cientista política por quinze anos, quer dizer, eu não posso deixar alguém dizer que este é o "nosso Contrato Social à brasileira" porque, como disse a Paula, eu também acredito no Contrato Social. Agora, estudar política clássica é bom por causa disso, porque tem várias versões de Contrato Social, o que permite pensar perspectivas diferentes para o que significa o compromisso de

viver em sociedade. Dizer "o circuito do tráfico financia a cesta básica": para quem, cara pálida? Não é bem assim. O tráfico não é uma instituição benemérita de natureza social da mesma forma que a escola de samba que mantém a escola pra criança. Porque, na verdade, a rede de tráfico se legitima por esse tipo de ação social, mas não impede que a contrapartida dela seja o que a Paula levantava: é uma instituição autoritária que determina quem tem arma e quem não tem, e no limite quem vai ou não vai morrer. O que é o Estado? É o monopólio legítimo da violência. Por que você faz o contrato social? Para dizer que, em algum lugar, alguém tem o direito de exercer a violência para garantir a igualdade dos direitos dos cidadãos. Eu acho que o que se passa é o resultado perverso de um processo de formação histórica de uma sociedade que nunca explorou suficientemente o que o [Raymundo] Faoro analisou com relação ao processo de formação da sociedade brasileira, a persistência do seu caráter estamental, e a natureza patrimonial-burocrática do poder político. Burocratizaram-se as relações privadas, fazendo com que elas tomassem conta do Estado, e nesse sistema se privatizou o Estado. Eu acho que a gente quer devolver a função pública ao Estado.


O que a gente está vendo hoje é um processo lento, complicado, difícil- você tem 400 anos de história que têm que ser mudados. Agora o pacto social necessário é outro, é de outra natureza, é para garantir direitos de cidadania, e não apenas o direito de receber os benefícios da rede do tráfico, por exemplo, na medida em que eu legitimo o poder do traficante. E também não são os benefícios dos gângsteres da política de Brasília, que a gente legitima com votos. Temos que refundar essa coisa. it;P Eduardo Marques Uma parte do que a gente vê- na verdade esse é o meu campo principal de estudo, da relação com o Estado, das políticas públicas- é o avanço do Estado. Desde 1982, o que se vê é um processo paulatino, crescente, cumulativo, complexo; sofrido, mas existente, real-de construção do Estado. Sob o ponto de vista das prerrogativas do cidadão, do monopólio da violência legítima e dos direitos, principalmente civis, esse processo diz respeito à construção do Estado de Direito, mas em muitas outras frentes diz respeito ao Estado Social. Repetimos recentemente uma pesquisa feita em 1994, por amostragem, com os 40% mais pobres na cidade de São Paulo, so-

bre o acesso aos serviços públicos. Algo gritante se mostrou logo no início: queríamos fazer um questionário com perguntas semelhantes às de 1994, para poder comparar. Mas não dava. O leque de políticas que o Estado emprega hoje é inteiramente diferente do anterior. Não quero dizer que seja ótimo, mas é um processo de construção do Estado, e a gente tem que estar orgulhoso de participar desse processo. Ele não se faz no nada, mas a partir da mudança na relação entre Estado e Sociedade, que tem a ver com o que estudou o Faoro, mas também com a história mais recente, com a ditadura militar, tem a ver com o imbricamento da esfera do público e do privado, com diversos tipos de permeabilidade, tem a ver com o insulamento burocrático e o corporativismo.

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Como sobreviver na favela

MV Bill

coo, Juramento, Borel, Rocinha, Formiga, Alemão, Caixa d'água, Jorge Turco, Mineira, Coroa, Santa Marta, Cantagalo, Vigário Geral, Salgueiro, Acari, Parada de Lucas, Grota, Providência, Serrinha, Fubá, Mangueira. Em qualquer favela tem que seguir as ordens, sem vacilação pra não virar finado. Aí, playboy ao entrar numa favela você sente que está sendo vigiado I coração acelerado, você fica preocupado I porque tem uma lei que impera no lugar I e se você ficar de bobeira a chapa pode esquentar I a primeira ordem não pode ser Juda I tem que ser irmão se não leva tiro na bunda I tem que respeitar toda a malandragem I se não para o inferno vão te dar sua passagem I o último que tentou dar volta na parada I levou tiro de fuzil e foi parar dentro da vala I otário na favela é chamado de bundão I tarado quando não morre perde o pau e perde a mão I quando tiver na bola da vez não tem como pedir socorro I essa lei tem favela também tem em qualquer morro I no lugar em que você mora você é o gostosão I na favela tá quietinho, cuzão I não vá se en-

ganar com marra de malandro I quando o bicho pegar eu quero ver você trocando I se amarelar se escondendo atrás do armário I vai provar que você não passa de mais um otário/ não mexa com as minas com mina de ninguém I ou arrumam suas malas ou te mandam pro além I se você ficar na sua ninguém mexe com você I mas se falar demais na certa vai morrer. Se vacilar o bicho vai pegar I tiro daqui, tiro de lá I Pá-pá-pá I Se vacilar o bicho vai pegar. I coo não tem lei, não é bom duvidar. [ ... ]


Tráfico e campos de concentração

Thiago Rodrigues

Ergueu-se a muralha I Em volta do povo: I Bodes se matavam I Chifre contra chifre FERNANDO PAIXÃO

~I

Em São Paulo, cidade sem horizonte, os olhos se perdem em periferias. Elas formam uma paisagem monocromática e intrincada, aparentemente inexpugnável com suas vielas, cantos, sombras. Para os que vivem nos bairros centrais as periferias são territórios vedados, terras ignotas de onde provém o perigo traduzido em violência, criminalidade, imundície e miséria. Encasteladas, as classes média e alta paulistanas temem. Sentem-se cercadas por uma horda que as pode seqüestrar, matar, roubar. O medo às ditas "classes perigosas", sentimento de base das sociedades liberais, é potencializado em metrópoles como São Paulo pela paúra difusa representada pelos "males", "vícios" e toda sorte de degenerescências que são locali zadas nas favelas, conjuntos habitacionais e nas miríades de lajes que ondulam ao longe. Esses

espaços são percebidos, sustenta Lõic Wacquant, como "depósitos de pobres, anormais e desajustados" que devem ser evitados "pelos de fora" (2001: 33). Em cidades como essa, a demarcação do território estabelece campos de circulação, moradia, trabalho e lazer para todos os segmentos sociais. Se há lugares intransitáveis para os do centro, o mesmo acontece para aqueles nas fronteiras, o que instaura uma lógica bastante rígida de exterioridades: existe sempre o de fora, o que não pertence, o inimigo contíguo contra o qual se guerreia uma guerra civil originária, a de extravasamento do "ódio naqueles que se conhecem, nos vizinhos" (Enzensberger, 2002:09). Admitir a guerra civil na metrópole não deve significar aqui uma adesão ao senso comum amplificado pelos media que denuncia o caos, a perda da cidadania, a exclusão e a violência como "anomia social". O lhar para o cotidiano como g uerra pretende realçar as cores de uma batalha ininterrupta entre o virtuoso e o condenável, entre o correto e o desviante, entre o legal e o ilegal que são todos duplos indissociáveis, complementos irredutíveis a uma solução pacificadora. Em outras palavras, a periferia e seus homens e mulheres não estão excluídos; ao contrário, são parte constitutiva de

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uma sociedade que integra e chama a participar ao mesmo tempo em que isola e localiza. A periferia não é uma outra dimensão ou um pré-mundo às portas da civilização. Ela está incluída, porque a "informalidade" e a "criminalidade" que nela existem não são uma negação do capitalismo ou da ordem social; em sentido oposto, são imprescindíveis para que se firmem, justamente, a economia e os estatutos legais e morais. Essa inter-relação é mais evidente quando se repara em uma das principais práticas ilegais identificadas com os bairros pobres: o tráfico de drogas. Uma breve análise do narcotráfico nas parcelas miseráveis das cidades, com seus combates internos e com o Estado, é um caminho interessante para notar que a periferia é engrenagem e não imperfeição. itJioii

Ao estudar os modos como o narcotráfico no continente americano se organiza a partir dos anos 1980, os sociólogos colombianos Ciro Krauthausen e Luis Sarmiento (1991) apontam uma interpretação que afronta a difundida idéia de que os grupos traficantes colombianos teriam formado grandes cartéis que, como indica o termo, poderiam determinar preços nos mercados consumido-

res. Os autores contestam essa tese ao perceberem no narcotráfico formas muito mais descentralizadas de estruturação e fases mais ou menos definidas que separariam os grupos dedicados à produção de folhas de coca e pasta base, os refinadores da pasta em cocaína pura, os atacadistas internacionais e as organizações varejistas. Nesse panorama mais complexo e diversificado, grupos como o de Pablo Escobar-talvez o mais conhecido dos traficantes colombianos dos anos oitenta-estariam bem postados no que os sociólogos chamam de setor oligopólico, caracterizado pela grande influência nas instituições estatais destinadas a combater o narcotráfico, importante mobilização de recursos financeiros, participação em negócios nos ramos legais da economia e pelos contatos valiosos com os principais canais de distribuição internacional de drogas ilícitas (Rodrigues, 2004: r89). O setor oligopólico seria circundado por duas etapas de um outro setor, nomeado competitivo, composto, numa das pontas, pelas organizações dedicadas à produção de pasta base e, no outro extremo, pelos g rupos dedicados à venda da cocaína refinada ao consumidor nos centros urbanos. A diferença maior entre os setores seria a quantidade de atores envolvidos: poucos no oligopólico, muitos no competitivo.


A existência de variados negociantes ilícitos em competição faria desse último o mais violento. Tendo em mente tais noções, poderíamos entender os enfrentamentos entre facções traficantes em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo como embates produzidos na busca pela consolidação de espaços de autoridade. A conquista de favelas ou "quebradas" - a espacialização do narcotráfico-é uma urgência para que grupos como o Comando Vermelho (cv) e o Primeiro Comando da Capital (Pcc) sobrevivam. Um território estável garante segurança para as operações de recepção, preparo e venda de psicoativos proibidos, indica alguma proteção aos chefes e operadores dos negócios ilegais e aponta às empresas narcotraficantes fornecedoras que existe certa previsibilidade de que a mercadoria será bem armazenada (e não confiscada) para ser, depois, vendida, assegurando sua remuneração. A construção de bolsões de autoridade dá a dimensão da importância para o narcotráfico em manter territórios estáveis, o que não significa que os traficantes visem apenas a consolidação de domínios para satisfazer vagas pretensões de "acúmulo de poder". O cuidado com o território é fundamental para a saúde do aspecto empresarial do negócio com drogas ilegais.

A atenção ao território é estendida à sua população, num movimento complementar que conjuga imposição de normas e assistencialismo. O traficante rege um alvéolo de autoridade provendo e coagindo. Nas favelas e periferias, o dono da boca legisla e executa leis que visam manter uma ordem e a colaboração dos moradores. Há ganhos de ambos os lados quando, por exemplo, um morador recebe remédios que não poderia comprar e o traficante conquista, assim, sua obediência e promessa de silêncio. A violência é recurso primordial, mas não vem só: está acompanhada de medidas provedoras que, mais além da roupagem benemérita, são centrais para que seja erguida uma forma de poder soberano. Nesse sentido, os alvéolos de autoridade narcotraficante reproduzem as estratégias do Estado que combinam, como demonstra Michel Foucault (1998), coerção e cuidado como itens não negligenciáveis para que se possa governar. Os grupos narcotraficantes têm em comum com o Estado a meta de garantir a sobrevivência da soberania e expandi-la se possível. No caso do tráfico, expansão significa mais negócios, mais solidez. Daí a troca de tiros, as invasões e as "guerras do tráfico" diariamente noticiadas. A lógica da territorialização do narcotráfico em seu setor

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competitivo pode fazer com que se evoque a imagem do "Estado paralelo" e ela pode ser interessante se repararmos que não se trata de um "Estado à margem" do Estado de Direito, mas uma forma-Estado que vive nas brechas, nos interstícios de um Estado que não é ameaçado (em termos de sobrevivência soberana) pelas autoridades traficantes e que declara e mantém uma guerra - a guerra às drogas-incapaz de atingir seu objetivo que é a erradicação do consumo de algumas substâncias lançadas à ilegalidade há apenas algumas décadas. Os alvéolos de poder traficante não estão em competição aberta com o Estado, não querem tomá-lo ou d errotá-lo. Vivem na sombra que esse mesmo Estado criou, já que o tráfico existe somente a partir do momento em que todo um mercado é lançado por decreto na ilegalidade. A história da proibição às drogas hoje proscritas é recente e remonta ao início do século xx, quando um complexo cenário que aglutinava iniciativas diplomáticas e redimensionamentos das capacidades de governo e gestão dos Estados ocidentais produziu a fórmula do banimento legal para inúmeros psicoativos-postura defendida pelos Estados Unidos e encampada internacionalmente-que não obteve o resultado pretendido (McAllister, 2000). Ao con-

trário, o proibicionismo, ao se universalizar, levou à construção de um potente mercado ilícito dessas drogas que, apesar da restrição e repressão, continuaram a ser desejadas e consumidas. Nesse sentido, cabe problematizar o bordão bastante difundido no Brasil de que o "consumidor sustenta o tráfico". Dessa outra perspectiva, notamos que quem produz o narcotráfico não é, propriamente, o traficante (a "oferta") ou o consumidor (a "demanda"), mas a Proibição (Rodrigues, 2003). O abalo à lógica da guerra às drogas-que posicionao traficante como criminoso e o consumidor como vítima - deve ser seguida da crítica à localização do tráfico como uma prática de "marginais" pertencentes aos tradicionais estratos "perigosos". O tráfico não tem vida autônoma em periferias ou favelas e não envolve apenas negros, pobres, miseráveis, "excluídos". O legal e o ilegal partilham ganhos, se retroalimentam, cerram fileiras: o mercado financeiro e os narcodólares, a indústria de armamentos em suas inte rfaces (com o Estado - aparelhando as divisões anti-tráfico - e com os traficantes, alimentando seus arsenais), a indústria farmacêutica que fornece insumos para a produção de drogas ilícitas e vende psicoativos similares aos proibidos mas patenteados, diversos


ramos da economia legal (setor imobiliário, agronegócios etc.) que lavam dinheiro e potencializam lucros. Há, desse modo, não propriamente um "paralelismo" entre tráfico de drogas, Estado e economia legal, mas uma simbiose cujas relações se m anifestam em inúmeros espaços, dentre eles o campo de violências das periferias. O tráfico não articula uma "integração perversa" (Zaluar, 2004), mas outra plena de positividades. r.,.

III

Existe, hoje, uma vontade indeclarável, um murmúrio que reza: "a periferia deve ficar onde está e as pessoas que nela vivem também". As linhas de metrô levam ao centro e devolvem à periferia. As grandes avenidas e os corredores de ônibus, com seus traçados radiais, cumprem o mesmo. A periferia deve existir e permanecer sob controle. Dela vêm os braços que trabalham na indústria, nos serviços, nos afazeres domésticos. Nela vivem eleitores que votam. Nela assiste-se televisão e se consome. São milhões que não devem ser eliminados, mas retidos, observados, docilizados. Precisam ser atendidos pelo Estado e pelas ONGs que levam aparelhos culturais, projetos de capacitação profissional, programas de inclusão (cidadã, digital, cultural), com o intuito de humanizar a

vida na periferia, oferecer dignidade, saúde, oportunidades. Quem hoje discorda que a periferia deva ter opções de lazer? Mas quem admite que não quer "periféricos" tendo lazer no centro? Quem não localiza o tráfico de drogas como um mal que prolifera a partir de becos e vielas sem esgoto? Conservadores podem afirmar que o tráfico brota na periferia e nas favelas porque essa população está perdida em "promiscuidade", "falta de valores" e "falta de medo da Lei". Progressistas podem destacar que a falta de caminhos e a pobreza assustadora fazem do tráfico não uma escolha de "desviados", mas a única chance para "desenganados". A má consciência fala - e fala de falta, carência, ausência. E a periferia permanece. O tráfico de drogas é importante nessa manutenção da periferia e dos bairros pobres. Ele, a um só tempo, ocupa jovens que o mercado formal não absorve e os fixa aos territórios miseráveis. Traficantes favelados não circulam livremente pelas áreas ricas das cidades e, portanto, ficam lá de onde não devem sair. Em simultâneo, a dedicação a esse crime tão severamente reprimido (e visto pela sociedade e pela lei como "hediondo") instaura mais um instrumento para a captura de indivíduos que estão sob a mi-


ra constante de um Estado penalizador e que aplica seletivamente a "Lei para todos" (Christie, 1998). Além dos crimes contra a propriedade e a pessoa, negros, miseráveis, favelados podem, agora, ser presos por mais um crime, este com pouco mais de oitenta anos de vida: o tráfico de drogas. Tipo de crime "jovem" e que visa jovens pobres, negros, mulatos, nordestinos (Batista, 2003; Guimarães, 2003). Jovens ameaçadores que são lançados no sistema prisional (Febem e sistema penitenciário) ou que se matam disputando bocas, ruelas, territórios. Vivem todos em "regiões-problema", como indica Wacquant (2001), que são fechadas, vedadas como novos campos de concentração sem cercas, o que também é possibilitado pelos novos métodos de controle a céu aberto (coleiras eletrônicas, rastreamentos remotos) que tornam possível praticar penas alternativas, ou seja, castigo sem reclusão em prisões (Passetti, 2003). No documentário Notícias de uma guerra particular (1999), de Kátia Lund e João Moreira Salles, há uma entrevista com o então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Hélio Luz, na qual declara que as críticas à ineficiência da política de segurança pública na capital fluminense eram infundadas. Isso porque,

dizia o policial, as forças repressivas do Estado estavam a postos e cumpriam seu papel que era, tão-somente, evitar que os favelados descessem para "o asfalto". Emendava, afirmando que se o Brasil fosse, de fato, um país violento, haveria uma inundação do "asfalto" pelo "morro". Poderíamos acrescentar, do centro pelas periferias. As notas de revolta com a situação das periferias e com a violência do tráfico-como se pode encontrar em Ferréz (2ooo) ou Soares, MV Bill e Athayde (2005)-são testemunhos que parecem não perceber as positividades que a existência da periferia, como espaço de miséria e morte a ser cultivado, gera para a permanência do Estado, da concentração de renda e da segregação de classe e raça. Assim, restam apenas como tristes reportagens ou denúncias que torturam espíritos caridosos. Recente pesquisa da Fundação Seade, de São Paulo, apontou a oscilação no índice de homicídios dolosos (intencionais) por wo mil habitantes entre 2000 e 2004, construindo uma cartografia que atribui cores por intensidade aos distritos paulistanos. A maioria absoluta dos distritos periféricos-das regiões norte, sul, leste e oeste-entram nas categorias "de 26 a 50 homicídios/wo mil habitantes" ou "acima de 50 homicídioshoo mil habitantes".


Os bairros nobres ficam, em sua maioria, na categoria mais amena- "de o a 25 homicídioslroo mil habitantes" (FSP, oslo7hoos, C7). Quem se mata nesses bairros? Quem está neles preso? O tráfico de drogas, ocupação importante de jovens que se matam, são mortos ou presos pelo Estado, atravessa periferias intermináveis que se estendem a perder de vista. Elas cumprem um papel preciso; são confinamentos, matadouros e valorosas peças para a sustentação do modelo político-social contemporâneo. São campos de concentração sem cercas onde o tráfico é apenas um elemento. Sem ele, as periferias permanecem. Com ele, permanecem mais firmes. E olhos lacrimosos não as percebem m elhor.

Rio de Janeiro: Forense, 1998. ENZENSBERGER, Hans Magnus. Guerra civil. São Paulo: Companhia das L etras, 2002. FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: L abortexto Editorial, 2000. FOLHA DE s. PAULO. "Índice d e ho micídio cai em bairro m a is rico", 05 de julho de 2005, c7. FOUCAULT, Mich e l. " A governa m e n talidade" in M icrofísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998, pp. 277-293· GUIMARÃEs, Eloísa. Escolas, galeras e narcotráfico. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003 . KRAUTHAUSEN, C iro & SARMIENTO, L u is. Coca & Co.: un negocio ilegal por dentro. Bogotá : T e rcer Mundo, 199 1. MCALLISTER, William. D rug diplomacy in the twentieth century . Nova York: Routlegde , 2000.

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Memórias de um sobrevivente

Luiz Alberto Mendes

O frio era enorme. Abriram o guichê, e apareceu a cara de um preso. Mesmo envergonhado de estar nu, fui até a porta. Era o faxina e estava distribuindo água. Deu-me um copo de plástico cheio de água, e disse que ficasse com o copo. Perguntei por que viera parar ali. Não sabia. Afirmou que logo sairia publicado no Boletim Diário e saberíamos. Trouxe o recado de que o Carlão estava dizendo para que eu tirasse a água da privada para ligar o telefone, queria conversar comigo. Explicou que o Carlão morava em frente e que o encanamento das privadas era um canal de ligação, de comunicação. Seus olhos passearam, gulosos e maliciosos, por meu corpo nu. Aquilo me ofendia profundamente, mas eu nada tinha para me proteger, e dependia do filho-da-puta. Disse que à noite me traria rolos de papel higiênico para que me protegesse do frio. De manhã, os apanharia de volta, pois que o Choque viria revistar as celas-fortes logo cedo e à tarde. Se pegassem o papel, ele viria nos fazer companhia na cela-forte também.

Ainda surpreso, tirei a água da privada e já escutei o maior burburinho. Uma voz perguntava quem é que estava ligando o telefone. Imaginei que fosse comigo e respondi. Era o Carlão quem perguntava. Era o sujeito que fizera a chacina, a primeira rupa da Penitenciária. Não o conhecia. Como todos, queria saber por que eu estava ali. Não sabia. Pensou um pouco e perguntoume se eu matara alguém na Detenção. Então era isso. Esse era o motivo. O Tico também, ao chegar, já fora para a cela-forte como eu, sem motivos. Só posteriormente esclareceram, era por conta dos dois crimes que cometera na Detenção. Mas eu já cumprira dois meses de castigo, estava sumariando o crime, já fizera a declaração no juiz, como podia aquilo? Carlão me fez lembrar que a polícia era assim mesmo: tinham enorme prazer em nos fazer sofrer e não perdiam a oportunidade. Por exemplo, ele já estava condenado a mais de cinco anos de cela-forte. O frio da noite já estava chegando, eu tremia, os dentes batiam descontrolados, e os ossos do pé doíam em contato com a cerâmica do chão. O que fazer? Estava entrando em desespero, então não era um engano. Mas que injustiça! Carlão me orientou para que, quando o faxina me desse o papel higiênico, me


enrolasse como uma múmia para dormir. E, para ter sono, era preciso fazer ginástica o tempo todo. Cansava e mantinha o corpo aquecido. Disse-me que ficaria acordado a noite toda, con versando comigo, e que dormiria de dia. Que o chamasse sempre que qmsesse conversar. A nossa legião de jovens que constituía a nova geração da prisão era muito solidária, embora extremamente violenta , enlouquecida. Conversamos mais um pouco, m as o frio com eçou a endurecer m eus pés. Iniciei um a corrida na cela. C ansei, suei, mas a solidão era pior, voltei para a privada. L ogo apareceram outros companheiros na linha. O encanamento vinha lá do quinto andar do meu lado e do quinto andar do lado do Ca rlão. As celas eram tipo geminadas . O s enca namentos de água, esgoto e dos fios de eletricidade eram pa ra cada coluna de duas celas por andar até o porão. E ntão, do meu lado, dava pa ra liga r para dez celas, e do lado do Ca rlão, para mais dez. Era o telefone, nosso fétido veículo de com un icação. O cheiro era terrível, era preciso ter estômago. Só podíam os nos comunicar de m adrugada, quando os guardas dormiam; era proibido e aumen tava o castigo, caso fôssemos pegos.

A potência terapêutica dos agentes comunitários de saúde

Antonio Lancetti

U m a agente comunitária de saúde vai a um dos m ais de du zentos domicílios que visita pelo m en os u ma vez por m ês. A dona de casa atende visivelmente angustiad a. À mesa, se rvido Racu mi n, o popular veneno de ratos. -Mulher! O q ue é isso?! Q ue acontece com você? A senhora desan da a chorar e responde: -Meu m a rido foi m orto, estou desem pregada, fui despe jada de casa e não tenho o q ue dar de com er para estas crianças. O q ue vou faze r com q uatro crianças na rua? Um dos q uatro é deficiente e realmente n ão havia o que da r d e comer pa ra eles. A agente de saúde recolheu o Racum in, ch am ou u ma vizinha para que cuidasse da mulher e das crianças e foi pa ra a unidade de saúde. O méd ico de fa mília de sua equipe era resistente ao Prog rama de Saúde Me ntal, boicotava as reun iões d e d iscussão de


casos previstas pela metodologia de trabalho conjunto. Ele disse à agente, que não entendia nada de psiquiatria, que encaminhasse o caso para algum lugar onde houvesse um serviço especializado. Pouco tempo depois esse médico foi desligado do Projeto. A agente procurou então o diretor da unidade de saúde. Tentaram novamente falar com algum dos integrantes da equipe volante de saúde mental. Uns estavam fazendo um curso com o celular desligado, outros atendendo outras emergências. Eram só seis pessoas: dois psiquiatras, uma assistente social e três psicólogas que trabalham em parceria com vinte e duas equipes de saúde da família. Essas equipes cuidam, aproximadamente, de cem mil pessoas. A agente e o médico que gerenciava a unidade de saúde ligaram para o Conselho Tutelar. Os conselheiros tutelares são os tutores das crianças, escolhidos mediante eleição direta, que o Estatuto da Criança e do Adolescente (EcA), de 1990, instituiu para fazer cumprir direitos que a família, a sociedade ou o Estado não praticam. Como reza o artigo 227 da Constituição brasileira: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, exploração, violência, crueldade e opressão". O professor Antônio Carlos Gomes da Costa, um dos autores do ECA, conta que a redação final foi feita por um poeta. Nesse contexto, os conselheiros tutelares herdaram o poder dos juízes no que se refere à aplicação das medidas protetivas. Mas como nem todo mundo é sensível à poesia, os conselheiros tutelares disseram que estavam muito ocupados e não poderiam acudir a senhora e sua família. Procuraram então o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (cEDECA). Pouco tempo depois chegou um educador do CEDECA e juntos foram até a família. O educador propôs que a agente conseguisse uma ordem de internação para a mãe e ele se comprometeu a batalhar por quatro vagas em algum abrigo de crianças. A agente disse que não era isso que ela tinha aprendido durante os anos em que foi capacitada para operar em saúde mental. Ela achou um absurdo mandar para um hospício uma mulher que


vivia tamanho drama e, ainda mais, separá-la de suas crianças. Ela disse para o educador que ele poderia ir embora, pois ela iria resolver o problema de outra maneira. O posto fecha às dezenove horas e já era noite. A agente foi a um pequeno supermercado e pediu ajuda para a dona. A senhora se comprometeu a passar uma cesta básica durante dois anos, desde que não contasse o fato para ninguém. Foi à casa da família com a primeira cesta básica e, não satisfeita com seu labor, procurou o proprietário do imóvel e conseguiu suspender o despejo. Na época, eu era coordenador do Programa de Saúde Mental do Projeto Qualis que foi a primeira experiência do Programa de Saúde da Família (PsF), numa cidade de altíssima complexidade como São Paulo. Era época da prefeitura de Pitta e do Plano de Assistência à Saúde (PAs), criado por Paulo Maluf mediante uma lei que dava a concessão do serviço público de saúde a cooperativas médicas: dessa forma, a cidade deixava de receber os repasses federais, não havia conferências de saúde nem conselheiros que fiscalizassem. São Paulo não tinha ainda Sistema Único de Saúde (sus).

O professor Adib Jatene convenceu o governador a trazer o PSF para cidade de São Paulo. Foi criada a condição para financiar a experiência com parte do dinheiro que a cidade não recebia por estar descredenciada do sus, e foi chamado David Capistrano, um dos maiores sanitaristas e homens públicos brasileiros, um revolucionário, para dirigir o Projeto. O Projeto Qualis foi um laboratório que lamentavelmente nem os tucanos nem os petistas (que tiveram o valioso mérito de trazer o sus à cidade) entenderam, tampouco continuaram25. Quando entrei em contato com a história do Racumin fiquei alegremente surpreso. Como velho terapeuta, lembrei que 25

O conceito fundamental para David Capistrano e sua equipe, da qual tive a sorte de fazer parte, era fazer uma experiência integral. Além das equipes de PSF

com médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem e agentes comunitários,

o Projeto Qualis iniciou-se com ambulatórios de especialidades, programas de sa úd e bucal. saúde mental , de prevenção a

AIDS,

protagonismo popular, ati-

vação de múltiplos coletivos e enunciação coletiva. Isso sem falar no investimento formativo e afetivo nos agentes comunitários de saúde e nos outros profissionais.


os melancólicos se suicidam quando estão bem e não quando estão mal. Pedi então à agente que me acompanhasse para ver a família. Ela me respondeu que naquele momento seria impossível, pois a senhora estava trabalhando, com carteira assinada, numa das poucas fábricas da região. Outra agente comunitária consegue conversar com uma esquizofrênica que era mantida pela família em prisão domiciliar. Ela aceita ser um pássaro, acompanha uma conversa sem sentido comum e vai conduzindo a senhora, junto com a equipe de saúde mental, para o posto. Acompanha a senhora ao banco para receber sua aposentadoria, que antes o neto lhe tomava. Outro agente consegue dar continência a um homem em agitação psicomotora. Ele tem ascendência afetiva sobre o senhor que surta, mora ao lado da casa dele e conquistou especial respeito durante o período em que se transformou em agente comunitário de saúde. Nenhum técnico teria o mesmo êxito dele, dando continência a alguém que se encontra em erupção psicótica. Outra agente vai visitar uma paciente no hospital psiquiátrico, ou acompanha uma moça em surto até o Pronto Socorro,

buscando o objetivo de fortalecer laços de amizade plenamente terapêuticos que irão se estender depois da alta. Outra agente busca uma senhora deprimida para caminhar. O médico prescreveu antidepressivos e caminhadas. No posto de saúde ocorrem caminhadas organizadas pelo PSF para hipertensos, mas como a senhora ainda não consegue ir até o posto de saúde, começa dando uma volta no quarteirão, acompanhada pela agente comunitária. Outra desmonta um seqüestro sem denunciar ninguém. Outra, ainda, suspende a ordem de fuzilamento de um rapaz que deve aos traficantes. Não obstante todas essas evidências, mesmo psiquiatras e psicólogos ou terapeutas ocupacionais progressistas acham um absurdo que pessoas "sem qualificação" possam atender drogados, psicóticos e até intervir numa situação de urgência. Na prática, os agentes comunitários de saúde não operam por livre e espontânea vontade, eles-ou melhor, elas, pois a maioria são mulheres-são líderes comunitárias que fazem parte de equipes compostas por um médico de família, uma enfermeira e um ou dois auxiliares de enfermagem.


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Para cada três ou quatro equipes de saúde da família havia um profissional de saúde mental (essa modalidade de trabalho foi iniciada em São Paulo pelo Projeto Qualis, e existe agora em vários estados brasileiros) de maneira que cinco técnicos de saúde mental cobriam quinze equipes de saúde da família . Os profissionais não estão locados em unidades de saúde, são volantes, não têm consultório. Eles realizam as suas intervenções nos domicílios, nas unidades de saúde, nos hospícios, nas unidades da Febem ou nos terreiros de umbanda. São, por assim dizer, psicanalistas de pés · descalços. Entre as tantas atribuições da equipe de saúde mental está a de capacitar as equipes de saúde da família, discutindo as estratégias clínicas e monitorando as famílias atendidas. Os psiquiatras não realizam consultas e não há psiquiatria no ambulatório de especialidades, eles apóiam os médicos de família, já que essas prescrições são feitas por esses médicos generalistas, que receberam capacitação para o uso racional de psicofármacos. Em 1998, iniciamos a capacitação dos agentes comunitários de saúde da seguinte maneira: num primeiro sociodrama (psico-

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sociodrama que opera com um foco social, nesse caso, o trabalho) eles construíam, dramaticamente, uma família com problemas de doença mental e tentavam ajudá-la. Na cena dramática já passávamos noções de postura: o que não dizer, como dizer bom-dia, como olhar para o grupo familiar etc. Num segundo eiléontro, processávamos o acontecido na . primeira reunião e lhes' entregávamos um manuaL No terceiro, discutíamos com eles o texto e escolhíamos as famílias mais difícei§_E,aja visitar e iniciar assim os programas terapêuticos. Os três encontros duravam aproximadamente quatro horas cada um. A capacitação é um processo infinito que continua nas visitas, nas discussões de casos realizados com as equipes de saúde mental e de saúde da família, e em eventos diversos. Na época de David Capistrano, todos os profissionais tinham um dia por semana de capacitação. Os agentes de saúde são, portanto, pessoas da comunidade que recebem formação constante sobre diversos temas de saúde, assim como os médicos e os enfermei ros.

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O pediatra aprendia a fazer toque ginecológico, o geriatra aprendia a tratar de crianças. Todos estavam aprendendo e se formando em serviço. Esse estado instituinte favoreceu a formação de equipes onde o agente comunitário de saúde não se transformou num subordinado do médico. A regra fundamental do funcionamento das equipes é fazer com que o saber circule-tanto o técnico, o ' científico como ci' cultural e popular. · A questão central que rege a metodologia da saúde mental praticada no PSF,;f a de dar prioridade .à~ _pessoas e famílias mais difíceis, isto é, as que estão em maior risco. Os suicidas, os violentados, os drogados ... aqueles que não se adaptam aos protocolos clínicos tradicionais. Os que não vão às consultas, os que não solicitam ajuda. Os que mais necessitam e não necessariamente os que mais demandam. A idéia principal que defendemos neste artigo é que a arma fundamental para fazer funcionar essa máquina de produzir saúde é o agente comunitário. E eles são peças preciosas dessa máquina devido à sua condição paradoxal. Paradoxal, pois são ao mesmo tempo membros

.

da comunidade e integrantes da organização sanitária. E nesse funcionamento radica sua potencialidade. Eles estão metidos no "mosto" comunitário e ao mesmo tempo estão fora da problemática, pois pertencem a uma organização sanitária, uma espécie de polícia médica revolucionária. Polícia (no velho sentido da polícia médica, uma das fontes históricas da medicina sanitária), pois se inserem no ambiente doméstico, íntimo e no território existencial das pessoas. E revolucionária, porque ali onde somente a TV Globo ou as emissoras de rádio se inserem como componentes de produção de subjetivação, com suas conseqüências infantilizantes, os agentes comunitários criam germes, elementos mínimos do que Antonio Negri e Michael Hardt, autores de Império e Multidão, chamam de "o comum". "O comum" está aquém do comunitário. A palavra comunidade é usada para designar uma unidade moral, que se posiciona acima da população e de suas interações com o poder soberano. O individual se dissolve na unidade da comunidade. "O comum" é baseado na comunicação entre singularidades e se manifesta através de processos sociais de cooperação e


produção. As singularidades não são tolhidas "no comum". Eles levam ações e paixões coletivas, solidárias, e tecem fio a fio redes microssociais de alto poder terapêutico. Eles surfam no controle. A sociedade de controle, disse Gilles Deleuze, opera ao ar livre, não mais no hospício, mas em todo lugar e, fundamentalmente, no domicílio. Já não mais ordenando espaços-tempos como se dava na sociedade disciplinar, cujos modelos eram a fábrica e o hospício. Os agentes comunitários de saúde vivem na alma da periferia e são por definição paradoxais. Eles são membros ao mesmo tempo da comunidade e da organização sanitária. Eles e elas estão articulados com a clínica praticada pelos médicos e enfermeiros, que busca defender a vida e, pela clínica de saúde mental, que busca reduzir internações psiquiátricas, o suicídio e o homicídio, e gerar uma subjetividade cidadã e livre. Eles e elas são o dedo do Estado na comunidade, entram nos territórios onde somente a Rede Globo consegue entrar. Educam, promovem a tolerância e infinitos empreendimentos coletivos. Eles são o dedo do Estado, mas de um Estado constituinte por produção biopolítica.

Certa vez estávamos atendendo o "Anjo", um esquizo (pensar que na época discuti com a enfermeira da equipe porque ela queria um diagnóstico do rapaz), magro, trancado em casa, com cadernos cheios de intermináveis fórmulas que demonstravam a existência de Deus. O rapaz se apaixonou pela bela enfermeira, começou a sair de casa e a tocar músicas clássicas no violão, fato não tão comum no bairro de Sapopemba, na região sudeste da periferia de São Paulo. Enfim, o rapaz estava em franca mobilização desejante e a família, assustada, conseguiu interná-lo. A brava equipe de saúde mental se empenhou e conseguiu a alta para alegria geral da comunidade sanitária que tinha perdido o seu, o nosso Anjo. E ele saiu de alta, mas quando chegou em casa encontrou um bando de agentes comunitários e outros companheiros que tinham pintado a casa (antes detonada) e feito uma festa. A potencialidade terapêutica dos agentes comunitários de saúde revela sua capacidade de incidir nos processos de produção de subjetividade. Se Claude Lévi-Strauss disse que a família é uma pausa, visto que ela congela o movimento que constitui a vida so-


cial-ou seja, a troca matrimonial e o trânsito entre os diferentes grupos-, a estratégia da família, com a experiência dos e com os agentes comunitários, é um dos bálsamos, não somente do modo brasileiro de fazer saúde pública, mas, sobretudo, embrião do comunismo pós-moderno que Toni Negri e Michael Hardt convocam em Multidão. E é nisso, nessa alma comum e comunitária, que está radicada a potência terapêutica dos agentes comunitários de saúde. ANTON IO LANCETTI

é psicanalista e diretor da série Saúde e Loucura (Ed. Hucitec).

