Vioência Doméstica Contra Crianças e Adolescente

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Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes

2002


A presente reimpressão feita pelo Ministério da Saúde tem autorização expressa da Universidade de Pernambuco. (Of. EDUPE n.º 25/2003) Tiragem: 2.000 exemplares MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Área Técnica de Prevenção à Violência e Causas Externas Esplanada dos Ministérios, Edifício Sede, Bloco G, 6.º andar Tels.: (61) 315 3315 / 315 3415 Fax: (61) 315 3403 E-mail: sociedadeviva@saude.gov.br

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V795 Violência doméstica contra a criança e o adolescente / Lygia Maria Pereira da Silva. Recife: EDUPE, 2002. 240 p. : il. 1. Violência doméstica - crianças e adolescentes. I. Silva, Lygia Maria Pereira. II. Título. CDU 241.12


Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes


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“Necessidades básicas não atendidas são verdadeiros gritos de guerra”. Joana D´Angelis



Sumário APRESENTAÇÃO 1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES - NOSSA REALIDADE .............. 17 2. A DOR DA VIOLÊNCIA .................................................... 45 3. NEGLIGÊNCIA CONTRA A CRIANÇA: UM OLHAR DO PROFISSIONAL DE SAÚDE .................................................. 61 4. FERIDAS QUE NÃO CICATRIZAM ..................................... 83 5. VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR. RELATO DE UMA PRÁTICA EM PSICOLOGIA JUDICIÁRIA ............................... 99 6. O TRABALHO INFANTIL E AS MÚLTIPLAS FACES DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ............ 115 7. O MAU-TRATO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: OS CAMINHOS DA PREVENÇÃO, DA PROTEÇÃO E DA RESPONSABILIZAÇÃO........................ 137 8. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: AS CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA FAMILIAR COMO UMA POSSIBILIDADE DE TRATAMENTO .................................................................. 181



AGRADECIMENTOS

Eveline Lopes Fรกtima Angeiras Guiomar Novaes Paulo Cabral Salvador Soler



APRESENTAÇÃO

Este livro pretende contribuir com o estado de Pernambuco, marcando uma nova fase de um trabalho que vem sendo aqui realizado desde há muito tempo. Pernambuco tem se caracterizado como pioneiro em várias frentes pela defesa dos direitos humanos, em particular dos direitos da criança e do adolescente, tendo instalado, nos mais diversos níveis da sociedade civil e no interior dos órgãos públicos, fóruns de discussão sobre esta temática. Certamente é essa marcante presença no estado da arte da violência e do mau-trato infantil que tem gerado farta e valiosa publicação sobre o tema por parte de agentes e entidades, demonstrando a grande capacidade instalada em nosso estado, especificamente em Recife. A Universidade de Pernambuco - UPE, entidade pública, consciente de sua função social e sua identidade institucional, considerando a trágica realidade vivida por um grande número de crianças e adolescentes em toda parte do mundo, mas especialmente em nosso estado, vai ao encontro das reais necessidades da população, atuando, tanto no campo teórico como no prático, nas questões que se constituem demandas da sociedade, através de sua atuação nas áreas de ensino, pesquisa e extensão, funções primordiais da universidade, a serviço do cumprimento de sua missão maior: responsabilidade social. Como exemplo, considerem-se as atividades de extensão junto à comunidade do bairro de Santo Amaro, que se constitui em um dos grandes bolsões de miséria da cidade do Recife, ao promover para este local a convergência de ações de várias das Instituições de Ensino da UPE, nomeadamente desde a área de saúde à de educação. Outra iniciativa significativa foi a campanha DIGA SIM À PAZ iniciada em 1998, que conclamava toda a Universidade para promover uma cultura de paz, mobilizando a comunidade acadêmica a se engajar em todas as atividades desta ação. Salientamos que foi exatamente numa atividade de extensão, atendendo a uma demanda da comunidade, que foi iniciado, no ano de 2000, o projeto PREVINA A VIOLÊNCIA, DIGA SIM À PAZ. Este constituiu-


se num projeto educativo voltado à prevenção da violência contra a criança e o adolescente para quarenta famílias envolvidas, tendo se desenvolvido por dois anos com resultados bastantes animadores. Logo depois, o projeto foi aglutinado pelo PROGRAMA DE ENSINO E PESQUISA EM EMERGÊNCIAS, ACIDENTES E VIOLÊNCIAS DA UPE, tendo encontrado nesta ação mais ampla e mais abrangente o apoio necessário para se firmar. O projeto PREVINA A VIOLÊNCIA, DIGA SIM À PAZ, para sua execução, contou com várias parcerias. A Pastoral da Criança e o Centro Dom Helder Câmara participaram do projeto em toda sua execução e foram co-responsáveis pelo sucesso obtido. Essas parcerias foram a inspiração para o trabalho que agora realizamos. Para isso buscamos novas parceiras, como a Diretoria Executiva de proteção à Criança e ao Adolescente e a Vara de Crimes Contra a Criança e o Adolescente, nas quais encontramos ressonância. Desse modo, o Projeto VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE foi concebido e tem se consubstanciado ao longo do tempo. Seus objetivos concentram esforços na publicação da presente obra; na divulgação dos resultados deste trabalho sob a forma de seminário, ampla e publicamente divulgado para repercussão da temática e na capacitação de profissionais de saúde e de educação que trabalhem na assistência às crianças e aos adolescentes, em situação de violência doméstica. Animou-nos a enfrentar as dificuldades o desafio de agregar autores de origens tão diversas e que realizam trabalhos tão valiosos junto às crianças que têm seus direitos violados. O resultado não poderia ser outro: textos díspares, que refletem bem a solidão com que atuam as diversas pessoas e entidades envolvidas na proteção e na defesa das crianças e dos adolescentes vitimizados. Nosso livro foi então a encruzilhada em que se deram trocas enriquecedoras e consoladoras. Foi reavivada em nós, a idéia de que devemos investir sempre mais em projetos com características intersetoriais e multiprofissionais, e que o nosso trabalho cresce mais quando desenvolvido em parceria ou em rede. Na elaboração do livro, predominaram as pesquisas bibliográficas,