Referências bibliográficas

DELEUZE,

Gilles. "Post-scriptum sur les sociétés de contrôle", in Pourparlers. Paris: Édi-

tions de Minuit, LÉVI-STRAUSS, NEGRI,

1990.

Claude. "La famille" in Le Regard éloigné. Paris: Plon,

Antonio &

HARDT,

Michael. Império. São Paulo: Record,

1983 .

2001.

---.Multidão: guerra e democracia na era do Império. São Paulo: Record,

2005.

Abraçado ao meu rancor

João Antônio

[ ... ]A cidade deu em outra. Deu em outra cidade, como certos dias dão em cmzentos, de repente, num lance. As caras mudaram, muito jogador e sinuqueiro sumiu na poeira. Maioria grisalhou, degringolou, esquinizou-se para longe, Deus saberá em que buraco fora das bocas-de-inferno em que eu os conheci. Ou a cidade os comeu. Mas o espírito, o mesmo. Dureza, rebordosa, de déu em déu, frio, tropel, sofrência, ó solidão de cimento armado e quanto se enfia represado e se enrosca e se intrinca, cinicamente ou desnorteado e sem solução- transportes, serviços, inda mais para além da Lapa, no pedaço de Presidente Altino, Jaguaré, Anastácio, Morro da Geada, Osasco. Quanto e quanto muquinfo, ô Deus, e bocada e miserê nas beiradas das estações da Sorocabana. E já nem sei quanta vez só os deixava, sonado, nos primeiros clarões da m anhã ao bai xa rem as portas para fechar. E me tocava , lerdo, lesado das pernas, a catar o primeiro café do dia. Não média-pão-e-manteiga. Café. Café puro. Café café.


Eles podem. Bem podem os majorengos trocar o nome de Sorocabana para Fepasa, diabo a quatorze ou o lero besuntado que entenderem. Para mim, é Sorocabana. Onde a vida dificultosa rebate continuada e feia como a necessidade. Gentes moiambentas, caras enrugadas, pescoços de galinha, peles de fuligem de quem trabalha no puxe encalacrado e se raspa para viver. Ou escapar com vida, livrar a cara nesta selva complicada. Complicadinha. Viver. . . Viver é assim, aturdir-se? Aqui se batalha e aqui não se pára. É preciso, hoje mais amanhã, aturdir-se pelo trabalho. Assim fazem as pessoas e será provavelmente para se esquecerem que vivem aqui. E bom não é. Mas viver é isto?

Notícias de um cinema do particular] [entrevista com João Moreira Salles

corpo editorial e Lilia K. M. Schwarcz

"Já separei uma camisa azul e uma calça cáqui para me vestir de sociólogo na Anpocs". A frase brincalhona de João Moreira Salles, dias antes de participar de um Grupo de Trabalho no encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, em outubro de 2004, denota sua relativa alteridade em relação a essa tribo. No entanto, o fato de ter sido convidado a discutir questões concernentes à produção e análise de imagens e o campo das Ciências Sociais26 aponta para incisivas intersecções entre o trabalho do documentarista e a produção antropológica e sociológica. Nesta entrevista, concedida à equipe de Sexta Feira e à antropóloga Lilia Schwarcz em Caxambu (MG), por ocasião do 29° 26

As reflexões do grupo resultaram na publicação do livro O imaginário e o poético nas Ciências Sociais, organizado por José de Souza Martins, Cornelia Eckert

e Sylvia Caiuby Novaes, e publicado pela Edusc em

2005.


Encontro Anual da Anpocs, Salles afirma inclusive que o cinema é apenas um veículo de expressão entre outros aos quais poderia recorrer27, mas o que o mobiliza efetivamente é a curiosidade e inquietação em relação a pessoas, contextos e temáticas via de regra concernentes ao Brasil. A despeito de seus primeiros documentários esta rem voltados para outras bandas da Terra (China, Japão e posteriormente EUA), é para conjunturas e problemáticas caras ao Brasil que a obra de Salles tem se voltado. Futebol, religião, favela, violência, tráfico, mestiçagem, música, n atureza e política são alguns dos ingredientes ministrados por esse cineasta, que procura não seguir receitas preestabelecidas, bem como evitar maniqueísmos e uma moral (unívoca) da história. Poder-se-ia dizer que a marca do cinema de Salles é acessar conjunturas ou temáticas por meio d e personagens específicos, cuja trajetória e visão de mundo estão associadas a um contexto, mas são - e esse 27

Além de cineasta e sócio da produtora Videofilmes, Salles escreve em jornais

é o ponto - irredutíveis a ele. Antes de informarem , conformam uma experiência. É então pela subjetividade daquele que é fi lmado e daquele que filma que o argumento é construído, no decorrer das filmagens, pa rticula rmente no decorrer da relação entre o cineasta e o personagem. Essa é uma das razões pelas quais documentaristas como Jean Rouch e Eduardo Coutinho28 constituem referências cruciais em sua produção e em suas reflexões acerca do documentário. Como destaca Salles na entrevista, cada qual a seu modo, Rouch e Coutinho subvertem a fórmula '"eu', documentarista,falo sobre 'você', personagem, para 'eles', espectadores" pela idéia de que '"eu ' e 'voce"'fia lamos de 'nos / ' para 'eles"'. acento se des1oca d o termo para a relação; ou seja, deixa de ser o outro-assim substantivado no filme- para ser o encontro entre outros, entre os quais aquele que filma. Compartilhando dessa orientação, mas cursando itinerário próprio, é possível pensar a obra de João Salles como um cinema

o

e revistas, é autor de um d os capítulos no livro supracitado, editor da rev ista piauí e professor d e documentário na PUC!RJ e em cursos como o q ue ocorreu

no morro Santa Marta, no Rio de Janeiro.

28

O primeiro e o segundo número da Sexta Feira trazem entrev istas com Jean Rouch e Edua rdo Coutinho, respectivamente.


do particular, no sentido que vai de encontro a versões oficiais e abordagens diretamente voltadas para a denúncia, a descrição, a representação (de uma nação, de uma classe, de qualquer coletivo com contornos precisos); mas sobretudo no sentido de ir ao encontro da experiência, que não pode ser acessada senão pelo particular, não almejando ser representação ou alegoria, mas expressão singular, por meio da qual se pode inferir temas históricos, conjunturais, existenciais. Um músico circunspecto. Um político de multidões. Seja como for, seja com quem for, o olhar de João Salles incide nos silêncios da fala, nos vazios da imagem, nos resíduos do sentido, nos pequenos atos, nos entreatos. Mesmo não sendo referência para Salles, em alguma medida, é possível aproximar algumas de suas reflexões presentes nesta entrevista a uma certa antropologia contemporânea-que tem em Roy Wagner e Marilyn Strathern figuras emblemáticas-, seja pelo acento no relaciona! em detrimento do substantivo, seja pela abordagem do outro como uma experiência de pensamento, em yue são concomitantes o aprendizado e a invenção, e mais: em que estão implicados aprendizado/invenção do outro e aprendizado/invenção de si. Enquanto a chamada corrente pós-moderna

da disciplina esteve voltada para a desconstrução do objetivismo, apontando o caráter ficcional das etnografias e a assimetria de poder entre o sujeito do conhecimento e seus objetos, a antropologia tal como pensada por Wagner e Strathern, entre outros, toma a "invenção etnográfica" como um ponto de partida e não de chegada (ou beco sem saída). Como experiência de pensamento, a construção do outro não prescinde da existência efetiva do outro, tampouco prescinde da (re)construção de si. A experiência é mediada pelo pensamento (e seus parâmetros culturais), e este é atualizado pela experiência. Assim parece se mover a câmera de Salles, como uma experiência de pensamento, ou, antes, um pensamento sobre a experiência. [Valéria Macedo] Como e quando o documentário passou a fazer parte da sua biografia? Na realidade, nunca tive uma grande vocação para fazer

cinema, seja de ficção ou documentário. Me formei em economia na PUC do Rio de Janeiro, mas sabia, desde o primeiro semestre, que nunca seria economista. Quando concluí o curso, meu irmão [Walter Salles Jr.] tinha acabado de voltar do Japão com oitenta horas de material bruto. Ele me pediu para ajudá-lo a encontrar


um fio condutor para aquele material todo, que tinha sido filmado sem nenhuma ordem. Isso virou uma série da TV Manchete fjapão, uma viagem no tempo], foi ao ar, teve boa repe rcussão. No ano seguinte, o governo chinês convidou o Waltinho para fazer uma série igual sobre a China, mas ele já estava começando a pensar em ficção. Na última hora não foi e mandou o irmão caçula. E pela primeira vez eu dirigi um documentário [China, o império do centro]. De lá pra cá não parei mais. Mas nunca foi uma vocação irresistível. Eu gosto do que faço, sou muito curioso em relação às coisas que eu filmo. Mas eu poderia estar escrevendo sobre elas. Não é necessariamente o cinema que me interessa, e sim a possibilidade de investiga r meu país, minha cidade. Curiosamente, comecei a filmar no lugar mais distante possível do Brasil. Depois de China fui fazer um documentário que também não era no Brasil, chamado América [1989]. Era um avanço, pelo menos eu já estava no Ocidente ... Fui me aproximando, e hoje m eus filmes são sempre sobre o Brasil. Qual seria a singularidade do trabalho do documentarista? Pensar sobre os problemas do documentário é uma coisa relativamente nova para mim. Depois de fazer América, fui morar na África, fui

professor lá. Voltei, pensei em trabalhar numa editora de livros, tentei, mas a experiência durou pouco tempo. Voltei aos documentários, mas ainda de maneira intuitiva, sem reflexão alguma. Há apenas cinco ou seis anos eu comecei a me dar conta de uma coisa que eu já devia saber desde o início: que no fundo o documentário não é sobre o que você fala, mas sobre como você fala aquilo. O documentário costuma ser mais interessante quando propõe um raciocínio sobre si mesmo. A minha geração-eu comecei a tomar pé no mundo lá pelos idos de 1980-cresceu numa época em que o cinema já não tinha a mesm a vitalidade das décadas anteriores. Basta comparar os poucos grandes filmes dos anos 1980 com as muitas obras-primas dos anos 1960 e 1970. Para muita gente da minha geração, e certamente para mim, o cinema já não exercia o mesmo fascínio. Ao contrário do pessoal do Cinema Novo, por exemplo, a gente não via o cinema como um instrumento poderoso de investigação do mundo, que dirá de mudança. O resultado era um grande desconhecimento. Não discutíamos cinema. H avia e ainda há lacunas imensas na nossa cultura cinematográfica. No documentário, então, nem se fala. Percebi isso quando comecei a dar aulas, na década de 1990. Nin-


guém conhecia documentário, não sabiam quem era Flaherty29, a maioria dos alunos, os futuros cineastas, achavam que o documentário não passava de uma etapa chata, porém necessária, até alcançar o paraíso da ficção. Hoje em dia isso mudou; existe um número grande de alunos que querem ser documentaristas, só documentaristas. Quando conheci a obra de Jean Rouch, me dei conta que ali havia uma reflexão crítica sobre o próprio documentário. Tradicionalmente, o documentário sempre obedeceu à fórmula: "eu", documentarista, falo sobre "você", personagem, para "eles", espectadores. Acontece que, quase sempre, essa formulação esconde uma falácia. É que, ao contrário do que pensa boa parte dos documentaristas, os filmes são feitos de outra maneira-assim: "eu" falo sobre "ele" para "nós". Nos nossos documentários, por 29

O cineasta Robert Flaherty, autor de filmes como Nanook ofthe North (1922),

Moana (!926) e Man of Aran (1935), é considerado um dos precursores do documcnLário e do filme etnográfico. Seu método de filmagem incluía longas estadas com os grupos que filmava, exibições do material filmado e discussão do conteúdo e roteiro do filme com membros dos grupos.

exemplo, se vê muito travesti, menino de rua, favela, Nordeste, índio, manifestação popular no interior do Piauí. .. Ou seja, são filmes em que o documentarista faz uma viagem para longe de si mesmo, atravessando ou uma barreira geográfica (quando ele vai para uma aldeia na Amazônia, por exemplo), ou uma barreira social (quando ele vai filmar aquele que tem menos do,.,~ ele). Portanto, o documentarista está falando par:> _ vprios pares (porque quem consome documentário geralmente é branco e de classe média, como ele); e o que ele tem a falar diz respeito a um outro que não é igual. Isso pode ter conseqüências graves. Pode-se cometer o pecado da condescendência, da piedade, do exotismo. Suponho que essas sejam questões centrais para a antropologia. Deveriam ser centrais para nós também, m as infelizmente não são. É por isso que Jean Rouch, no seu duplo papel de etnógrafo e de documentarista, é tão importante. Os filmes dele enfrentam exatamente esse problema. Quais os caminhos possíveis para fugir dessa fórmula? A partir das idéias propostas por Jean Rouch, essa fórmula se transforma. São os filmes de encontro, como nos documentários do Eduardo Coutinho: ele não filma o outro, ele filma o encontro com oroutro. O


filme é sobre esse encontro, e portanto a fórmula passa a ser a . " eu " e " voce"'" .c / " para "e Ies " (ou para "nos ' segumte: ra Iamos de "nos mesmos", não importa mais); o essencial é o "eu e você". E isso está no centro da questão espinhosa do documentário. Nosso grande problema não é de natureza epistemológica - o que é verdade, o que não é; o que é encenado, o que não é - , nem de natureza estética-locução ou não-locução, trilha sonora ou som direto, essas perfumarias-; tampouco se trata de uma questão de linguagem - observação ou intervenção, esconder ou não o aparato da filmagem etc. Para mim, o que distingue o documentário da ficção é a natureza do contrato que se estabelece entre o documentarista e seu personagem. Trata-se de um contrato de natureza ética. O que ele diz? Que o filme pode trazer conseqüências para o personagem. Simples assim. Essa condição não está presente na ficção. O fato do contrato existir não significa que ele seja respeitado. Existem até os que acham que, dependendo de quem está sendo filmado, ele não deve ser respeitado. Mas ele está ali, mesmo quando filmamos o adversário. Esse contrato dá forma a todo o cinema do Eduardo, assim como ao do Jean Rouch. É o fundamento teórico do cinema dos dois.

E em relação ao seu trabalho, qual seria a teoria subjacente? Eu não acho que já tenha encontrado uma maneira minha de fazer cinema não-ficcional. Essa consciência de que é necessário pensar tanto sobre o filme quanto sobre o que você está filmando ainda é muito recente. Mas ainda resta esperança ... Coutinho realizou Cabra marcado para morrer, o filme que o transformou num grande documentarista, depois dos 50 anos. É bem verdade que a essa altura ele já tinha dirigido alguns documentários muito bons para o Globo Repórter, mas tenho dúvidas se aqueles filmes seriam suficientes para transformá-lo no documentarista que todos nós admiramos. O curioso é que depois de Cabra ele passou muitos anos achando que seria o cineasta de um filme só. Mas aí ele se reinventa com Santo forte, e inaugura uma fase de criatividade e originalidade extraordinária já com quase 70 anos. O que renova minhas esperanças. Eu acho que Nelson Freire e o filme do Lula [Entreatos, 2004]-que é um filme estranho, esquisito, reconheço - já são um passo em direção a um caminho próprio. Como foi o processo de reflexão e execução que culminou em Entreatos? Eu propus ao Lula filma r a campanha durante o segundo turno. Começaria a filmar no dia do primeiro voto, 6 d e


outubro de 2002, e terminaria de filmar no dia do segundo voto, 27 de outubro. Veja só a coincidência: Lula nasceu no dia 6 e foi registrado no dia 27 de outubro. Ele tem dois aniversários, e só tem dois aniversários quem vem do Brasil do qual ele veio, de lugares sem cartório, sem juiz, sem nada. Essa era a idéia, fazer um filme de observação no qual minha tarefa seria ficar junto a Lula durante esse tempo. Tive que rever o plano porque o Lula começou a crescer demais nas pesquisas, e poderia não haver o segundo turno. Então eu comecei a filmar dez dias antes do dia 6 e voltei a filmar duas semanas antes do dia 27. Eu filmei passeata, carreata, comício, entrevista coletiva, palanque, avião, quarto de hotel, espera, estúdio, a casa dele, filmei sem parar. Durante um ano e meio, que foi o tempo que levei para montar o filme, eu tentei tudo, tudo, tudo. A primeira versão ficou com 24 horas. Eu mostrei para três almas abnegadas: o [cineasta Eduardo] Coutinho, o [cineasta] Eduardo Escorei e a [jornalista] Dorrit Harazim. Ouvi as críticas, reduzi para oito horas, depois para cinco, depois para três e ficou em três durante muito tempo. E o filme tinha isso: a face pública do Lula, as multidões nos comícios, e o Lula de "câmera", pequenininho, entre quatro paredes, falando para

seus amigos. Esses dois tipos de material não conviviam bem. Era muito difícil construir uma narrativa que contivesse tanto o palanque quanto o avião-o avião é um momento em que o Lula não está prestando atenção na campanha, então ele discorre sobre a sua vida inteira, os planos são longos; já as cenas de campanha são quase um registro jornalístico e isso exige que você acelere. Quando confrontados, esses dois materiais obrigavam o filme a acelerar e a frear, a acelerar e a frear, e isso não ficava bom. Então eu tomei a decisão, que não foi fácil, de jogar fora tudo aquilo que era público, e re ter apenas o que era privado. Entreatos é a história de Lula entre os momentos importantes da campanha. São os tempos fracos. É o Lula entre um comício e outro comício, saindo de um carro, entrando num avião. E isso é o raciocínio que eu faço sobre documentário: o essencial não é a imagem isolada, mas a seqüência construída. Quer dizer, o que dá força a uma determinada imagem não é apenas o que ela traz dentro de si, mas o fato de ela estar inserida numa narrativa que lhe confere força. O que acontece com uma imagem pública do Lula? A mesma coisa que acontece com uma imagem do Carnaval, ou com uma imagem do Maracanã lotado. Ela será

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sempre uma experiência degradada. Então, a imagem do Lula no palanque, diante de cem mil pessoas, será sempre inferior à experiência de quem esteve naquele comício. Essas grandes manifestações não conseguem ser traduzidas em imagens. Principalmente quando você está filmando com uma câmera só e está disputando a melhor posição com outros 150 cinegrafistas. O resultado é uma imagem precária. Ela serve ao jornalismo. Serve de testemunho: isso aconteceu. Mas ela não consegue exprimir o que se passou ali. Para usar uma expressão que eu gosto, do Walter Benjamim, ela não consegue te dar a experiência do fato; ela descreve o fato, o que é muito diferente. Por outro lado, esses "entreatos" do filme, esses momentos em que o Lula entra no quarto, vai de um palanque a outro, esses momentos não têm a menor importância, são apenas traslados. Pois são exatamente esses momentos sem importância que viram filme. E se eles ganham alguma importância, é porque foram recuperados dentro de um filme; foram salvos pela estrutura narrativa. Quando aparecem no filme têm um peso maior do que quando foram vividos. E essa inversão me parece um raciocínio interessante para o documentário. Essa busca pelo prosaico e o compromisso ético com as persona-

gens seriam os aspectos que mais aproximam seu trabalho da obra do Coutinho? Eu acho que o que as personagens do Coutinho dizem é aquilo que nós dizemos. Elas falam de amor, de dinheiro, de sexo, do medo da morte. São temas cotidianos, não são temas extraordinários. O Coutinho consegue que o outro tenha o desejo de se inventar para a câmera, ou seja, para ele, Coutinho. O personagem entrega a Coutinho o que acha que tem de melhor. É como um presente. Veja, não se trata de dizer a verdade, no sentido positivo do termo. É ingênuo supor a possibilidade de flagrar o personagem tal "como ele é", como se houvesse um ser puro por trás da pessoa filmada. Existe sempre um coeficiente de "irrealidade" cada vez que se filma alguém, e essa "irrealidade" não deve ser rejeitada. O tanto de ficção que essa pessoa inventa é a ficção que essa pessoa inventa. Portanto, é uma ficção sincera, diz respeito a quem a inventa. Para quem já fez psicanálise, é como entrar num consultório e passar 45 minutos mentindo. Não interessa: o analista vai interpretar essa mentira e ela será sobre você, porque você escolheu contar essa mentira e essa mentira é sua. Eu mostrei o filme do Lula para alguns amigos e eles me disseram isso: "Puxa, mas ele está representando o tempo todo, você não


percebeu?". Eu não acho que seja teatro ou verdade, mas teatro e verdade. E não é só teatro: certo, tem ele tentando seduzir a câmera, ele fingindo que a câmera não existe; mas também tem ele se esquecendo que a câmera existe, numa oscilação constante entre o teatro e o não-teatro. Você não consegue separar. Eu acho que no caso do Coutinho tem muito isso. Invenção sincera. As personagens estão dizendo o que acham de si mesmas, o que são, o que gostariam de ser, e tudo isso é sincero. Os assuntos são prosaicos. Coutinho sempre lembra do seguinte: são poucos os assuntos que nos movem. Amor, morte, sexo, religião e dinheiro-ou a falta dele. É sobre isso que ele conversa com seus personagens. Agora, o que é bacana é você olhar para um lixão sem ser piedoso; é você mostrar que as pessoas são suficientemente inteligentes e sábias para conseguirem inventar uma maneira de sobreviver no lixão, sem achar que o lixão é um inferno, ou apenas um inferno. E se você vir um filme do Coutinho, encontra pessoas extraindo o tolerável de situações que nos parecem intoleráveis. É por isso que o cinema dele é tão bom. Se o cinema do Eduardo fosse falado em inglês, eu não tenho a menor dúvida de que ele seria reconhecido como um dos dois ou três grandes documentaristas

em atividade no mundo. Mas como o cinema dele é muito oral, não viaja. Porque a fala que interessa não é só uma questão de legenda. Depende muito do corpo, é fala encarnada, é o gesto, a sintaxe, a pausa, o sorriso ou o não-sorriso. Você se sente em alguma medida responsável pelo que você filma, por aqueles que você filma? Como sei que sou impotente frente ao mundo, meu único compromisso é com a personagem que eu filmo. O meu filme não pode atrapalhar a vida daquela pessoa. Esse é o grande perigo do documentário que acha que pode mudar a realidade. Em nome de tarefas extraordinárias, de denunciar a selvageria da nossa violência, por exemplo, ou de resolver para sempre a vida dos leprosos de Calcutá, eu me permito mostrar essa mulher que come, com um toco de mão, os restos que encontra no lixo. A causa é justa, por isso me permito a imagem abjeta. Você não pode fazer isso, não pode. No documentário, o compromisso único é com o teu personagem, ou melhor, com o teu personagem e com você mesmo, com o tipo de cinema no qual você acredita. Não é com o espectador e muito menos com o mundo. É preciso ter consciência de que o filme poderá ter conseqüências para aquela pessoa. O que não significa que você vá mudar a vi-


da dela; na maioria das vezes, não muda. Mas pode atrapalhar, e você tem de saber disso. Eu não faço filmes como Notícias de uma guerra particular por uma questão de militância, porque eu quero denunciar isso ou aquilo. O utilitarismo no documentário é a sua morte. Eu nunca fiz um filme achando que iria ajudar a resolver este ou aquele problema. Para começar, porque isso não acontece. Parafraseando o Auden30, documentário não faz nada acontecer. E cineastas como Ken Loach31? O Ken Loach é um grande cineasta e parece ser um sujeito maravilhoso. Eu não sou contra o ativismo político, principalmente do modo como Loach o compreende. Pessoas como ele filmam solidariamente, ou seja, em geral filmam o aliado. Mas e quem filma o inimigo? É o caso de se perguntar: temos o direito de emboscar o adversário com uma câmera ligada? Num caso limite, será que você tem o direito de 30

Wystan Hugh Auden , um dos mais influentes poetas ingleses do século xx.

31

O cineasta inglês K en Loach aborda em seu cinema militante questões como a guerra civil espanhola (Terra e liberdade, 1995), a condição dos trabalhadores migrantes (Pão e rosas,

2000),

a g uerra norte-americana contra os sandinistas

na Nicarágua (A canção de Carla, 1996).

emboscar um nazista? Um torturador? Seja qual for a sua resposta, é importante que você tenha a consciência de que não se trata de uma pergunta simples. Filmes como Santa Cruz ou Notícias de uma guerra particular parecem ter um caráter de denúncia ... Não. Eu acho que o Notícias...

é um diagnóstico, não é uma denúncia. Além do quê, ele é um documentário muito diferente de tudo que eu fiz antes ou depois, porque geralmente eu penso muito antes de começar um filme; Notícias ... não foi assim, ele é um documentário de emergência, de improviso. Na época, a política de segurança era definida por um general muito conservador, um homem que teve uma atuação destacada durante o período militar, foi ele quem comandou a operação que matou o Lamarca. Como era general, acreditava numa solução militar para o problema da violência. Foram criadas unidades especiais de intervenção nas favelas. Havia a tal "bonificação bang-bang": o policial que disparasse a arma numa ação recebia uma bonificação no final do mês. Paralelamente, aumentou muito o poder de fogo dos bandidos. Com tudo isso, a violência no Rio de Janeiro alcançou um grau de letalidade impressionante e incompatível com qualquer noção de vida civilizada. Então a


Kátia Lund, o Waltinho e eu decidimos fazer um filme sobre isso. Mas não em nome da nossa indignação. Eu acho a fila do INPS terrível, o Garotinho me tira do sério, e, no entanto, eu não fiz nem quero fazer um documentário sobre o INPS ou sobre o Garotinho. No Notícias ... era apenas um desejo de ser testemunha. Aliás, essa é uma das razões para se fazer documentário - querer ser testemunha. E chegamos à conclusão de que queríamos fazer um filme sem nenhum especialista, nenhum sociólogo, nenhum cientista político, nenhum perito em segurança pública. A gente queria falar com quem estava na linha de fogo: o bandido, a polícia, o morador. O filme, no fundo, é só isso: uma tentativa de filmar essas pessoas. Graças ao Hélio Luz, chegamos à polícia; graças ao Marcinho VP, chegamos aos bandidos do Santa Marta. Mas o filme não é uma denúncia no sentido de apontar culpados, de dizer: "a polícia é corrupta" ou "o bandido é mau pra cacete". Não é isso. O filme quer apenas ser o retrato de um momento na vida do Rio de Janeiro, no caso, um momento no qual a violência chegou a tal ponto que os próprios combatentes já não agüentavam mais. Nas primeiras versões do filme, as protagonistas eram três meninas de oito anos que faziam parte de um programa fantás-

tico que existe nas favelas do Rio de Janeiro, o "Dançando para não dançar". Eram três pequenas bailarinas. A proposta inicial era acompanhar a vida dessas meninas e ter como pano de fundo o policial, o traficante, a violência. E apesar de toda aquela selvageria, o filme terminava com as meninas dançando balé no Municipal, como quem diz: apesar do horror, existe o balé, e através da arte as pessoas se salvarão. Era ingênuo e piedoso; pior, oferecia saída. Mas para mim é fundamental que o documentário não ofereça saída, que termine naquele desencanto. E ali foi uma decisão minha, quem fez a edição final fui eu. Não era possível fazer um filme sobre isso e no final oferecer um refresco: olha, pode dormir tranqüilo, porque essa violência toda existe mas existem almas boas que ensinam balé na favela e através dessas iniciativas tudo se resolverá. O que não quer dizer que essas iniciativas não sejam fundamentais - elas são. Mas é claro que a função delas não é resolver problema nenhum, quanto mais o da violência. O final do filme não significa que eu acredite que a violência não tenha solução; o que eu quero dizer é que, se a gente seguir enfrentando a situação dessa maneira, de fato não haverá solução. É um diagnóstico. Mas é só isso; eu não digo que a solução é essa ou


aquela, eu apenas ouço o bandido, escuto o que ele tem a dizer, e também o policial, tentando não julgá-los de véspera. Entretanto, no filme Santa Cruz, você acaba apontando a igreja quase como uma espécie de solução para a desordem. Você se pergunta: "afinal de contas, como uma doutrina que proíbe tanto atrai tanta gente?". Não vai aí uma premissa durkheimiana quando se encara "que a igreja oferece uma ordem àquele caos"? Puxa, eu era durkheimiano e não sabia ... O lha, quando fiz Notícias ... , eu fiquei amigo do Márcio VP e dei aula no Santa Marta. Percebi que uma das únicas saídas reais para o traficante que quisesse d eixar o crime era a conversão protestante. Aliás, antes disso, já no filme Futebol, conheci um pastor evangélico que tinha sido bandido (foi braço direito do Orlando Jogador, um grande traficante do Rio de Janeiro). Ele acabou virando personagem da série. Ele estava confinado a uma cadeira de rodas; numa troca de tiros com outros bandidos foi ferido na espinh a, ficou paraplégico, se converteu e virou evangélico. Um dia eu fui levá-lo em casa, no morro do Alemão. Ele morava num lugar chamado "Grota", que é tido como uma das áreas mais violentas do Rio de Janeiro. E le me ensinou como entrar ali: com a luz interna do carro acesa e a

Bíblia sobre o painel, bem à vista. A "Grota" é uma favela plana, e você tem aqueles sujeitos com AR-15, que vão te acompanhando devagarzinho, mas como você está com um evangélico, eles te deixam passar. À medida que você vai entrando, as a rmas ficam mais ostensivas, e o armamento, mais pesado. Às tantas, melembro de passar ao lado de quatro sujeitos muito grandes e muito fortes que vestiam coletes, e em cada bolso do colete havia uma granada. Eles olhavam para o carro e faziam sinal para que passássemos. Respeitavam o evangélico. E, de fato, muitos traficantes acabam se convertendo, alguns se convertem cinicamente, outros fazem uma conversão sincera. Depois de ter filmado a desordem no Notícias ... , me deu vontade de falar da ordem, ou do desejo de ordem. E o filme seguinte foi sobre uma pequena igreja evangélica. Igual a muita gente, eu desconfiava dos evangélicos. É o caso de se perguntar se não vai n isso um preconceito de classe. Por que desconfiamos menos da Igreja católica, ou dos luteranos? Comecei a conversar com o Marcos Sá Correia, meu parceiro no filme. Ele se fazia a pergunta óbvia: será que as pessoas são tão tolas a ponto de se converterem a troco de nada? Será que elas se dispõem a abrir mão de 10% do salário, a abandonar o jogo e a


não dançar o Carnaval à toa, sem recompensa nenhuma ? É evidente que se trata de uma troca, e nela o que se ganha, concreta ou simbolicamente, deve valer mais do que o custo da renúncia. Conversamos com a Regina Novaes, e partimos da hipótese de que o grande ganho da conversão é a ordem. Ordem, ali onde não existe ordem nenhuma. Para além das questões espirituais, se constrói ali uma rede de ajuda mútua, uma teia de solidariedade entre pessoas que são muito sozinhas. E são estabelecidos princípios que tornam a vida tolerável. É muito concreto. Por exemplo: o sujeito dá pancada na mulher todo dia porque bebe, e, porque bebe, não tem emprego. Então a vida é um caos. A mulher fica profundamente infeliz e o que ela faz? Vê que do outro lado da rua um pastor abriu uma igreja, e resolve ir. Então ela se converte e convence o marido, que continua a dar pancada nela, a ir também. E num determinado dia o marido resolve ir à igreja. No início ele fica no fundo, não toma parte da celebração. Mas aquilo lhe faz bem, as pessoas falam com ele, não o julgam, dizem que ele tem jeito. Então ele toma a decisão de se converter, e logo no primeiro dia da conversão ele deixa de beber porque é pecado. Imediatamente,

ele pára de bater na mulher, e a casa fica mais feliz. Além disso, o dinheiro da bebida vira dinheiro da passagem, ele pode pegar um ônibus e ir até a fila do emprego. Eventualmente ele consegue alguma coisa. É assim que funciona. Para que essa tese se comprovasse, precisávamos submetêla a um teste maior: não podíamos escolher um pastor carismático, porque, na nossa hipótese, a conversão independia da sedução de um pastor com o dom da palavra. Como a gente encontrou aquela igreja? As igre jas, no Brasil, são abertas como se abre uma empresa: têm ccc, essas coisas. Então fomos ao Diário Oficial e vimos quais eram as igrejas que haviam sido fundadas naquele mês. No Rio de Janeiro da década de 1990, se fundava uma nova igreja a cada dia útil do ano. No mês em que começamos a filmar, tínhamos uma lista de 25 novas igrejas. E Marcos e eu fomos conhecer cada uma delas. Esse pastor era o menos carismático de todos, mas era um homem que parecia ter fé. E a gente resolveu fazer um filme sobre ele. Na verdade, não sobre ele, mas sobre as pessoas que se reuniam à volta dele. O Veronilson, por exemplo, o pedreiro. Quando a gente acompanha a vida dele, percebe como é evidente o ganho simbólico da conversão. De dia, ele trabalha

r6o


na construção; à noite, chega em casa, troca de roupa, veste um terno, se olha no espelho e sabe que está mais bem vestido que o capataz que passou o dia lhe dando ordens. A lém disso, ele sabe que pode progredir na hiera rquia da igreja, pode virar diácono, missionário, quem sabe pastor, e com isso se tornar um homem de respeito, o que na verdade ele já é quando cruza a área em que mora com a Bíblia embaixo do braço. É claro que não estou advogando o protestantismo como panacéia para os problemas do país. Quero apenas dize r: olha, aquilo é um desejo de ordem. O que, de resto, é uma observação banal. Já no filme sobre o Nelson Freire o acento não se dá sobre uma problemática social, mas sobre uma singularidade individual. Quais os deslocamentos necessários para esse tipo de documentário? No

filme do Nelson eu tentei incorporar algumas idéias sobre docum entá rio que se tornaram importantes para mim. Por exemplo, quis faze r um filme que não fosse factual, que não se preocupasse em informar o espectador. Em vez d a informação, investi na experiência, imaginando existir uma oposição entre as duas coisas. Isso está muito claro no ensaio do Benjamim sobre O narrador. O Davi Arrigucci tem um pequeno texto sobre o Rubem Braga

no qual ele diz uma coisa maravi lhosa: você lia o jornal e subitamente caía na crônica do Rubem Braga, que não te dava mais informação, mas te dava experiência. Por exemplo, a crônica sobre uma á rvore em frente à janela que de um dia para o outro fica vermelha. E o Davi Arrigucci observa que é d ife rente você dizer: hoje é dia 21 de março, chegou o outono. Essa é uma informação sobre o outono. A outra coisa é d izer: a á rvore ficou vermelha, e passar a d escrever essa vermelhidão. Se você tiver talento, estará produz indo no leitor uma experiência do outono. No Nelson Freire, tentei oferecer uma experiência do Nelson Freire. O filme factual não m e interessava. E é curioso que ele foi criticado exatamente por quem foi ao cinema como quem vai a um artigo de jornal à cata de informações sobre o Nelson Freire. Eu entrevistei um g ra nde crítico francês do L e Monde, que conhece profundamente música e sabe dizer porque o Nelson é um grande pianista. E u tentei inserir isso no filme, mas quebrava o encanto. Era in formação, exigia que você saísse do film e como quem sai d o mar para ouvir um especialista fala r sobre o mar. Você deixava de ouvir o pianista e passava a pensar sobre o pianista, passava a ser informado sobre ele, a saber dele por pessoa interposta. De certa


maneira, os teus sentidos sofriam um curto-circuito. Nelson ... é o filme no qual, pela primeira vez, eu ponho em prática esse raciocínio sobre documentário. Nele, interessa mais a experiência do que a informação. Gosto de documentários mais abertos do que fechados, não penso mais nas grandes conclusões, prefiro tratar de coisas pequenas, miúdas, cotidianas, como, por exemplo, um homem que limpa o piano, que toca para seu cachorro ... [Entrevista concedida em Caxambu (MG), na noite de 27 de outubro de 2004] [Um ano depois desta entrevista, em outubro de 2005, após Entreatos ter estado cerca de oito meses em cartaz e por ocasião do chamado "escândalo do mensalão" envolvendo o PT, retornamos brevemente a nosso interlocutor, numa espécie de inquietação à la Cabra marcado para morrer . .. ]

sobre ele, hoje? Olha, quanto mais um filme lida com fatos pú-

blicos, mais ele se parece com um organismo vivo, com algo que se transforma com o tempo. Não deixa de ser muito diferente daquele enunciado da física, segundo o qual o objeto muda com a observação. Como não somos mais os mesmos observadores que éramos há um ano-mudamos de posição, por assim dizer-, o filme virou outra coisa. Acontece que eu acredito que existem melhores e piores lugares a partir dos quais podemos assistir a um filme. Os lugares piores são aqueles excessivamente contaminados pelas contingências. Se visto dias depois da posse de Lula, Entreatos seria um filme pior: teria ar de celebração; visto agora, o filme também sofre: parece jogo dos sete erros, o espectador só tem olho para defeito. Continuo achando que o filme é um bom documento sobre Lula às vésperas de chegar ao poder e, como todo documento, a leitura será melhor quanto menor for a paixão. Dentro de alguns anos saberemos qual o real valor de Entreatos.

Da ocasião em que fizemos a primeira parte da entrevista até hoje,

E as personagens do filme: Lula, Duda, Dirceu ... ? Qual a atualida-

Entreatos entrou em cartaz, e, mais recentemente, bastidores de tra-

de de Entreatos no modo como elas se apresentaram e/ou nos fo-

mas políticas, com protagonismo do PT, também vieram à cena. Isso,

ram apresentadas? O teu modo de vê-las, hoje, difere do daquela

de alguma forma, mudou teu modo de ver o filme? O que você diria

ocasião? Como todo mundo, eu também vejo o filme à luz dos


acontecimentos. Assim, Dirceu vira o grande operador, Duda é o homem que substituiu a idéia pela imagem, Kotscho é aquele que diz a verdade para Lula (e por isso sai antes), e assim por diante. Mas é claro que isso é apenas um lado da questão. Essas pessoas correspondem a esse figurino, mas não são apenas isso. Por exemplo, na cena em que me interpela, Dirceu está apenas sendo sensato, está agindo como uma espécie de princípio de realidade em oposição à (boa) irresponsabilidade que permite a uma equipe independente se movimentar livremente no coração de uma campanha. Mas ninguém interpreta aquela cena assim. Vêem nela apenas a faceta autoritária do personagem. É o problema da contaminação pelas circunstâncias. A verdadeira prova dos nove é saber se eu mudaria alguma coisa em função da crise. Nunca saberemos. Esse filme não foi feito.

Capão Pecado

Ferréz

Rael decidiu voltar e, no meio do caminho, av istou uma igreja evangélica. Rael entrou na igreja, o culto ainda estava no início, notou o livro preto que todos seguravam quase na mesma posição. Ele viu a atenção dos irmãos e, embora tivesse sido freqüentador de uma igreja católica, tentou respeitá-los, pois sabia que ali estavam protegidos, guardados do holocausto, do inferno verdadeiro e diário, ou pelo menos se escondendo temporariamente dele. Rael fec hou os olhos e tentou orar, mas não conseguiu. Ele viu tudo errado, o pai que degolou o filho em um momento de loucura química, a mãe que fugiu e deixou três filhos, a grande manipulação da mídia que elege e derruba quem quer, a forte pressão psicológica imposta pela família, o preconceito racial, o pastor que em três anos ficou rico, o vereador que se elegeu e não voltou para dar satisfação, o dono de banco que recebe ajuda do governo e tem um helicóptero, os emp resários coniventes, cova rdes, q ue vivem da miséria alheia, 1... ] o senhor q ue devia estar aposentado e arrasta ca rroça, concorrendo no trânsito com car ros importados que são


pilotados por parasitas, o operário da fábrica que chegou atrasado e é esculachado, o balconista que subiu de cargo e perdeu a humildade, o motorista armado, o falso artista que não faz porra nenhuma e é um viado egocêntrico e milionário, o sangue de Zumbi que hoje não é honrado. Rael não conseguia rezar, pois no bairro a lei da sobrevivência é regida pelo pecado, o prazer dos pivetes em efetuar um disparo, a palavra revolução, a necessidade de ação, mais de duzentos mil revoltados que não estão enganados. Rael percebeu que aquele mesmo menino que pedira tantas vezes uma colher em sua porta pra queimar um bagulho, agora rezava para alguém agora a colocar debaixo de sua língua para que ele pudesse sobreviver. Rael tentou se concentrar em Deus, mas pensou no que seria o céu ... teria periferia lá? E Deus? Seria da mansão dos patrões ou viveria na senzala? Ele entendeu que tá tudo errado, a porra toda tá errada, o céu que mostram é elitizado, o Deus onipotente e cruel[ ... ] matou milhões; tá lá na Bíblia, tá lá, pensava Rael, mas apresentam Jesus como sendo um cara loiro. Que porra é essa, que padrão é esse? Rael chegou à conclusão mais óbvia: aqui é o inferno, onde pagamos e estamos pagando, aqui é o inferno de algum outro lugar e desde o quilombo a gente paga, nada mudou.[ ... ]

Santa Cruz {de João Salles e Marcos Sá Corrêa): o mundo preenchido

Cláudia Mesquita

Nesse mundo tem tristeza I E muita u·ibulação I Meu amigo aceita Cristo I É a única solução. HINO CANTA DO P ELA MISSIONÁRIA EM

Santa Cruz

Santa Cruz (2ooo), quinto episódio da série Seis histórias brasileims32, acompanha o processo de desenvolvimento de uma pequena igreja "crente" autônoma (Casa de Oração Jesus é o G eneral), num a invasão (Parque Florestal), na periferia de Santa Cruz, zona Co-prod ução da Videofi lm es, produtora carioca, e do ca nal de

TV

a cabo

CNTI

Globosat, onde a série foi ve iculada. Cada epi sód io da sé rie foi rea li zado em parce ria por um jornalista e um documentarista. O trabalho reuniu Dorrit H a razim , Flávio Pinheiro, Marcos Sá Corrêa e Zuenir Ventu ra, de um lado, e Arthur Fontes, lzabel Jaguaribe e João Moreira Sa lles, de outro. O episódio Santa Cruz foi realizado por Marcos Sá Cor rea e João Moreira Sa lles. A sé rie é composta ainda de A família Braz, O vale, Passageiros, Um dia qualquer e Emaio geral.


oeste da cidade do Rio de Janeiro. Diferentemente de Santo forte (1999), documentário de Eduardo Coutinho, que acaba por abarcar a pluralidade e o sincretismo religiosos, iluminando alguns padrões culturais numa favela carioca33, Santa Cruz se volta para uma única experiência, numa espécie de "estudo de caso": o que interessa ao documentário de João Salles e Marcos Sá Corrêa é examinar a trajetória singular de uma pequena igreja, instituição precária, e sua margem de atuação na localidade onde se implanta. 33

O princípio no filme de Eduardo Coutinho, também realizad o no Rio em fi ns d os a nos 90, é de circunscrição espacial (Vila Parque da Cidade, favela na zona sul), a partir da qual alguns poucos indivíduos são escolhidos para entrevistas, nas quais se observa intenso trânsito de símbolos religiosos, a config urar uma espécie de "plano espiritual" compa rtilhado por todos, católicos e umbandistas, pentecostais e sem relig ião. C ito Santo f orte porque o fi lme, ma rco na retomada da produção d e documentários para o cinem a no Brasil, também tematiza a experiência religiosa d os brasileiros, em contexto urbano e contemporâneo. Pa ra uma comparação entre esses dois film es, ver minha tese de doutorado: "Deus está no particular": representações da experiência reilgiosa em dois documentários brasileiros contemporâneos (2oo6), sob orientação de l sm ail Xavier.

A particularização do enfoque não é dado novo na obra de Salles, que a praticara nos três documentários de Futebol (1998), série anterior, também realizada para a TV. Nessa série, por meio das trajetórias singulares de alguns poucos aspirantes, de dois jogadores profissionais em início de carreira e de um veterano, João Salles e Arthur Fontes visavam uma análise social mais abrangente: expor e entender o sonho de ascensão social via futebol, o duro e intenso caminho para o estrelato e a experiência do descenso, após curtos anos de glória futebolística. O projeto de Santa Cruz, segundo me parece, guarda semelhanças: através da experiência de uma pequena igreja "crente", compreender as razões da eficácia pentecostal entre os pobres urbanos no Rio de Janeiro e, abrindo a escala, no Brasil. A diferença central é que Santa Cruz acentua a particularização do enfoque, que aqui implica também circunscrição institucional, espacial e temporal - todos os convertidos focalizados pertencem à mesma igreja, situada em Parque Florestal, zona oeste do Rio. O filme foi realizado precisamente durante os nove primeiros meses de desenvolvimento da instituição. Há vontade de diagnóstico em Santa Cruz (notável no comentário, como se verá), mas o filme se impõe a redução de escala,


o recorte mínimo, certamente supondo que aspectos da experiência focalizada, embora particular, possam ser generalizados34. Aposta diversa da que fizeram João Salles e Kátia Lund em Notícias de uma guerra particular (1999), documentário sobre a dinâmica da violência na cidade do Rio de Janeiro, que assume a pretensão de diagnóstico em sua estruturação, ainda que se apoie nalguns "personagens" paradigmáticos (que encarnam os três grupos envolvidos na "guerra particular" do tráfico nos morros cariocas: o policial, o traficante e - "no meio do fogo cruzado" - o morador). O diagnóstico em Santa Cruz é implícito, e não seria incorreto descrevê-lo apenas como "um documentário sobre a Casa de Oração Jesus é o General em seus nove primeiros meses", embora a escolha da igreja e a atuação do comentário evidenciem a vontade de interpretação e generalização da experiência, tacitamente35. Em 34

Santa Cruz é um dos documentários tomados como exemplo da "particulariza-

ção do enfoque", uma ela s tenclências principai s da produção documental con-

Notícias a proposta é outra. O diagnóstico não é alvo oculto, mas estrutura o discurso do documentário, que se propõe inclusive a contar (através de imagens e depoimentos) a história da escalada da violência no Rio de Janeiro pela evolução do tráfico de drogas (macroanálise totalmente ausente de Santa Cruz, que não preten- · de expor em todas as suas facetas a "nova onda" pentecostal e a dinâmica maior do campo religioso no Rio dos anos 90). Feitos esses breves contrapontos, foquemos Santa Cruz. O documentário é organizado em um prólogo mais três partes, cada uma delas correspondendo a três meses do desenvolvimento da Casa de Oração Jesus é o General, igreja comandada pelo pastor Jamil, metalúrgico aposentado. Logo no início, a narração over, de presença discreta, anuncia a proposta do documentário: acompanhar o desenvolvimento "desta igreja pelo resto do ano" para "ver de perto por que uma doutrina que prega a abstinência de tanta coisa- bebida, fumo, saia curta, Carnaval e até futebol- atrai precisamente aqueles que j á têm tão pouco".

temporânea no Brasil, segundo diagnóstico de Karla Holanda (2004).

35

O pertencimento à série Seis histórias brasileiras também indica o projeto de se

mente de Nelson Freire (2003), voltado à experiência de um único indivíduo, em

realizar em Santa Cruz um "típico retrato brasileiro" de nossos dias, diferente-

tudo excepcional: um musicista de carreira internacional consolidada.

166


A proposta enunciada privilegia, portanto, a relação entre religião e vida cotidiana; o apelo e a intervenção dos preceitos éticos e das motivações sustentados pela doutrina religiosa (preceitos de ordem valorativa, moral e de comportamento) no cotidiano pobre daqueles que se convertem. Embora focali ze um caso particular, Santa Cruz aspira à generalização: ver de perto por que "uma doutrina que prega a abstinência de tanta coisa ( ... ) atrai precisamente aqueles que já têm tão pouco", ou seja, examinar a eficácia do pentecostalismo naquele grupo social. Por que esse tipo de instituição e de doutrina tem sucesso nesse grupo? - eis outra maneira de enunciar a questão posta pelo narrador. Um filme que coloca de saída uma indagação pressupõe, no seu decorrer, a elaboração de uma resposta. Neste artigo, examinaremos, através de alguns exemplos, maneiras pelas quais Santa Cruz "responde" à pergunta que moveu sua reali zação. D e início podemos afirmar que, diversamente ao tom discreto do narrador, o filme se caracteriza por uma montagem bastante presente e elaborada, que não raro conduz com firmeza o espectador por seu processo de informação, explicação e elaboração de significados. Embora ev identemente "direto", esse documentário,

segundo me parece, aposta menos na força de revelação dos encontros obtidos na filmagem do que nas operações reguladoras da montagem -que associa, sem excessivo purismo, situações registradas (atividades desenvolvidas pelo pastor e pelo grupo de fiéis), trilha sonora, narração over e depoimentos. Os imperativos são a fluência, a informação e a elaboração de um argumento (nem sempre enunciado pelo comentário) sobre a experiência focalizada. A estrutura de Santa Cruz é sutilmente demonstrativa, embora o material tenha sido produzido na base da observação. Um filme de tese "discreto", poderíamos dizer, que parte de uma indagação mais genérica e constrói, a partir do "corpo a corpo" com a experiência particular de uma igreja, o seu argumento. D e certa forma, a hipótese implícita (que explica a eficácia pentecostal naquele contexto) é sabida ou intuída de antemão, como lemos nalguns depoimentos de João Salles36. Escolhe-se uma instituição 36

"D ecidi fazer o documentário sobre os evangélicos[ . . .] por q uê? E u já tinha entrado em contato com os evangélicos nas favelas do Rio de janeiro quando fi z o Notícias, e achei que de fato havia alguma coisa ali, importante, acontecendo, e as pessoas não estavam vendo direito.[ . . .] Trata-se de uma ordenação


concreta e singular para acompanhar, em processo, a evidência dessa "resposta". Dentro da estrutura m ais geral do documentário, erig ida em torno da cronologia da igreja e da filmagem, domina um intenso paralelismo de situações que apresentam o cotidian o da igreja e as atividades missionárias do grupo. Cada segmento temporal é composto d e uma série de seqüências, bastante heterogêneas entre si. Algumas se estruturam a partir da narrativa de um personagem ("a história de Zezé", "a história de Carmem" etc.). Outras descrevem alguma atividade na igreja, aproveitando para introduzir informações acerca de conteúdos da doutrina ou do ritual. Algumas, mais narrativas, dedicam-se exclusivamente ao registro de atividad es do g rupo, sem associar a elas informações ou explicações. Outras seqüências são curtas, sintéticas e mais evidentemente retóricas: penso no pequeno bloco em que Veronilson é mostrado brevemente trabalhando como servente de pedreiro numa obra na Barra da Tijuca, para, em seguida, ser visto à noida vida de pessoas que estão imersas na anarquia da vida ma rginalizada brasileira". (Entrevista à Cinemais (25), p. 14).

te em sua casa humilde, diante do espelho, ajeitando a gravata para ir ao culto. Assim, o filme expõe sumariamente o contraste entre Veronilson no trabalho (subalterno entre os subalternos) e sua participação na igreja, onde assu me posição de destaque ou, no mínimo, d e igualdade. Em suma: na igreja V eronilson veste papel inverso ao que tem no trabalho (e, ampliando a escala, na "sociedade"); a igreja é o espaço onde ele pode ser protagonista no cotidiano. Há, porta nto, bastante heterogeneidade no princípio de composição das seqüências que integram cada segmento temporal. O documentário n ão é restritivo ou dogmático em seu princípio compositivo; ao contrário, aposta na pluralidade. Outra característica de Santa Cruz é a presença marcante de justaposições. Muitas seqüências comportam justaposição de planos provenientes de distintas situações, não havendo, de modo geral, respeito excessivo à "cena" (segmento espaço-temporal) como princípio de construção das seqüências37. Outro traço marcante 37

Bom exemplo é a seqüência "o Espírito Santo se manifesta". Nesse bloco, estruturado pelo registro de uma cena de culto noturno, há quebras do segmento

r68


é a presença de trilha musical externa, mobilizada na maioria dos segmentos, a pontuar quase todo o documentário. Tais características formais, segundo me parece, são mobilizadas sobretudo para introjetar, numa estrutura cronológica discreta (baseada na observação da experiência), informações e um argumento tácito. Pois Santa Cruz não é mero registro cronológico. Sua estrutura é mais ambiciosa. Eu diria que ela se sustenta, em termos de argumento, no movimento ou crescendo dado pelo conteúdo de mudança dos indivíduos, do grupo e do bairro onde a igreja se implanta, introduzido progressivamente e desenvolvido por cada grande segmento cronológico. Esse movimento se dá, digamos assim, em direção a um maior grau de dignidade, e todas as mudanças que observamos no filme-na vida dos convertidos, da Casa de Oração ou da vizinhança-expressam esta dignidade propiciada pela conversão. É como se a igreja "preen-

chesse", aos poucos, um espaço vazio, um grau zero de dignidade, de ordem, de comunidade e de relações sociais positivas. Relevante notar que, para equacionar sua "resposta", o documentário faz, de antemão, escolhas estratégicas; por exemplo, a escolha da igreja e do período de gravação. A Casa de Oração Jesus é o General se encontrava na periferia de Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro, região mais evangélica de uma das cidades mais evangélicas do Brasi!38. Há, de um lado, vontade de atu38

A zona oeste, onde se localiza Santa Cruz, apresenta a maior concentração de templos evangélicos por domicílio do Rio de Janeiro, segundo dados do Censo Institucional Evangélico realizado pelo ISER em 1992 (ver Fernandes et alli, 1998 e Antoniazzi et alli, 1996). "Mais do que uma igreja por dia útil" foram criadas na região metropolitana do Rio em 1992, como sublinha Regina Novaes, analisando os dad os do mesmo censo. Importante nota r que, dessas, 91,26% eram pentecostais, e 8o% delas se localizavam nas áreas mais pobres da cidade (Fer-

espaço-temporal (espaço d a ig reja, à noite), pa ra introdução de planos prove-

nandes et alli, 1998: 9). Assim, a modesta fachada da ig reja, mostrada no doeu-

nientes de outras situações (sobretudo depoimentos), que a judam a explicar al-

mentá rio recorridas vezes, remete ao que escreveu Rubem Cesar Fernandes ao

g uns conteúdos introduz idos na cena do culto: os "dons do E spírito Santo", o

analisar os dados do Censo Institucional Evangélico: a imagem da pequena ig re-

"díz imo" e as "g raças" obtidas após a conversão.

ja evangélica já é "lugar comum" no Rio de Janeiro, sobretudo em sua peri fe ria.


alidade: Santa Cruz quer flagrar um processo social significativo em curso no país, uma típica "história brasileira" de nossos dias. Por outro lado, ao escolher como unidade de observação uma pequena igreja autônoma recém-criada (que contava apenas com uma sede, nenhuma filial), o documentário exclui de seu campo de observação as grandes igrejas neopentecostais de organização institucional e administrativa centralizada, como a Universal do Reino de Deus, caracterizadas pela racionalização e rotinização da oferta de serviços mágicos nos inúmeros templos espalhados pelas grandes cidades brasileiras-um dia de culto para cura, outro para prosperidade, outro para libertação dos demônios e assim por diante (Alvito, 2001: r8r)39. A definição do "momento" a documentar é também crucial: ao focalizar uma igreja autôno-

ma em começo de trajeto, quando a "obra" começa e o futuro ainda se mostra cheio de promessas, opta-se por flagrar a instituição em seu momento "virtuoso" -quando a intervenção na vida dos convertidos, ainda que inicial, é notável; e quando a fé e a união em torno do projeto que se constrói ainda são mais fortes do que os limites impostos pela rotina da instituição consolidada e por sua lógica de reprodução. Com essas escolhas, o filme evidencia o projeto de lançar sobre a experiência pentecostal um "outro olhar" -internalista e compreensivo, de encontro às representações correntes e dominantes, diverso das formas estigmatizantes como o pentecostalismo vem sendo comumente representado na mídia e no cinema brasileiros40. 40

39

Na mídia "não-religi osa" e aberta, as religiões evangélicas continuam sendo re-

Diferentemente das pequenas congregações autônomas localizadas em bairros

presentadas de modo caricatura! e preconceituoso-sobretudo pela "grande

periféricos, a Universal tende a loca li zar seus templos em grandes vias de co-

imprensa", excluindo-se aqui a imprensa popular (em que, como mostra AI-

mércio e passagem, atraindo fiéis de diversas procedências. Sua tendência, por-

viro, a tendência mais forte, ao m enos no Rio, continua sendo a demonização

tanto, não é "forma r comunidade'', mas compor uma clientela flutuante em

das religiões afro-brasi leiras e a "vitimização" dos evangélicos, o que mostra a

busca de serv iços religiosos oferecidos em cultos bastantes especiali zados-e,

força da presença desses últimos, hoje, entre as classes populares; Alvito,

nalguns casos, muito lucrativos.

209-215).

2001:

A associação entre "pobre" e "evangélico" vem se disseminando nas

170


Tentarei abordar o crescendo de dignidade elaborado pelo documentário (e assim ev idenciar a maneira como ele se relaciona com a experiência focalizada) observando mais detidamente três segmentos. Para desenvolver sua "resposta" tácita, Santa Cruz investe em duas estratégias principais: a ênfase em determinadas atividades desenvolvidas pelos fiéis a partir da igreja (que sublinham, por exemplo, o potencial da igreja para formar comunidade moral e rede de ajuda mútua); e a criação m ais evidente e elaborada de significação na montagem, através do agenciamento de imagens e sons. N esses trechos, o que está em pauta é sobretudo o "preenchimento" de sentido operado pela doutrina na vida dos convertidos. São trechos que sugerem uma empatia mais prorepresentações audiovisuais, e os retratos dos crentes esboçados pelas ficções estão saturados de ca racterizações negativas (pe rsonagens fanáticos, histéricos, repetidores de frases prontas, às vezes cínicos, às vezes recalcados). Nessa direção, um fi lme como Contra todos (Roberto Moreira, 2004) é eloqüente - ainda que interessante sob muitos aspectos. Alguns documentários contemporâ neos (Santa Cruz , Santo forte e também Fé, de Rica rdo Dias) buscam representações

menos submetidas ao preconceito - nesse sentido, remam contra a corrente.

funda, já que o documentário se vale de critérios afinados com a perspectiva evangélica em sua composição (deixando-se também contaminar por tal "preenchimento"). Vejamos. ~PRÓLOGO

Primeiro, o prólogo. Santa Cruz abre com um segm ento de apresentação. Nele, além da sintética introdução à localidade de Parque Florestal, à igreja e a seu criador, e de uma evocação da memória dos "primeiríssimos tempos" da Casa de Oração (através dos d epoimentos de duas fiéis), inicia-se a elaboração de um argumento sobre a experiência que o documentário se propõe a retratar. Em boa parte dele, por implícito o "argum ento", talvez pudéssemos falar simplesmente em "ênfase" - o documentário opta por sublinhar determinados aspectos em detrimento de outros, construindo uma "versão" da experiência que retrata (evidentem ente caracterizada por certas ênfases e certas omissões). Mas há trechos, como o prólogo, que são mais retóricos. Mais do que a d escrição do lugar ou a narração do começo do trajeto da ig reja, parece-me que Santa Cruz visa elaborar aqui a imagem de um "grau zero" ou de um "terreno vazio" a semear. As primeiras imagens de Parque F lorestal, comentadas


pelo canto da missionária, enunciado logo no primeiro plano do documentário ("Neste mundo tem tristeza/e muita tribulação/ meu amigo aceita Cristo/é a única solução"), são índices de precariedade: uma rua enlameada, um barraco de fachada despojada (espaço da Casa de Oração, que ainda não conhecemos), uma placa pintada à mão em que se anuncia "vende-se um terreno" (espécie de emblema da situação de moradia instável e irregular). Mais adiante, o depoimento de uma vendedora de bar nos dirá mais sobre a desolação desse lugar: não há movimento por falta de dinheiro e porque vigora um clima de insegurança impreciso mas generalizado, decorrente de algum tipo de comércio ilícito ali estabelecido. O comentário do narrador também ajuda a compor o quadro: "Neste lugar, longe da ordem, da lei e da proteção do Estado, moram dezenas de famílias, quase todas de migrantes nordestinos". Sua descrição de Parque Florestal está estruturada em torno da ausência: de árvores ("que já não existem"), de lei, de ordem, do Estado. O tom da música instrumental, que fa z base a toda a seqüência, é de melancolia. O "grau zero" também será sugerido pela solidão do pastor Jamil (apresentado atravessando a periferia de Santa Cruz de

bicicleta e, adiante, retratado no púlpito da igreja vazia, à espera angustiada de fiéis); e pelos depoimentos de duas fiéis que relembram os "primeiríssimos tempos" da igreja-quando as paredes do antigo barraco de madeira pareciam prestes a desabar e o pastor pregava apenas "pros grilos e pros sapos". Até que o documentário nos apresenta a primeira seqüência anunciada por um intertítulo. Trata-se também da primeira narrativa individual ("A história de Zezé"), uma história de conversão exemplar: Zezé conta que se sentia abandonada pela família, que não a freqüentava por causa de seu marido alcoólatra, e que encontrou no pastor e na igreja o apoio que lhe fal tava. Naquele mundo de tristeza e tribulação (segundo a letra do hino que introduz o documentário), no vazio ou "grau zero" de dignidade apresentado pelo prólogo, aceitar Cristo apresentou-se como solução, gesto individual de mudança e de negação de um estado de coisas caracterizado por ausências-gesto cujo alcance e dimensão o filme nos apresentará em seu percurso de representação, mostrando passo a passo o tipo de "preenchimento" e ordenação operados pela igreja na vida dos convertidos e no entorno. Enquanto Zezé narra sua história, Santa Cruz justapõe cenas do


pastor na igreja às imagens da entrevista, ao que parece realizada na casa da convertida. Importante sublinhar que o documentário não apenas apresenta a localidade d e Parque Florestal ·em afinidade com a perspectiva religiosa - as primeiras imagens do lugar são comentadas por um hino evangélico que caracteriza o mundo como de tristeza e tribulação-como permite a associação entre o contexto de desolação onde a igreja foi construída, a precariedade dos primeiros tempos, e a história singular de Zezé, a primeira das convertidas apresentada. Há, seg undo me parece, a tendência a uma representação que opõe o "mundo" em bloco à "igreja". Essa oposição contamina todas as esferas, igualando sob a idéia de "mundo" ta nto a localidade onde a igreja se implanta quanto a esfera pública (marcada por ausências), e as vidas privadas dos convertidos, antes da conversão. Observemos que a trajetória de conversão de Zezé não é apresentada de um ponto de vista exclusivamente subj etivo, acompanhando (via narrativa, por exemplo) os percalços domésticos enfrentados anteriormente pela família, e as subseqüentes mudanças; diferente disso, ela é sumarizada e relacionada, du-

rante o depoimento, a imagens do pastor na Casa de Oração. Percebemos assim que sua história interessa enquanto trajetória de conversão. Ela se encaixa num percurso de representação da ig reja - sua vida anterior integra o contexto de ausências sumarizado pelo prólogo (no qual cabem tanto sua história doméstica quanto os terrenos invadidos, as ruas sem asfalto, as árvores que já não existem, a ausência "da lei, da ordem e da proteção doEstado", a falta de dinheiro e a insinuação de criminalidade); após a conversão, sua experiência estará circunscrita à de fiel da Casa de Oração. Notemos que, segundo a estruturação de Santa Cruz, o "estado de coisas" negado pelo gesto individual de conversão não se refere a uma opção religiosa anterior (nunca tematizada), mas a um "mundo" tomado em bloco como imagem do vazio-tanto na esfera pública quanto na esfera privada (marcada por problemas irresolúveis e desamparo). Com a conversão, é como se Zezé negasse o "mundo" em todas as suas dimensões, num só gesto41. 41

A partir da "história de Zezé", conversão exemplar e ponto de inflexão, o documentário esta rá a pto a mostra r os passos de expansão da ig reja, progressivamente, em seus três segmentos cronológicos.


Tal imbricação entre vida doméstica e esfera pública assemelha-se à totalização empreendida pela doutrina pentecostal na representação do "mundo" (fora da igreja): mundo desordenado, mundo mau, que massacra o indivíduo, e que deve ser superado em bloco por aquele que, individualmente, aceita Cristo e encontra na igreja uma outra ordem42. Mais tarde ouviremos a missionária dizer: "quando eu vivia fora eu vivia sofrendo". Há nessa fala uma significativa metáfora espacial para se referir à conversão: "fora" e "dentro" da igreja, metáfora de que Santa Cruz também se valerá, 42

Como escreve Rubem César Fernandes: "Os evangélicos no Brasil usam am iúde a distinção entre igreja e mundo. A igreja, como se disse do Cristo, está no mundo mas não é do mundo. [ ... ] Refere-se ele, em termos sociológicos, à natureza dos vínculos que fundamentam a vida em sociedade.[ ... ] Corrompidos pelo pecado, os laços humanos formam 'o mundo' como o encontramos ao nascer; lavados pelo sangue de Cristo, formam 'a igreja', expressão e testemunha de uma nova ordem de existência ainda por vir.[ .. .] Predomina entre os evangélicos brasileiros a tendência que enfatizao afastamento entre as duas ordens simbólicas. 'Ser crente', costuma-se dizer, 'é ser diferente'" (apud Antoniazz i

et a/li, 1996: 173).

ao explorar a imagem dos convertidos contidos "dentro" da igreja, vistos através de sua única janela (no plano recorrente que enquadra a fachada da Casa de Oração, captado em diferentes momentos e distribuído no decorrer de todo o documentário). Assim, o tom do prólogo e a representação do "mundo" em preendida apontam para a capacidade de empatia do documentário pela perspectiva evangélica. Esse movimento é coroado pela primeira série de retratos (posicionada ao final do prólogo), em que fiéis, no interior da igreja, lêem trechos do Salmo 91 ou simplesmente encaram a câmera, segurando a Bíblia. N essa série, cuja composição é equilibrada, ordenada, dignificante, Santa Cruz realiza uma espécie de "álbum" fílmico dos convertidos "salvos" pela igreja-algo como o documento visual fundador de uma comunidade. O "álbum" retornará ao final de outros segmentos cronológicos, incluindo novos crentes à galeria de convertidos pela Casa de Oração Jesus é o General. Nessa série, o documentário representa positivamente "o povo", retirado das tribulações do "mundo" para encontrar na igreja uma comunidade de irmãos de fé e uma dignidade possível-dignidade que se espalha de "dentro" para "fora" da Casa de Oração, como se observa no decorrer de Santa Cruz.

1

74


;r, SALMO 91

(APRESENTANDO RIZONEIDE)

Proponho analisar agora uma seqüência não demarcada por intertítulo-vou chamá-la de "O Salmo 91 (apresentando Rizoneide)". Ela integra o segmento temporal "Os primeiros três meses" (que sucede o prólogo já analisado). A seqüência se inicia com um depoimento de Zezé. Sentada numa cadeira no meio da rua, folheando a Bíblia, ela recomenda à equipe o Salmo 9r. Na medida em que comenta a importância do salmo, invocado em momentos de dificuldade, sua fala se torna over e cobre flagrantes prosaicos do cotidiano em Parque Florestal. Em seqüência, o fil me mostra a fachada da igreja e, d entro dela, Rizoneide aparece sentada lendo o mesmo salmo. A personagem é apresentada pelo comentário do narrador43. No momento em que ele se refere às "horas mais penosas", a montagem corta do interior da igreja para 43

"Rizoneide é migrante da Paraíba. Mora há três anos no Rio. D esde criança diz ser muito triste, e fala de sua vida como um grande esforço para vencer a melancolia. Lê os salmos todos os dias. O de número 91, mais poderoso, Rizoneide invoca nas horas mais penosas, como neste momento, em que D aniel, seu fi lho de três meses, está internado num hospital público com pneumonia".

um hospital, onde vemos Rizoneide, esperando. As cenas no hospital seguem, então, justapostas às da leitura da Bíblia na igreja. Importante notar que o tema do Salmo 91 costura as duas situações distintas (Zezé falando à equipe, Rizoneide na igreja e no hospital). O cotidiano de Rizoneide e seu problema doméstico (a doença do filho) são apresentados a partir do tema do salmo, endossando a representação do "mundo", pelo filme, numa relação de empatia com a perspectiva da religião. Assim, a seqüência breve do hospital aparece na montagem não como desdobramento da apresentação da personagem (e de seu cotidiano), mas como situação exemplar em que o Salmo 91 é invocado - quando em mais uma situação de tribulação ou desacerto do "mundo", Rizoneide deve invocar Jesus para suportar a travessia. Esse segmento cronológico ("Os primeiros três meses") põe em foco (sobretudo nalguns trechos pontuais) a rede de ajuda mútua criada a partir da igreja. Logo na primeira seqüência do segmento, vemos a igreja cheia de fiéis, reunidos em torno de uma atividade de solidariedade (uma aula de alfabetização improvisada pelos "irmãos" para que o pedreiro Veronilson aprenda a ler). Na seqüência agora privilegiada, Santa Cruz realiza outra


operação de "legitimação" -se não da prática, agora da visão de mundo e da doutrina pentecostais. Trata-se da organização de uma seqüência a partir de um parâmetro afinado com a visão de mundo e o ethos pentecostais. Refiro-me à escolha de um critério " religioso" - o Salmo 91 (talvez o trecho da Bíblia mais conhecido e valorizado pelos crentes, aquele que afirma sua invencibilidade diante das adversidades, pela proteção do Senhor)-para representação do "mundo" e da experiência de uma fiel. Falo em "critério religioso", mas o correto talvez seja sublinhar a contaminação profunda entre experiência cotidiana e interpretação (e ação) religiosas (de modo que tudo passa a ser visto como "religioso"), tão corrente entre os evangélicos-e que o documentário incorpora na estruturação da seqüência. As explicações e representações passam a ter, após a conversão, uma matriz única de significações, integrando todas as experiências sob a égide do sentido doutrinário44. Não se trata apenas de "in-

terpretar" o problema religiosamente, mas de interpelá-lo religiosamente. Esse aspecto é notável na fala de Zezé (primeira parte da seqüência), que afirma "correr" para o Salmo 91 em momentos de "aflição, angústia, socorro, quando você estiver tipo acorrentado" (como se a palavra da Bíblia atuasse como um remédio mágico, imbuída de poder de intervenção no cotidiano e "cura" de todos os males). Se o problema e o sofrimento são "combatidos" religiosamente, eles são também, como já dito, "interpretados" religiosamente -pela fiel e pelo documentário45. Essa "contaminação" das esferas (religiosa e cotidiana) aparece ainda na fala de Veronilson, na primeira seqüência dessa intensa dos crentes são experiências capazes de da r um sentido unitário à existência e fornecer meios d e realizar uma integração sistemática entre preceitos religiosos e conduta cotidiana" (Novaes, 1985: 132).

45

Como escreve C li fford Geertz, "como problema religioso, o problema d o sofrimento é, paradoxalmente, não como evitar o sofrimento, mas como sofrer,

44

Segundo Regina Novaes, "a realização da identidade crente oferece meios pa-

como fazer da dor física, da perda pessoal, da derrota frente ao mundo ou da

ra a integração sistemática entre os preceitos religiosos e a conduta cotidiana.

impotente contemplação da agonia alheia algo tolerável, suportável-sofrível,

[ . .. ] Essa contaminação se dá, a meu ver, porque a 'conversão' e a vida religio-

se assim podemos dizer" (Geertz, 1978: 119; grifos meus).


se mesmo segmento. O personagem "significa" sua experiência anterior e atual a partir de uma leitura religiosa: "Se fosse pra ler as coisas do mundo, eu já tinha aprendido antes; tô me esforçando agora para poder ler a palavra de D eus". A religião dá sentido à experiência passada e à experiência presente, e impõe diretrizes para a vida cotidiana do convertido, explicando um histórico de analfabetismo e justificando o atual esforço individual d e mudança, apoiado pelos irmãos. É o que observamos também na fala de Rubens, na seqüência "O Espírito Santo se Manifesta", que integra o mesmo segm ento temporal: "Fiquei dois anos sem trabalhar. D epois que eu aceitei Jesus é que as portas de emprego abriu para mim". Para combater o problema do desemprego, interpretado religiosamente, os instrumentos são também religiosos: aceitar Jesus, em primeiro lugar; do ponto de vista ritual, orar impondo as mãos sobre carteiras de trabalho, como vemos em cena curta do culto, justaposta à narrativa do personagem. O caminho para o emprego, possivelmente obtido através da rede de ajuda formada a partir da comunidade d e irmãos, não é evidenciado pelo documentá rio. A interpretação religiosa, por outro lado, o é, em mais um indício de subordina-

ção do filme, respeitosamente, às explicações e à visão de mundo da religião. i'tJte OS TRÊS Ú LTIMOS MESES

Por fim. <J hnrrl :> r =;

-- - ~ ,seqüência

do segmento temporal final,

"Os três últimos meses". Vou chamá-la de "O bairro dos convertidos + a pintura da igreja". Ela é composta de apenas duas situações. Na primeira, Zezé mostra e faz comentários sobre o bairro para a equipe de gravação, tecendo avaliações definitivas sobre a presença da ig reja e sua margem d e atuação no lugar46. Na segunda situação, mais longa, o pastor e alguns fiéis pintam a igreja, observados por vários outros integrantes da Casa de Oração Jesus é o General, que comentam os resultados. 46

"Só aqui d entro desse conjunto, dessa invasão, tem

30

e poucos membros da

ig reja aqui . . . O pessoal faz questão de comprar lote aqui, de trocar ... porque é um bairro sossegado também . . . Antigamente você com prava lote até por reais .. agora o m ais barato é

2.500, 3000 ...

300

valorizou demais .. . existe m ais

amizade, m ais a proximação entre os vizinhos, coisa q ue não existia, era cada uma na sua casa ... H omem era mais em po rta de boteco, agora eles tão mais meigos, mais am o rosos, procuram fica r m ais com a gente dentro de casa . .. "


Esse terceiro e último segmento temporal aponta encaminhamentos e conclusões para questões que vinham sendo trabalhadas no decorrer do documentário, tecendo o argumento implícito que "responde", de alguma forma, à pergunta essencial de Santa Cruz: por que o pentecostalismo é eficaz nesse grupo social? Ele sela a culminância do processo de "preenchimento" progressivo identificável no decorrer dos blocos cronológicos que compõem o documentário, a partir do "grau zero de dignidade" elaborado no prólogo. Assim, pouco a pouco, a igreja antes vazia se enche de fiéis; V eronilson começa a aprender as letras na igreja, ajudado pelos irmãos; o pastor Jamil faz planos de expansão ("Nem é pelo nosso querer, é pelo querer de Deus mesmo"); a dignidade propiciada pela conversão contamina a vida dos convertidos (Rubens, por exemplo, antes alcoólatra, converte-se e consegue um emprego), que preenchem seu cotidiano (e o de outras pessoas incluídas em seu rol de solidariedade e proselitismo) com uma participação intensa em atividades dentro e fora da igreja, que não raro se convertem em formas de sociabilidade, de encontro, de celebração. A seqüência definitiva nesse percurso é a que abordarei agora.