enriquecidas pelos relatos de experiências dos autores, no entanto, contamos também com uma pesquisa científica com trabalho de campo no capítulo referente à negligência. O primeiro capítulo é conceitual e histórico. Seu objetivo é introduzir o leitor no tema, bem como situá-lo na realidade em que a temática se desenrola no estado de Pernambuco. Os conceitos, didaticamente elaborados em outras obras, são apresentados, aqui, de modo sucinto, ressaltando que aos tipos de violência psicológica, negligência e violência sexual são acrescidos o trabalho infantil. O segundo capítulo intitulado A Dor da Violência apresenta uma abordagem psicanalítica sobre as violências resumidas, porém não reduzidas, da dor emocional que a criança violentada carrega, qualquer que seja a experiência deste específico tipo a ela imposta e, principalmente, quando os agentes deste ato são os pais. O capítulo seguinte traz a pesquisa anteriormente referida. Desenvolvida sob a metodologia da Representação Social, traz o título: Negligência Contra a Criança: Um Olhar do Profissional de Saúde, revelando a percepção deste profissional, acerca do tema, buscando aprofundar uma reflexão mais sistemática e revelando formas de enfrentamento a estas situações em sua prática cotidiana de trabalho. Feridas Que Não Cicatrizam é o título do quarto capítulo, que trata da violência física. Apesar da aridez do tema, o artigo foi desenvolvido com a sensibilidade de um artista ao compor a imagem desta situação, ao mesmo tempo que contou com a experiência de uma delegada que há anos testemunha a exclusão de adolescentes autores de atos infracionais, cujas vidas foram marcadas pela violência doméstica. O quinto capítulo traz o relato de uma experiência única em nosso estado, em que a autora, psicóloga, atua no sistema judiciário e lida com uma das mazelas mais complexas de nossa sociedade. Sob o título Violência Sexual Intrafamiliar: Relatos de uma Prática em Psicologia Judiciária, o artigo traz à discussão a questão mais polêmica da violência sexual que é o tratamento dispensado ao abusador. Entendemos aqui o aspecto patológico do abuso, sem perder de vista o aspecto criminal, bem como as necessidades das vitimas. O Trabalho Infantil e as Diversas Faces da Violência é o sexto capítulo. Nele, o autor considera a base político-econômica-social do trabalho


infantil, considerando ainda o aspecto das relações interpessoais que interferem nas características como o problema se apresenta. No capítulo intitulado O Mau-trato Infantil e o Estatuto da Criança, o sétimo da obra, a autora explora os caminhos a serem percorridos para a responsabilização do agressor, a proteção da vítima e a prevenção da violência. Propostas de fluxograma são apresentadas, permitindo ao leitor visualizar passo a passo as ações referentes à proteção dos direitos individuais da criança e do adolescente. No último capítulo, As Contribuições da Terapia Familiar como uma possibilidade de Tratamento, a autora enfoca a gravidade dos danos causados pela violência doméstica à vida das crianças e dos adolescentes, ao mesmo tempo em que discorre sobre as demandas da família em situação de violência. Para concluir, e indo ao encontro do exercício de responsabilidade acadêmica da UPE, esperamos, com a conclusão e a apresentação desta obra a público, poder contribuir para o desenvolvimento da sistematização do conhecimento no tema Violência Doméstica Contra a Criança e o Adolescente, numa perspectiva ainda pouco explorada, embora muito necessária: a de cooperação entre os que operam no tema e o fortalecimento de suas ações. Temos consciência que não pretendemos com esta publicação esgotar os problemas das crianças e dos adolescentes, mas principalmente contribuir com significativos elementos que possibilitem ampliar e aprofundar a discussão.

Lygia Maria Pereira da Silva


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES - NOSSA REALIDADE Kátia Maria Maia Ferreira



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COMENTÁRIOS INTRODUTÓRIOS Gostaríamos de introduzir nosso relato, referindo um pouco do nosso interesse por esta temática. Remonta ao ano de 1983, quando a escolhemos como objeto de estudo para a Monografia realizada para a conclusão do Curso de Psicologia. Àquela época, nos restringimos a um levantamento bibliográfico dos estudos publicados até então, focando, particularmente, a ação dos pais na produção do fenômeno a partir de uma visão teórica psicanalítica (FERREIRA,1983). A partir daí, nosso interesse pela questão foi-se ampliando, e passamos a estudá-la de uma maneira mais abrangente, considerando outras variáveis que são determinantes para a sua manifestação, à medida que a nossa prática apontava e que novos e diferentes estudos iam sendo publicados, demonstrando que não poderíamos nos restringir à dinâmica inconsciente dos pais, mas considerar também a família, o contexto em que essas famílias estão incluídas, a cultura e a estrutura social que, por sua vez, estabelecem os modelos relacionais e interpessoais prevalentes numa sociedade. A violência é um fenômeno que se desenvolve e dissemina nas relações sociais e interpessoais, implicando sempre uma relação de poder que não faz parte da natureza humana, mas que é da ordem da cultura e perpassa todas as camadas sociais de uma forma tão profunda que, para o senso comum, passa a ser concebida e aceita como natural a existência de um mais forte dominando um mais fraco, processo que Vicente Faleiros (1995) descreve como a “fabricação da obediência”. Por sua amplitude e disseminação vem, nos últimos trinta anos, adquirindo gradativa visibilidade desde que passou a ser discutida e estudada por diferentes setores da sociedade brasileira, preocupados em compreendê-la, em identificar os fatores que a determinam, buscando encontrar soluções de enfrentamento que possam reduzi-la a níveis compatíveis com a ordem social estabelecida. Entre as diferentes formas como a violência se apresenta, uma particularmente vem chamando a atenção: aquela que é praticada pelos 19