A fala de Zezé (a primeira convertida, segundo o documentário) sintetiza e sela bem a abrangência das mudanças no "mundo" proporcionadas pela atuação da igreja no contexto em que se implanta. É uma fiel que diz, não o filme, que assim pode afirmar verbalmente, através do discurso dela, as mudanças que vinha buscando "mostrar", sem enunciá-las verbalmente. Que mudanças são essas? A integração promovida pela igreja criou amizade entre vizinhos, formou rede de apoio e ajuda mútua entre iguais, valorizando e "preenchendo" de relações positivas o bairro antes ruim, "terra de ninguém", vazio civilizatório. Como referido, o conceito de "mundo" praticado pela doutrina (e adotado pelo documentário) abarca da localidade à esfera doméstica, e na narrativa da primeira convertida a margem de atuação positiva da igreja atinge também as relações familiares: os maridos estão mais meigos, pararam de beber, ficam mais tempo com as mulheres dentro de casa47. 47

As mudanças no padrão tradicional de relação entre os gêneros, sob o pente costalismo, é um dos temas mais presentes em estudos atuais de sociologia e an tropologia dessa religião (ver Machado, 1996); estudos que afirmam o po-


Após a participação de Zezé, Santa Cruz registra a atividade de pintura da fachada da Casa de Oração por alguns fiéis. A atividade, realizada em mutirão, reforça o caráter de "associação" voluntária e autônoma da igreja, ao mesmo tempo em que expressa, na fachada da igreja, as mudanças que observamos pela vida dos convertidos e do bairro, ao longo do documentário. Na fachada, motivo recorrente, se inscreve agora, através da pintura coletiva, o "preenchimento" de dignidade operado pela instituição precária no entorno. Lembremos que uma das primeiras imagens do prólogo é justamente essa fachada. Sem identificação, ela ainda não pode ser associada, pelo espectador, à Casa de Oração. É apenas um barraco precário em contexto periférico. No decorrer do filme, a imagem da fachada, motivo recorrente, vai sendo "significada" pelas atividades dos fiéis. Muitas dessas atividades, desenvolvidas no espaço de culto, são pontuadas pelo retrato da igreja, o tencial "racionalizador" da conversão, inclusive pelo relacionamento m a is igualitário e m enos machista que se estabelece entre os cônjuges, quando am bos se convertem .

grupo de irmãos às vezes antevisto pela única janela (contidos "dentro" da igreja). Portanto, é significativo que uma das últimas seqüências do documentário mostre o mutirão de pintura empreendido pela associação de fiéis-coletivo que, entre outros "feitos", transforma a fachada da igreja, motivo recorrente, nela expressando o crescendo de mudanças resultantes da conversão dos vizinhos de Parque Florestal. ro,. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES Para concluir, retomo brevemente alguns pontos. Embora opte claramente pela particularização do enfoque, propondo o acompanhamento da experiência de uma única e pequena igreja "crente" no tempo, Santa Cruz visa, como já afirmado, um diagnóstico mais abrangente-empreendido a partir da proposição de uma "pergunta". A indagação que o documentário coloca (na introdução, via narrador) poderia ser assim enunciada: por que razões a doutrina pentecostal é eficaz e tem notável penetração entre os pobres urbanos (no Rio de Janeiro, em fins dos anos 90)? Se não tece uma "resposta" explícita, creio que o documentário trabalha em seu curso, implicitamente, um argumento - que aponta sobretudo o potencial da instituição pentecostal de formar comuni-


dade moral e promover integração social48. No prólogo, como vimos, Santa Cruz trabalha habilmente a idéia de um "grau zero", de um "vazio civilizatório" onde a igreja se implanta, apresentando-se como "solução" para criação de rede e relações positivas entre moradores de uma periferia imprecisa, "longe da lei, da ordem e da proteção do Estado". Bem de acordo com a perspectiva pentecostal, o documentário representa o "mundo" fora da igreja em bloco, incluindo no mesmo "teor" d e representação (e no mesmo processo de adjetivação) a locali48

Embora o comentá rio inicial do na rrador enuncie a presen ça d e uma ética "crente" ascética e restritiva, marcada na prática pela abstinência de tanta coi-

sa, essa dimensão não é retomada nas narrativas dos personagens (à exceção de Carmem, uma das convertidas), nem valorizada na fala do pastor. O que o filme sublinha sem cessar é a formação de comunidade, o papel integrador da ig reja. Por outro lado, aspectos mais místicos não são detidamente tematizados - por exemplo, a experiência pessoal e visível dos convertidos com os poderes extraterrenos (particularmente o transe com o Espírito Santo, presente em tantos cultos). A principal exceção é a seqüência do batismo, quando o documentá rio registra uma cura divina.

dade, a esfera pública e as vidas privadas dos convertidos antes da conversão-tudo caracterizado por ausências, por negatividade. O vazio inicial (que caracteriza o "mundo") é progressivamente preenchido (pela igreja). Para os indivíduos, a mudança ou "preenchimento" propiciados pela conversão se dão sobretudo em dois níveis, segundo o documentário. D e um lado, como Santa Cruz sublinha, no pertencimento a uma comunidade moral que integra, cria sociabilidade e promove ajuda mútua entre iguais, "preenchendo" de relações positivas o cotidiano e a vizinhança. D e outro, trata-se d e um "preenchimento" de sentido: a doutrina fornece interpretações e formas de interpelação dos problemas do cotidiano, como se cada episódio "do mundo" estivesse agora imbuído de uma explicação e de uma resposta religiosas-como vemos na seqüência "organizada" pelo Salmo 91, em que o documentário assume a perspectiva pentecostal de contaminação de esferas em sua própria estruturação. N esse caso, o princípio integrador da doutrina é assumido como princípio de composição-em trechos nos quais se nota, para além do registro respeitoso de alguns aspectos da igreja enfatizados, uma rara capacidad e de empatia.

ISO


CLÁUDIA MESQUITA é doutora em C iências da Comunicação pela EcAiusP. Atua na pesquisa e realização de documentários e pa rticipa, desde I997, da coordenação do foru mdoc.bh (Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte).

PIERUCCI, Antônio Flávio. " A encruzilhada da fé". In: Caderno Mais!. Folha de S. Paulo, I9 de maio de 2002. SALLEs, João. "Como voltar pa ra casa com um fi lme que você não concebeu". Entrevista

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e

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Meditação

TataAmaral

Pronto! Uma duas três quatro cinco. Acaba de estender a última fralda no varal. Seu corpo está suado do esforço e do calor. Gosta do calor. Sente uma sensação de aconchego, paz. Relaxada. Fica olhando os panos balançarem ao vento, como que levando mensagens pra longe. Parece que estão alegres. Os panos. Dá um suspiro forte, daqueles que fazem o ar entrar pelo corpo todo. Sente o ar entrando pelo corpo todo. Gosta de ficar ali, no alto da laje, olhando o mar de casas em volta. Um enorme mar de casas. O morro da mata espremido lá longe ... Logo logo a favela chega lá também. Procura um cigarro no bolso da calça. Esquecida. D eixou lá embaixo. Senta-se assim mesmo, encostada na caixa d'água , olhar perdido pro lado da mata. Um a sensação de nada toma co nta de si. Nada. N ada. N ada. Só o ar inchando e esvaziando a barriga, percorrendo o seu corpo. Só as formas das casas de tijolo vermelho contra o céu azul. Ouve. Ouve bem. Ouve tudo. O que está perto e o que está longe.

Um rádio batucando um samba. A gritaria da criançada. Oscarros velhos subindo e roncando pelo morro da vila. O emaranhado de fios e antenas parabólicas que parece misturado com o trançado das linhas das pipas dos meninos. Lá vão as pipas ... Subindo, agitadas ... Uma sobe mais que as outras, laranja forte, destacando-se no céu azul. Parece que está deslizando, dona do mundo. A segunda vem atrás dela. Verde. Mais clara que o verde da mata. Nervosa. A briga começa, a laranja, lindona, pesadona se afastando da verdinha. A verdinha encardida vem atrás, lépida. Vem chegando, vento favorável. A laranja, impávida! Segue seu curso para longe da pequena, como que lhe negando a bânção de sua companhia. Mas a verdinha é persistente; segue avançando, diminuindo a velocidade. Um vento contra desvia a laranja de sua rota. Ela faz um zigue-zague desnecessário. Pronto! É o que faltava. A verdinha atrás não perde a chance: alcança a laranja e corta a linha. A laranja, coitada, despenca do céu e d a com postura, o fi o emba ralh ado na outra. Pena. Tinh a gostado da vermelha. A gritaria aumenta. Lá embaixo, a criançada também assiste tudo e corre pra catar a pipa vencida. Ela ri, sozinha. Que coisa, parece que bebe!


Em Cidade Tiradentes não há salas de cinema. Uma vez por mês, cerca de 500 pessoas se reúnem na praça desse bairro paulistano, que abriga cerca de 270 mil habitantes e apresenta "o pior IDH da cidade"49, na definição de um de seus moradores, para assistir filmes como Carandiru, de H ector Babenco (2003), obras de Spike L ee ou trabalhos d e realizadores locais, dentre esses, por exemplo, os vídeos da produtora independente Filmagens Periféricas, formada por três moradores da região. São imagens da periferia, na periferia, feitas pela periferia. É desse último movimento, que tem crescido consideravelmente nos úl-

timos dez anos, que trata este artigo: o que acontece quando pessoas e grupos que outrora desempenhavam o papel de homens filmados-o lugar que ocupavam até então na historiografia do cinema brasileiro- passam a enfrentar a condição de realizadores de suas próprias imagens. A produção de imagens por moradores das periferias brasileiras se dá em contextos diversos. Um dos mais comuns é o oferecimento de "oficinas" de vídeo ou cinema por parte de instituições privadas, públicas ou ONGS para as comunidades. Nessas oficinas, destinadas predominantemente a crianças e jovens de baixa renda, tem-se contato com equipamento de vídeo, um pouco de história do cinema, noções de linguagem cinematográfica50. Algumas produções (curtas e médias-metragens, documentários, ficções ou "doc-fics"51) são realizadas durante as oficinas. Grupos

49

50

"De dentro do bagulho": o vídeo a partir da periferia

Clarisse Castro de Alvarenga e Rose Satiko Gitirana Hikifi

C idade Tiradentes é o terceiro distrito com maior índ ice de vulnerabilidade

H á grande diversidade entre as propostas de oficinas de prod ução de audio-

juvenil (IVJ-Fundação Seade) e o sexto pior índice de desenvolvim ento hu-

visual contemporâneas. Analisaremos alg umas experiências às quais tivemos

mano (IDH) do município de São Paulo. A ausência de salas de cinema e de ou-

acesso, mas não é nosso propósito realizar um levantamento exaustivo ou mes-

tros equipamentos de cultura e lazer não é excl usividade desse distrito; é uma

mo uma análise comparativa.

característica da maior parte dos bairros periféricos das capitais brasileiras.

51

A categoria "doe-fie" foi apresentada por professores durante uma Oficina Ki-


que participaram de oficinas eventualmente decidem continuar a produzir vídeos, mesmo com câmeras emprestadas e ilhas "invadidas" em momentos de menor movimento. Há também casos de produtores independentes que se formam com o apoio de associações de moradores ou instituições atuantes nas comunidades.

a "formação do olhar"52, transmitem o que julgam interessante sobre a história do cinema e a linguagem cinematográfica, organizam o processo de realização do audiovisual e, muitas vezes, ainda programam a exibição dos trabalhos, que pode acontecer em salas

r.,

52

TROCAS E NEGOCIAÇÕES

As oficinas colocam em relação "oficineiros" (profissionais, estudantes de cinema ou ex-alunos de oficinas) e participantes. Os primeiros carregam sua bagagem cinematográfica: são eles quem escolhem os filmes que serão exibidos em um processo que visa

Há, em vários dos projetos de capacitação audiovisual, uma preocupação em desconstruir olhares já condicionados pelas narrativas midiáticas predominantes-a reportagem sensacionalista, o videoclipe, a novela - apontando outras possibilidades de realização. O termo "formação do olhar", que nomeia um fórum de exibição e debates de produções audiovisuais em oficinas, foi questionado durante a estréia do próprio fórum, dentro da programação do Festival

noforum no bairro do Jaguaré, em São Paulo, em junho de

2005.

As oficinas

de realização audiovisual da Associação Kinoforum são oferecidas desde para jovens de

17

a

25

2001

anos, em geral, moradores de bairros periféricos de São

Paulo. Os vídeos produzidos estão disponíveis no site www.kinoforum.org.br.

Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, em

2002 ,

pelo crítico e ensa-

ísta Jean-Ciaude Bernardet que sugeriu substituir a perspectiva da formação pela "deformação do olhar". Na Mostra Internacional de Curtas de São Paulo de

2004,

alguns participantes também argumentaram que os olhares dos jo-

Os professores, ex-alunos da Kinoforum, utilizaram a terminologia "doe-fie"

vens já estavam formados, e precisavam, portanto, ser "deformados". Uma das

para explicar aos alunos a possibilidade de permear com ficções um vídeo com

estratégias de "deformação" é a apresentação em oficinas de filme s e vídeos de

pretensão documental. Destacamos aqui a categoria menos por sua precisão ou

tradições diversificadas, como o Cinema Marginal, o Cinema Novo e produ-

inovação conceitual que pelo fato de sua criação evidenciar a necessidade de no-

ções de grupos participantes de oficinas, caracterizadas pela experimentação

vos parâmetros para se pensar o lugar da ficção no documentário.

com a linguagem cinematográfica.


de cinema ou espaços alternativos. Os participantes, em geral, escolhem o objeto do filme, definem os argumentos, são os responsáveis pela captação de sons e imagens, pela realização de entrevistas e pela criação da trilha sonora. Após as gravações, as imagens podem vir a ser discutidas coletivamente, antes de se iniciar a edição, que em geral é atribuída a um técnico contratado pelo projeto53. A partir da análise de uma série de vídeos produzidos em vários estados brasileiros, é possível dizer que, na troca entre proponentes e alunos, o que estes últimos têm a oferecer no processo das oficinas é sua experiência, construída, sobretudo, no cotidiano das comunidades. Essa experiência é múltipla. Por vezes, constitui-se no exercício das estratégias de sobrevivência, em contextos marcados pela falta-de opções de lazer, de educação, de saúde, de segurança. Mas é também tecida nas redes de sociabilidade muitas vezes densas que constituem a vida em um bairro perifé-

rico. Ora é a experiência da violência-dos conflitos resolvidos "na bala", dos pequenos perdidos no tráfico. Ora, a experiência estética, experimentada na prática de música, dança, grafite e vídeo, em meio ao ocre e cinza da paisagem da periferia. O contato com o participante da oficina freqüentemente afeta o oficineiro. Alguns afirmam que as oficinas mudaram sua forma de pensar e fazer cinema54. Para Diogo 90, cineasta que ministra oficinas dentro de projetos como o Cala Boca já Morreu, promovido pela Gens Serviços Educacionais, de São Paulo, ostrabalhos feitos em oficinas constituem uma produção colaborativa, sem regras fixas, o que permite aos cineastas "subverterem as maneiras de se fazer um filme" (Alvarenga, 2004: 130). Isso porque no trabalho em oficinas não há a estrutura de produção hierarquizada, dominada pela figura de um diretor ou de um produtor, 54

53

Ouvimos depoimentos de coordenadores e professores de oficinas de todo o

Há exceções, como as oficinas da Associação C ultural Kinoforum, de São Pau-

país, assim como d e jovens participantes de oficinas e produtores independen-

lo, que hoje trabalham com o que chamam de "Módulo 2 " -

tes, durante o fórum "Formação do O lhar" de

já passaram por uma fase inicial de aprendizado audiovisual ticipantes aprendem a editar e editam os trabalhos.

para alunos que no qual os par-

C la risse Alvarenga

(2004)

2002

e

2004.

A dissertação de

traz outros depoimentos colhidos entre 2002 e 2004

durante sua pesquisa de mestrado.


como nas produções comerciais. Moira Toledo, professora das Oficinas Kinoforum, tem convidado vários de seus ex-alunos para suas próprias realizações. "O comprometimento deles com o trabalho é maior. É diferente do de um jovem de classe média. Eles renovam, porque trazem umfeedback crítico, são criativos e comprometidos". No caso dos ex-alunos que são hoje monitores das oficinas, Moira destaca o fato de eles dialogarem com o aluno (geralmente, também morador da periferia) de forma menos hierarquizada: "o monitor que vem de uma classe social menos privilegiada, que começou sua experiência de cinema a partir de uma oficina, traz uma contribuição mais horizontal. O a rgumento de autoridade dele é uma autoridade de trabalho, de experiên cia. O que importa é que naquela hora, câmera na mão, ele sabe mais que aquele aluno, e contribui, ensinando os meninos, pobres ou não, e se sente recompensado porque ele percebe que o conhecimento dele é comunicável, tem valor, q ue ele pode ser um multiplicador das informações que vem aprendendo". Éder A ugusto, que participou dos dois módulos das Oficinas Kinoforum em 2 003, além de atuar como professor nas Oficinas, tem pa rticipado das produções de seus ex-professores, entre elas, um curta e um

longa-metragem em 35 mm de Christian Saghaard, coordenador da Kinoforum, nos quais realizou a assistência de direção (curta), o casting e estágio de direção (longa). Além disso, Éder vem desenvolvendo com seu grupo o Arroz, Feijão, C inema e Vídeo, projetos d e oficinas em Taipas, zona norte de São Paulo55. Os processos de produção de audiovisual envolvem diversos atores (professores do centro, alunos da periferia - e vice-versa: alunos do centro, professores da periferia) e instituições (privadas, públicas, não-governamentais). As produ ções, quase sempre coletivas, são resultado de muita discussão e de um aprendizado que envolve pessoas e grupos com características muito diversas. Na oficina Kinoforum realizada no Jaguaré56, zona oeste de São 55

Recentemente, o grupo foi contemplado com ve rba do Programa de Valorização das Iniciativas Culturais do Município de São Paulo (vAr - decreto-lei 43.823/o3), que permitiu a aquisição de câm eras fotográficas e de vídeo e ilha de edição, que viabilizarão a realização de oficinas d e vídeo e de jornais no formato "zine".

56

Essa oficina foi acompanhada como parte da pesquisa d e cam po que Rose Satiko Hikiji realizou para seu pós-doutorado em Antropologia.

186


Paulo, em parceria com a ONG Cala-boca já Morreu, havia, entre os alunos, jovens que participam de atividades da ONG, entre eles moradores de uma das favelas do bairro, pacientes do Centro de Atendimento Psico-Social (cAPEs), estudantes universitários (da usP, do Mackenzie, da Fundação Instituto Tecnológico de Osasco FITo), jovens de classe média. Entre os professores, além de cineastas, havia um grupo de ex-alunos da Kinoforum, formados em oficinas oferecidas em outros bairros periféricos de São Paulo, bairros nos quais moram e continuam atuando como realizadores ou promotores de debates acerca do cinema e do vídeo. A convivência entre pessoas e grupos heterogêneos - tanto no caso dos alunos, como no dos professores - implica uma constante negociação e resulta em um processo de troca intenso. Os caminhos da negociação se deixam ver em alguns dos vídeos. Pré--ambiente, vídeo produzido nas Oficinas de Audiovisual do projeto BH CidadaniaS?, tematiza a Vila Senhor dos Passos,

localizada na região noroeste de Belo Horizonte. O letreiro inserido na abertura conduz a leitura do vídeo atribuindo sua autoria aos jovens moradores do bairro: "Este vídeo reflete o olhar dos jovens da vila Senhor dos Passos que de forma livre escolheram os entrevistados, o roteiro das entrevistas e a seleção das imagens". Já o letreiro final aponta o peso das instituições (prefeitura, governo federal) no projeto de realização do vídeo: "A vila Senhor dos Passos é a primeira comunidade de BH onde está sendo implementado o Programa Habitar Brasil/Bid que é um programa do Governo Federal. Seu objetivo é melhorar a qualidade de vida da população por meio de um plano integrado de ações que propõe a reestruturação urbanística ambiental com vistas a garantir a autosustentação das famílias moradoras da vila". A oscilação entre o documentário institucional e o vídeo que mais altos índices de risco social e violência. A idéia que perpassa esse e vários outros projetos de arte-educação oferecidos a crianças e jovens de baixa renda

57

O projeto O ficinas de Audiovisual BH C idadania surgiu em 2002, por iniciativa

em todo o país é a de enfrentar situações de risco com o oferecimento de ativida-

da prefeitura de Belo H o rizonte, com a perspectiva de ministra r ofi cinas de ví-

des voltadas ao universo do lazer, da comunicação e da arte. Análises de outras

deo para jovens moradores de regiões do município onde foram localizados os

iniciativas nesse sentido podem ser lidas em Hikiji (2oo6) e Castro (2001).


pretende mostrar a comunidade a partir do olhar do jovem que a integra pode ser observada durante todo o filme na ambigüidade dos depoimentos apresentados: uma moradora comenta que a vida na vila "melhorou", mas que preferia "como era antes"; outra diz que gosta do lugar, mas que "ninguém olha ... tem rato"; uma terceira diz que não sabe por que o nome do local mudou de favela para vila, se tudo é a mesma coisa. No balanço final, não há um olhar unidirecional, mas uma pluralidade de vozes, muitas vezes contraditórias, que apontam o conflito e a não-resolução como questões centrais à construção narrativa do vídeo comunitário. Clarisse Alvarenga (2004) define como vídeos comunitários aqueles que são realizados a partir da criação de uma "comunidade do filme". Essa comunidade não existe a priori, mas se cria e se recria a partir das relações que os sujeitos associados estabelecem durante a realização do filme, o que gera alterações nos tempos, espaços, formas de dizer e capacidades requeridas pelo grupo. Essa comunidade em geral reúne "leigos", pessoas que não necessariamente possuem conhecimentos sobre o audiovisual, e que por vezes compartilham outros laços de sociabilidade (moradia próxima, trabalho comum). As produções comunitárias abordam

muitas vezes temas de interesse coletivo-do grupo que se formou para a realização do vídeo. Se a realização do vídeo comunitário é marcada pela diversidade dos sujeitos e instituições envolvidos no processo, outra característica comum a várias das produções contemporâneas é a autoria coletiva e negociada (embora a negociação seja mais ou menos explícita conforme a produção). Não há a figura do cineasta que chega para produzir um filme sobre uma comunidade, mas a de uma comunidade que se cria-e se recria-em torno da realização do filme. Em Improvise!, uma co-produção entre uma produtora independente de Cidade Tiradentes e um jovem documentarista "de fora", o processo coletivo de realização do vídeo acaba gerando um conflito sobre a questão da autoria, que é abordado de forma exemplar. Uma das cenas mostra uma conversa entre jovens de Cidade Tiradentes envolvidos na produção do vídeo e o "diretor". Os jovens colocam este na parede: o vídeo precisa ter um diretor "deles". O diretor não abre mão da direção (ouvimos sua voz em ojf), os jovens não aceitam o termo "co-direção". Querem que um deles seja igualmente "diretor". Argumentam que assim

r88


poderão ter "mais controle" sobre o que filmar, sobre o material filmado. Em outra cena, uma das jovens, que se identifica também como autora de vídeos, está pronta para contar para a câmera o argumento de seu próximo vídeo. No mesmo plano, ela desiste do depoimento, ao lembrar que alguém poderia roubar sua idéia. A câmera volta-se para um homem, branco, que podemos supor ser o "diretor" do filme, que ri, junto com a jovem, da situação. Apesar dos risos, não ouviremos o argumento, que é mantido em sigilo. Nos créditos finais, a jovem, Kelly Regina Alves, moradora de Cidade Tiradentes, membro da produtora Filmagens Periféricas e ex-aluna das Oficinas Kinoforum, assina o vídeo juntamente com Reinaldo Cardenuto Filho, que trabalha no Centro Cultural São Paulo, faz graduação em Ciências Sociais e investiu seiscentos reais de seu bolso na produção deste que é seu primeiro trabalho. r.,.

INICIATIVAS ANTERIORES

O questionamento do controle sobre os m ecanismos de construção de representações pode ser pensado em relação à própria historiografia do cinema brasileiro e às formas pelas quais os cineastas vêm criando "imagens do povo". Jean-Claude Bernardet (2003), ao realizar a análise de 23 documentários em formato cur-

ta-metragem das décadas de r96o e 1970, observa nos filmes o que chamou de "modelo sociológico". A crítica de Bernardet à atitude dos cineastas dirige-se à "relação de dominação sujeito do saber/ objeto do estudo" (Bernardet, 2003: 38), que permite aos cineastas falarem "em nome" do povo, assumindo o papel de seu porta-voz. "É a voz do saber, de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo de tipo sociológico; ele dissolve o indivíduo em estatística e diz dos entrevistados coisas que eles não sabem a seu próprio respeito" (Bernardet, 2003: 17). Esse modelo, identificado notadamente no uso da voz em off e nas entrevistas com especialistas, foi desconstruído em algumas experiências cinematográficas. Aloysio Raulino, em Jardim Nova Bahia (r97r), entrega a câmera para que o seu personagem, Deutrudes Carlos da Rocha, filme imagens de Santos, da praia e da Estação do Brás. Segundo Bernardet, Raulino leva "ao limite a abdicação do cineasta diante de seus meios de produção para que o outro d e classe fale, até o impossível" (Bernardet, 2003: 137). Mas, o ensaísta pondera em sua análise os limites dessa renúncia, uma vez que Raulino edita o material captado por seu personagem. O que sobressai, ao final, é o próprio estilo do cine-


asta. Mesmo segurando a câmera, Deutrudes não tem domínio sobre a linguagem. "A câmera é pouco estável, os movimentos irregulares, a lente não muda, a fotografia, bastante granul~ria, as figuras descentradas. Um charme que lembra o cinema primitivo, filmes amadores de família. Que Deutrudes segurava a câmera, não há dúvida, mas em que medida ele filmava?" (idem: 23oh). Outra iniciativa, desta vez institucional, que coloca em questão o controle sobre os mecanismos de construção de representações é a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP). Fundada em 1984, a ABVP centralizou até 1995 as experiências que compunham o chamado movimento do vídeo popular58. Esse 58

Para informações sobre o movimento do vídeo popular no Brasil ve r Santoro, 1989. O acervo da ABVP conta com cerca de s oo títulos produzidos por g rupos como o Instituto Brasileiro d e Análises Sociais e Econômi cas (IBASE), a F ed eração de Ó rgãos para Assistência Social e Educacional (FAsE) e o Centro d e Criação da Imagem Popular (cECIP), no Rio de Janeiro, a TV dos Trabalhadores (TvT) e o Instituto Ca jamar em São Paulo. Cabe notar que a instituição, sediada em São Paulo, mantinha relações com os grupos que atuavam na m esm a linha em todo o Brasil.

movimento propôs a participação direta dos integrantes dos movimentos sociais na produção dos vídeos. No entanto, análises do material produzido pela ABVP apontam para os limites da efetiva participação dos membros dos movimentos populares na produção dos vídeos. Oliveira (2001) nota que os chamados vídeos populares traduziam mais a visão de mundo e forma de pensar dos educadores e comunicadores que se fizeram representantes dos movimentos sociais que propriamente da dos atores integrantes desses movimentos. Constitui-se, portanto, uma especificidade das experiências atuais a participação direta de membros das comunidades no processo de realização dos filmes. Essa participação não implica a ausência de um olhar externo-há o propositor da oficina que transmite o conhecimento sobre a técnica, a linguagem cinematográfica e a história do cinema - , mas um compartilhamento de experiências. r.;,. "Q U EM VÊ ?" N ão é difícil encontra r um jovem ou mesmo adulto que nunca tenha ido ao cinema hoje nas periferias d as capitais brasileiras. Por isso, uma preocupação central dos projetos de capacitação au-


diovisual e dos jovens que começam a trabalhar de forma independente com o vídeo são os circuitos de exibição. "Onde passa? N a periferia? Não, passa num CINUSP... No Centro Cultural do Banco do Brasil? Quem vê? A classe m édia, que domina ... ". O depoimento de um morador de Cidade T iradentes em Improvise! evidencia a preocupação com o alcance do material captado na periferia, sobretudo aquele que é produzido na e pela periferia. "Nosso público é o da periferia e o de fora tam bém", diz Kelly, da produtora Filmagens Periféricas. O público "de fora" é atingido nos festivais. Mas e o "da periferia"? "Tudo é desculpa para não ir ver o filme no centro: deslocamento, verba, preguiça, a novela, a festa no vizinho", reclama Vanice Deise, do Arroz, F eijão, Cinema e Vídeo, de Taipas, na zona norte d e São Paulo. Contra o que chama "bairrismo" da periferia, o grupo de Vanice montou o projeto "Rolê na Quebrada", que propõe levar os jovens da periferia para os centros de exibição de cinema e vídeo, localizados geralmente nos bairros centrais de São Paulo. Vanice considera importante a iniciativa que aprendeu nas Oficinas Kinoforum, das quais já participou duas vezes, de "tirar o pessoal da periferia para conhecer um ccsP, um C inesesc". Negro JC, ou-

tro membro da Filmagens Periféricas, concorda: "Temos que sair dos enconderijos, dos ninhos de rato, e invadir o centro". Mas o movimento deve ser de duas mãos. Além da invasão ao centro, é preciso que o audiovisual chegue também à periferia. Em uma apresentação organizada com recursos g ráficos computadorizados, durante um seminário realizado no centro (mais especificamente no CCBB) que reuniu produtores de vídeos da periferia, o grupo Mudança com Conhecimento, Cinema e Arte (MuccA), do Jardim São Luiz, zona sul de São Paulo, defendeu a proposta de "descentralização do audiovisual", exemplificada com o projeto d e "trazer filmes de qualidade para a periferia". Um ponto chave para o grupo é a "itinerância", que já vem acontecendo com a exibição de filmes como O invasor (Beto Brant, 2001), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2 002), Uma onda no ar (Helvécio Ratton, 2002) e realizações próprias no CEU local e em outros espaços da comunidade. A produtora F ilmagens Periféricas tem projetos de produção de vídeos, exibição e distribuição de seus trabalhos59. Uma 59

Em julho de

2005,

o grupo conseguiu adquirir as primeiras (duas) câmeras


das iniciativas do grupo foi a organização de sessões de cinema na praça do bairro. Entre maio de 2003 e maio de 2004, nas últimas quintas-feiras do mês, entre 300 e 500 pessoas ocupavam a Praça do 65 das sete às onze da noite para assistir longas ou curtas em geral brasileiros, alguns produzidos em Cidade Tiradentes e "em outras periferias", muitas vezes seguidos de debates com seus realizadores60. Uma outra iniciativa do grupo foi disponibilizar cópias dos seus vídeos nas locadoras do bairro. Com o apoio do VAI, a Filmagens Periféricas conseguiu produzir, em 2003, 120 cópias com 13 curta metragens (u do grupo, dois de outras comunidamini-dv, por meio do projeto "Núcleo Permanente de Cinema Pac Lee", aprovado pelo Programa de Valorização das Iniciativas Culturais do Município de São Paulo (vAr - decreto lei 43.823/03). Além das câmeras, o projeto viabi li -

des) que foram distribuídas nas sete locadoras do bairro, e podem ser retiradas gratuitamente quando o cliente aluga algum filme. De 1993 a 1996, transcorreu em Belo Horizonte o TV Sala de Espera61, um projeto conjunto da Prefeitura e da UFMG que contava com a participação de moradores de bairros periféricos localizados na região nordeste da cidade. Os programas de vídeo produzidos eram exibidos em aparelhos de TV (por meio de vídeo-cassete), nas salas de espera dos postos de saúde da região. A transmissão visava o aproveitamento do tempo ocioso, que é marca registrada no próprio nome das salas nas quais se espera- por horas- para marcar consultas e ser atendido. A produção comunitária também pode ser transmitida por meio das chamadas "antenas coletivas", um sistema não-oficial de transmissão via cabo existente em várias localidades periféricas.

zará a aquisição de uma ilha de ed ição. O projeto Filmagens Periféricas foi também um dos cinco selecionados em nível nacional pela Petrobrás Cultural.

60

61

O

TV

Sala de Espera deu origem à

ONG

Associação Im agem Comunitária que

Com o patrocínio, o grupo pretende desenvolver oficinas, exibições e realizar

atualmente atua na capacitação de jovens moradores, de 12 a 22 anos, das no-

novos produtos audiovis uais.

ve regiões administrativas que compõem o município de Belo Horizonte. Os

Projeto da Filmagens Periféricas em parceria com o Museu de Arte Moder-

programas realizados pelos jovens são transmitidos semanalm ente pela Rede

na-sP (MAM), a Clarividência Produções e a Associação Cultural Kinoforum.

Minas, emissora estatal de cunho cultural e educativo.


Com esse sistema, os moradores do bairro conseguem sintonizar de casa um canal comunitário, que serve especificamente àquela região. Algumas comunidades chegam a manter uma programação constante, com programas feitos por seus moradores. Outros grupos com m enos estrutura para colocar uma programação regular na TV produzem peças gráficas, como cartazes eflyers, para avisar o dia e horário em que será feita a transmissão. Outra forma de exibição que ultrapassa os circuitos locais são os festivais de cinema e vídeo, nos quais fóruns especiais estão sendo criados para exibição e discussão de vídeos produzidos por projetos comunitários, vídeos feitos em oficinas etc. Nesses espaços, os realizadores estabelecem contatos com distribuidores, cineastas e produtores, com grupos provenientes de outras regiões também periféricas, com os quais trocam experiências, aprendem estratégias de "sobrevivência", discutem meios de ação. Outra característica desse movimento que pode ser observada nesses fóruns é a ampliação do circuito pelo qual transita o jovem que se torna um realizador. Ele sai do bairro, vai até o centro, conhece produções de todo o país, chega a viajar para expor sua experiência. A experiência de integrantes do grupo Arroz Feijão Cine-

ma e Vídeo é exemplar nesse sentido. No dia em que marcamos uma conversa entre vários realizadores, moradores de bairros periféricos de São Paulo, Vanice chegou atrasada porque acabara de voltar do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, para onde tinha levado alguns de seus vídeos e de jovens produtores de outras regiões do país, para sessões na Cidade Hip Hop. Outro integrante do grupo não pôde comparecer porque estava trabalhando na equipe de produção de um longa-metragem no litoral norte de São Paulo. Cabe notar que esse trânsito não é trivial: dois outros membros do grupo não puderam nos encontrar no ccsP porque não tinham como conseguir o dinheiro da condução do Jardim São Luis, zona sul, para a estação Vergueiro do metrô. Uma cena do vídeo A história do baile funk no Santa Marta (2ooo), realizado pela TV Favela, hoje gerida por um grupo de moradores ligado à associação de moradores do Santa Marta, morro localizado em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, remete à questão das fronteiras e de possíveis (ou desejáveis) transposições. O vídeo termina com a seguinte seqüência: uma vista geral do Santa Marta, uma tomada do Cristo Redentor e, em seguida, um plano da entrada do morro. Na medida em que a câmera se


afasta em zoom out da entrada do Santa Marta, enquadra tanto o morro quanto os bairros da zona sul, movimento que borra os limites entre esses espaços tão próximos quanto heterogêneos. /f)lo PRODUÇÕES

As produções contemporâneas são numerosas62 e não-homogêneas. No entanto, é possível identificar algumas recorrências temáticas, narrativas e estilísticas nas produções. Dentre os temas mais presentes estão as condições de vida precárias que os moradores dos bairros periféricos enfrentam no dia-a-dia, notadamente os problemas com transportes, atendimento de saúde e com a violência, esta, muitas vezes apresentada numa relação de causa e efeito com o uso e o tráfico de drogas. Outra recorrência temática é a questão do lazer e as atividades culturais das comunidades: bailes, festas, cursos, momentos de sociabilidade. 62

Na realização deste trabalho, tivemos acesso a quase uma centena de vídeos produzidos em todo o país somente nos últimos cinco anos. Esse número não repre>ellla nem a totalidade, nem a maioria do material produzido em comunidades de baixa renda do país. É apenas uma amostra selecionada pelos g rupos e por organizações de festivais.

Tais temas são explorados por meio de diferentes estratégias narrativas. Os assuntos do cotidiano do grupo podem estar presentes em narrativas ficcionais, documentais ou mistas. Temas do imaginário são abordados em roteiros inventados ou em entrevistas que remetem ao telejornalismo. As fronteiras entre ficção e documentário são constantemente negociadas ou até negligenciadas. Opta-se, freqüentemente, pela forma que permite melhor dizer o que se quer dizer. Nem sempre os temas escolhidos pelos grupos de realizadores são bem recebidos pelo restante da comunidade. Kelly, da Filmagens Periféricas, exemplifica com as críticas recebidas pelo último vídeo do grupo, Vida loka, de 2004: "A gente sempre trabalha desenvolvendo temas sociais. Então, a gente contou a história de uma garota que acabou virando prostituta. Muita gente não aceita que a filha esteja vendo a trajetória de uma moça que vira prostituta e tem um amigo bandido". O vídeo em nenhum momento faz um elogio às escolhas da protagonista. Pelo contrário, opta por um tom moralista e didático, ao mostrar o fim trágico do traficante (morto na praça) e da protagonista, infectada pelo HIV "na atividade da prostituição", segundo os letreiros finais.

1

94


O processo coletivo de realização do vídeo resulta em uma grande mistura de referências visuais e sonoras. Num mesmo trabalho, há gêneros, personagens e formas narrativas distintas. Vira-vira, produto das Oficinas Kinoforum na comunidade São Remo, zona Oeste de São Paulo, é um exemplo dessa indefinição. Alguns dos integrantes do grupo queriam falar sobre alcoolismo, entrevistando um ex-alcoólatra, outra parte do grupo queria encenar uma Santa Ceia, com a atuação de integrantes do movim ento hip hop. As duas propostas foram incorporadas no mesmo vídeo, que apresenta um depoimento do ex-alcoólatra, cenas com um ator no papel do personagem alcoolizado, e uma encenação da Santa Ceia, com trilha de rap. Na Oficina Kinoforum realizada no Jaguaré, pudemos acompanhar esse processo coletivo de realização desde a formação dos g rupos até a exibição dos vídeos. Cada participante produziu um roteiro no início da oficina. No segundo dia, o coordenador fez a leitura dos roteiros e, com o g rupo, começou a agrupá-los por tem as semelhantes ou propostas narrativas compatíveis. Entre os mais de 20 roteiros, apenas quatro seriam realizados por grupos formados a partir do interesse nos temas. Cada partici-

pante votava nos temas de sua preferência. Lentamente, e com muita discussão, os temas foram sendo agrupados, os grupos, formados. Um dos grupos reuniu três projetos: "O Homem-podre", uma proposta de ficção sobre um homem que não se ajustava à sociedade, um documentário "sem palavras" que mostrasse São Paulo e seus ritmos em paisagens contrastantes, e um filme que procurava associar pela narração o "orgânico e o não-orgânico", descrevendo, por exemplo, um ser vivo a partir de imagens inanimadas. O resultado foi Organicidade (Oficinas Kinoforum, São Paulo, 2005), um vídeo de três minutos que mistura animação, imagens de São Paulo, cenas protagonizadas por um dos integrantes do g rupo em linguagem não-realista63, e uma narração que parte da descrição biológica de um ser vivo e chega à descrição de uma situação existencial de estranhamento do indivíduo com a sociedade. 63

Interessante notar que esse integrante do grupo, no primeiro d ia de oficina, havia com entado que gostaria de realizar um vídeo "surrealista", uma vez que tinha gostado muito dos fi lmes de Buõuel (O cão andaluz e A bela da tarde) apresentados na primeira aula da oficina.


As "questões sociais" são o principal foco das produções periféricas. Por vezes, são abordadas por meio da ficção. Em Lágrimas de Adaobi (Oficinas Kinoforum, Cidade Tiradentes/sP, 2002), uma animação com fantoches bastante didática discute o preconceito sofrido pela criança negra. O outro lado da moeda (Oficinas Kinoforum, Tenda! da Lapa/sP, 2003) discute questões como desemprego, diferenças sociais e preconceito étnico por meio da história de um homem de classe média que perde o emprego e vai morar com a família em Cidade Tiradentes. O formato vídeoclipe é apropriado em Assim que é (Oficinas Kinoforum, Cidade Tiradentes, 2002), que usa um rap crítico sobre a situação da periferia como base para uma montagem na qual as diversas manifestações culturais do bairro: samba, dança afro, futebol etc. são sobrepostas à voz do rapper que canta o crime como "única saída para o povo da periferia". No terreno do documentário, Definase (Oficinas Kinoforum, Cidade Tirandentes, 2002), o primeiro curta de Tio-Pac e Kelly (Filmagens Periféricas), premiado com uma menção honrosa no Festival de Quebec, Canadá, traz a temática da situação do negro no Brasil, desde a escravidão aos dias atuais, a partir da contraposição de imagens de jornais antigos

com fotos da revista "Raça" e depoimentos de moradores de Cidade Tiradentes. A música, principalmente o rap, é muito presente nos vídeos. Há casos de trilhas sonoras compostas pelos próprios membros da equipe do vídeo (Vitória, Oficinas Kinoforum, Cidade Tiradentes, 2002); trabalhos que abordam uma modalidade musical específica ou a diversidade musical de uma região, com imagens de shows, entrevistas com os músicos etc. (Do lado de K da ponte, Oficinas Kinoforum, Jardim São Luiz, 2004; Felicidade é, Oficina Audiovisual BH Cidadania, 2003; A história do baile funk no Santa Marta, Rio de Janeiro, 2ooo); vídeos que se utilizam do rape do formato do videoclipe para sintetizar seu argumento (O que é que essa ilha tem? Projeto Vídeo nas Comunidades, ES, 2004; Contaminação sonora, Oficina de Audiovisual BH Cidadania, BH, 2003; Música e soldados, Oficina Audiovisual BH Cidadania, 2003). A força do rap e seu alcance atual parecem ser uma inspiração para os realizadores de audiovisual na periferia. No campo da música -primeiro com o samba e agora com o rap, o funk, o brega-, a periferia é reconhecida como criadora de uma estética própria, o que ainda é uma busca do movimento com o audiovisual.


itJto "MOSTRAR A REALIDADE" DE "DENTRO DO BAGULHO"

Uma característica marcante dos vídeos feitos na periferia é uma espécie de permeabilidade entre autor e objeto. Freqüentemente toma-se como tema do vídeo a própria experiência da vida na comunidade. Não raro um membro da equipe é também o protagonista do vídeo. Em O sofrimento de uma mãe, essa permeabilidade resulta em uma abordagem inédita de um tema já bastante explorado pela mídia: a condição das mães de jovens que passam pela situação de internação na Fundação para o Bem Estar do Menor (FEBEM). A especificidade da abordagem se dá no deslocamento do sujeito que produz a narrativa: são os próprios jovens, ex-internos, que entrevistam suas mães. Sempre em quadro, os jovens estabelecem um diálogo cuja performance deixa ver/ouvir mais do que é dito. A opção de manter jovem e mãe em quadro, de deixar ver o constrangimento e os limites desse diálogo, afasta os depoimentos dos campos da pieguice e do sensacionalismo e provoca no espectador algum incômodo, cria espaço para alguma reflexão. O deslocamento do lugar de objeto a sujeito que produz a representação é percebido e tematizado em alguns vídeos. A

construção midiática da imagem negativa do bairro é o tema de Não é o que é (Oficinas Kinoforum, Jardim São Luis, 2004). Os realizadores opõem planos de imagens televisivas e impressas (revistas, jornais) que enfatizam a violência como caracterizadora da vida na periferia-e no bairro-a narrativas sobre aspectos positivos do bairro: uma chácara com pomar e horta mantida por um morador da região, os mutirões para construção de casas, uma pista de skate. Em Improvise!, vídeo já citado, as abordagens midiáticas da periferia são questionadas e contextualizam o próprio tema do vídeo: a produção de imagens "na" periferia e "por" seus moradores. Em uma cena, uma moça questiona o porquê da exibição constante de imagens da violência e da criminalidade da periferia na televisão. Outra jovem questiona a necessidade de revistas e programas "para negros". A primeira, em outra cena, se posiciona a favor desses mesmos programas, como forma de valorização do "povo preto". A questão é deixada em aberto. "A gente não fez uma montagem, um teatrinho, nós tamo dentro do bagulho, a gente viveu o que aconteceu". A fala é de um dos participantes do vídeo Vida na rua (Olho da Rua, Porto


Alegre, Rs), que mostra alguns meninos e jovens, que moram nas ruas de Porto Alegre ou freqüentam abrigos, em suas passagens pelo espaço de acolhimento, por ruas e viadutos, pela escola. Os autores do vídeo são também meninos e jovens, que vivem ou viveram em situação de rua, participantes de uma oficina de vídeo. A frase remete a uma das principais marcas dos vídeos produzidos em contextos de oficinas nas periferias e margens das metrópoles: o duplo protagonismo, ou seja, a situação em que se é tanto sujeito quanto objeto da representação. O jargão "nós viemos aqui mostrar a realidade", presente em várias das produções na periferia, explicita, por vezes, uma ausência d e reflexão sobre o processo de construção inerente a qualquer narrativa audiovisual. O pertencimento ao grupo é utilizado como argumento de autoridade para produzir um documento sobre o mesmo. Não se questiona o processo seletivo e criativo que faz de um vídeo uma interpretação sobre determinado assunto. Mas nem sempre a d issolução de fronteiras entre realizadores e personagens resulta nessa postura. No início de Vida na rua, ouvim os uma das oficineiras avisar aos meninos que a proposta é que moradores de rua façam um vídeo para quem não é

de rua. As cenas iniciais são um making off das oficinas, que repete várias vezes a cena do jovem carregando a câm era, imagemsíntese da proposta das oficinas. Aos poucos o making off dá lugar ao exercício dos jovens. Um deles, conduzindo a equipe, se dirige ao entrevistado: "ô chapado, acorda!". A frase evidencia a relação de proximidade entre entrevistador e entrevistado. Em outra cena, uma equipe grava uma cena embaixo de um viaduto, "onde ficam vários menores de rua", nas palavras do jovem repórter. Ouvimos uma voz, fora de quadro: "Se me filmarem, o Pedrada vai pegar". O som é ruim, e a con versa passa a ser legendada. O diálogo con tinua: "que pedrada vai pegar o quê ?", "tá gravando", ouvimos ainda, sem saber quem fala. A equipe se aproxima. Ouvimos uma voz: "quem é o repórter? ". O jovem que vai ser entrevistado responde: "é irmão". A reportagem tem início: "qual o seu nome?". "Luís ... da Silva, diretamente com Mauro [o entrevistado toca o ombro do repórter], meu amigo". O repórter passa a apresentar o local, mostra as "camas", onde ele conta que também dorme, apresenta um grupo que canta um pagode ... O que essa cena expõe não são a rgumentos de autoridade. Sua tensão inicial - reforçada pela distância da câmera e do mi-


crofone com relação ao centro da ação- nos deixa percebe r algo da sociabilidade nervosa da vida na rua (são também jovens de rua os que estão com a câmera e não se aproximam). A fala da identificação- "é irmão" - corresponde a um acordo implícito entre os protagonistas da cena: repórter, equipe e entrevistados, todos m embros de uma mesma comunidade, passam a atuar juntos na construção de sua imagem naquele momento. No mesmo filme, um jovem entrevista uma funcionária de uma loj a de conveniências, "onde vinha com prar cigarro". No meio da conversa, dispara: "E minha presença aqui, te incomodava?". A moça, que sorria para a câmera, fica séria: "não, claro que não, é que o dono da loja não gostava", e continua, para a câmera, "ele pede na frente da loja, e a gerente não gosta". O que fica em evidência aqui não é a representação de si, mas a exibição do conflito num momento de alte rnância de papéis: o jovem é naquele momento detentor dos objetos de poder (o microfone, a câmera) e tem então a possibilidade de provocar no entrevistado (e no espectador) uma reflexão sobre sua situação-de incomodar. Em uma análise da situação do filme etnográfico na década de 1990, Bill Nichols (1994) adverte que esse estaria em apuros,

em face da crescente produção de auto-representações por parte daqueles que foram tradicionalmente objetos dos estudos antropológicos. Nichols refere-se aos filmes etnográficos como "discursos de sobriedade" que não problematizam sua relação com o real. Reforçam, por m eio da linguagem cinematográfica (imagem e som sincrônicos, voz over, e o tema da viagem), a autoridade do "estive lá", e a cientificidade associada a tal argumento. Nichols identifica no que chama de "filmes em primeira pessoa" uma alte rnativa às g randes narrativas, por explorarem o pessoal como político no nível da representação textual e da experiência vivida. N a produção que começa a emergir nas periferias brasileiras já se observa esta exploração do pessoal - ou local - como político. Aí reside a força de argumentos por vezes ainda tateantes no domínio da linguagem e da técnica. O "estive lá" vem sendo questionado há anos na escrita etnog ráfica - inclusive na etnografia visual (embora Nichols não explore essa vertente). O "sou de lá" ("de dentro do bagulho") é a bola da vez. C LARISSE ALVA R ENGA ROSE SATIKO HI K IJ I

é m estre em Multi meios pela Unicamp e documenta rista.

é professora do D epa rtame nto de Antropologia da usP e membro


do corpo editorial da Sexta Feira; desenvolveu parte dessa pesquisa em seu pós-douto-

SANTORO, Luiz Fernando. A imagem nas mãos: o vídeo popular no Brasil. São Paulo: Sum-

rado no Departamento de Antropologia da usP, com apoio da Fapesp. As autoras agra-

mus editorial, 1989.

decem a Evelyn Schuler Zea pela participação na pesquisa que deu origem ao artigo e

pelas inquietantes questões levantadas para sua elaboração.

Vídeos citados:

A História do baile funk no Santa M arta. Rio de Janeiro (Santa Marta), 2000, VHS e Mini-

Referências bibliográficas

ov, cor, 34', TV Favela; realização: Grupo Eco.

ALVARENGA, C Ia risse Castro de. Vídeo e experimentação social: um estudo sobre o vídeo comunitário contemporâneo no Brasil. Campinas,

2004.

Dissertação de mestrado,

Programa de Pós-Graduação em Multimeios, Unicamp, Ms. BERNARDET, Jean-Ciaude. Cineasta e imagens do povo [1985] . São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Assim que é. São Paulo, (Cidade Tiradentes),

2002,

Mini-ov, cor,

s', Oficinas Kinofo-

rum; realização: Maril ze dos Santos Dias, André Luiz da Silva, João Carlos "rc"; coordenação: C hristian Saghaard. Contaminação sonora. Belo Horizonte (Alto Vera Cru z),

2003,

Mini-ov, cor,

s', Ofici-

na de Audiovisual BH Cidadania; realização: Renegado, Felipe Vieira, Fábio

CASTRo, Mary Garcia (coord.) et alli. Cultivando vida, desarmando violências: experiências

Moreira; colaboração: Josiane Carla, Carla Lopes; música: N.u.c. (Negros da

em educação, cultura, lazer, esporte e cidadania com jovens em situação de pobreza.

Unidade Consciente); orientadores: Sávio Leite, Maria de Fátima Augusto;

Brasília: UNEsco, Brasil Telecom, Fundação Kellogg, BID, 2001.

coordenação: Sávio Leite.

HIKIJI, Rose Satiko. A música e o risco. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2006. NICHOLS, Bill. "The etnographer's tale". In TAYLOR, Lucien (org.). Visualizing Theory. Nova York e Londres: Routledge, 1994· OLIVEIRA, H enrique Luiz Pereira. Tecnologias audiovisuais e transformação social: o movi-

Defina-se. São Paulo (Cidade Tirandentes),

2002,

Mini-ov, cor, 4', Oficinas Kinoforum;

direção: Kelly Regina Alves; produção: C láudio N. de Souza; câmera: Daniel M. Hilário; coordenação: C hristian Saghaard. Do lado de k da ponte. São Paulo (Ja rdim São Luis),

2004,

Mini-ov, cor,

6',

Oficinas

mento de vídeo popular no Brasil (r984- 1995), São Paulo, 2001. Tese de doutora-

Kinoforum; realização: Aline Serdeira, Jair Ferreira da Costa, Vânia Ap. da

do, Programa de Estudos Pós-Graduados em História, PUC-SP, Ms.

Silva, Vanessa Ribeiro; coordenação: Christian Saghaa rd.

200


Felicidade é. Belo H orizonte (Conjunto Felicidade), 2003, Mini-ov, cor, 8', Oficina de

Araújo, G islaine Martyins, H erbert André Barbosa, Hugo Miranda, Lincoln

C idadania; reali zação: D aisy Silva Reis, Edjane Pereira de

César Silva, Maurício Batista da Silva, Sandra Cristina Santos, Teófilo Alves

Audiovisual

BH

Araú jo, G islaine Ma rtins, H erbert André Barbosa, Hugo Miranda, Lincoln

Rod rigues, Vanessa Lemos, Veracino Santos, Viviana Lopes; orientador: Sér-

C ésa r Silva, Maurício Batista da Silva, Sandra Cristi na Santos, Teófilo Alves

gio Vi laça; coordenação: Sávio Leite.

Rodrigues, Vanessa Lemos, Veracino Santos, Vivia na Lopes; orientador: Sérg io Vilaça; coordenação: Sávio Leite. Improvise! São Paulo (Cidade Tiradentes), 2004, Mini-ov, cor, 2o'; direção: Reinaldo

Cadernuto Filho e Kelly Regina Alves; assistência de d ireção: André Luiz da Silva, C láudio N. de Souza; produção: André Lui z, Marilse dos Santos Dias; edição: Paulo Staliano, Negro JC; câmera: Donovan. j ardim Nova Bahia. São Paulo, ' 97' • r6mm, pb/cor, rs '; realização, roteiro, fotografia:

Aloysio Raulino; câmera: Aloysio Raulino, D eutrudes Carlos da Rocha; mon-

Não é o que é. São Paulo (Jardim São Luís), 2004, Mini-ov, cor, 6', Oficinas Kinoforum;

realização: Maria Gabriela da Silva, Paula Szutan, Paulo Joaquim Junior, Edvaldo Aleixo, Patricia Alencar, Marciléia Soares, Mariana Bhering, Alan de Paula; coordenação: Christian Saghaa rd. Organicidade. São Paulo (Jaguaré), 2005, Mini-ov, cor, 3', Oficinas Kinoforum; realiza-

ção: Adriana Lima Borges, D aniel Maciel, Francisco de Assis, Israel José dos Santos, Marcus Vinícius Vasconcelos; coordenação: Christian Saghaard. O que é que essa ilha tem? Vitória, 2004, Mini-ov, cor, w ', Projeto Vídeo nas Comunida-

tagem: Roma n B. Stulbach; som: Paulo Valadares; depoimento de D eutrudes

des; di reção e roteiro: Alan Xavier, Benildo da Silva Filho, Eledir Moreira, Hu-

Ca rlos da Rocha; participação de Ca rlos Canção, Milton e Geraldo.

go Santo, lracildes Oliveira, Josiane Santos, Keyla Sil va, Luiz Felipe Martins,

Lágrimas de Adaobi. São Paulo (Cidade Tiradentes), 2002, Mini-ov, cor, 3', Oficinas Ki-

noforum; realização: Marilúcia, Jeniffer e Naíza; fotos: Naíza; vozes: Jeniffer, Marilúcia, Preto, Naíza, W esley; manipulação: Jeniffer, Marilúcia; coordenação: C hristian Saghaard. Música e soldados. Belo H orizonte (Conjunto Felicidade), 2003, Mini-ov, cor, 4', Oficina

d e A udiovisual

BH

Cidadan ia; reali zação: Daisy Sil va Reis, Edja ne Pereira de

Marinéia Lima, Reinaldo Soares, Renan Ramos, Silvana Lima, Solange da Silva, Walace Lopes, Wallemberg Souza, Wa ruack Souza; orientação: Edy Vieira Jr. O outro lado da moeda. São Paulo (Tenda! da Lapa), 2003, Mini-ov, cor, rs', Oficinas Kinoforum -

Módulo u ; d ireção: C la udio Nunes de Souza, D âfni s Alessan-

dro M. D . Eva ns; roteiro: D âfni s Alessandro M. D. Evans; E ndrigo Moraes; a rgumento: C laudio N unes de Souza; fotografi a: Cleber Zerbielli, Donovan


Dantas Santos; som: Mayara Alves Ricci; produção: André Luis da Silva, Cho-

Edevandro Moraes, Thiago Ferreira Vianna, Jackson Barbosa da Silva; pro-

ra Aquarone; edição: João Carlos Ferreira Chaves- Jc, Guilherme Laurito

dução: roteiro: Ana Luiza Azevedo, Milton do Prado; montagem: Ana Luiza

Summa - Shepa; trilha sonora: Endrigo Moraes; elenco: Almir Barros, Fernanda Levy Catarina, Maria José Versiani.

A zevedo, Milton do Prado. Vira -vira. São Paulo (Monte Azul),

O sofrimento de uma mãe. São Paulo {Interlagos), 2004, Mini-ov, cor, 6', Oficinas Kinoforum; realização: Moises Clarcion Alves, Valdemilson Bento de Jesus, Rafael Ribeiro; coordenação: Christian Saghaard.

2001,

Mini-ov, cor,

s', Oficinas Kinoforum ; reali-

zação: C laudinei Alves de Souza, André Oliveira, Manuel Vanderlei Pinto Araújo; depoimento: José Quinhas; coordenação: Christian Saghaa rd. Vitória. São Paulo (Cidade Tiradentes), 2002 , Mini-ov, cor, 6', Oficinas Kinoforum; di-

Pré-Ambiente. Belo Horizonte (Vila Senhor dos Passos), 2 003, Mini-ov, cor,

Oficina

reção e edição: Endrigo Moraes, Donovan, Bob Jay; roteiro: Endrigo Moraes,

Cidadania; direção: Leonardo Franklin; roteiro: Leonardo

Bob Jay; fotografia: Adriano; assistentes: Arilúcia e Jeniffer; câmera: Donovan;

Franklin, Mauro H enrique Aniceto; câmera: Adam Silva, Leonardo Frank lin ,

figurino: Endrigo Mo raes; elenco infantil: Ariel, Derik; elenco jovem: Edgard,

Mauro H enrique Aniceto; orientadora: Maria de Fátima Augusto; coordena-

Packo; elenco de a poio: Preto, Adriano, N eguitão; trilha sonora: Endrigo Mo-

ção: Sávio Leite.

raes, Packo, Edgard, Digo.

de Audiovisual

BH

Vida Loka. São Paulo (Cidade Tiradentes),

2004,

Mini-ov, cor,

13',

13',

Filmagens Pe ri fé ri -

cas; direção: C láudio Nunes de Souza, Kelly Regina Alves; câm e ra: C lá udio Nunes de Souza; produção: Cláudio, Kelly; ed ição: Negro JC; elenco: Eliana, Érika, Marinho, Montanha, Shirley, Renata. Vida na ma. Porto Alegre,

2003,

Mini-ov, cor,

22' ,

Olho da Rua; direção: Milton do

Prado, Ana Luiza Azevedo; elenco: Ana Paula Vieira de Moraes, Daniel da Conceição Fraga, D aniel de Matos Bastos, Emerson Matos Seve, Kelly Santos da Rosa, Mauro Marques dos Santos, Michael Severo, Suellen Sil va Oliveira,

202


Capítulo 4, Versículo 3

Racionais Mc's

6o% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente. Minha intenção é ruim, esvazia o lugar. Eu tô em cima, eu tô afim: I, 2 pra atirar. Eu sou bem pior do que você tá vendo, o preto aqui não tem dó, é 100% veneno. A primeira faz hum, a segunda faz tá. Eu tenho uma missão e não vou parar. Meu estilo é pesado e faz tremer o chão, minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição. Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além, e tem disposição pro mal e pro bem. Talvez eu seja um sádico, um anjo, um mágico, ou juiz ou réu, um bandido do céu, malandro ou otário, padre sanguinário, franco atirador se for necessário, revolucionário, insano ou marginal, antigo e moderno, imortal, fronteira do céu com o inferno astral, imprevisível, co-

mo um ataque cardíaco do verso, violentamente pacífico, verídico, vim pra sabotar seu raciocínio, vim pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo. Pra mim ainda é pouco, dá cachorro louco, número I, guia, terrorista de periferia. Uni, duni, tê. Eu tenho pra você. Um rap venenoso ou uma rajada de PT? E a profecia se fez como previsto: I997 depois de Cristo. A fúria negra ressucita outra vez: Racionais, capítulo 4, versículo 3· Aleluia! Aleluia! No ar, filho da puta, Pá pá. Faz frio em São Paulo, pra mim tá sempre bom: eu tô na rua de bombeta e moletom, dindindon, rapé o som que emana do opala marrom. Chama o Guilherme, chama o Vane, chama o Dinho. E o Gui? Marquinho, chama o Éder, vamo aí. Se os outros manos vêm, pela ordem tudo bem. Quem é quem, no bilhar no dominó. Colou dois mano um acenou pra mim, de jaco de cetim, de tênis calça jeans. Ei Brown, sai fora, nem vai, nem cola, não vale a pena dá idéia nesse tipo aí: ontem a noite eu vi na beira do asfalto, tragando a morte, soprando a vida pro alto. Ó, os cara, só o pó, pele e osso, no fundo do poço, mais flagrante no bolso. Veja bem, ninguém é mais que ninguém, veja bem, veja bem, eles são nossos irmãos também.


Mas de cocaína e crack, uísque e conhaque, os mano morre rapidinho sem lugar de destaque. Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma? Nem dá! Nunca te dei porra nenhuma. Você fuma o que vem, entope o nariz, bebe tudo que tem, faça o diabo feliz. Você vai terminar, tipo o outro mano lá, que era um preto tipo A, nem entrava numas. Mó estilo: de calça Calvin Klein, tênis Puma. Um jeito humilde de ser, no trampo e no rolê. Curtia um funk, jogava uma bola, buscava a preta dele no portão da escola. Exemplo pra nós, mó moral, mó ibope. Mas começou colar com uns branquinhos no shopping. Iaí já era ... Ih mano! Outra vida, outro pique, só mina de elite, balada, vários drinks, puta de butique, toda aquela porra, sexo sem limite, Sodoma e Gomorra. [ . . . ] Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia, eu sei, as ruas não são como a Disneylândia. De Guaianazes ao extremo sul de Santo Amaro, ser um preto tipo A custa caro. É foda! Foda é assistir a propaganda e ver: não dá pra ter aquilo pra você. Playboy, folgado, de brinco, uns trouxa. Roubado dentro do carro na avenida Rebouças. Correntinha das moças. Madame de bolsa. Dinheiro .. . Não tive pai, não sou herdeiro. Se eu fosse aquele ca-

ra que se humilha no sinal, por menos de um real, minha chance era pouca, mas se eu fosse aquele moleque de touca, que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca ... De quebrada, sem roupa. Você e sua mina. Um, dois, nem me viu! Já sumi na neblina. Mas não! Permaneço vivo, eu sigo a mística, 27 anos contrariando a estatística. Seu comercial de TV não me engana, eu não preciso de status, nem fama. Seu carro e sua grana já não me seduz e nem a sua puta de olhos azuis. Eu sou apenas um rapaz latino-americano apoiado por mais de 50 mil manos. Efeito colateral que o seu sistema fez: Racionais, capítulo 4, versículo 3·


Periferia, cinema e violência

Andréa Barbosa

Nos últimos anos vimos crescer um retorno à produção cinematográfica que tematiza a vida nas áreas pobres de cidades brasileiras. Podemos lembrar de filmes como Oifeu (Cacá Diegues,1999), O Rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luma, 1999), Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles e Kátia Lund, 1999), Uma onda no ar (Helvecio Ratton, 2002), O invasor (Beto Brant, 2002), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), De passagem (Ricardo Elias, 2003) e Contra todos (Roberto Moreira, 2003). A proximidade d e alguns desses filmes extrapola a temática mais geral: Kátia Lund, por exemplo, dirige com João Moreira Salles Notícias de uma guerra particular e co-dirige com Fernando Meirelles Cidade de Deus. Fernando Meirelles, por sua vez, é produtor d e Contra todos, de Roberto Moreira. Parece existir um grande interesse em construir filmicamente estes espaços que são espaços físicos, mas também espaços sociais. Quando pensamos nesses filmes mais recentes que escolhem como seu lugar diegético a periferia de São Paulo, nos vem

sempre à cabeça o tema da violência. Seguramente ela participará das histórias engendradas nessa região da cidade, mesmo que de uma forma também periférica. No cinema, a violência marca o lugar: periferia. Contudo o lugar não se intimida e também marca o filme com ranhuras que carregam outros significados como o da memória, da experiência e da afetividade. Essas ranhuras embora presentes, nem sempre são evidentes. É esse o ponto de partida deste artigo no qual comento dois desses filmes e procuro perceber neles de que forma a violência marca a periferia de São Paulo por eles construída. De passagem (Ricardo Elias, 2003) e Contra todos (Roberto Moreira, 2003) formam a dupla de filmes sobre a qual vamos nos debruçar. rote O LUGAR E AS RELAÇÕES

Uma massa de casas com suas lajes de concreto. A cor do tijolo predomina nas paredes sem pintura ou com a tinta já gasta pelo tempo e pelas intempéries. Muita cor nas roupas vestidas nos corpos periféricos ou estendidas nos varais. Essa massa visual cresce na paisagem ondulada que marca a periferia de São Paulo. Aricanduva, São Miguel, Itaquera, Jardim Ângela, Francisco Morato, não importa. Muitos córregos, quase nenhuma árvore, muros


escritos por propaganda ou pichação e muitos buracos. Uma luz estourada marca a presença do sol sem piedade. Um sol que esturrica o asfalto e as lajes freqüentemente utilizadas para estender roupas, soltar pipa ou fazer um churrasquinho no domingo. Margeando esses bairros estão grandes avenidas pontuadas por paradas de ônibus sempre com gente esperando. Esperando a condução ou qualquer outra coisa que o pensamento alcance. A periferia nesses filmes não é construída como um lugar, no substantivo, como coisa, mas como acontecimento e algumas vezes como experiência. Não é surpreendente, então, que a paisagem construída no quadro pareça informar as relações humanas que se constroem ao longo do filme e vice-versa. É ela que abre espaço para que Jéferson, protagonista de De passagem, seja construído como um personagem quase outsider, parecendo não caber mais nessa paisagem com seu uniforme da Escola Militar do Rio de Janeiro. É ela também que tenta aprisionar as relações sem afetividade de Contra todos. Jéferson e Kennedy, protagonistas no filme De passagem, de Ricardo Elias, fazem um longo e amplo deslocamento no espaço na busca da liberação do corpo de Washington (irmão de Jéferson

e também companheiro de infância de Kennedy), achado morto num bairro do "outro lado da cidade." O dois amigos de infância, hoje tão distanciados pelo tempo e pelo espaço, são literalmente justapostos para empreender essa tarefa. Eles circulam de ônibus, metrô e trem por bairros muito distantes como indica o grande deslocamento que fazem, mas esses diversos bairros não se distinguem pela paisagem. Ao espectador fica a sensação de uma grande homogeneidade dos bairros periféricos da cidade com suas incontáveis casas de tijolos expostos apinhadas ao longo de ruas e terrenos acidentados. Não sabemos por onde eles transitam. Não há marcadores da especificidade dos lugares. Nos parece que para o diretor o que importa é marcar um longo trajeto. Trajeto sempre liminar que não assume nem identidades nem especificidades. Quando eles não estão circulando em coletivos, estão dentro das repartições e não temos idéia alguma do entorno. O filme parece jogar as periferias da cidade no espaço comum da exclusão. Um rosto da cidade só nos é apresentado no começo do filme durante a chegada de Jéferson à casa de sua mãe. Nesses primeiros minutos somos apresentados a essa preferia que se reproduzirá em cada janela de ônibus, metrô ou trem utilizados no percurso. Es-

206


sa paisagem homogênea que os dois rapazes vão percorrendo ao longo do trajeto que fazem na cidade é utilizada no filme como recurso para trazer à tona uma outra travessia empreendida pelos dois protagonistas: a travessia do tempo. Das janelas do tempo atual, tempo do distanciamento dos dois rapazes, passa-se às janelas do passado e da infância compartilhada dos três meninos. É essa dupla travessia que possibilita o encontro entre esses dois quase desconhecidos Jéferson e Kennedy. Quase desconhecidos como nós e vários personagens que encontramos em nossas próprias travessias metropolitanas. Quem tem o hábito de andar pela cidade a pé ou por meio de transportes públicos, de quando em vez vive essa estranha experiência de reencontrar antigos amigos que compartilham de memórias de uma outra cidade e de uma outra experiência. Esse talvez seja o trunfo do filme: nos remeter a um jogo de tempos e espaços no qual os jogadores não são apenas os personagens do filme, mas nós m esmos. No entanto, fica uma imensa lacuna nessa evocação, pois os personagens acabam não ganhando densidade nessa travessia, assim como o espaço, que também se mantém homogêneo apesar dos deslocamentos temporais e espaciais. A dupla

possui uma história comum que é apresentada em flashbacks de forma pontual onde a dimensão da experiência construída e compartilhada é absolutamente obscurecida pela trivialidade dos belos planos fixos dos três meninos. Tudo é muito fixo. Podemos contar nos d edos de uma mão os movimentos de câmera. A cena se monta para o quadro do filme, mas o olhar da câmera, que é também o nosso, é estático. Por incrível que possa parecer num filme sobre uma travessia, falta movimento. Movimento do olhar, da vida que vai se adensando na nossa experiência da cidade. A violência nesse filme não está em cenas de agressão física ou moral. Embora esse tipo de violência seja anunciado na forma como Washington morre, nos comentários sobre seu envolvimento com o tráfico, sua passagem pela Febem e a cena em que um policial aborda os meninos que tentam viajar de trem sem pagar. A violência que o filme constrói está inscrita no distanciamento que a exclusão social provoca. Distanciamento em relação à educação (Jéferson muda-se para o Rio e vai estudar no colégio Militar em busca de uma boa educação) e ao trabalho (Kennedy está desempregado desde que abandonou o trabalho no tráfico). Distanciamento que faz com que todos os pobres sejam jogados


na categoria social "excluídos" que, por sua vez, está associada à categoria espacial "periferia", indissociável do conceito de violência. O processo de exclusão que se vive hoje em metrópoles como São Paulo tende a simplificar muito a densidade humana e talvez seja essa a dificuldade de De passagem. O filme, embora traga uma fundamental delicadeza para as relações humanas que são construídas na história, não ultrapassa a simplificação operada pelo tratamento da pobreza e das periferias no cinema brasileiro. Não é um filme sobre favelados, alter-ego do pobre no cinema, mas ainda assim não trabalha o lugar da diferença dentro dessa categoria social. A delicadeza construída nas relações não encontra eco na forma do filme com suas seqüências de ruas vazias, sem vida, sem identidade. Delicadeza talvez seja a palavra-chave para comentarmos a construção das relações humanas e espaciais realizada em Contra todos, de Roberto Moreira. Na verdade, seria melhor falar em falta de delicadeza, pois nas relações que os protagonistas Cláudia, Teodoro, Soninha e Valdomiro constroem com o mundo e com as pessoas com quem interagem, o que falta é justamente delicadeza. Não existe sequer afetividade. A violência funda não

só as relações mas também a espacialidade do filme. Não existe sutileza ou cuidado, somente pulsão e fatalismo. No início de Contra todos acompanhamos Soninha numa perambulação pelo centro da cidade de São Paulo. Ela percorre as galerias da rua 24 de Maio, os calçadões repletos de camelôs do centro velho, cns piratas, e pessoas, muitas pessoas, que divergem na aparência, no ritmo e no movimento. Soninha toma um ônibus e junto com ela fazemos o percurso do centro à periferia. Através da janela podemos ver a cidade das avenidas, depois a dos bairros, até chegar a uma "quebrada". A paisagem que se transforma de centro em periferia difere da apresentada por Ricardo Elias num simples detalhe: tem gente nas ruas. A cidade aparece viva. Essa gente que dá vida à cidade circula e interage com a paisagem. Chegando em casa após descer do ônibus e fazer uma caminhada por ruas e outras "quebradas" Soninha chega a sua casa. A partir desse momento o espaço da periferia se confunde com o espaço das relações que vão se delinear entre os protagonistas. O espaço limita, aprisiona as relações. A casa não fornece abrigo para a violência que impera nas ruas, ela é o berço dessa violência. Ao contrário da câmera estática de De passagem, Contra todos é

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olhar em movimento. A câmera na mão funda nosso olhar sobre a cidade e as relações como algo essencialmente dinâmico. A câmera está sempre procurando. A vida não está dada a sua frente, ela tem que buscá-la, e é por isso que se movimenta freneticamente de um olhar para outro, de um gesto para outro. Não há tempo para contemplação, somente para a ação e a ação é pautada pela pulsão das paixões sempre violentas. Se Contra todos nos apresenta uma periferia com identidade e com vida, seus personagens perdem essa referência se perdendo no mar (vermelho como o que aparece na abertura do filme) de suas pulsões. Ora, não há vida sem afetividade, principalmente numa periferia marcada pela exclusão e pela violência. É justamente a afetividade que fornece a chave de saída de alguns becos aparentemente sem saída. Em De passagem, Washington, Jéferson e Kennedy se reencontram justamente por que ainda resta alguma afetividade alimentada pela memória presente num cartão postal ou numa lembrança achada na travessia. Em Contra todos não há saída porque não há afetividade, não há memória. Se a ausência da densidade humana em De passagem está em reafirmar a simplificação operada pelo tratamento da pobreza

e das periferias no cinema brasileiro, em Contra todos está na construção dos personagens sem memória e afetividade. Vale também dizer que nenhum dos dois filmes coloca os personagens no lugar de agentes históricos. Eles seguem a vida em vez de fazerem a vida. As situações vividas nas duas histórias parecem clamar por uma consciência do contexto em que surgem. Essa poderia ser uma brecha para situar esses personagens no mundo histórico. A relação entre violência, periferia e cinema, nosso ponto de partida, nesses dois filmes chegam a termos bem diferentes. Em Contra todos a violência é modo de vida (senão a vida ela mesma). O efeito de realidade provocado pela câmera na mão, trêmula e instável, enclausura as pessoas no seu ambiente que não é apenas físico, mas também social e moral. A câmera está sempre à procura dos personagens, como eles próprios também estão sempre à procura de algum lugar para ir, mas na vida sem referências (memória e afetividade), acabam todos num beco sem saída. Em Contra todos, a periferia é um acontecimento, uma experiência e não um lugar. A violência é a periferia, porque a única experiência construída no filme é a da violência. Numa outra perspectiva, em De passagem a periferia tam-


bém é construída como acontecimento e não como lugar. Ela é uma memória que está ausente, pois não tem identidade. A periferia é lacuna, não se distingue. A violência ronda a periferia, como ronda o filme por meio da história de Washington, um personagem ausente em corpo e subjetividade. Ela ronda mas não se mostra, é uma lacuna nas vidas de Jéferson e Kennedy. ft;te AS RANHURAS

Eu argumentava no início deste artigo que ao mesmo tempo em que esses filmes marcam a periferia, ela não se intimida e também marca os filmes com ranhuras que carregam outros significados além da violência e da indiferença. São essas ranhuras que nos permitem uma outra entrada para o filme, uma outra entrada para a periferia no filme. Às vezes ela ocorre numa imagem de segundo plano, às vezes numa idéia presente fora do campo de enquadramento. É esse o caso dos personagens anônimos que aparecem nas ruas ao longo da perambulação de Soninha de Con tra todos e da evocação da memória e da afetividade oferecida pela história dos dois protagonistas de De passagem. Os personagens comuns que invadem o quadro de Contra todos não vivem o mesmo mundo de pulsões dos protagonistas,

ou melhor, se o vivem, o fazem em conjunção com outros sentimentos e movimentos mais triviais da vida como a curiosidade, o trabalho, o lazer. Eles estão no mundo e marcam um contraponto com Soninha por estarem construindo a vida em vez de estarem sendo arrastados pelas pulsões da vida. Já no caso do filme de Ricardo Elias, a indiferença e a homogeneização da paisagem da periferia são dribladas em momentos muito sensíveis como a cena da paquera no metrô. Há uma troca de olhares muito cúmplices. Há o desejo e o embaraço de desejar. É nesse momento que os dois rapazes finalmente iniciam uma cumplicidade que se estenderá até o fim da jornada. Esse encontro não é qualquer um, é o encontro de dois amigos que compartilham de lembranças e uma experiência de vida conjunta. Aqui a particularidade daquela relação está em primeiro plano e conseguimos finalmente entender o vínculo que estabelecem e nos identificar com a experiência vivida por eles. Nesses momentos, breves m as presentes, a violência não é constitutiva do lugar, nem das relações. Ela é mais um dado, mais um elemento possível nessa realidade. Nessa nova aproximação percebemos que a periferia desses

2 10


filmes é reconstruída com o olho da câmera e o desejo do cineasta de transformar a cidade em linguagem. A periferia-espaço tornase perife ria-tempo nos diria Jean-Louis Comolli e, é essa a deixa para que o espectador a reconstrua com suas próprias memórias e experiências. "Se o cinema é bem uma arte do tempo, o olho não é seguramente o único a estar em discussão, e o que chamaríamos ainda 'olhar', por comodidade, reúne no cinema, em um mesmo conjunto sensível, a visão, a escuta, a pe rcepção, a memória" (Comolli, 1997: 152). N esse jogo de sensações e sentidos, tempo e espaço estão sobrepostos. É impossível transcorrer os espaços cinematográficos sem transformá-los também em tempos cinematográficos. A linguagem cinem atog ráfica opera essa transmutação de espaços em tempos e é essa característica que nos permite perceber nesses filmes a periferia como experiência e não somente como localidade. A característica temporal do cinema permite a evocação de outros tempos e outros sentidos. Nossa experiência dos filmes soma-se à experiência da periferia como filme. É nessa experiência carregada de memórias vividas ou imaginadas que essa pe riferia transformada em espaço-tempo pode então ganhar densidade, pode então ganha r humanidade.