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pais ou responsáveis contra seus filhos, e sobre a qual trataremos nesta introdução. Consideramos importante apontar, agora, as dificuldades encontradas pelos estudiosos do fenômeno quanto à construção de uma terminologia padronizada para a sua conceituação, uma vez que os fatores que o determinam são multifacetados. Faleiros e Campos, (2000, p. 4-5) no relatório de uma pesquisa realizada por elas sobre conceitos de violência, abuso e exploração sexual, explicam tais dificuldades, considerando que este é um campo ainda novo de estudos, apesar do fenômeno ser antigo, exigindo investigações aprofundadas e sistemáticas, para que, compreendendo-o melhor, seja possível conceituá-lo com maior precisão. Referem ainda que tanto a diversidade de termos conceituais, utilizados para designar o mesmo fenômeno, quanto um mesmo termo empregado para designar aspectos diferentes do fenômeno estudado, confundem ainda mais, tornando a tarefa de padronização muito mais complicada. Se, tomando apenas um tipo de manifestação do fenômeno da violência encontraram tais dificuldades, é possível deduzir que o mesmo aconteça em relação às outras manifestações e também quanto ao fenômeno em si. No Brasil, atualmente, a violência exercida por pais ou responsáveis contra suas crianças e adolescentes é considerada pelo Ministério da Saúde como um problema de saúde pública de tamanha expressividade que a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências deste Ministério determina como devem ser tratadas e notificadas as ocorrências deste fenômeno, endossando as preocupações daqueles que, em função das atividades que exercem, deparam-se cotidianamente com seus efeitos e conseqüências. Feitas estas observações, introduziremos outros aspectos que julgamos relevantes para que se tenha uma visão mais ampla sobre a temática em foco. Assim, incluiremos o ponto de vista proposto por Minayo (1994), em que a autora refere que esta forma de violência contra crianças e adolescentes, acontece em um contexto fundamentado na própria estruturação da sociedade, marcado que é pelos processos culturais que lhe são próprios. Ponto de vista este, que também é enfocado por Soler (2000) em recente trabalho realizado. Focaremos, em seguida, o processo de mudança da concepção de infância, criança e adolescente que, 20


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gradativamente, vem se desenvolvendo em nossa sociedade a partir do paradigma da proteção integral e abordaremos como, na vida cotidiana, são vivenciados esses conceitos, procurando correlacionar os diferentes aspectos que fomentam a violência exercida pelos pais e responsáveis contra suas crianças e adolescentes, que serão abordados especificamente na parte que vai tratar desse tema. Consideramos importante incluir, ainda que de maneira resumida, um pouco da história deste tipo de violência em Recife, no Brasil e no mundo, como tentativa de recuperar a memória de tão insidioso problema, que começa a ser desvelado. Em seguida, abordaremos o conceito de Violência Doméstica proposto por Guerra e Azevedo (1998) e o de Violência Intrafamiliar construído por Saffioti (1997), procurando caracterizar os aspectos que lhes são próprios com o objetivo de demonstrar as variâncias existentes entre eles, mas que são importantes para o estudo a que nos propomos realizar; pois, existe, atualmente, um consenso de que esta forma de violência é uma derivação de violências mais amplas, que marcam e são marcadas pelas diferentes relações sociais de classes, de gênero, de raça/etnia, instalando-se nos relacionamentos intrafamiliares como uma distorção do cuidar, no sentido dado por Boff (1999), para quem cuidar inclui necessariamente o envolvimento afetivo com o outro. Cuidar é mais que um ato ; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo, e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, de preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.( Boff, 1999, p.)

Essa forma de violência contra crianças e adolescentes não é uma expressão da modernidade; faz parte da própria história cultural das sociedades desde os tempos mais antigos de que se têm registro. (FERREIRA, 1983, p.9). O que tem contribuído para que hoje ela seja mais visível talvez seja o que Deslandes chama de “...desenvolvimento de uma consciência social em torno do tema da proteção à infância”. (1994, p.178); e também a crescente mobilização em torno dos direitos humanos, nos últimos vinte anos. Daí não ser mais possível ignorar sua presença no cotidiano de milhares de crianças e adolescentes, o que 21


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demanda a concretização de propostas e programas interdisciplinares, sensibilização, prevenção, e tratamento dos seus desastrosos efeitos, além da responsabilização e tratamento dos seus agentes, como uma tentativa de reduzir a sua incidência e de possibilitar o verdadeiro reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos.

AS VIOLÊNCIAS E A VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES Em recente estudo, Soler (2000) aponta a necessidade da contextualização do fenômeno da violência praticada contra crianças e adolescentes por seus familiares ou responsáveis, considerando-se o ambiente sociopolítico e cultural como fomentador das condições facilitadoras de sua expressão, em interação dinâmica com a família. É fundamental que se compreenda que uma questão desta magnitude não pode ser concebida e tratada através de uma visão unilinear de causa e efeito, em que, de um lado, está o agressor motivado por sua “má índole” e do outro, sua vítima, esperando e/ou provocando o ataque. Mas como resultado multicausal e interativo de uma dinâmica sociocultural e política que repercute em todo tecido social, fazendo suas vítimas de maneira indiscriminada. Há pouco mais de vinte anos, uma nova ordem política e econômica vem sendo implantada, alterando e agravando principalmente a situação estrutural dos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Essa nova ordem, denominada de processo de globalização, vem trazendo conseqüências dramáticas para a vida de milhões de pessoas, uma vez que, em nome da modernidade capitalista, extremamente competitiva, movida por uma tecnologia de ponta, exige, cada vez mais, um desempenho altamente especializado, que os países excluídos do grupo dos desenvolvidos não têm condições de acompanhar. No Brasil, os efeitos mais visíveis foram: os diferentes planos econômicos de ajuste às exigências do mercado internacional em detrimento da qualidade de vida de seus cidadãos; as modificações nas relações de trabalho; o fechamento ou fusão de inúmeras indústrias consideradas obsoletas; um desemprego massivo que, em outubro de 22