ANDRÉA BARBOSA é pós-doutoranda em Antropologia Socia l pela usP.

Referências bibliográficas

ARANTES, Antonio. Paisagens paulistanas. São Paulo: Ed itora da Unicam p/ lm prensa Oficial, 2000. ARANTES, Anton io (org.). O espaço da diferença . Campinas: Papirus, 2000. BARBOSA, Andréa. São Paulo, cidade azul: imagens da cidade construídas pelo cinema pau-

lista dos anos So. Tese de douto rado. São Paulo: FFLcH/ usP, 2003. COMOLLI, Jean-Louis. "A cidade filmad a", in Cadernos de Antropologia e Imagem (4). Rio de Janeiro: UERJ, '997· SCHIEL, Mark & FITZMAURICE, Tony (orgs.). Cinema and the City: Film and Urban Socie-

ties in a Global Context. Oxford: Black w ell Publishers, 2001.


Subúrbio

Fernando Bonassi

Havia o barulho do trem, à noite, chegando em São Caetano. Depois das dez da noite o barulho do trem chegando. Os ecos do barulho do trem chegando, passando por cima das casas, chegando aos ouvidos do velho como o guincho de um rato de experiência. Nos intervalos dos ônibus desertos. O freio ralando sobre os trilhos, o motor diesel reduzindo, a carga reverberando na cidade. Noite. Nessa ocasião a noite pelo meio. O velho na sala. Entre as luzes coadas pelo vidro. O trem chegando à noite em São Caetano. Noite. O calor da cama que incomodava. As luzes da janela azulando o sofá. - 0 que acontece no mundo agora? O velho. Pensou. Trens rasgando o sono. O eco do trem esgarçando o sono. - 0 que acontece no mundo agora? O velho usava todas as forças. Se concentrou nessa id éia. Mas tudo o que ele viu foram os quarteirões em torno. Tudo o que ele viu foram as casas conhecidas iluminadas pelas luzes de

mercúrio. Em seguida, com um grande esforço, ele já não viu, só imaginou-isso mesmo, uma imaginação dentro da imaginação-ele imaginou as pessoas dormindo. Ele sentia um cordão de isolamento na sua cabeça. O estado de sítio daquele lugar. O barulho do trem chegando à noite em São Caetano. Passava o trem. O velho se ergueu, o sofá apitou qualquer coisa. O velho não olhou pra trás. Ecoou na sua cabeça: -Não olha pra trás ... Foi voltando pro quarto.-Não olha pra trás ... O pijama desajeitado. Ele ajeitou. Escorou-se no batente da porta. Passou pela velha dormindo amarrada nos seus cobertores. Dentro do quarto outra vez o barulho do trem na noite. O velho em pé em seu quarto deserto à procura de um eco de ferros no meio da sua noite. A noite deserta. O trem esmagando as plantas do caminho e chegando. Um apito, mais outro, o trem inundando a cidade. O barulho de mil ossos partindo na noite. Deitou. Mas o lençol afogava. Mas o lençol enforcava o velho escutando o chamado do trem. Sono mutilado. Cobertores com cacos de vidro picando a perna. Noite. Noite deserta. Ônibus desertos. Trens desertos. Freios desertos. Motores diesel desertos. Fábricas desertas.

212


O pensamento. O pensamento em volta. O pensamento em volta da cama. Em volta do corpo. Um não sair das idéias. Não sair. Não sair. A rua deserta. -Sono-sono-sono, venha! Tudo o que era deserto tirava o sono do velho. -Sono-sono-sono, venha! O trem chegando em São Caetano no meio da noite. O trem de carga. Ferro com ferro. -Alguém precisa fazer alguma coisa! Rolava daqui e dali. -Um abaixo assinado? De bruços, de costas. -Dormir-dormir-dormir ... Uma talhadeira na terra do mundo. O trem e o seu barulho correspondente. Barulhos dentro da noite.[ ... ]

Seis vezes periferia Trabalho

Fabiana Jardim

Muitas são as chaves de entrada a partir das quais é possível pensar a questão do trabalho, afinal, a atividade de trabalhar e todas as formas sociais criadas historicamente (desde sistemas de seguridade social e ordenamento jurídico, passando por organizações coletivas e chegando a aspectos culturais bastante cotidianos como a organização do tempo e da mobilidade pelo espaço, por exemplo) adquiriram centralidade na organização de nossas sociedades ocidentais modernas. Central idade de Jato e também centralidade analítica, pelo menos durante um longo período da história das ciências humanas e sociais, que tomavam o trabalho como instância analítica privilegiada para a compreensão da dinâmica social (Castro, 1994). Tendo em vista o objetivo de pensar sobre o lugar ocupado pela categoria trabalho nos estudos sobre periferia, podemos diferenciar as abordagens em relação ao tema conforme três eixos: 1) o trabalho como ponto em que se articu-


Iam explicações estruturais sobre a dinâmica social; 2) o trabalho como eixo de articulação identitária-coletiva e individual e 3) o trabalho como espaço de crise, ou seja, como eixo de problematização das transformações sociais em curso. Em relação ao primeiro eixo, é interessante relembrar a literatura latino-americana sobre subdesenvolvimento e marginalidade64. Os esforços empreendidos pelos intelectuais latino-ame ricanos, no início dos anos 1960, para a compreensão das especificidades históricas do continente em relação às experiências dos países centrais contribuíram imensamente para que algumas das diferen ças pudessem ser explicadas, em termos estruturais. 64

H á diferenças entre os autores, que estão sendo deixadas de lado aqui para a composição de um quad ro geral ao qual possamos referir o papel desempenhado pelo trabalho. Ver Furtado, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; Nun, José. "Su-

perpopulación relativa, ejército industrial de reserva y masa marginal", in Re-

Tal literatura procurava dialogar com a idéia de que o subdesenvolvimento seria uma "etapa" histórica necessária a que se chegasse ao desenvolvimento, entendido como o patamar alcançado pelos países nos quais a revolução industrial se dera primeiramente. Questionando esse pensamento "etapista", essa literatura procurou mostrar que as mazelas econômicas, sociais e políticas que enfrentávamos n ão resultavam de um desenvolvimento insuficiente, mas de uma fo rma específica de desenvolvimento, apoiada sobre uma estrutura econômica dual- tradicional/moderna, formal/informal. Mais do que isso, essas duas estruturas coexistentes seriam funcionais à reprodução capitalista, h avendo poucas perspectivas de integração entre ambas65. Daí a discussão sobre a marginalidade, conseqüência dessa dinâmica sobre a estrutura social: uma vez que há funcionalidade da estrutura produtiva tradicion al (que engloba produção e serviços de baixa produtividade, pouco regulados e, em geral, info rmais), haveria sempre uma massa de trabalhadores que não

vista latinoamericana de sociología, v.s, n.2, julho, 1969; Cardoso, Fernando

H enrique

&

Faletto, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina .

Rio de Janeiro: LTC Editora S.A., 1970.

65

Ver O liveira, Francisco de. Crítica à razão dualista e O ornitorrinco. São Paulo: Boi tempo, 2003.


encontraria lugar na estrutura produtiva moderna, condenados a sobreviver "por fora" dela-ou no mercado informal ou, hipótese que também era considerada, tratar-se-ia de pessoas sem nenhuma função no sistema, nem mesmo como exército industrial de reserva. D e fato, uma questão central n aquele momento - e que continua interpelando nossa reflexão - referia-se às possibilidades de integração dessa população. A estrutura produtiva ca racterística de nossa forma específica de desenvolvimento, assim, parece admitir a existência de certas situações ocupacionais que estão (ou estiveram, por um longo período) ausentes nos países centrais: além dos empregados (em geral, contratados pelas estruturas produtivas mais modernas) e dos desempregados, possuímos também um grande número de subempregados (realizando uma infinidade d e atividades de "viração", em geral pouco produtivas e mal remuneradas). A identificação entre trabalho e emprego, que ocorreu nos países que constituíram um m ercado de trabalho quase inteiramente regu lado por relações de trabalho de tipo empregatício, não se estabeleceu entre nós- pelo menos não da mesma m aneira. E aqui podemos passar ao nosso segundo eixo, pois que

as especificidades da estruturação de nosso mercado de trabalho têm conseqüências para as maneiras pelas quais o trabalho é problem atizado como eixo de construção identitária. Não nos concentraremos tanto sobre o trabalho como eixo de construção de identidades coletivas; como se trata aqui de pensar o trabalho tendo em vista as questões que suscita para o estudo das periferias, nos deteremos sobre a abundante literatura que, ao refletir sobre as relações entre trabalho e pobreza, por exemplo, lança luzes importantes sobre o lugar ocupado pelo trabalho e pelo emprego na constituição de identidades individuais. De um modo geral, essa literatura nota que a falta de um m ercado de trabalho estruturado em torno de relações formais, bem como de um sistema de seguridade efetivo, acaba lançando grande pa rte da população, especialmente a m ais pobre, numa situação de instabilidade constante66. No Brasil, a despeito da existência da Consolidação das Leis do Trabalho, o emprego não se ge66

Alguns desses trabalhos estão ind icados nas Leituras Recomendadas: N asser (2003), Sa rti (1994) e Telles (2001). Ver também Zaluar, Alba. Gênero, cidada-

nia e violência : Campinas, IFICH!Unicamp, coleção Primeira Versão, n. 18, 1990.


neralizou como forma de vínculo empregatício, transformando-se no avesso do direito ao trabalho à medida que cindiu a sociedade entre os pobres e os trabalhadores, conferindo aos últimos o estatuto de cidadãos e lançando aqueles que estão excluídos do vínculo empregatício na indistinção da pobreza (cf. Telles, 2001). O emprego, do ponto de vista simbólico, aparece como horizonte de integração desejável, como referência a um mundo de relações de trabalho menos privatizadas e mais estáveis; mas na impossibilidade de consegui-lo, resta afirmar a adesão ao universo de valores morais associados ao trabalho por meio de um comportamento diligente. É nesse contexto que o trabalho adquire centralidade analítica para a compreensão do discurso dos indivíduos pobres: o trabalho aparece como eixo de identificação ao mundo da ordem, operando uma nova distinção, dessa vez no interior mesmo da pobreza, entre os pobres honestos e os vadios ou marginais. Identificar-se como trabalhador significa, então, escapar às armadilhas da pobreza, afirmando alguma esfera de escolha frente às adversidades da vida. O terceiro eixo, relativo ao trabalho como eixo de problematização das transformações sociais em curso, é aquele ao qual

daremos maior atenção nestas breves reflexões. A questão do trabalho, nos estudos da periferia, sempre apresentou desafios interpretativos-principalmente quando pensada em relação às pesquisas realizadas nos países centrais. Essa característica se exacerba num contexto de crise no mundo do trabalho: a rapidez das mudanças recentes, no mínimo, impõe questões à validade das categorias com as quais nos acostumamos a pensar a dinâmica social do trabalho. As altas taxas de desemprego, por exemplo, bem como a maior duração deste que seria um período de transição entre dois empregos, nos incitam a pensar sobre qual é a nova dinâmica de inserção/exclusão no mercado de trabalho: se antes podíamos falar em emprego recorrente (Guima rães, 2004), entendendo por isso o intenso trânsito dos indivíduos por diferentes postos de trabalho, hoje será necessário falar em desemprego recorrente (idem), nomeando uma mudança sem, no entanto, compreender ainda suas conseqüências e implicações. Do mesmo modo, se antes podíamos definir uma trajetória ocupacional considerando que a inatividade estava apenas nas "pontas" -momentos de entrada e de saída do mercado de trabalho-, hoje nos deparamos com um trânsito entre as situações de atividade e inatividade mesmo n o

216


período de idade ativa67, o que certamente põe em xeque tanto a noção de trajetória ocupacional quanto a compreensão do funcionamento do mercado de trabalho. Isso sem fal a r n os efeitos de tais transformações sobre as identidades coletivas e individuais refe ridas ao trabalho. O papel do homem-provedor no universo familia r (ver Comin, 2002 e Caetano, 2004), por exemplo, perde completamente o sentido num contexto em que seus ganhos ou são insuficientes para o sustento da família, ou são fruto de relações de trabalho tão instáveis que não constituem parte certa no orçamento dom éstico ou, ainda, perdem importância uma vez que as ocupações encontradas pelas mulheres, a despeito de mais m al pagas, são mais estáveis. Frente a esse contexto de mudanças, as ciências sociais são provocadas à criação de novas categorias e interpretações, o que passa pela articulação do trabalho a variáveis analíticas tais como gênero, raça, etnia e geração, além da observação atenta dos des67

G uimarães, Nadya Araujo. "Transições ocupacionais e formas do desemprego em São Paulo e Paris". Texto apresentado em 2IIo9hoo4, no Sem iná rio Tem ático Economia e Sociedade, São Paulo, 2004-

locamentos discursivos e das novas configurações que provisoriamente se estabelecem. Finalmente, ainda em relação ao trabalho como espaço de crise, cabe toca r em um último tem a: principalmente a partir dos anos 1990, com o aumento das taxas de desemprego, sem perspectivas de um retorno à " normalidade" num espaço curto de tempo, começaram a surgir formas alternativas de organização do trabalho, notadamente as cooperativas de trabalho. Tal crescimento se d eu de forma acentuada no espaço das g randes cidades, em pa rte devido aos processos de terceirização dos serviços, o que provocou preocupações da parte do Ministério do T rabalho. Essa característica também está na origem dos esforços empreend idos pelos movim entos de Economia Solidária em distinguir as suas cooperativas (autogeridas e democráticas) das "coopergatos" (cooperativas criadas apenas para que os patrões deixem de arcar com os custos de manutenção de seus empregados). Conforme o amadurecimento do debate em torno da construção de alternativas, foi-se constituindo a idéia de que, para além de formas de geração de trabalho e renda, seria necessá rio criar também alternativas para produção, comercialização e fi-


nanciamento. Todos esses aspectos, articulados de modo sistêmico, foram agrupados sob a denominação de Economia Solidária68. Longe de estar estabelecida como consenso, a Economia Solidária consolida um debate sobre a necessária criação de novas medidas para as relações de trabalho e sobre as dificuldades de construção de alternativas para a crise do mundo do trabalho cuja organização conhecíamos. Ela aparece, assim, como uma possível resposta ao contexto de mudanças ao qual nos referíamos acima. Uma resposta que não deixa de carregar ambigüidades, já que postular pela necessária criação de uma outra economia não deixa de significar o reconhecimento da impossibilidade de integração de parte da população na atual estrutura sócio-econômica, reiterando a identificação desta população ao universo dos "excluídos" - o que pode abrir espaço para novas formas de

integração e inserção, mas sem dúvida deixa de enfrentar analiticamente o desafio de compreender a nova dinâmica de inserção/exclusão que está se desenhando e de imaginar politicamente novos arranjos possíveis. FABIANA JARDIM é doutoranda do Departamento de Sociologia -

e

FFLCH-USP.

Sugestões de leitura:

CAETANO, Maria Inês. Trajetórias urbanas de moradores de uma favela de um distrito de elite da capital paulista: Tese de doutorado. São Paulo: Departamento de So-

ciologia, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2004. CASTRO, Nadya Araujo. "Trabalho, cultura, sociedade: reflexões a partir do conceito de 'cultura operária'". Comunicação apresentada durante o VII Encontro de Ciências Sociais do Norte/Nordeste, João Pessoa, maio, '994·

68

A Economia Solidária tem passado a fazer parte das preocupações do Estado,

COM IN, Á lvaro A. Mudanças na estrutura ocupacional do mercado de trabalho em São Pau-

principalmente via gestões de esquerda (em nível municipal, estadual ou fe-

lo: Tese de doutorado. São Paulo: D epartam ento de Sociologia, Faculdade de

deral). O Governo Federal - gestão Luís Inácio Lula da Silva -

Filosofia Letras e C iências Humanas, Universidade de São Paulo,

criou, por

exemplo, a Secretaria Nacional de Economia Solidária-sENAES, alocada no Ministério do Trabalho e Emprego.

2002.

GUIMARÃEs, Nadya Araujo. "Do trabalho ao desemprego: contextos societais, construções normativas e experiências subjetivas" in Caminhos Cruzados: estratégias de

218


empresas e trajetórias de trabalhadores. São Paulo: Editora 34, 2004.

Classes sociais

Enio Passiani

JARDIM, Fabiana A. A. Entre desalento e invenção: experiências de desemprego em São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo: Departamento de Sociologia, Faculda-

de de Filosofia Letras e C iências Humanas, Universidade de São Paulo, 2004. MARTINS, José de Souza. "Que fazer para gera r empregos no Brasil?" in Revista de Estudos Avançados, IEA, volume I?, n. 49, setembro/dezembro, 2004, pp.304-305. ---.Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 2003.

NASSER, Ana Cristina. Sair para o mundo: trabalho, família e lazer na vida dos excluídos. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2003. RIZEK, Cibele. "Interrogações a um campo teórico em crise" in Tempo Social, Revista de Sociologia da usP, 6(I -2), junho, I995· pp. I47- I79·

SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres na periferia de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo: Departamento de Antro-

pologia, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, usP, I994· SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002. TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania. São Paulo: Editora 34/Curso de pós-graduação em sociologia, 2001. - - -. "A pobreza como condição de vida: família, trabalho e direitos entre as classes trabalhadoras urbanas" in São Paulo em Perspectiva, 4 (2), abril/junho, I990, PP·37-45·

As ciências sociais de modo geral, e a sociologia em particular, desde o seu nascimento, se ocuparam daqueles processos histórico-sociais responsáveis pela formação do sistema capitalista nas sociedades modernas ocidentais; e, por conseguinte, elegeram como um dos objetos fundamentais de análise a estruturação desse tipo de sociedade em classes sociais (Fernandes, 1971). O número de autores e as teorias, das mais variadas correntes e escolas sociológicas, que, desde então, têm as classes sociais como tema central, é diverso: dos clássicos Marx, Weber, Spencer, Durkheim, Tonnies; até os contemporâneos Dahrendorf, Mills, Bourdieu, Eder, para citar apenas alguns-o que demonstra, ainda hoje, a importância e a relevância do tema para o conjunto das chamadas ciências da sociedade. Daí a necessidade imperativa de realizar um recorte analítico mais preciso para os fins deste trabalho e que justifique a escolha de certos autores em detrimento de outros. O conceito de classes sociais foi muitas vezes utilizado como ferramenta teórico-metodológica para


analisar a dinâmica do conflito social na sociedade capitalista industrial e pós-industrial (Dahrendorf, 1982; Eder, 2002) e as formas de dominação desenvolvidas no seu interior (Miliband, 1999), bem como as possibilidades de resistência a tal dominação (Eder, 2002)69. Marx é considerado o primeiro teórico a oferecer, no âmbito das ciências sociais, uma elaboração do conceito de classes (Fernandes, 1971). Segundo Marx, a divisão social do trabalho na sociedade capitalista industrial produziu duas classes sociais antagônicas e em luta: a burguesia, que detém a propriedade privada dos meios de produção; e o proletariado, cuja única mercadoria de que dispõe para vender é a própria força de trabalho. A posse dos meios de produção permite à burguesia explorar a força de trabalho da classe operária e dela extrair a mais-valia, garantin69

Justifica-se, assim, a ausência, neste verbete, de um autor da envergadura de

do, assim, a acumulação do capital e a reprodução materiaJ70 da sociedade capitalista. Observa-se na teorização marxiana que a posição social dos indivíduos na estrutura da sociedade define sua posição de classe, que, por sua vez, determina seus interesses e ações-não mais como indivíduos, mas como portadores de relações de classe. Às posições distintas correspondem interesses e ações opostos: uma das classes, a burguesa, pretende manter sua hegemonia; a outra, a trabalhadora, por ser destituída da propriedade, levará a cabo a revolução responsável pela superação do capitalismo. No início do século passado, Max Weber inaugura uma segunda tradição no campo das ciências sociais acerca dos estudos sobre a estrutura de classes. Baseado na sua tese sobre a separação das esferas da vida na sociedade moderna, Weber, ao contrário de Marx, procura distinguir o poder condicionado economicamente do poder determinado por fatores não-econômicos- poder este,

Durkheim, que ana lisou a divisão socia l do trabalho na sociedade capita lista -e, portanto, sua divisão em classes sociais-como fundadora não de

70

De acordo com Marx e Engels, a classe que dispõe dos meios de produção ma-

conflitos, mas de um tipo de solidariedade por cooperação, resultado das dife-

terial, dispõe igualmente dos meios de produção espiritual e garante a repro-

renças entre as pessoas: a solidariedade orgânica.

dução id eológica da dominação de classe (Marx

&

Engels, 1999).

220


não importa sua forma, sempre garantido pela lei. Weber opera, portanto, uma separação entre a ordem econômica, a legal e a social, que, embora distintas, influenciam-se mutuamente. Weber reconhece que a distribuição do poder é desigual na sociedade, gerando diferenças econômicas, que definem as classes, diferenças de poder político, que geram os partidos, e diferenças de prestígio, que definem o status. A estratificação econômica e a estratificação por status resultam em interesses de classe e de grupo diferentes, que podem ser representados pelos partidos políticos. Weber, pois, reconhece não somente os conflitos de classe na sociedade moderna industrial, como também os conflitos entre os grupos de status e entre as associações políticas (os partidos e até mesmo os Estados-Nação), que podem estar relacionados (e provavelmente estarão), mas são independentes uns dos outros. Ao longo do século xx, e principalmente no pós-n Guerra, uma série de transformações na estrutura do sistema capitalista, ocorridas principalmente na América do Norte e na E uropa - impactou, como não poderia deixar de ser, as teorias sociológicas e provocou uma certa crise do conceito de "classe social", que começou a cair em desuso, sendo utilizado em seu lu-

gar a noção de "estrato social" (Giddens, 1975; Dahrendorf, 1982; Eder, 2002) . E que transformações teriam sido essas? O desenvolvimento econômico norte-americano e um bom desempenho das sociais-democracias européias permitiram a solução de vários problemas de ordem material, melhoraram, de modo geral, as condições de vida dos trabalhadores, ampliou-se sua participação política, e garantiram a expansão do sistema escolar; enfim, a estabilidade política e econômica possibilitava o crescimento das "novas classes médias" (Mills, 1969)- funcionários de escritório, gerentes, executivos, professores, prestadores de serviço etc. - e sua mobilidade social ascendente. Tais mudanças provocaram um certo nivelamento social e a possibilidade de uma luta violenta entre as classes pa recia cada vez mais remota-assim sendo, a tradição marxista que opunha o capital ao trabalho perdia força. Os conflitos ainda existiam, mas eles eram cada vez mais institucionalizados, e os partidos trabalhistas e os sindicatos cada vez mais abriam mão da solução revolucionária e optavam pelas barganhas coletivas (Giddens, 1975; Dahrendorf, 1982). Se, no século XIX, o antagonismo entre capital e trabalho era evidente - o que tornava o conflito entre as classes algo palpável - , no xx, des-


cortina-se uma pluralidade de conflitos7I para além das classes sociais, como, por exemplo, os movimentos feministas, as mobilizações em prol da ampliação dos direitos civis, a organização estudantil, as lutas pela descolonização, entre outros. No início dos anos 70 do século xx, Pierre Bourdieu é responsável por uma "guinada culturalista" (Eder, 2002: II2) nos estudos sobre as classes sociais72. Em Bourdieu, a dominação nas sociedades capitalistas industriais não se define apenas pela posse de capital econômico, mas também, e principalmente, pela posse de capital cultural. Nesse sentido, a dominação é fundamentalmente simbólica. Segundo ele, a posição social do indivíduo no 71

Outro fator que contribuiu para o esmaecimento do conceito de classes sociais foi o deslocamento de foco analítico promovido pelas chamadas teorias pós-modernas, debruçadas sobre as disputas em torno da construção das identidades e das diferenças que tal fragmentação dos conflitos trazia à tona. A bibliografia a respeito é extensa, mas, a título de exemplo, consu ltar

72

BHABHA,

Um primeiro passo em direção a uma abordagem culturalista da luta de classes já havia sido dado por Antonio Gramsci. Ver

GRAMSCI,

1968.

espaço social gera uma certa disposição, o habitus de classe, responsável por desencadear certos estilos de vida e práticas, inclusive culturais, que tendem a fortalecer a própria posição, mantendo e reproduzindo a distância e a distinção sociais. Se as disposições são ajustadas de acordo com as posições sociais-é a interiorização das condições objetivas de vida-, então pode-se dizer que são ajustadas de acordo com a estrutura de classes. Nesse sentido, as oposições entre as classes-portanto, os conflitos-e a dominação podem ser visualizadas a partir dos estilos de vida e práticas culturais (visitação a museus, hábito da leitura, freqüência a concertos e teatros etc.). Mais recentemente, o sociólogo alemão Klaus Eder restabelece a conexão, por meio da cultura, entre a ação social coletiva, expressa pelos movimentos sociais, e as classes sociais. No âmbito europeu, argumenta Eder, as classes médias-compostas tanto por frações da classe dominante quanto da dominada-são dotadas de um certo "radicalismo pequeno-burguês" (Eder, 2002: 247), e formam a base dos novos movimentos sociais. O que permite a mobilização coletiva e a ação das novas forças sociais, a despeito de sua heterogeneidade interna, é o fato de partilharem interesses,

222


normas, objetivos e valores comuns, ou seja, uma "cultura do movimento" (Idem: 276) elaborada no seio da própria mobilização. Destarte, a cultura de protesto transforma-se numa cultura de grupo mais abrangente e confere identidade coletiva - e, portanto, certa unidade - aos movimentos sociais. Não há "classes em si", aponta o autor, mas atores coletivos que se constituem como classe por meio de sua ação coletiva. Noutros termos, as classes médias-segundo o autor, "o elemento mais dinâmico no processo de modernização da sociedade moderna" (Idem: 272)-se constroem por meio de certas práticas que definem um modo de existência social que não está mais limitado e determinado pelas relações de trabalho e produção. Está ocorrendo, de acordo com Klaus Eder, uma redefinição dos conflitos na estrutura das sociedades capitalistas pós-industriais, deslocados para arenas mais fluidas de confrontos sociais: os movimentos ecológicos, negros, feministas, gays etc. Foi justamente uma abordagem de matiz culturalista que permitiu, no BrasiF3, repensar e alargar o conceito de classe a fim

de abarcar grupos e atores sociais que não faziam parte daquelas formulações voltadas para a interpretação das sociedades capitalistas avançadas. Afinal, era preciso ajustar o foco teórico para uma outra realidade social, marcada historicamente por uma profunda exclusão, hierarquias de toda ordem, pela precarização do trabalho e pelo subemprego. Não é à toa que principalmente nos anos 8o-década marcada, em razão da profunda recessão econômica, por um intenso processo de subproletarização que atinge os países capitalistas centrais e de modo ainda mais dramático as nações capitalistas periféricas - presenciamos a preocupação de sociólogos e antropólogos brasileiros com as chamadas "classes populares", os trabalhadores pobres empurrados para a periferia dos grandes centros urbanos 74. Vários trabalhos 75, a partir de então, pretendiam demonstrar que o processo de formação das classes não 74

A res peito do d ebate teórico sobre o processo d e urbanização ocorrido nas principais cidades d o Brasil, ver, a segui r nesta mesm a edição, "Urbanização",

73

Sobre um balanço m ais abrangente do conceito de classes sociais no pensamento social brasileiro, consulta r GU IMARÃEs, 1999, v. 2.

de H eito r Frúgoli

75

Jr.

Entre muitos outros, consulta r ZALUAR, 1994 [ 1985]; MAGNANI, 1984.


depende única e exclusivamente da constituição das relações de trabalho no interior das fábricas, mas se dá também a partir das práticas culturais em diversas esferas da vida cotidiana que estão além do mundo da produção (Sader e Paoli, 1997 [1986]). Tais trabalhos se debruçavam sobre o "modo de vida das classes populares urbanas" (Zaluar, 1994 [1985]), entendendo-se "modo de vida" como as redes de sociabilidade, hábitos e práticas desenvolvidos em múltiplos espaços sociais-os locais de moradia, as agremiações recreativas, quadras esportivas, campos de futebol, sedes de escolas de samba, circos-teatro, praças, esquinas, bares etc-e no curso de experiências coletivas concretas. Se, até então, uma certa perspectiva teórica, bastante marcada pelo marxismo, não enxergava as populações pobres das periferias como grupos sociais organizados, capazes de uma ação coletiva e autônoma, mas, ao contrário, encaradas como fisiológicas, presas à tradição, atrasadas, alvo de uma suposta ideologia dominante, amarradas aos interesses materiais mais imediatos (Zaluar, 1994: 35), as interpretações culturalistas advindas da sociologia e, principalmente, da antropologia, revelavam que as camadas populares possuíam repertórios simbólicos próprios, ou seja, valores,

crenças, atitudes e idéias desenvolvidas no "plano material das práticas sociais" (Zaluar, 1994: 53), inventados e reinventados de forma dinâmica a partir de suas experiências cotidianas, e que constituem formas de resistência à dominação ideológica e servem de base para a elaboração de estratégias de participação política por meio da organização dos movimentos sociais populares nas áreas periféricas dos centros urbanos, até aquele momento invisíveis aos olhos da comunidade científica brasileira, e responsáveis, a despeito da heterogeneidade das classes populares, pela formação de uma identidade de classe. EN IO PASSIANI é mestre e doutorando em sociologia pela usP.

Sugestões de leitura

BHABHA, Homi K . O local da cultura. Belo Horizonte: Ed UFMG, 1998.

· BOURDIEU, Pierre. "Gostos de classe e estilos de vid a" in ORTIZ, Renato (org.) Pien-e

Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. UAHHNUOHF, Ralf. As classes e seus conflitos na sociedade industrial. Brasília: Ed. Unb, 1 9~h. EDER, Klaus. A nova politica de classes. Bauru: Edusc, 2002. FERNANDES, Florestan. Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira, 1971.

224


GIDDENS, Anthony. A estrutura de classes das sociedades avançadas. Rio de Janeiro: Zahar

Urbanização

Heitor Frúgoli ]r.

Editores, '975· GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, I968. GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. "Classes sociais" in MICELI, Sergio (org.) O que ler

na czência social brasileira (!970- 1995). São Paulo: Editora Suma ré: Anpocs; Brasília,

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2

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, I984. MARx, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, I999· MARx, Karl. O capital. São Paulo: Ed . Abril, I985, vol. t. MILIBAND, Ralph. "Análise de classes" in GIDDENS, Anthony & TURNER, Jonathan (Ürgs.).

Teoria social hoje. São Paulo: Ed. Unesp, I999· SADER, Eder & PAOLI, Maria Célia. "Sobre "classes populares" no pensamento sociológico brasileiro (Notas de leitura sobre acontecime ntos recentes)" in CARDoso, Ruth (org.). A aventura antropológica. Teoria e pesquisa. Rio de Ja neiro: Paz e Terra, 1997 [1986]. MILLS, C harles Wright. A nova classe média (White co/lar). Rio de Ja neiro: Zahar Editores, I 969. WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. Unb, I99I, vol. r. ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, I994 [ I985].