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1999, atingiu o índice de 7,5%, representando em torno de 1,3 milhão de desempregados (SOLER, 2000, p.12). O resultado disto foi uma maior concentração de riqueza para uns poucos e o aumento da pobreza para a maioria da população que teve diminuído, enormemente, seu acesso aos bens de produção, a melhores condições de saúde, à educação, ao saneamento básico, à moradia, agravando situações já existentes de desigualdade que, para Minayo “...influenciam profundamente as práticas de socialização.” (MINAYO, 1994, p.8) Com relação à infância e à adolescência, a violência estrutural atinge particularmente aqueles indivíduos em situação de risco pessoal e social, ou seja, os vitimados, na diferenciação feita por Guerra e Azevedo (1997), que sofrem cotidianamente a violência das ruas, da falta de uma educação de qualidade, das precárias condições de moradia e de saúde. O estudo realizado por Soler, acima referido, apresenta algumas estatísticas que servem para ilustrar os efeitos dessa nova ordem econômica nas vidas das crianças e adolescentes brasileiros e suas famílias. É o Nordeste a região que mais concentra famílias vivendo abaixo da linha de pobreza – com rendimento mensal de até meio salário mínimo -, sendo que, na faixa etária de 0 - 7 anos, estão 53,4% das crianças. São milhões delas mantidas em um ciclo perverso, sendo-lhes negado o direito básico à dignidade, o que vem a ferir os Artigos 4º e 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O mesmo ocorre com suas famílias que, desassistidas ou mal assistidas, repetem as condições de exploração/ abandono de que são vítimas. Um outro dado que o autor enfatiza é que não é a pobreza em si que leva milhares de crianças e de adolescentes a fugirem de suas famílias, mas os maus-tratos e abusos de que são vítimas. (SOLER, 2000, p.12) Como referimos anteriormente, uma outra determinante na construção da violência contra crianças e adolescentes exercida na intimidade do lar, é a cultura que, ao estabelecer normas, valores, costumes, determina também como os indivíduos se relacionarão de acordo com a distribuição do poder. Saffioti (1989, p.13-21) propôs o conceito de Síndrome do Pequeno Poder, para explicar como se instala a relação de destrutividade entre pais/responsáveis e seus filhos - através de relações interpessoais de natureza hierárquica, transgeracional, em que o adulto abusa de sua autoridade sobre crianças e adolescentes, com o respaldo da sociedade, 23


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atingindo democraticamente todas as classes sociais . Continuando seus estudos sobre o tema, Saffioti (1997) propõe a nomenclatura Violência Intrafamiliar após fazer uma análise das contradições existentes na construção dos sujeitos históricos, considerando gênero, raça/etnia e classe social e demonstra que existem particularidades, ainda que sutis, entre a Violência Doméstica e a Violência Intrafamiliar. De acordo com a autora, a Violência Doméstica instala-se entre pessoas que não mantêm vínculos de consangüinidade ou afetivos enquanto que, a Violência Intrafamiliar ocorre entre pessoas com vínculos consangüíneos e/ou afetivos, havendo, em comum, entre estas modalidades o espaço doméstico (SAFFIOTI, s.d, p.03). No entanto, a própria autora afirma que eles são parcialmente sobrepostos, uma vez que: (...) a violência familiar pode estar contida na doméstica. Quando o agressor é parente da vítima, trata-se via de regra, de violência familiar e doméstica. (SAFFIOTI, s.d, p.5)

A CRIANÇA, O ADOLESCENTE E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E/ OU INTRAFAMILIAR A maneira como a infância e a adolescência são concebidas pela cultura ocidental é resultante de um processo longamente construído, marcado ideologicamente pelas contradições que fundamentam as práticas sociais. Por muito tempo, não se reconheceu a existência da infância e adolescência como momentos delicados do desenvolvimento humano, pois logo que adquiriam alguma autonomia física, as crianças passavam a ser vistas e tratadas como pequenos adultos, aprendendo com eles – não necessariamente com os familiares – o que deveriam saber para garantir a sua sobrevivência. Foi só no final do séc. XVII, segundo Ariès (1981), com a mudança trazida pela escolarização, que teve início o reconhecimento e a preocupação com essas etapas da vida, passando a ser a família o grupo referência, a quem competia cuidar e acompanhar as crianças e adolescentes, zelando pelo seu bem estar. Assim, a família e a escola passaram a ser, culturalmente, o lugar da socialização e da 24


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disciplina. Na construção desse processo de reconhecimento, foram e são importantes as contribuições da Medicina e das Ciências Humanas que, através dos seus saberes, demonstraram ser a infância a etapa fundamental para o desenvolvimento saudável do indivíduo, e a adolescência não uma simples passagem para a vida adulta, mas um momento crítico em que, quem a vivencia está se confrontando com valores, normas, aprendizagens, escolhas afetivas, até então aceitas sem muitos questionamentos. As transformações físicas e intelectuais por que passa levam-no a buscar novas formas de lidar com esse antigo repertório, o que vai repercutir na sua identidade, nas suas escolhas e em novas responsabilidades . Está comprovado que para essas etapas se cumprirem de modo a produzirem adultos saudáveis, o elemento vital é a qualidade das relações afetivas estabelecidas. Para a psicanálise, o bebê existe antes do seu nascimento, a partir do desejo dos seus pais, desejo este inconsciente, manifesto através das expectativas criadas e vivenciadas em torno do bebê, e que vai influenciar a qualidade das relações afetivas que se estabelecerão. O nascimento de uma criança nem sempre é conseqüência de um ato amoroso, mas de relacionamentos fortuitos, fragilizados, de gestações não desejadas, de um capricho, condições que pouco provavelmente possibilitarão o estabelecimento de relações afetivas amorosas, ternas, necessárias para um bom desenvolvimento. Ao nascer, o bebê humano está numa situação de absoluto desamparo, incapaz que é de garantir sozinho a satisfação das necessidades do seu corpo e a organização de sua incipiente psique. Ser de linguagem, marcado, simbolicamente, pela cultura em que está inserido, precisa da presença de um “cuidador” que lhe garanta os cuidados essenciais, ajudando-o a administrar seu caos interno, identificando e traduzindo suas inquietações, angústias, medos, frustrações, acolhendo sua raiva, acalmando-o, estabelecendo limites aceitáveis às suas condições de imaturidade. Assim, poderá constituir-se como ser único-no-mundo, com um referencial interno ancorado em um sentimento de segurança, definido como: “...uma crença em algo, não apenas algo bom, mas em algo durável em que possa confiar ou que se recupere após ter sido ferido ou ter permitido que fosse destruído.” (WINNICOTT, 1980, p. 44). 25