N uma primeira aproximação, a noção de urbanização nos remete ao processo de formação e desenvolvimento das cidades ocidentais surgidas especialmente a partir do declínio do feudalismo e expansão d o capitalismo. Tal visão, entretanto, é alvo de controvérsias, já que há autores que defendem uma forte dimensão citadina-troca, informação, vida cultural-já no período medieval (Le Goff, 1998). De toda forma, inúmeros estudos concentraram-se nas relações entre urbanização e industrialização, cuja combinação provocou, a partir de meados do século XIX, um forte desenraizamento populacional do campo e mudanças fisionômicas que marcaram, inicialmente na Europa, a emergência da cidade moderna. Na Berlim da época, Simmel sublinhou a configuração do anonimato e da impessoalização, cujo contato cotidiano entre estranhos nos espaços públicos seria marcado pela combinação entre proximidade física e distâ9cia social, ocasionando a criação de estilos de vida caracterizados pela personalidade blasé-atitu-


des de reserva frente a um mundo hostil, objetivado e em rápida mudança-e pelas relações de sociabilidade-formas lúdicas e recíprocas de associação e interação, sem caráter instrumental (Simmel, 1987 [1902] e 1983 [1917]). No Brasil, tal urbanização se deu de forma tardia, em meio a uma frágil constituição da esfera pública, frente às heranças da escravatura. No Rio de Janeiro, a primeira reforma urbana de porte após o advento da República-comandada por Pereira Passos-expulsou inúmeros moradores de cortiços, levando ao surgimento das primeiras favelas nos morros da cidade (Needell, 1993). No campo da reflexão intelectual, o pensamento social brasileiro deu primazia, de um modo geral, ao Brasil rural enquanto revelador de nossos dilemas mais profundos como nação. Nesse contexto, as principais considerações sobre o domínio urbano ressaltaram suas continuidades com o plano rural, seja através da "urbanização do patriarcalismo", que marcaria os novos conflitos e antagonismos (Freyre, 1961 [1936]), seja pela cordialidade enquanto antítese da civilidade, que também predominaria em nossas cidades, assinaladas, quanto à forma, por topografias frouxas e irregulares, decorrentes do espírito "des-

leixado" e "semeador" do empreendimento colonial português (Holanda, 1997 [1936]). Uma reflexão mais voltada às especificidades da esfera urbana surgiu com a Escola de Chicago, de onde nasceu o conceito de cultura urbana. Nas primeiras décadas do século xx, investigações tomaram tal cidade como "laboratório", com enfoque nas áreas da migração, segregação étnica, marginalidade, prostituição e delinqüência. Entre as principais referências teóricas, figurava Wirth, que tomava o urbanismo como "modo de vida" -um mosaico denso e heterogêneo de mundos sociais onde predominariam a impessoalidade, as relações instrumentais e o enfraquecimento dos laços de parentesco. Outra referência, que dialogava com a anterior, era a de Redfield, antropólogo que a partir de pesquisas na aldeia de Tepoztlán, no México, formulou o conceito do continuum folk-urbano, cujo approach, de cunho evolucionista, inspirou tanto os estudos de comunidade, quanto definiu especificidades da dimensão urbana. Introduzindo uma concepção espacializada do social, que tomava a cidade como "variável independente", tal escola inspirou pesquisas conduzidas inicialmente por sociólogos que, orientadas etnograficamente,


chegaram a vários resultados empíricos contrapostos às premissas teóricas da "desorganização social", posto que apontavam grupos e territórios marcados por lógicas internas diferenciadas de organização e ordenação (Hannerz, 198o; Wirth, 1987 [1938]; Redfield, 1947). Um campo importante da antropologia urbana se consolidou a partir dos trabalhos de Lewis sobre a mesma Tepoztlán e sobre migrantes rurais na Cidade do México, que permitiram ao autor um conjunto de críticas ao continuum folk-urbano, bem como uma complexificação do conceito de cultura urbana, dado que as práticas de tais migrantes eram pautadas pela recriação e reforço de vários hábitos familiares, comunitários, religiosos, medicinais etc. (Lewis, 1951 e 1976 [1965]). Com isso, as relações entre cidade e campo, ou, num outro sentido, entre modernidade e tradição, passaram a constituir novos desafios, tendo em vista contextos urbanos marcados pela diversidade, nos quais os migrantes e outros grupos marginalizados suscitavam especial atenção. Dimensões socioculturais da urbanização na América Latina- marcada por processos dramáticos de desigualdade, pre-

cariedade e pobreza-atraíram, nos anos 1970 e 1980, a atenção da antropologia e da sociologia, cujo diálogo disciplinar auxiliou a delimitar os enfoques de cada perspectiva. A sociologia urbana marxista, que criticava o culturalismo da Escola de Chicago, tratou, a partir dos anos 1970, da cidade e da urbanização como "variável dependente", com a busca inicial de explicações macroestruturais nas quais a cidade estaria subordinada ao processo de reprodução da força de trabalho (Castells, 1983 [1972]). Na América Latina, com a emergência posterior de vários movimentos sociais urbanos nas áreas periféricas das metrópoles, na luta por moradia e equipamentos urbanos coletivos, a sociologia urbana voltou-se a enfoques marcados pela inseparabilidade entre urbanização e política (Kowarick, 2ooo). Já no campo da antropologia urbana brasileira, muitas pesquisas desse período voltaram-se, embora não exclusivamente, para áreas periféricas ou favelas, buscando compreender temas como modos de vida, estratégias de sobrevivência, formas de sociabilidade, práticas religiosas, representações políticas e redes de parentesco e vizinhança, com ênfase particular em dimensões cotidianas e representações simbólicas. Sublinhava-se a necessidade


de compreensão dos vários atores sociais da cidade, marcada por forte divisão social do trabalho, redes diversificadas e múltiplos focos de produção simbólica. Foi um período no qual a compreensão das particularidades dessas dimensões urbanas levou à necessidade de diferenciações entre cultura e ideologia, ou num outro prisma, a problemas decorrentes, em vários casos, de abordagens etnográficas com grupos marginalizados em processo de "cidadanização", concomitantes à utilização de conceitos clássicos que, voltados à interpretação de realidades distintas daquelas às quais originalmente se referiam, tornavam-se então apenas alusivos ou metafóricos, quando não redutores ou antagônicos, sofrendo assim uma espécie de "despolitização" (Velho & Viveiros de Castro, 1978; Durham, 2004 [1986]). Além dos desafios já apontados, a dimensão da urbanização suscita, do ponto de vista antropológico, um enfrentamento crítico do urbanismo enquanto prática privilegiada de reflexão e intervenção planejada no tecido urbano. Nesse sentido, a etnografia do planejamento modernista de Brasília realizada por Holston (1993) abriu a possibilidade de novas investigações sobre faceta s significativas da urbanização, bem como a problematização dos

distintos significados de que se reveste o conceito de modernidade, alvo de crescente atenção na antropologia contemporânea. Tendo em vista as várias relações entre urbanização e modernização até aqui assinaladas, abordagens antropológicas podem ainda revelar mais sobre as fecundas combinações entre o tradicional e o moderno que dão substrato à vida urbana. HEITOR FRÚGOLI JR.

é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de

São Paulo.

e

Sugestões de leitura

CASTELLS, M. DURHAM, E.

A questão urbana. Rio de Jane iro: Paz e Terra, 1983 [1972].

"A pesquisa antropológica com populações urbanas" [1986] in Durham, E.

A dinâmica da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2004, pp. 357-376. FREYRE,

c. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961 [1936].

HANNERZ, HOLANDA , HOLSTON,

u. Exploring the city . Nova York: Columbia University Press, 1980. s.

B.

KOWARICK, L. LE GOFF,

Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 [1936].

J.A cidade modernista. São Paulo: Companhia das Letras, 1993· Escritos urbanos. São Paulo: Editora 34, 2000.

J. Por amor às cidades. São Paulo: Ed . Unesp, 1998.


LEWIS, o. Life in a Mexican vil/age: Tepoztlán restudied. Urbana, University of Illinois

Cidadania

Ana Lúcia Pastare Schritzmeyer

Press, 1951. LEWIS, o. "Outras observações sobre o continuum folk-urbano com referência à Cidade do México" [1965] in Hauser, P. M.

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Schnore, L. F. (orgs.). Estudos de urbani-

zação. São Paulo: Livraria Pioneira, I976, pp. 46I- 472. NEEDELL, J. o. "Rio de Janeiro: capital do século XIX brasileiro" in Needell, J· o. Bel/e époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 19-73· REDFIELD, R. "The folk society". American ]oumal of Sociology, ' 947• n. 4'• pp. 293-308. SIM MEL, c. "A metrópole e a vida mental" [1902] in Velho, o. c. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, pp. 11- 25. SIMMEL, c. "Sociabilidade-um exemplo de sociologia pura ou formal" [1917] in: Moraes, E. (org.). Sociologia: Simmel. Sao Paulo: Ática, 1983, pp. I65- I81. VELHO, c.

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VIVEIROS DE CASTRO, E. "O conceito de cultura e o estudo de sociedades

complexas: uma perspectiva antropológica" in Artefato n. 1, Rio de Janeiro: CEC, jan.h978. WIRTH, L. "O urbanismo como modo de vida" [1938] in Velho, O . G. (org.). Ofenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, pp. 90- I13.

Dentre as definições jurídico-políticas mais aceitas de cidadania está a que aponta para o estatuto oriundo da relação entre uma pessoa física - um indivíduo - e uma sociedade política - um Estado-do que decorre o dever de obediência dessa pessoa às leis desse Estado e o dever estatal de proteger sua integridade física, moral e psicológica (Svarlien, 1986: 177). O direito internacional relaciona cidadania à nacionalidade, mas considera a segunda um termo de maior alcance, pois permite distinguir os membros de um Estado dos estrangeiros ou, em se tratando de um Estado em que o governo é eleito por sufrágio universal, distinguem-se aqueles que têm direito a voto dos que não o têm. Daí, não se admitirem confusões entre cidadania e domicílio, pois um indivíduo pode ser cidadão de um Estado e não habitá-lo, bem como habitá-lo sem o ser. Como a cada Estado compete determinar o que entende por cidadania, é possível dois ou m ais Estados considerarem um mesmo indivíduo cidadão, havendo tanto casos de dupla ou múltipla cidadania,


quanto de apátridas (indivíduos sem nacionalidade e sem cidadania). A nacionalidade, enfim, é considerada um fato natural (qualidade de pertencer a uma nação por nela ter nascido ou por ter adquirido, por outros meios, esse pertencimento), enquanto a cidadania é tida como um fato contratual, uma qualidade e um direito de ser membro de um Estado e participar de suas funções, do que decorrem correlatos deveres e constantes acordos de vontades (Quintana, 1986: 178). Atualmente, na maioria dos Estados que se dizem democráticos, determinar quem é cidadão e quem é estrangeiro é matéria de direito constitucional (portanto, de direito público), embora sejam de direito privado as regras sobre o estatuto da pessoa, sua capacidade e a conservação ou perda de seus direitos individuais76. Mas é na área das Ciências Sociais que o conceito decida76

A Constituição Federal Brasileira (1988) aponta a cidadania como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1°, u) e explicita competir privativamente à União legislar sobre nacionalidade, cidadania e naturalização (art.

22, XIII).

dania ganha sentido ainda mais amplo e polêmico. Um clássico é o estudo de Marshall, no qual o conceito é subdividido em três elementos: civil, político e social. O primeiro remete-se às liberdades individuais-de ir e vir, de imprensa, de pensamento e fé, direito à propriedade, à efetivação de contratos válidos e à justiça. O segundo elemento diz respeito ao direito de participar do exercício do poder político e"[ ... ] o elemento social se refere a tudo o que vai, desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança, ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado, de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade" (Marshall, 1967: 63-64). Eis, portanto, o desafio para um cientista social e, em especial, um antropólogo: analisar a constituição desse elemento social da cidadania. Perceber o que as pessoas entendem por mínimo de bem-estar econômico, por segurança, por direito de participar, por herança social, por vida de um ser civilizado e por padrões que prevalecem na sociedade. Tratemos, brevemente, desse universo infindável de reflexões, reportando-nos ao Brasil pós-ditadura militar. De acordo com Teresa Caldeira (1991: 162), os primeiros quinze anos do processo de redemocratização brasileira (meados

230


da década de 1970 e anos 1980) foram de ampliação e multiplicação de percepções sobre o que eram e quais eram os direitos dos cidadãos e, portanto, sobre cidadania. Isso deveu-se tanto às lutas pela conquista de direitos políticos-direito ao voto e à libertação de presos pelo regime militar - , quanto às reivindicações de movimentos sociais urbanos por todo tipo de direitos coletivos-saúde, moradia, transporte, iluminação pública, creches, expressão de diferenças étnicas, controle do corpo e exercício da sexualidade etc. Nesse contexto, lembra Caldeira (idem: 163- 164) que, especialmente no discurso da igreja católica, direitos sociais eram associados a direitos humanos, sem maiores resistências, até que a própria igreja e militantes de (centro-) esquerda passaram a também chamar de direitos humanos as garantias legais cabíveis a presos comuns, vítimas de torturas e de toda sorte de maus tratos sofridos em delegacias e prisões. A partir desse momento, para as mais diferentes camadas sócio-econômicas da cidade d e São Paulo (e também do Brasil, penso eu), defender direitos de presos políticos e direitos sociais não mais se equiparou a defender direitos humanos. Como e porque isso assim se deu é o que a autora

explica, detalhadamente, cabendo-nos, aqui, ressaltar alguns argumentos diretamente relacionados ao conceito de cidadania. Apesar de a lógica que presidia as reivindicações de direitos aos presos políticos ser a mesma presente na defesa dos direitos de presos comuns, uns e outros foram vistos como "cidadãos de diferentes categorias" ou, como diriam Cláudia Fonseca e Andréa Cardarello (1999), os primeiros foram considerados "mais" e os segundos "m enos" humanos77. Aqueles (majoritariamente oriundos de camadas médias, altas e intelectual izadas) representavam a luta nacional contra o regime militar, e eram tidos como suas vítimas, e os outros (de camadas pobres, semi ou analfabetos) eram, inquestionavelmente, criminosos m erecedores de severas punições. Enfim, presos políticos eram cidadãos injustiçados e presos comuns, "em nome da ordem ", deveriam ser excluídos do exercício da cidadania. D e um lado, direitos políticos e coletivos eram reivindicados por movimentos sociais urbanos e reportavam-se ao Poder 77

O m esmo valendo para indígenas, mend igos e jovens in fratores frente a outros "mais" humanos.


Executivo, visando à conquista de benefícios para seus próprios ativistas. De outro, direitos individuais de presos comuns remetiam-se ao Poder Judiciário e contavam com porta-vozes de setores específicos da igreja católica, da sociedade civil, de certos governos e de alguns partidos políticos. Muito rapidamente, porém, todos esses-direitos individuais dos presos78 e seus porta-vozes-acabaram por se deslegitimar junto à maioria esmagadora da população, graças, principalmente, a sedutores discursos de uma direita quase lombrosiana, apoiada por setores importantes da mídia, que negavam a humanidade dos presos e associavam a melhoria das condições do sistema prisional ao aumento da criminalidade79. 78

Direitos à integridade física e moral , tais como alimentação, vestuário, trabalho, remuneração, previdência social, descanso, recreação, assistência à saúde, assistência jurídica, educacional, social, religiosa, acompanhamento de advogado, visitas etc. (Lei das Execuções Penais, 1984, art. 40 a 43).

79

Vale lembrar que os altos índices de criminalidade, nos dois primeiros anos do

Ainda na esteira do raciocínio de Teresa Caldeira e, também lembrando Geertz (1999), talvez possamos concluir que, no interior de uma sociedade como a brasileira, ainda de fortes bases conservadoras e autoritárias, o exercício da cidadania, entendida como convívio entre os diferentes, é dos mais difíceis, pois se torna mais confortável para os que historicamente desfrutam de privilégios criar categorias estereotipadas de cidadãos, hierarquizá-las rigidamente e, assim, classificar e divulgar, a seu favor, quem deve ter mais e menos direitos, quem é "mais e menos humano". Nesse contexto, se o Estado tenta romper com essa lógica, ele é neutralizado: daí as privatizações de várias de suas funções primordiais e originalmente caracterizadoras da cidadania, como a saúde, a educação e a segurança pública. Em outras palavras, nessa lógica do (não) convívio baseado na separação e exclusão dos diferentes, todos, de algum modo, acabam se excluindo da vida pública e do exercício da cidadania. As elites econômicas isolam-se em seus carros blindados, condomí-

governo Franco Monturu, no estaJo Je São Paulo, foram associados à ineficácia do Executivo no combate à criminal idade (inclusive por causa da política

nas várias secretarias e demais instâncias estatais, passaram a ser contabili za-

pró-direitos humanos), e não ao fato de que, criando-se maior transparência

dos dados antes omitidos pelos governos ditatoriais militares.

232


nios fechados com seguranças particulares, escolas e clubes exclusivos (Caldeira, 2ooo). As camadas populares recolhem-se em bairros-dormitórios, periféricos e em favelas onde a segurança, as escolas, as creches, os postos de saúde etc também são privatizados, por exemplo, por traficantes. E, apesar (ou por causa) desses isolamentos, não deixam de ocorrer "encontros" desastrosos, para todos. Será que estamos, novamente, diante da velha oposição "nós/outros"? De um lado, nós que, provavelmente, jamais seremos criminosos (estupradores, assassinos, pois não estão em questão crimes de colarinho branco); nós que, "se por uma desgraça", formos presos, não o seremos em qualquer distrito policial ou penitenciária porque gozamos de privilégios, "títulos", celas particulares e bons advogados de plantão; nós que, enfim, não precisamos nos preocupar com o desrespeito a direitos individuais porque somos cidadãos. E, de outro lado, estão os outros: pobres, estigmatizados, sempre suspeitos, quase sem direitos civis, políticos e sociais. Parece que os dilemas que envolvem o exercício da cidadania no Brasil passam por e vão além de oposições maniqueístas e soluções conciliadoras, pois vivemos em um mundo que não cabe

mais em herméticas definições conceituais-indivíduo, Estado, dever de obediência, nacionalidades (Geertz, 2001). Nesse contexto, as Ciências Sociais, em geral, e a Antropologia, em particular, talvez possam contribuir enquanto canais para a condução plural das diversidades e, ao mesmo tempo, para a possibilidade do estabelecimento de universais mínimos de comunicação e de troca: para uma cidadania exercida em múltiplos espaços e de variadas formas, mas por uma humanidade capaz de, como diria Lévi-Strauss (1993: 366), ser tolerante, não de forma contemplativa, mas dinâmica, o"[ ... ] que consiste em prever, compreender e promover o que quer ser. A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente.[ ... ] que ela se realize de modo que cada forma seja uma contribuição para a maior generosidade das outras". AN A L ÚC IA PAST O RE SCHRITZ M E YE R

é professora do Departamento de Antropologia da

Universidade de São Paulo.

Sugestões de leitura

C ALDE IRA ,

Teresa Pires do Rio. "Direitos H um anos ou 'privilégios de ba ndidos'?" in


Novos Estudos Cebrap, n.30. São Paulo: CEBRAP, julho de 1991 (pg. 162-174). ---.Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34/

Edusp, 2000.

Estudante, 1986 (pg. 177-178). SHIRLEY, Robert. "Citizenship and community" in Horizontes Antropológicos, ano I, n.1 (1995). Porto Alegre: UFRcsiiFcHIPrograma de Pós-Graduação em Antropo-

FONSECA, Cláudia & Cardarello, Andréa. "Direitos dos mais e menos humanos" in Horizontes Antropol6gicos, ano I, n.1 (1995). Porto Alegre: UFRcsiiFcHIPrograma

de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1999 (pg. 83 -

121).

GEERTZ, Clifford. "Os usos da diversidade" in Horizontes Antropológicos, ano I, n.1 (1995). Porto Alegre: UFRcsiiFcHIPrograma de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1999 (pg. 13-34).

logia Social, 1999 (pg. 175-202). svARLIEN, Oscar. "Cidadania (citizenship)" in Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro/Brasília: F undação Getúlio Vargasi MEc - Fundação d e Assistência ao Estudante, 1986 (pg. 177). TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania. São Paulo: usP (Programa de Pós-Graduação em Sociologia)/Ed. 34, 2001.

- - -. "O mundo em pedaços: cultura e política no fim do século" in Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001 (pg. 191 -228).

LEAL, Ondina & ANJOS, José Carlos Gomes dos. "Cidadania de quem? Possibilidades e limites da Antropologia" in Horizontes Antropológicos, ano I, n.1 (1995). Porto Alegre: UFRcsiiFcHIPrograma de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1999 (pg. 151-

173).

LÉVI-STRAuss, Claude. "Raça e história" in Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, 4' ed. (pg. 328 a 366). MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967 (cap. m) QUINTANA, Juan Blasco. "Cidadão (ciudadano)" in Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro/Brasília: Fundação Getúlio Vargasi MEc - Fundação de Assistência ao

2 34


Moradia

José Eduardo Baravelli

A moradia só se torna de fato um problema social e urbano quando o destino da cidade se liga à implantação e evolução da produção industrial. "Social e urbano" porque é a moradia que revela no espaço da cidade o papel central que o controle sobre o trabalho representa em cada etapa de produtividade do capital. Isso significa também que localizar (e, por extensão, segregar) a força de trabalho é uma questão constitutiva das cidades contemporâneas. É assim que todas as alegadas "soluções habitacionais", das mais virtuosas, como a coroa de new towns ao redor de Londres (entre 1946 e 1955), às mais discretas, como o sistema hipotecário norte-americano, acabam produzindo novos problemas relativos à reprodução da força de trabalho-não à toa, formulado em primeira hora num obrigatório ensaio de Engels (1872). Em clássicos como "Cidades do amanhã", de Peter Hall (1995), é possível consultar um panorama das imensas variações que esse tema ad mitiu no século passado. Nas cidades brasileiras, a história da moradia popular

igualmente acompanha as hesitações de nossa industrialização desde o Estado Novo (Bonduki, 1998), mas é apenas nos anos 70 que se configura o que passará a ser foco de diversas linhas de reflexão sobre a moradia nas periferias do Brasil: a autoconstrução. A auto-construção da moradia brasileira é um fenômeno mais complexo que o simples emprego de mão-de-obra da família moradora nos processos de edificação. Ela implica uma série de ações clandestinas em relação ao controle estatal sobre a terra e a infra-estrutura urbana. Começa pela gambiarra de uma fiação elétrica pública, passa pela edificação realizada contra qualquer código de obras e chega finalmente ao estatuto jurídico-fundiário do terreno. Na periferia, as casas estão assentadas "no chão", não em lotes ou cartórios. Assim, se a precariedade da construção pode variar indefinidamente, do ponto de vista fundiário só existem duas formas de moradia periférica: quando se descobre sob as casas algum plano de loteamento adulterado por grilagem, falsificação de datas, subparcelamentos clandestinos, ocupação de áreas de destinação pública e outros expedientes, a moradia integra um loteamento irregular. Quando sequer isso existe, trata-se de uma favela .


É raro encontrar alguma área urbanizada no Brasil em que as inúmeras regras de edificação e zoneamento são inteiramente respeitadas, mas um morador da cidade juridicamente construída dificilmente compreende como é possível haver um ativo mercado de compra, venda e locação de imóveis onde inexiste o registro público de propriedade. Ainda assim, esse âmbito de negociações apalavradas faz completo sentido para um morador da periferia, cuja inserção no mercado de trabalho não implica que ele tenha acesso ao sistema formal de financiamento e construção de imóveis, desde sempre voltado para as elites urbanas de alta renda. A intuição dessa combinação entre atraso e modernidade, expressa numa expansão urbana baseada na construção clandestina da moradia, foi determinante nas pesquisas que, a partir dos anos 1970, se alimentavam do debate sobre desenvolvimento e marginalidade. Desde o "milagre econômico", a autoconstrução praticamente elimina o item habitação dos cálculos oficiais de custo de vida nas cidades brasileiras. Com isso, se torna "uma magnífica fórmula que o capitalismo dependente deflagrou para rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho, compatibilizando uma alta taxa de acumulação com salários crescentemente

deteriorados" (Kowarick, 1978). É assim que -em outro ensaio fundante dessas pesquisas urbanas- "uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de 'economia natural' dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho" (Oliveira, 1972). É esse quadro teórico que torna mutuamente inteligíveis diversas obras que se aprofundaram em novas dimensões da autoconstrução brasileira, da violência urbana (Maricato, 1996) à segregação institucional e legal (Rolnik, 1999). Muito da diversidade atual das pesquisas sobre moradia nas periferias brasileiras se deve ao gigantismo do fenômeno da autoconstrução. A começar pelo esforço permanente de análise da nossa demografia urbana diante da insuficiência dos dados censitários utilizados para a classificação de "inadequação da moradia". Nas duas maiores concentrações urbanas do país, é possível destacar nesse sentido as pesquisas do Observatório das Metrópoles/lppur no Rio de Janeiro e, em São Paulo, o Centro de Estudos da Metrópole/Cebrap, este último realizando um importante confronto empírico com a literatura urbanística brasileira.


Uma menção em especial deve ser feita às intervenções habitacionais por mutirão autogerido, prática política que reatou, a partir dos anos 1990, uma linhagem de pensamento crítico sobre as relações de produção na construção civil, quando era (e é ainda) mais comum realizar a crítica da renda fundiária e de seus mecanismos de segregação urbana (Arantes, 2003). O mutirão ressignifica a autoconstrução, que deixa de ser uma herança rural fragmentada em meio urbano e se torna uma experiência de gestão coletiva do canteiro de obras. Dessa forma, os "movimentos de moradia", uma das poucas expressões políticas oriundas da autoconstrução, podem assumir controle da produção da habitação desde seu financiamento até a ocupação final. Por pretender que os movimentos sociais urbanos devem assumir tal controle produtivo, as teorias que dão suporte ao mutirão autogerido - em especial Sérgio Ferro (2oo6)- seguem uma trilha isolada em relação à maioria das pesquisas urbanas em curso, que buscam, em geral, fornecer subsídios estatísticos e teóricos- quando não quadros técnicos-para a implantação de políticas de habitação eminentemente governamentais. É um lugar comum entre urbanistas afirmar que "a cidade

é a moradia da sociedade". Neste início de século xx1, quando a vocação produtiva do meio urbano parece prever um desemprego estrutural, talvez caiba aos movimentos sociais a criação de novas bases de enfrentamento para que o trabalho possa morar nas cidades brasileiras em condições menos subalternas. JOSÉ EDUARDo BARAVELLI é formado em filosofia pela FFLc H/usP e arquiteto formado pela FAulusP. Atualmente é pesquisador no Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos e m estrando no curso de Tecnologia da Arquitetura d a FAu/ usP.

e

Sugestões d e leitura

ARANTES, Pedro F. Arquitetura nova. São Paulo: Editora 34, 2002. BONDUKI, Nabil G. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: E stação Liberdade/ Fapesp, 1998. ENGELS, Friedrich. A questão da habitação [ 1872]. FERRO, Sé rg io . Arqu itetura e trabalho livre. São Pa ulo: Cosac Naify, 2006. HALL, Pete r G. Cidades do amanhã. São Paulo: Pe rspectiva, ' 995· KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e T e rra, ' 979· MARICATO, Ermínia T.M. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996. MARQUES, E dua rdo C .; BICHIR, Renata M. "Investime ntos públicos, infra-estrutura u r-


bana e produção da periferia em São Paulo". Espaço & Debates, n. 42, 2 00 1. OLIVEIRA,

Segurança pública

Paulo de Mesquita Neto

Francisco de. "A economia brasileira: crítica à razão dualista". Estudos Ce-

brap, n. 2. São Paulo, 1972. - - -. O ornitorrinco. São Paulo: Boi tempo, 2 003 . ROLNIK,

Raquel. A cidade e a lei. São Paulo: Studio Nobel, 1999

No Brasil, particularmente nas décadas de 1980 e 1990, o crime, a violência e a insegurança, intensificados pelo crime organizado, tráfico de drogas, contrabando de armas e corrupção, passaram a fazer parte do cotidiano dos centros urbanos brasileiros, particularmente nas áreas chamadas periféricas ou desprovidas de serviços essenciais à convivência ordenada, pacífica e tranqüila de indivíduos e coletividades. Diante deste quadro, cresceram as demandas sociais por segurança e os investimentos governamentais em políticas de segurança pública, bem como nas polícias federais e estaduais e nas guardas municipais, que são, de acordo com a Constituição Federal de 1988, as organizações responsáveis pela segurança pública. O resultado limitado, ou pelo m enos abaixo das expectativas, destas políticas e investimentos, do ponto de vista da redução do crime, da violência e da insegurança, é uma conseqüência de diversos fatores. Há deficiências na formulação e implementação de políticas. Há ainda deficiências na prestação do serviço pelas


organizações responsáveis pela segurança pública. Há também problemas estruturais da sociedade brasileira, entre os quais a exclusão e marginalização econômica, social e cultural de amplos segmentos da população. Sem minimizar a importância desses fatores, este texto chama a atenção para um problema teórico, conceitual, que dificulta na prática a redução do crime e da violência e o aumento da segurança nos centros urbanos. Políticas e investimentos na área da segurança pública não produzem os resultados esperados, em parte, devido ao fato de que os responsáveis por estas políticas e investimentos compreendem pouco ou não compreendem e dão pouca ou nenhuma importância à razão de ser de políticas e investimentos em segurança pública. "Segurança pública" é um conceito ambíguo, utilizado com significados diferentes e às vezes conflitantes. Pode significar uma condição ou situação de fato, de convivência ordenada, pacífica e tranqüila, em uma determinada comunidade ou sociedade. Nesse sentido, segurança pública é a finalidade ou objetivo de um conjunto de ações realizadas por indivíduos, grupos ou organizações, que podem ser agentes públicos, privados e/ ou comunitários.

Em sociedades modernas, mais complexas e com organizações estatais diferenciadas e especializadas, o conceito de segurança pública passou a significar uma das funções do estado. Mais especificamente, o conceito passou a indicar o conjunto de ações voltadas para assegurar a convivência ordenada, pacífica e tranqüila dos indivíduos, grupos e organizações da sociedade, realizadas por agentes públicos especializados (policiais e guardas), com maior ou menor grau de profissionalização. Neste sentido, o conceito de segurança pública passou a ser crescentemente utilizado em oposição ao conceito de segurança privada, na medida em que o primeiro diz respeito à segurança provida por agentes públicos e o segundo diz respeito à segurança provida por agentes privados. Em regimes democráticos, o conceito de segurança pública tende a fazer referência principalmente à garantia dos direitos dos cidadãos, particularmente a vida, a liberdade, e a igualdade de todos perante a lei, elementos fundamentais do "estado de direito". Em regimes autoritários, ao contrário, o conceito de segurança pública tende a fazer referência principalmente à garantia da lei e da ordem pública no interior do estado, sendo muitas vezes associa-


do ao conceito de "segurança interna", por oposição à "segurança externa", as duas faces do conceito de "segurança nacional". No Brasil e em outros países da América Latina em que se estabeleceram regimes autoritários nas décadas de 1960 e 1970, o conceito de segurança pública adquiriu uma conotação negativa, sendo associado ao conceito de segurança interna e segurança nacional. Passou a indicar a segurança do estado ou do governo mais do que a segurança dos cidadãos. Por esta razão, na seqüência dos processos de transição para a democracia, nas décadas de 1980 e 1990, ganhou força na região, particularmente nos países de língua espanhola, em oposição ao conceito de segurança pública, o conceito de "segurança cidadã", que teria uma conotação positiva e indicaria a priorização da segurança dos cidadãos e não do estado ou do governo. A Constituição Federal de 1988, conhecida como "Constituição Cidadã", é um marco importante no processo de transição do regime autoritário para o regime democrático no Brasil. Ao elaborar a Constituição de 1988, o Congresso Constituinte introduziu várias mudanças na Constituição de 1967. Uma delas foi a eliminação da seção da Constituição de 1967 dedicada à "Segurança

Nacional" (artigos 89 a 91) e a introdução no seu lugar uma seção dedicada ao "Conselho da República e Conselho de Defesa Nacional" (também artigos 89 a 91). Inovou ainda a Constituição de 1988 ao introduzir um título dedicado à "Defesa do Estado e das Instituições Democráticas", que inclui três capítulos referentes ao "Estado de Defesa e Estado de Sítio" (artigos 136 a 141), às "Forças Armadas" (artigos 142 e 143) e à "Segurança Pública" (artigo 144). A destinação constitucional das forças armadas pouco mudou de 1967 para 1988. A Constituição d e 1967 estabelecia que "destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem " (artigo 92, parágrafo 1°). A Constituição de 1988 diz, por sua vez, que as forças armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem" (artigo 142). Mas em 1967 as forças armadas eram tratadas como instrumentos de defesa da "segurança nacional" e em 1988 passaram a ser tratadas como instrumentos de "defesa do estado e das instituições democráticas", juntamente com as polícias federais, as polícias estaduais e as guardas municipais. As polícias militares e os corpos de bombeiros militares são


considerados na Constituição de 1988, como na de 1967, "forças auxiliares, reserva do Exército". Em 1967, entretanto, as polícias militares tinham como missão "a manutenção da ordem e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal" (artigo r 3, parágrafo 4°). Já na Constituição de 1988, inseridas no capítulo referente à segurança pública, as polícias militares passaram ter como missão "a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública" (artigo 144, parágrafo 5°). Os corpos de bombeiros militares passaram a ter como missão "a defesa civil" (artigo 144, parágrafo 5°)8o. So

A mudança referente à destinação das polícias militares na Constituição de 1988, entretanto, não trouxe grandes mudanças em relação à situação estabelecida durante o regime autoritário pelo decreto-lei 667 de 1969. Segundo este decreto, as polícias militares

Na história recente do país, portanto, ganhou força o conceito de "segurança pública", em substituição aos conceitos de "segurança interna" e de "segurança nacional". É como se conceitos de "segurança interna" e "segurança nacional" estivessem associados ao autoritarismo e o conceito de "segurança pública" estivesse associados à democracia, e a mudança constitucional refletisse ou promovesse uma mudança na natureza, estrutura e funções das forças armadas e organizações policiais, acompanhando as mudanças do regime político. Acontece, porém, que esta associação não é automática. A Constituição Federal de 1988 adotou o conceito de "segurança pública", mas de forma ambígua e imprecisa. Estabeleceu, no artigo 144 que, "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimô-

tinham como missão a "manutenção da ordem pública e segurança interna" e competência para "executar com exclusividade, res-

blica e o exercício dos poderes constituintes". O decreto-lei 667, de

salvadas as missões peculiares das forças armadas, o policiamento

27 de julho de 1969, cuja redação foi alterada, mas não de forma

ostensivo, fardado, planejado pela autoridade competente, a fim

substancial, pelos decretos 1.072h969 e 2.oiOh983, tinha por base

de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pú-

o Ato Institucional 5, de r 3 de dezembro de 1968.


/

nio, através dos seguintes órgãos: 1. polícia federal; 11. polícia rodoviá ria federal; m . polícia ferroviária federal; IV. polícias civis; v. polícias militares e corpos de bombeiros militares". De acordo com a Constituição de 1988, a segurança pública é uma função de organizações estatais especializadas, mais especificamente das polícias e corpos de bombeiros, voltadas para a proteção da ordem pública, das pessoas e do patrimônio. Fica clara a intenção de distinguir "segurança pública" e "segurança privada", na medida em que a segurança pública é definida como uma função de organizações estatais. Mas não fica claro se a segurança pública diz respeito prioritariamente à proteção do estado, do governo ou dos cidadãos. É como se a transição para a democracia não tivesse sido completa, e as organizações estatais responsáveis pela segurança pública passassem a se dedicar à proteção dos cidadãos, mas sem abrir mão da sua função principal de proteção do estado ou do governo. Diante desta confusão conceitual e ambigüidade constitucional, grupos e organizações comprometidas com a consolidação e aperfeiçoamento da democracia brasileira, com o objetivo de promover reformas no sistema e nas políticas de segurança pú-

blica, passaram a utilizar o conceito de "segurança cidadã" em substituição ao conceito de "segurança pública". E, quando se trata da segurança dos cidadãos em áreas urbanas, passaram a utiliza r o conceito de "segurança urbana", também em oposição ao conceito de "segurança pública". Outro conceito utilizado é o de "defesa social". O problema é que esta substituição de um conceito por outro não é suficiente nem necessária para promover mudanças no sistema e nas políticas de segurança pública. Pouco pode contribuir para a compreensão e resolução do problema do crime, violência e insegurança, do crescimento do crime organizado e da corrupção nos centros urbanos. Ao contrário, pode aumentar a confusão conceitual e política, tornando ainda mais difícil o pretendido processo de mudanças. Além disso, essa substituição conceitual mantém a idéia de que a segurança pública, cidadã ou urbana é essencialmente uma função de agentes públicos e não de agentes privados - idéia esta que não corresponde aos fatos e mais especificamente às mudanças nos sistemas e políticas de segurança pública na sociedade contemporânea. Ao invés da produção de novos conceitos, talvez a melhor


estratégia para reformar sistemas e políticas e promover a segurança pública fosse resgatar o significado deste conceito em regimes d emocráticos. Associá-lo prioritariamente à garantia dos direitos dos cidadãos, particularmente a vida, a liberdade, e a igualdade de todos perante a lei, não à manutenção da lei e da ordem pública. Mesmo esta estratégia, entretanto, parece ser insuficiente diante das limitações, e em alguns casos crise, dos serviços de segurança pública, do crescimento dos serviços de segurança privada e comunitária, e das múltiplas e diversas combinações de serviços públicos, privados e comunitários nas sociedades contemporân eas. Neste novo contexto, talvez a m elhor estratégia para promover a segurança pública fosse entendê-la não simplesmente como uma função do estado, realizada por agentes públicos, mas como uma condição ou situação de fato, de convivência ordenada, pacífica e tranqüila, em uma determinada comunidade ou sociedade. Neste sentido, segurança pública seria a finalidade ou objetivo de um conjunto de ações realizadas por um conjunto de indivíduos, grupos ou organizações, que podem ser agentes públicos, privados e/ ou comunitários, visando sempre, primeiramente e acima de tudo, garantir os direitos dos cidadãos, particularmente a vida,

a liberdade, e a igualdade de todos perante a lei. É uma estratégia ousada, talvez radical, mas, diante da crise na segurança pública, vale a pena pelo menos discuti-la seriamente. PAU LO DE MESQU ITA NETO, Ph.D. em Ciência política pela U niversidade d e Columbia, é pesquisador do N úcleo d e Estudos da Violência e secretá rio-execu tivo do Instituto São Paulo Contra a Violência.

e

Sugestões d e leitura

BAYLEY, D avid H . Padrões de policiamento. São P a ulo: E dusp, 200 1. BAYLEY, D av id H. & SHERI NG, C lifford O. "Th e new structu re of policing : d escri ptio n , conce ptua li zation and research agenda" . Nova York: N a tio nal lnstitute of Jus-

tice, 2 00 1. sovA , Sé rg io. "Polícia" in Bobbio, N ., Matteucci, N . e Pasquino, G, Dicionário de políti-

ca. Brasíl ia: Editora da U niversid ade d e Brasília, I986. CUBAS, Vivia ne. Segurança Privada: a expansão dos serviços de proteção e vigilância em São

Paulo. São P a ulo: Humanitas e Fapesp , 2 005 . JON ES, Tre vo r & NEWBURN, Tim. Priva/e security and public polici12g. Oxford: C la rendo n Press, I 998. MORGAN, Red & NEWBURN, Tim . The future ofpolicing. Oxfo rd : C larendon Pres, I 997·


OCQUETEAU,

Fréderic. "A expa nsão da segura nça privada na França- privatização

O menino é o pai do homem

Machado de Assis

submissa da ação policial ou melhor gestão da segurança coletiva" in Revista de

Sociologia da

USP

9( 1}: I85-195, São Paulo, ' 997·

Giorgio. "Adm inistração pública" in Bobbio, N ., Matteucci, N. e Pasquino, G,

PASTOR I ,

Dicionário de política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 1986. VERCOTTINI,

G iu seppe. "Ordem pública" in Bobbio, N., Matteucc i, N. e Pasq uino, G,

Dicionário de política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. ZANETI C,

André. "A questão da segurança privada: estudo do marco regulatório dos serviços particulares de segu rança". Dissertação de Mestrado em C iência Política, apresentada na Facu ldade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universid ade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo,

2005.

Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e com certeza, as magnólias são menos inquietas de que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menmo. Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudência, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,

2

44


Bruno Zeni

Literatura e periferia no Brasil - uma antologia

fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um- "Ai, nhonhô!"- ao que eu retorquia: -"Cala a boca, besta!"- Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.[ ... ]

Embora tão comum na produção atual, a recorrência do termo "periferia" na literatura nacional é recente. No entanto, apontamentos sobre a condição periférica do país podem ser notados na literatura desde o período colonial. Assim, se o uso do termo periferia não é antigo, as marcas de um Brasil periférico se fizeram sentir na poesia e na ficção ao longo do processo de formação nacional81. A antologia preparada para esta edição da revista concentra-se no período histórico da constituição das periferias brasileiras entendidas em sua dimensão espacial. A urbanização e a industrialização aceleradas por que vem passando o país desde o final do século xrx geraram cidades em que subúrbios e arrabaldes se espalharam, na maioria das vezes sem plano nem projeto: as periferias brasileiras nasceram e cresceram à margem dos centros de discussão e de decisão política. 81

Antonio Ca ndido, A formação da literatura brasileira Itatiaia, 6a. ed ição,

1981.

(1959),

Belo Horizonte:


Essa antologia foi pensada de acordo com alguns parâmetros: ela é histórica, já que volta no tempo para localizar, na tradição brasileira, exemplos de obras que expressem a condição periférica de maneiras diversas; tenta dar conta do Brasil como um todo, sem esgotar as muitas literaturas de cada região do país, mas trabalhando com um "horizonte nacional"; comporta apenas poemas e trechos de ficção, o que exclui crônicas, ensaios e críticas. Três pressupostos gerais nortearam a seleção: (1) a literatura brasileira expressa e inventa o Brasil e, como o país, é periférica em relação às literaturas ocidentais das quais ela deriva (as literaturas de língua latina, sobretudo a portuguesa, a italiana e a francesa; e mais recentemente a literatura e a cultura de língua inglesa); (2) as relações de tensão e de proveito entre forma escrita e oralidade na cultura brasileira deram origem a uma produção literária singular, que evidencia os descompassos entre as nossas classes sociais e entre as incongruências da lei e da informalidade; (3) a noção espacial e sociológica de periferia ganhou relevância ao longo das últimas décadas com o crescimento de centros urbanos no país, com grandes regiões desprovidas ou em situação precária de moradia, saúde, educação e meio-ambiente.

A seleção aqui apresentada se concentra na literatura brasileira contemporânea, mas procura localizá-la em relação à sua própria tradição. Além disso, é preciso frisar que a condição periférica brasileira é um tema reiteradamente enfrentado por escritores, músicos e cineastas, seja nos momentos históricos em que a produção artística manteve relação de aceitação crítica do caráter periférico da arte brasileira- regionalismo, cinema novo, canção de protesto, samba de morro, hip hop - , seja quando se vislumbraram saídas de superação desse nó- antropofagia, concretismo, bossa nova, tropicália, música eletrônica. O corpo de obras desta antologia vai de Machado de Assis ao rap. Os dois extremos exemplificam bem como o tema guarda ambigüidades e diferentes modos de abordagem. Machado adota na maior parte de sua obra, e talvez essa seja a marca mais evidente de sua ficção, uma empostação narrativa que subverte o sentido do que seu narrador-personagem enuncia - é a famosa ironia machadiana, da qual o elitismo e a "desfaçatez de classe" 82 82

A expressão é de Roberto Schwa rz sobre o narrador d as Memórias póstumas. Ver Um mestre na periferia do capitalismo, Editora 34/Duas Cidades, 1990.


do protagonista de Memórias póstumas de Brás Cubas é a realização maior. No rap, em geral o tom não é recoberto de mediações como essa. O discurso dos manos e das minas costuma ser direto, feroz e combativo, mas não por isso destituído de contradição e teor artístico. Para citar apenas uma das letras aqui incluídas, a de "Capítulo 4, Versículo 3", dos Racionais Mc's, aquele que fala na letra é um preto de "intenção ruim", "sem dó", "wo% veneno", que não se confunde com Mano Brown, aquele que canta a música. Brown é ao mesmo tempo autor, narrador e personagem de uma composição que atualiza temas que já se encontravam em Machado. É como se pudéssemos imaginar o escravo Prudência, que o menino Brás Cubas açoita, pegar do microfone para cantar uma revolta acumulada por mais de cem anos, desde a segunda metade do século xrx, quando as Memórias póstumas (r88r) são publicadas, até o final do século passado, quando da realização de Sobrevivendo no inferno (1997). Outros aspectos - que escapam à oportunidade e aos meios de uma publicação em papel como esta revista - ainda precisam ser levados em conta para analisar uma produção poética como o rap (e o mesmo, em maior ou menor grau, vale para

repente, samba, funk carioca): tom de voz com que os rappers entoam suas composições; o gestual e as posturas de corpo; a relação dos artistas com o mercado fonográfico e com a mídia (critério este que, aliás, poderia ser estendido com proveito também a poetas e a escritores de ficção). O cânone periférico aqui esboçado aponta para a sobrevivência do realismo como um gênero forte no Brasil. A recorrência das formas documentais em diversas de nossas expressões artísticas de hoje sugere a vitalidade de um esforço de redescoberta e entendimento da transformação histórica brasileira. A abertura e a redemocratização, na passagem da década de r98o para a de 1990, e a reorganização socioeconômica de escala mundial (globalização, financeirização do cotidiano, ubiqüidade da tecnologia digital) fizeram aflorar feridas e potências nacionais atenuadas e reprimidas durante anos. O período militar de 1964 a 1985- e o seu desmantelamento - é apenas a fase mais próxima do que pode ser visto como uma dinâmica, bem brasileira, de repressão e liberdade, de euforia e derrotismo, de pessimismo crítico e promessa utópica. Nesse contexto adverso, os meios de execução das obras, mais do que seus temas- talvez fosse melhor falar em temática


e procedimentos aliados, se isso não tornasse tudo mais indefinido-, podem ser elucidativos de como se relacionam no Brasil arte e pobreza, sucesso e ganho, postura aristocrática e arrivismo, marginalidade e cultura. Esta antologia pretende distribuir, no tempo histórico e no espaço destas páginas, pequenas doses de trabalho poético e ficcional que, de diferentes maneiras, remetem a ousadias e inconvenientes literários criados pelos que pretendem fazer arte com a palavra no Brasil de hoje. BRUNO ZENI

é jornalista, escritor e mestre em teoria literária pela Faculd ade de Filoso-

fia, Letras e C iênc ias Humanas da Un ive rsidade de São Paulo

(FF LCH-USP).

o li vro de ficção O fluxo silencioso das máquinas (Ateliê Editorial ,

2002)

Publi cou

e, em parceria

com José André de Araújo, o livro reportagem Sobrevivente André du Rap (Labortexto Editorial,

2002).

Identidade perdida - memórias de um morador de rua

Jorge Cordeiro Barbosa e Simone Paulino

Quando chegamos embaixo do viaduto, o pessoal estava animado. Era uma tarde fria, eles tinham feito um fogo e estavam cozinhando. A panela era uma lata de tinta grande, a comida, um sopão, e todo mundo ficava meio em volta do fogo para se aquecer. -Opa, mas o cheiro tá muito bom! -disse, pra tentar me aproXImar. -Senta aí, que logo o rango tá pronto, mano-me disse um deles. Sen tei e ofe reci o que tin ha sobrado da garrafa de pinga, que foi passando de mão em mão. O Paulo então foi me apresentando u m por um. Eram quatro pessoas: Dorival, Zé Mário, Kung Fu e Martinha, a única mulher do grupo. Enquanto eles cozinhavam, ficamos conversando e cada um me contou um pouco da sua história. [ . .. ] Comi olhando para eles e pensando: 'Acho que agora encontrei uma famíl ia'.


"Celso Garcia", mais que avenida

Roberto Loeb

Em um fim de semana ensolarado de Agosto de 2004 fiz, acompanhado de meus companheiros de ofício83, o primeiro percurso de reconhecimento na Avenida Celso Garcia em São Paulo. À medida que a van alugada circulava lentamente em direção à Penha, parando aqui e ali para um contato mais próximo com a rua, ficava fascinado com a paisagem urbana, procurando desvendar as vidas e cotidianos cujos únicos traços visíveis eram fachadas, letreiros, anúncios comerciais, ruas transversais e as pessoas que ali passavam ocasionalmente. Um misto de curiosidade e perplexidade acompanhava o impulso quase automático de projetar uma nova paisagem, idealizada para pessoas genéricas e valores desconhecidos, em uma espécie d e desejo arquitetônico transformador e compensatório da angústia que aqueles espaços despertavam.

Havíamos sido convidados84 para compor a equipe de técnicos85 que deveria projetar o traçado regulador da Avenida para implantar um corredor de transporte público coletivo partindo do centro da cidade e percorrendo a Celso Garcia, até atingir a Penha e a Avenida Amador Bueno. A lembrança do corredor da Santo Amaro abafando individualidades e culturas locais, com conseqüente enfraquecimento da vitalidade e variedade da paisagem urbana, surgia como um sinal incômodo e persistente, denunciador de visão redutora e simplista. Era fundamental explorar por todas as formas as estruturas do tecido urbano. Fotos aéreas desatualizadas, mapas e estatísticas incompletas refletiam de forma insuficiente e parcial o que se passava na Celso Garcia e nos territórios adjacentes. 84

desenvolvimento do traçado viário.

85 83

Pela Logit E ngenha ria Consultiva L tda., responsável pela coordenação geral e

A qual era também composta por Paulo G iaquinto (consultoria urba na),

Luis Ca pote, D amia no Leite, N icola Pugliese, F abiana Paulinetti , Lucia na

U rbansystems/Thomaz Assunção (diagnóstico urbano), Sylvio Band (bases da

An tunes, Lui z Asao, Paula Lobello e N ádia Yunes.

política cultural) e José Ed uardo de Assis Lefev re (histórico da região).


O vôo de helicóptero foi fascinante. Partindo do heliporto do Banco Real, na Avenida Paulista, passamos sobre o centro de São Paulo, sobrevoando a Catedral na Praça da Sé e o Pátio do Colégio, para em seguida fazer um giro sobre o Parque Dom Pedro com o olhar pregado no Edifício São Vito, vazio e melancólico, que esperávamos ver recuperado a partir do projeto de reforma já entregue à Prefeitura da Cidade. Na direção da Penha, a referência era, além da Avenida Celso Garcia, o Rio Tietê, a Avenida do Estado, a linha do metrô e suas estações, e em grande destaque o Largo da Concórdia, único ponto colorido na paisagem com as coberturas de lonas plásticas na cor azul e laranja dos seus ambulantes. Sobrevoamos o que restou do Cine Universo, projeto do Rino Levi, com seu teto deslizante que se abria para o céu nas noites quentes da cidade. Passamos sobre a Febem, com o edifício central incendiado e sem teto, pela favela do Risca Faca, pelo Clube da PM, pela Igreja da Penha depois da Avenida Aricanduva, e fomos até São Miguel com sua imensidão anônima de casas e ruas. Retornamos sobre a calha do Tietê até o centro da cidade e o pouso de chegada na Avenida Paulista. O registro fotográfico feito pelo Gal Oppido ficou impressio-

nante, com vistas panorâmicas e detalhes da extensa paisagem que sobrevoamos. As fotos aéreas do Gal, a pesquisa da história urbana da região elaborada pelo Eduardo Lefêvre e o mapeamento de usos e vocações urbanas realizado pela equipe de Thomaz Assunção começavam a formar o mosaico ainda insuficiente mas necessário para compreender, ou melhor, procurar entender as dinâmicas do território. Um levantamento cadastral e planialtimétrico da Celso Garcia já estava sendo concluído e os primeiros traçados da nova Avenida estavam sendo produzidos pela equipe de engenharia viária. Foi quando foram fotografados pela Lúcia Loeb os nove quilômetros de fachadas da Celso Garcia, lado par e lado ímpar, resultando em montagem contínua de dezoito quilômetros de fachadas, que singram as páginas deste número da Sexta Feira. Pretendíamos com essas fotos conduzir de forma detalhada o traçado final da Avenida, contornando obstáculos, modelando ruas e calçadas, estabelecendo vínculo com a arquitetura e a história local, ao mesmo tempo em que procurávamos diminuir a necessidade de demolições e desapropriações custosas.


O traçado final deveria estar comprometido com o cenário existente, respeitando sempre que possível as particularidades de cada trecho, de suas arquiteturas e das culturas locais. Desenvolvemos ainda algumas idéias e conceitos preliminares para ancorar o redesenho da Avenida e seus arredores, deixando essas idéias em uma espécie de reserva de recursos a serem incorporados total ou parcialmente no desenho final da proposta. Algumas dessas idéias ou conceitos não tinham ainda localização definida no projeto, mas eram já indicadoras de uma intenção, na qual a escala humana era nossa preocupação central. Foi feita então uma lista preliminar dessas idéias e conceitos que, ainda que genericamente, poderiam contribuir para o diálogo com os espaços urbanos e principalmente com as comunidades locais ao longo da avenida. Eis algumas dessas idéias e conceitos: r. Criar sistema eletrônico de propagação do toque do sino da Igreja da Penha ao longo da Celso Garcia, recuperando através do som uma certa cumplicidade urbana entre as pessoas. 2. Desenho das calçadas com variedade de materiais, inclusi-

4· 5· 6. 7· 8. 9· 10.

1 r.

12.

ve reciclados, e formação de "calceteiros" especializados. Ao longo das calçadas e em alguns trechos, criar alargamentos e pequenas praças, concentradoras de serviços e atividades urbanas. Recuperação de vilas e ruas com implantação de ruas cobertas e comércio local. Arborização da avenida. Desenhar e implantar pistas para ciclismo. Desenvolver conforto urbano através de mobiliário e serviços de uso público. Iluminação das calçadas e dos edifícios, modelando a paisagem urbana. Desenvolvimento de diretrizes para construção, reforma e manutenção dos imóveis da Celso Garcia. Desenvolvimento e apoio à formação de núcleos e comunidades culturais, atendendo especificidades e interesses plurais de caráter local. Escolas, bibliotecas, teatros e cinemas. Criar sistema de estímulos e apoio à implantação de novas facilidades.


Outras idéias e conceitos urbanos foram propostos de forma exploratória. Faltava uma liga, uma cola de cumplicidades baseada em interesses reais. Foi nesse estágio do desenvolvimento do projeto que conseguimos atrair a participação do Núcleo de Antropologia Urbana da usP, liderado pelo professor José Guilherme Magnani. Era evidente que, sem conhecimento claro dos atores sociais e sua relação com o espaço, seria extremamente difícil produzir propostas, com base nos interesses e dinâmicas de indivíduos e suas comunidades. O trabalho de grande amplitude realizado pela equipe do Núcleo de Antropologia Urbana esteve voltado para os bairros interligados pela Av. Celso Garcia: Brás, Tatuapé, Penha e São Miguel Paulista. A título de ilustração, reproduzo a seguir trechos da pesquisa concernentes ao Brás86. 86

Trechos extraídos de: Magnani , ). Guilherme; Mantese, Brun a; Perutti, Daniela; Toledo, Renata; Rosa, Rodrigo e Farah, Sofia. "Caracterização Sócio-Cultural da zona leste de São Paulo", Relatório Final. São Paulo, NAU-USP (Núcleo de Antropologia U rbana)!Logit Engenha ria Consultiva, 2005.

i'ty> CAMELÔS

[ ... ]Os vendedores ambulantes, popularmente conhecidos como camelôs, encontraram no Brás um ambiente propício para se estabelecer. Há uma predominância de nordestinos entre os camelôs, vindos de diversos estados. É muito comum que uma pessoa monte sua banquinha e depois solicite a vinda de mais gente da família para ajudá-la ou até mesmo para montar outros negócios. Poucos moram na região do Brás, em pensões ou cortiços. A maioria reside em bairros mais afastados da zona leste, como Guaianazes, ltaquera, ltaim Paulista etc. Ao caminhar pela região, mais flagrantemente no largo da Concórdia e arredores, nota-se uma grande concentração de bancas de camelôs. A oferta de produtos é a mais variada possível: roupas, sapatos, tênis, eletroeletrônicos, comida, bebida, frutas, CDS, DVDS etc. Em m eio ao aparente caos que configura a ocupação dos espaços pelas barracas de camelôs é possível, através de um olhar mais aproximado, capturar uma lógica e uma organização próprias, estabelecidas pelos próprios ambulantes. Ao caminhar pelo largo ou pelas ruas adjacentes, passando por entre as barracas


dos vendedores ambulantes, a distribuição das mesmas evidencia uma organização por setores, referentes ao tipo de produto ou serviço oferecido. As lanchonetes e vendedores de comidas e bebidas concentram-se às margens do largo, próximos à guia da rua, onde os transeuntes costumam passar e parar. É comum que muitas pessoas que pela manhã passam pelo largo em direção aos seus trabalhos tomem o café da manhã servido por camelôs a preços populares. Bolos, pão com manteiga, lanches de queijo coalho, biscoitos, doces, sucos, café, leite, achocolatado, frutas, churrasco grego, refrigerantes e bebidas alcoólicas . . . pode-se encontrar tudo isso já nas primeiras horas da madrugada no largo da Concórdia. [ . .. ]Os conflitos com lojistas não são freqüentes e quando acontecem são resolvidos com tranqüilidade e diálogo. Um outro bom exemplo disso é o acordo firmado entre o Sindicato dos Camelôs Independentes com o Clube de Lojistas da Rua Miller, regulamentando e delimitando a ocupação das calçadas por camelôs, proporcionando a satisfação de ambos os lados interessados, sem deixar de atender aos consumidores que dependem dos dois tipos de comércio[ ... ]

i'f:;te LOJISTAS

[ ... ] Lojão do Brás é uma grande referência para quem circula pelo bairro e para os moradores. Trata-se de uma loja de grandes dimensões instalada num prédio que anteriormente tinha sido a sede das Casas Bahia e, antes dela, um grande teatro. Sua localização é privilegiada: o quarteirão em frente ao largo da Concórdia, este último a maior referência do bairro. Muitas pessoas marcam encontros no Lojão, indicando que o ponto é muito conhecido na região. Há uma lanchonete Habib's instalada em seu interior ao lado de algumas mesas, reproduzindo a estrutura de uma praça de alimentação, muito comum em shopping centers - essas mesas são muito importantes porque constituem praticamente a única possibilidade que se tem para sentar e descansar. Além disso, o estabelecimento ainda conta com banheiros, equipamentos muito procurados na região, já que os consumidores costumam passar o dia todo pelas ruas do Brás. Outro fator que concorre para a popularidade do Lojão do Brás é seu proprietário, o "seu Mimi", como é amplamente conhecido pela população que tem relações mais estabelecidas na região.


[ ... ]Seu Mimi também é referência porque muitos de seus empregados são de sua cidade natal, Alto Santo, uma pequena cidade do sertão do Ceará, e dos arredores. As pessoas já vêm para São Paulo com emprego garantido e na época de fim de ano Mim i chega a fretar três ônibus para trazer os empregados para ocupar em suas lojas as vagas temporárias características desse período. ~COREANOS

[ ... ] Ao percorrer as ruas do bairro, os pesquisadores notaram que deveria haver grande presença de coreanos na região devido às inúmeras lojas com letreiros em português e em coreano, sendo que algumas delas só exibem nas fachadas informações nessa segunda língua. Além disso, foram localizadas duas igrejas presbiterianas coreanas e muitas lojas de roupas de propriedade de coreanos, principalmente nas ruas Miller e Silva Telles. Porém, a impressão é de que se trata de uma comunidade bastante fechada, já que, nas entrevistas realizadas, os coreanos apareciam como um dos diferentes grupos constituintes do bairro, mas ninguém possuía algum tipo de contato com eles[ ... ] ~ BOLIVIANOS

[ ... ]Chegar aos bolivianos também não é tarefa fácil. Assim co-

mo no caso dos coreanos, sua presença no bairro é altamente conhecida e citada pelos entrevistados. "Eles são desconfiados", era a frase mais utilizada para descrever o comportamento dos bolivianos quando abordados por algum motivo. Junto a essa informação sempre aparecia nos depoimentos o fato de muitos deles serem imigrantes ilegais e de enfrentarem situações de trabalho escravo ou semi-escravo nas oficinas de costura, ramo onde se encontra a maioria dos bolivianos da região[ ... ] ~ÁRABES

[ ... ] Na região há grandes colônias sírias, libanesas e palestinas. Por conta disso há várias lojas de produtos típicos, armazéns e importadoras, além de restaurantes que contam com a culinária árabe. Também há duas mesquitas na região: a do Brás, localizada na rua Elisa Witacker, e a do Pari, rua Barão de Ladário. Muitas das entrevistas realizadas citam os árabes, seja por sua preponderância nas confecções de índigo, seja por seu número relativamente grande, perceptível a olhos vistos pelo contingente de mulheres que usa o véu, seja pelas mesquitas, sendo a do Brás muito apreciada por sua arquitetura[ ... ] [ ... ] Moussa disse achar o bairro muito bom e não ver

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maiores problemas. Citou a segurança, mas afirmou que isso é um mal que atinge toda a cidade, e a limpeza, de longe, o maior alvo de reclamações. "Não troco o Brás por nada", foram suas palavras para descrever sua sensação a respeito do bairro. "Aqui tenho a minha família", continuou, se referindo não apenas à mulher e aos filhos, mas também aos muitos libaneses que residem na região. Essas pessoas não provêm apenas do mesmo país, mas, muitas vezes das mesmas cidades ou de localidades vizinhas e têm, umas com as outras, relações já estabelecidas de parentesco e amizade. Tanto é assim que no meio da tarde é possível flagrar mulheres fazendo compras em grupos, conversas em árabe entre senhores de idade dentro dos armazéns de artigos provenientes do oriente médio e, no começo da noite, um agitado movimento nas mesquitas [ ... ] i'àfo NORDESTINOS

[ ... ]Os entrevistados freqüentemente se referem à ocupação nordestina do Brás como uma característica preponderante da região. Esse fluxo migratório, segundo informações dos moradores mais antigos, se iniciou na década de 1950 e atingiu seu ápice nos anos 70. Pontos marcantes dessa ocupação são os camelôs do largo da

Concórdia, os armazéns de produtos do Norte e Nordeste, as rodoviárias clandestinas, os grandes proprietários de lojas de roupas multimarcas e as casas de forró, praticamente a única opção de lazer noturno da região [ ... ] i'àfo ANGOLANOS

Pelos depoimentos, as mulheres de Angola vêm constantemente para o Brás comprar roupas para revender em seu país de origem. Já os homens moram na região e costumam se encontrar num bar na rua Cavalheiro, em meio às casas do Norte. Ninguém sabe ao certo qual atividade desenvolvem e por vezes há receio em conversar sobre o assunto [ ... ] i'àfo CARROCEIROS

[ ... ]Nas ruas do Brás e do Pari, é possível ver a grande presença de carroceiros, como eles próprios se denominam, durante todo o dia. Mas é por volta das 18 ou 19 horas que os pesquisadores puderam realmente perceber o quanto se fazem presentes na região. Esse é o horário de maior movimento nas portas dos depósitos que compram o material reciclável que eles passam o dia juntando para depois revender aos compradores finais, as empresas de reciclagem [ ... ]


itJ1-

FAVELA DO RISCA FACA

[ ... ]A Favela Nelson Cruz ou, como é popularmente conhecida, Favela do Risca Faca localiza-se no cruzamento da Av. Celso Garcia com a rua Nelson Cruz, espremida entre os muros da Febem Tatuapé e um grande empreendimento imobiliário de alto padrão, o "Projeto Viver". A área foi ocupada com o apoio dos movimentos de moradia da região. Dona Joana, moradora do Conjunto Residencial do Casarão, diz ter participado da ocupação, em solidariedade aos que necessitam de uma casa para morar[ ... ] itJ1-

SEDE DO MST

[ ... ]Na Rua Domingos Pai va, números 672 a 676, uma rua pouco movimentada, paralela à linha do trem, saindo do terminal de ônibus da estação Brás do metrô, está estabelecida há cinco anos a Secretaria Regional do Movimento dos Sem Terra. Trata-se de um enorme galpão com uma sobreloja, onde se encontram os escritórios. Lá conversamos com Marcos, um dos coordenadores. Ele mora em um assentamento em Franco da Rocha e leva cerca de três horas para chegar à sede no Brás, à qual comparece, em média, duas vezes por semana. Marcos não gosta de "vir para a cidade", sente que há muita violência e poluição visual[ .. . ]

itJ1-

MUSEU DO BRÁS

[ ... ]Joaquim Cavalcanti de Oliveira Neto, escritor, é responsável pelo Museu do Brás, cujo acervo é constituído exclusivamente por peças de sua propriedade[ ... ] [ ... ]Seu Joaquim disse que é um apaixonado por São Paulo: "adoro poluição, adoro lixo". Ele nasceu em Araçatuba, mudou-se para a capital e morou muitos anos em Higienópolis, mas está desde a década de 1970 no Brás. Disse que, apesar de ter possuído durante muito tempo uma boa situação financeira, optou por morar na zona leste da cidade "por uma questão de militância política", porque "é aí que está o povo. "Gosto de viver onde o povo vive. Converso com todo mundo, com morador de rua, com prostituta. Não quero viver uma vida de mentira". Dessa maneira, para Oliveira Neto, o bairro sintetiza a cidade que ele ama: "aqui, judeus e árabes convivem numa boa", afirmou ... itJ1-

ANTIGOS MORADORES

[ ... ] Ao contrário do que foi verificado nos outros bairros, poucos são os entrevistados que fazem alusões ao passado a fim de caracterizar a região, bem como sua importância. Isso apareceu sobretudo em conversas com os antigos moradores, que sempre


salientaram o fato de o bairro ser fundamentalmente formado por imigrantes; a história da vinda dessas pessoas se confunde com a própria história da região[ . .. ] i'ty> VILA MARIA ZÉLIA

[ ... ]Sobrevivendo a todas essas mudanças e incrustada num ponto entre o Brás e o Belém, cercada por duas grandes fábricas e por um clube, encontra-se a Vila Maria Zélia. Há uma guarita, mas a entrada é permitida, bastando identificar-se. Ao atravessar os portões sente-se a impressão de estar em uma outra é poca ou em uma pequena cidade do interior, de tanta calma, tranqüilidade e aspecto familiar. Hoje existem cerca de 180 casas (muitas foram derrubadas pela Goodyear, empresa vizinha à vila, assim como o jardim e o coreto que constavam da construção original de 1917), espaços para lazer (quadra poli-esportiva, quadras de bocha, academia, salão d e jogos), uma praça, uma igreja e alg uns prédios antigos que se encontram destruídos (espaços que abrigavam o armazém, o salão de bailes, a barbearia, o açougue, o secos e molhados e a escola, dividida em dois prédios, um destinado às meninas e outro aos meninos)[ ... ]

i'ty> IGREJAS

A região do Brás caracteriza-se pela sua diversidade cultural e por conseqüência nota-se uma grande variedade de igrejas e cultos religiosos. Há muitas igrejas (católicas e evangélicas) instaladas, principalmente por todo o percurso da avenida Celso Garcia, sendo que algumas delas tornaram-se pontos de referência geográfico e cultural no bairro. Dentre as dezenas de estabelecimentos, destacamos alguns: ·Paróquia do Bom Jesus do Brás ·Igreja Universal do Reino de Deus · Igreja Evangélica Assembléia de D eus ·Paróquia São João Batista do Brás · Religiões afro-brasileiras · Outras religiões Os entrev istados citaram ou foi possível localizar templos ligados às mais diversas práticas religiosas. Algumas delas são: Igreja Presbiteriana Coreana, Mesquitas, Sinagoga, diversos cultos evangélicos e protestantes, Seicho-no-iê e igrejas católicas. Cabe esclarecer que esse projeto de reformulação da Celso Garcia e seus arredores foi desenvolvido entre os meses de agosto


de 2004 e fevereiro de 2005. Apresentado para assessores e secretários do prefeito José Serra, o projeto não foi considerado prioritário pela administração do então prefeito, tendo sido paralisado completamente desde então. Arquivado?

Subúrbio

Chico Buarque

Lá não tem brisa I Não tem verde-azuis I Não tem frescura nem atrevimento I Lá não tem figura no mapa I No avesso da montanha, labirinto I É contra-senha, é cara a tapa I Fala, Penha I Fala, Irajá I Fala, Olaria I Fala, Acari, Vigário Geral I Fala, Piedade I Casas sem cor I Ruas de pó, cidade I Que não se pinta I Que é sem vaidade Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção I Traz as cabrochas e a roda de samba I Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reaggae I Teu hip-hop I Fala na língua do rap I Desbanca a outra I A tal que abusa I Deve ser tão maravilhosa Lá não tem moças douradas I Expostas, andam nus I Pelas quebradas, teus exus I Não tem turistas I Não sai foto nas revistas I Lá tem Jesus I E está de costas I Fala, Maré I Fala, Madureira I Fala, Pavuna I Fala, Inhaúma I Cordovil, Pilares I Espalha a tua voz I Nos arredores I Carrega tua cruz I E os teus tambores


Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção I Traz as cabrochas e a roda de samba I Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reaggae I Teu hip-hop I Fala na língua do rap I Fala no pé I Dá uma idéia I Naquela que te sombreia Lá não tem claro-escuro I A luz é dura I A chapa é quente I Que futuro tem I Aquela gente toda I Perdido em ti I Eu ando em roda I É pau, é pedra I É fim de linha I É lenha, é fogo, é foda I I Fala, Penha I Fala, Irajá I Fala, Encantado, Bangu I Fala, Realengo .. . Fala, Maré I Fala, Madureira I Fala, Meriti, Nova Iguaçu I Fala, Paciência ...


Créditos da antologia de textos literários

06 RONALDO BRESSANE, "Compre O preço", 2003 I 8 PLÍNIO MARcos, Querô, uma reportagem maldita. São Paulo: Publisher Brasil, I999 29 STELA DO PATROCÍNIO, Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Editora Azougue, 2001 43 HEITOR FERRAz, "Cidade invisível" (2005), inéd ito em livro 5 I CAROLINA MARIA DE JESus, Quarto de de;pejo. São Paulo: Francisco Alves, (I956) I96o 6I PATRÍCIA GALVÃo, PAGU, Parque industrial (I933), publi cado sob o pseudônimo Mara Lobo. Edição fac-similar. São Paulo: Editora Alternativa, sem data 73 JOÃO CABRAL DE MELO NETO, "0 rio" (1953) in Seria/ e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, I997 84 CHI CO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI , "Manguetown", em Afrociberdelia, Chãos/Sony Music, I996 99 PAULO LINS, Cidade de Deus . São Paulo: Companhia das Letras, I997

I3I MV BILL, "Como sobreviver na favela" in Traficando informação, Sony MusidBMG, I999 I 39 LUIZ ALBERTO MENDES, Memórias de um sobrevivente. São Paul o: Companhia das Letras, 200I I47 JOÃo ANTÔNIO, Abraçado ao meu rancor (1986). São Pa ul o, Cosac Naify, 2001 I63 FERRÉz, Capão Pecado. São Paulo: Labo rtexto, 2000 I82 TATA AMARAL, "Meditação" in H olywood, no prelo 2I2 FERNANDO BONAssr, Subúrbio. Rio de Janeiro: Ob jetiva, 2006 203 RACIONAIS Mc's, "Capítulo 4, versícu lo 3", in Sobrevivendo no inferno, selo Cosa Nostra, I997 244 MACHADO DE ASSIS, Memória;· póstumas de Brás Cubas (I88I). São Paulo: Ática, I998 248 JORGE CORDEIRO BARBOSA E SIMONE PAULINO, Identidade perdida: memórias de um morador de rua. São Paulo: Legnar Editora, 2003 258 CHICO BUARQUE, "Subúrbio" in Carioca. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2006


Ficha técnica

Agradecimentos ANA CLÁUDIA MARQUES; CAMILE RODRIGUES, ZAIRA HAYEK E NELSON

Corpo editorial EVELYN SCHULER ZEA, FLORENCIA FERRARI, PAULA

DE SOUZA LIMA (DO CENTRO CULTURAL SÃO PAULo); DEPARTAMENTO

MIRAGLIA, PAULA PINTO E SILVA, RENATO SZTUTMAN, ROSE SATIKO

DE ANTROPOLOGIA DA USP; GUILHERME ASSIS DE ALMEIDA; JORGE LUIZ

HIKIJI, SILVANA NASCIMENTO, STELIO MARRAS, VALÉRIA MACEDO

MATTAR VILELA; JOSÉ ELI DA VEIGA; NEGRO JC, CLÁUDIO NUNES DE SOUZA E KELLY REGINA ALVES (Do FILMAGENS PERIFÉRICAs); PATRÍCIA

Projeto gráfiCO RODRIGO CERVINO LOPEZ

GOUVÊA; SYLVJA CAIUBY NOVAES; VANICE DEISE (DO ARROZ, FEIJÃO, CINEMA E VÍDEO).

EnsaiOS fotográfiCOS LÚCIA M INDLIN LOEB (CAPA E MIOLO) E EDU MARIN KESSEDJIAN (ROSTO E SEGUNDA E TERCEIRA CAPAS)

Apoio PRÓ- REITORIA DE CULTURA E EXTENSÃO DA USP

Revisão CONCE IÇÃO TAVARES

ROBERTO LOEB E ASSOC IADOS ( www.loebarquitetura.com.br) PLÍNIO MARcos [http://www.pliniomarcos.com]

Composição JUSSARA FINo Tratamento de imagens WAGNER

Roberto Loeb e Associados Impressão PROL EDITORA GRÁF I CA

www.locbanluitctunt.com.br


Sobre os membros do corpo editorial Evelyn Schuler Zea é doutora do Instituto de Antropologia Social

da Universidade de Berna (Suíça). É mestre em Antropologia, Filosofia e Literatura Alemã na Universidade de Basel (Suíça) e obteve a menção honrosa summa cum laude por sua dissertação Zwischen Sein und Nicht-Sein: Fragmente eines kosmologischen Tupi-Guarani-Diskurses in der neueren brasilianischen Ethnologie, publicada em 2000 pela Editora Curupira de Marburg (Alemanha). É pesquisadora do Núcleo de Historia Indígena e do lndigenismo (NHn/usP) desde I995· <evelynsz@gmail.com> Florencia Ferrari é mestre e doutoranda em Antropologia Social

pela Universidade de São Paulo. É autora de Palavra cigana - seis contos nômades (Cosac Naify, 2005), co-organizadora de Escrituras da imagem (Edusp, 2004) e coordenadora editorial de antropologia da editora Cosac Naify. d lorferrari @gmail.com > Paula Miraglia é mestre e doutoranda em Antropologia Social pela usP. Publicou artigos sobre temas relacionados à violência e

segurança pública em revistas e sites especializados, bem como capítulos de coletâneas. É consultora do Instituto Sou da Paz para a área de Políticas Municipais de Segurança, e do ILANUD diretora executiva do ILANUD - Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a prevenção do Delito e tratamento do delinqüente. <paulimi@uol.com.br> Paula Pinto e Silva é mestre e doutoranda em Antropologia

Social pela usP. Publicou diversos artigos sobre a temática antropologia e alimentação. É autora do livro Farinha, feijão e carne seca. Um tripé culinário no Brasil Colonial. São Paulo, SENAC, 2005 -vencedor do prêmio Gourmand World Cookbook Awards 2005, categoria melhor livro de história da culinária. É membro da sessão brasileira da Comissão Internacional de Antropologia da Alimentação (ICAF- Brasil). <ppintoesilva@uol.com.br > Renato Sztutman é professor de Antropologia na Universidade Federal de São Paulo. É mestre e doutor em A ntropologia Social pela usP. Publicou artigos sobre etnologia indígena, teoria antropológica e antropologia visual em revistas especializadas


e capítulos de coletâneas. Desde 1995, é pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII), e do Grupo de Antropologia Visual (crAvr), ambos da usP. É colaborador do Programa Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (rsA) e correspondente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). <sztutman@uol.com.br> Rose Satiko G. Hikiji é professora do Departamento de Antro-

pologia da usP. É mestre e doutora em Antropologia Social pela usP. Realizou seu pós-doutorado no mesmo departamento. É membro do Grupo de Antropologia Visual (GRAvr) e do Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama - Napedra), ambos da usP. Desenvolve pesquisa sobre a produção de vídeos na periferia de São Paulo com apoio da Fapesp. É autora de A música e o risco (Edusp/Fapesp, 2oo6) e co-organizadora de Escrituras da imagem (Edusp, 2004). <satiko@usp.br> Silvana Nascimento é mestre e doutora em Antropologia pela

usP. Atualmente, é coordenadora de Educação em Gênero do Instituto Consulado da Mulher, conselheira do Conselho Estadual

da Condição Feminina de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da usP (NAul usP). <silnasc@usp.br> Stelio Marras é mestre e doutorando em Antropologia Social

pela usP. É autor de A propósito de águas virtuosas:formação e ocorrências de uma estação balneária no Brasil (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004), pelo qual ganhou o Concurso Brasileiro Cnpq-Anpocs de Obras Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais em 2003. Publicou estudos sobre medicina e ciência, além de ensaios sobre música popular e pensamento social brasileiro. É pesquisador do Grupo de Antropologia Visual (usP) e correspondente do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). <smarras@usp.br> Valéria Macedo é mestre e doutoranda em Antropologia Social

pela usP. É co-editora de Terras indígenas e unidades de conserva ção: o desafio das sobreposições (rsA, 2004), pesquisadora do Núcleo de Historia Indígena e do Indigenismo (NHIIIusP), colaboradora do Programa Povos Indígenas no Brasil e do Instituto Socioambiental (rsA). <vvaall @uol.com.br >




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