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Pouco a pouco, vai diferenciando-se em eu e não-eu, internalizando aquilo que lhe é prazeroso, calmante, por dispor de um outro que lhe proporciona essas condições e com o qual se identificará - o cuidador, que na linguagem psicanalítica é nomeado como função materna. Uma primeira e grande desilusão que vai sofrer é o início da separação da função materna, quando simbolicamente acontece a entrada da função paterna, aquela que, culturalmente, vai revelar ao bebê que ele não é o objeto único do amor de sua mãe. Ela tem outros interesses e desejos com os quais ele, bebê, não pode compartilhar. Dessa forma, vai se introduzindo a lei1 que, em nossa cultura, é a proibição do incesto. Momento de dor e angústia para o pequeno ser, que o vivencia com poderosos impulsos de destrutividade, que sendo acolhidos pelos cuidadores resultarão em uma vivência positiva – ele pode até desejar destruir na fantasia, que seus cuidadores e seu mundo interno sobreviverão. Caso seu desenvolvimento inicial se estabeleça através de relações afetivas acolhedoras, amorosas, estarão favorecidas as condições para que, gradativamente, saia da posição de objeto de cuidados para a de sujeito humanizado, diferenciado, capaz de construir sua própria história, suportando as condições de falta impostas pela cultura e sempre buscando preenchê-las através dos meios socialmente aceitos. Caso contrário, permanecerá na condição de objeto, como coisa da qual se pode dispor. Relações baseadas na coisificação do outro geram vitimização e caracterizam-se como violentas. Contribuições como essas e também de outras ciências, como as Sociais, ao longo do séc. XX, demonstram que a criança e o adolescente necessitam da presença de adultos que exerçam sua autoridade de maneira confiável, para que possam desenvolver recursos internos e externos que os habilitem a estabelecer relações solidárias no seu convívio social. Demonstram ainda que as famílias, para oferecer essas condições aos seus filhos, necessitam ser apoiadas e amparadas pelo ambiente sóciocultural em seu entorno. Ao mesmo tempo que as ciências evidenciavam a importância da infância e da adolescência para a sociedade, devendo ser seu patrimônio 1

Lei, no sentido psicanalítico aqui dado, grafada com maiúscula, significa o processo interno de

apreensão e internalização desse limite. Esta é uma forma muito simplificada de tratar um conceito bem complexo e fundamental na construção psicanalítica que não compete discutir nesse artigo. 26


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maior, havia no Brasil um descompasso legal, sanado no início da década de 90 com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente que, fundamentado na doutrina de proteção integral, define crianças e adolescentes como pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, devendo gozar de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, competindo à família, à sociedade em geral e ao Estado, garantilos. Mas não é ainda o que se vivencia na prática cotidiana, pois apesar de todas essas conquistas, ainda prevalece, no senso comum, a idéia de que as crianças e os adolescentes são propriedades dos seus pais ou responsáveis, que podem abusar do poder que lhes é conferido, sempre que acharem necessário, com a conivência da sociedade. É essa a marca da violência que os adultos – pais/responsáveis – impõem aos seus filhos, vistos como destituídos de valor e não merecedores dos direitos que lhes são conferidos, percebidos como objetos dos seus desejos, podendo ser manifestos através de imposições, indo desde ignorar suas necessidades – negligências- até os abusos sexuais.

BREVE RETROSPECTIVA HISTÓRICA A violência doméstica e/ou intrafamiliar contra crianças e adolescentes não é um fenômeno da contemporaneidade. Relatos de filicídios, de maus-tratos, de negligências, de abandonos, de abusos sexuais, são encontrados na mitologia ocidental, em passagens bíblicas, em rituais de iniciação ou de passagem para a idade adulta, fazendo parte da história cultural da humanidade (RASCOVSKY, 1974; AZEVEDO, 1988). Tais relatos são ricos em expressar, de forma bem elaborada, a violência que os pais/responsáveis infligem às suas crianças e adolescentes, geralmente justificada como medida disciplinar, de obediência. Por muito tempo, ela foi uma prática instituída sem qualquer sanção, uma vez que na relação estabelecida, o pai tinha poderes de vida ou de morte sobre seus filhos. Com a evolução das sociedades e o surgimento do Estado foram aos poucos se estabelecendo reprovações contra tais práticas, mas insuficientes para coibi-las, uma vez que, se antes não existia a atitude de cuidados para com as crianças e os adolescentes como uma prática social, depois, esses cuidados, inclusive os disciplinares, passaram a ser 27


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de responsabilidade única da família, não cabendo ao Estado intervir em sua intimidade, mesmo porque, ideologicamente, estava sendo construída a concepção de que a família é a célula-mãe da sociedade e criticá-la seria admitir contradições sociais que não interessavam ao Estado apontar. Em nossa sociedade, esse problema também é antigo, instalandose desde o tempo da Colônia. Quando o colonizador aqui chegou, ele encontrou uma população nativa vivendo de modo absolutamente diferente do seu, e que não aplicava castigos físicos em suas crianças nem abusava delas, mas estabelecia uma relação de acolhimento e proteção. Foram os jesuítas que, em sua missão de civilizar e catequizar os gentios, trouxeram os castigos físicos e psicológicos como meios de discipliná-los e educá-los (DOURADO e FERNANDEZ, 1999). Ao mesmo tempo, as primeiras famílias brasileiras iam se formando com configurações diferentes de acordo com a região em que viviam, mas tendo, em comum, características como: o homem e pai ser o senhor absoluto a quem todos deviam cega obediência e a submissão e subordinação das mulheres, dos filhos, dos escravos e de quem mais convivesse com a família. Assim, a base das relações familiares foi a rigorosa disciplina mantida com castigos físicos, muitas vezes cruéis, com a aprovação da Igreja. E essa forma de educar, de exercer o poder, ultrapassou todos os modelos políticos brasileiros, mantendo-se até a atualidade. Na Europa, a violência contra crianças foi cientificamente estudada pela primeira vez pelo médico legista francês A. Tardieu que, em 1860, publicou um estudo no qual descrevia vários tipos de ferimentos dispensados a crianças por seus pais, responsáveis e professores, estabelecendo pela primeira vez o conceito de criança maltratada.( GONÇALVES, 1999, p.133160) Cem anos depois, nos EUA, em 1962, o mesmo tipo de violência foi discutido pelos médicos Silverman e Kempe, como a Síndrome da Criança Maltratada, e, desde 1975, foi classificada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID). Esse trabalho trouxe várias repercussões, passando o fenômeno a ser estudado internacionalmente por médicos, sociólogos, psicólogos, iniciando um movimento que resultou em legislações, programas educativos, propostas de tratamento na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil, o primeiro trabalho científico publicado sobre o tema foi a 28


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descrição de um caso de espancamento de uma criança em 1973, estudo este realizado por professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Em 1975, um outro trabalho foi publicado: a descrição de cinco casos documentados de maus-tratos, pelo Dr. Armando Amoedo. E, em 1984, publicou-se o primeiro livro brasileiro sobre o assunto: “Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas”, de autoria da Drª. Viviane N. de Azevedo Guerra (1998). Ao longo da década de 80 até os dias atuais, muitos outros estudos foram publicados, inicialmente pelas doutoras Maria Amélia Azevedo e Viviane N. de Azevedo Guerra que se dedicaram não apenas a compreender sua dinâmica e características, mas a proporem uma teoria explicativa do fenômeno, assim como um programa de atendimento às vítimas e a seus familiares. Além dessa produção, criaram, na Universidade de São Paulo, o Laboratório de Estudos da Criança – LACRI, centro de pesquisa e de formação de especialistas no assunto através do TELELACRI – Curso de Formação à Distância, que vem formando multiplicadores em todo o país, construindo assim um conhecimento científico a respeito de violência doméstica contra crianças e adolescentes que é referência nacional. O pioneirismo do estudo da Drª. Viviane N. de Azevedo Guerra chamou a atenção de outros estudiosos preocupados com o fenômeno da violência doméstica e, ainda na década de 80, outros livros foram publicados, como: “As crianças maltratadas” (KRYNSKI,1985); “Quando a criança não tem vez – violência e desamor” (STEINER,1986); “Crianças espancadas” (SANTOS,1987), obras que caracterizaram o fenômeno na sociedade brasileira e que continuam sendo seguidas de muitas outras, o que revela a preocupação e a necessidade dos autores de, cada vez mais, conhecerem a realidade da vitimização que sofrem nossas crianças e adolescentes, propondo também formas de abordar o problema, de preveni-lo, de tratá-lo, responsabilizando e tratando os abusadores e orientando as famílias. Também em meados da década de 80, começaram a ser criados os primeiros espaços com o objetivo de denunciar e encaminhar os casos de violência praticada por pais ou responsáveis contra seus filhos. Assim, surgiu o Centro Regional de Atenção aos Maus - Tratos na Infância – CRAMI, em 04 de julho de 1985, por iniciativa do Dr. Hélio de Oliveira Santos, ligado à Pontifícia Universidade Católica de Campinas – SP, realizando 29


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um trabalho de recebimento de denúncias de toda a comunidade e fazendo os encaminhamentos médicos e legais (SANTOS, H. de O., 1987, p. 101). Ainda em São Paulo, em 08 de fevereiro de 1988, começou a funcionar, em caráter experimental, o Serviço de Advocacia da CriançaSAC, constituído pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - São Paulo, Secretarias de Justiça e do Menor e pela Procuradoria Geral do Estado, articulado à REDE CRIANÇA, programa da Secretaria do Menor instalado para combater de forma organizada e sistemática a violência contra a criança. O objetivo maior do SAC foi oferecer à criança um profissional de advocacia que defendesse seus direitos, visando sempre o que melhor atendesse aos interesses do seu cliente, e não de familiares/responsáveis ou da sociedade.(OAB - São Paulo, 1988). Os primeiros serviços de recebimento de denúncias e encaminhamentos em outros estados brasileiros, também começaram a ser criados por esta época: o de Goiânia, anterior ao CRAMI; o SOSCRIANÇA de São Paulo; o DISQUE-CRIANÇA de Belo Horizonte; o SOSCRIANÇA do Recife. No Recife em finais da década de 80 e início da década de 90, um grande movimento foi iniciado, a partir da preocupação com o crescimento de denúncias de violências praticadas contra crianças e adolescentes nas ruas, pelas polícias, pelos grupos de extermínio e por suas famílias. Esse movimento reuniu entidades governamentais, e não-governamentais, como: Prefeitura da Cidade do Recife, através da Secretaria de Assuntos Jurídicos; Governo do Estado de Pernambuco, através da Cruzada de Ação Social; Polícia Militar, Polícia Civil, FEBEM, Mutirão contra a Violência, Comissão de Justiça e Paz - CJP, Movimento Nacional de Direitos Humanos - MNDH, Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares GAJOP, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Grupo Ruas e Praças, entre outros. O resultado dessa mobilização foi a de viabilizar um programa da Prefeitura da Cidade do Recife através da Secretaria de Assuntos Jurídicos, funcionando como um plantão de apoio a crianças e a adolescentes vítimas de violência, o SOS-CRIANÇA, instalado em 12 de outubro de 1988, voltado ao atendimento de denúncias de qualquer tipo de violência contra crianças e adolescentes, sendo que, enquanto funcionou, o número de denúncias de violência doméstica/intrafamiliar sempre foi maior que as demais. Desse 30


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primeiro movimento resultou o engajamento no grande movimento nacional para a construção do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em 12 de dezembro de 1989, é fundado o Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC, entidade civil sem fins lucrativos, que atua com programas voltados ao direito de moradia e ao uso do solo urbano e à defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, sempre que estes estejam ameaçados ou sendo violados, prestando atendimento jurídico-social às vítimas e a seus familiares em situações de abuso de autoridade, homicídios, violência doméstica e abuso sexual, e exploração do trabalho infantil. A partir de agosto de 2001, foi ampliado esse atendimento, com um projeto específico para crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos físicos e abuso sexual, e seus familiares, em que além do atendimento jurídico - social, já oferecido anteriormente, passaram a receber acompanhamento psicológico, por reconhecer a importância desse apoio às vítimas e a suas famílias durante o processo de responsabilização de seu agressor. Realiza ainda a capacitação sobre os direitos das crianças e dos adolescentes para todos que atuem com essa população, com o objetivo de proporcionar o conhecimento desses direitos, de modo que possam funcionar como multiplicadores em sua defesa.(CENDHEC, 1999). Na década de 90, multiplicaram-se, pelo Brasil, organizações governamentais e não-governamentais que se dedicam ao combate sistemático da violência infringida a crianças e a adolescentes por aqueles que deveriam cuidá-los e protegê-los, realizando denúncias, pesquisas, publicações, programas de atendimento, com o objetivo maior de contribuir para a redução da incidência de tão desastroso problema, apoiando e orientando as famílias e responsabilizando e tratando o abusador. Com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi em Pernambuco que se instalou o primeiro Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil, e também o primeiro Fórum Informal e Institucional, em que representantes da sociedade civil e dos órgãos governamentais discutiam alternativas e soluções para o problema da violência. Ainda em Pernambuco foram criados a 1ª Vara Privativa de Crimes contra a Criança e o Adolescente, o primeiro Programa de Liberdade Assistida Comunitária, e a Diretoria Executiva de Polícia da Criança e do Adolescente – DEPCA. Foram criadas também organizações não31


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governamentais, como a Casa de Passagem, o Coletivo Mulher Vida, a Rede de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes do Estado de Pernambuco, o Novo Mundo, entre outros. Foram ainda instalados: o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA; o Conselho Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Cidade do Recife – COMDICA; e os Conselhos Tutelares, sendo um em cada uma das Regiões PolíticoAdministrativas (RPAs) da cidade do Recife. Recentemente, em 2001, a Prefeitura da Cidade do Recife, através da Secretaria de Saúde, criou a Diretoria Executiva de Prevenção aos Acidentes e Violências dando prioridade às crianças e aos adolescentes, estando em fase de implementação os Centros de Referência Contra a Violência à Mulher, à Criança e ao Adolescente, que serão localizados em cada uma das RPAs em que se encontra dividida a cidade do Recife.

VIOLÊNCIAS DOMÉSTICA E INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. O QUE SÃO? COMO SE APRESENTAM? Ao introduzir nosso tema, referimos as dificuldades dos autores para conceituar esse fenômeno, devido à multiplicidade de fatores que o determinam e também porque são utilizados diferentes termos para nomeálo e descrevê-lo. Utilizaremos o conceito proposto por Guerra (1998) para a violência doméstica que, quando analisado, permite tanto identificar a natureza abusiva das relações de poder exercidas pelos pais/responsáveis como ainda refere as conseqüências de tais atos. E que, em nossa opinião, sintetiza, clarifica e inclui as diferentes terminologias citadas acima. Diz a autora: Portanto, a violência doméstica contra crianças e adolescentes representa todo ato de omissão, praticados por pais, parentes ou responsáveis, contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado uma transgressão do poder/ dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto 32


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é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.(GUERRA, 1998, p. 32-33)

Para caracterizar as diferentes formas de violência das quais as crianças e os adolescentes são vítimas, Azevedo e Guerra (1989), referemse a dois processos de fabricação que não são excludentes: · a VITIMAÇÃO, conseqüente das situações de desigualdades sociais e econômicas; · a VITIMIZAÇÃO, conseqüente das relações interpessoais abusivas adulto-crianças. Enquanto o primeiro acontece com crianças e adolescentes que vivem mais agudamente os efeitos das desigualdades sócioeconômicas; o segundo, atinge aquelas vítimas da violência doméstica/intrafamiliar que estão em todas as camadas sociais. Referimos que tais processos não são excludentes, significando com isso que crianças e adolescentes vitimados podem estar sendo também vitimizados e vice-versa. Geralmente atribui-se a existência de violência doméstica/intrafamiliar às classes sociais menos favorecidas, mas nos parece que tal tipo de interpretação, além de revelar desconhecimento do problema, resulta de uma leitura distorcida da questão. O que pode acontecer é que as pessoas socialmente mais favorecidas contam com recursos materiais e intelectuais mais sofisticados para camuflarem o problema, como o acesso mais fácil a profissionais em caráter particular e sigiloso; histórias e justificativas mais convincentes quanto aos “acidentes” ocorridos com suas crianças e adolescentes; poder aquisitivo para burlar a lei etc. Diferentemente, aquelas pessoas que pertencem às classes populares são denunciadas com maior freqüência e não dispõem de recursos materiais para utilizarem serviços profissionais particulares, tendo que recorrer aos serviços públicos de saúde no socorro a suas vítimas. Em nossa experiência, verificamos que as vítimas desse tipo de violência parecem ficar aprisionadas no desejo do adulto, uma vez que sob ameaças e medo, mantêm um “pacto de silêncio” com seu agressor, num processo perverso instalado na intimidade de suas famílias. O aspecto 33


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que se destaca e que inicia todo o processo violento é o abuso da relação de poder pelo adulto, que pode ser a condição disseminadora da violência doméstica/intrafamiliar em todas as classes sociais, não sendo característica de um determinado modelo familiar, nem conseqüente apenas de uma patologia individual do agressor ou do casal. A violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes é um fenômeno disseminado, mantido com a complacência da sociedade, que estabelece com as famílias um acordo tácito, o que dificulta o acesso ao que realmente acontece com relação ao problema. Os dados estatísticos, que se têm hoje registrados, representam uma pequena parte da incidência do fenômeno, devido principalmente a essa banalização da violência, que dificulta a denúncia, e também à maneira como são tratadas as situações de violência doméstica/intrafamiliar de acordo com a classe social a que pertence a família. Com relação às formas como a violência doméstica/intrafamiliar se apresenta, a tipificação nos parece ter mais um efeito didático visto que, na prática, geralmente os vários tipos estão presentes na mesma vítima. Uma criança ou adolescente que é espancado, por exemplo, já sofreu negligência e abuso psicológico; assim como aquela que é abusada sexualmente sofreu também negligência, abuso psicológico e maus-tratos. Existe ainda um grande número de autores que utilizam o termo Maus Tratos, para conceituar esta maneira de relacionamento. GABEL (1997, p. 10) afirma que Maus-Tratos “...abrange tudo o que uma pessoa faz e concorre para o sofrimento e a alienação do outro”, utilizando o termo em seu sentido amplo. Segundo Caminha, (s.d, p.2), existe atualmente “um consenso na ciência quanto à nomenclatura a ser utilizada – Maus Tratos”, incluindo como categorias de maus-tratos os abuso físicos, os abusos psicológicos, os abusos sexuais e as negligências. Atualmente, são descritas as seguintes manifestações de Violência Doméstica/Intrafamiliar: · Abuso/Violência Física: são atos de agressão praticados pelos pais e/ ou responsáveis que podem ir de uma palmada até ao espancamento ou outros atos cruéis que podem ou não deixar marcas físicas evidentes, mas as marcas psíquicas e afetivas existirão. Tais agressões podem provocar: fraturas, hematomas, queimaduras, esganaduras, 34


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hemorragias internas etc. e, inclusive, causar até a morte. · Abuso/Violência Sexual: geralmente praticada por adultos que gozam da confiança da criança ou do adolescente, tendo também a característica de, em sua maioria, serem incestuosos. Nesse tipo de violência, o abusador pode utilizar-se da sedução ou da ameaça para atingir seus objetivos, não tendo que, necessariamente, praticar uma relação sexual genital para configurar o abuso, apesar de que ela acontece, com uma incidência bastante alta. Mas é comum a prática de atos libidinosos diferentes da conjunção carnal como toques, carícias, exibicionismo, etc., que podem não deixar marcas físicas, mas que nem por isso, deixam de ser abuso grave devido às conseqüências emocionais para suas vítimas. · Abuso/Violência Psicológica: esta é uma forma de violência doméstica que praticamente não aparece nas estatísticas, por sua condição de invisibilidade. Manifesta-se na depreciação da criança ou do adolescente pelo adulto, por humilhações, ameaças, impedimentos, ridicularizações, que minam a sua auto-estima, fazendo com que acredite ser inferior aos demais, sem valor, causando-lhe grande sofrimento mental e afetivo, gerando profundos sentimentos de culpa e mágoa, insegurança, além de uma representação negativa de si mesmo, que podem acompanhá-lo por toda a vida. A violência psicológica pode se apresentar ainda como atitude de rejeição ou de abandono afetivo; de uma maneira ou de outra, provoca um grande e profundo sofrimento afetivo às suas vítimas, dominando-as pelo sentimento de menos valia, de não-merecimento, dificultando o seu processo de construção de identificação-identidade. · Negligências: este tipo de violência doméstica pode se manifestar pela ausência dos cuidados físicos, emocionais e sociais, em função da condição de desassistência de que a família é vítima. Mas também pode ser expressão de um desleixo propositadamente infligido em que a criança ou o adolescente são mal cuidados, ou mesmo, não recebem os cuidados necessários às boas condições de seu desenvolvimento físico, moral, cognitivo, psicológico, afetivo e educacional. 35


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· Trabalho Infantil: este tipo de violência contra crianças e adolescentes tem sido atribuído à condição de pobreza em que vivem suas famílias, que necessitam da participação dos filhos para complementar a renda familiar, resultando no processo de vitimação, já mencionado. Porém, se considerarmos que muitas dessas famílias obrigam suas crianças e adolescentes a trabalharem, enquanto os adultos apenas recolhem os pequenos ganhos obtidos e, quando não atendidos em suas exigências, cometem abusos, podemos dizer que a exploração de que são vítimas essas crianças e esses adolescentes configura uma forma de violência doméstica/intrafamiliar tanto pela maneira como são estabelecidas as condições para que o trabalho infantil se realize como pelo fim a que se destina: usufruir algo obtido através do abuso de poder que exercem, para satisfação de seus desejos, novamente desconsiderando e violando os direitos de suas crianças e de seus adolescentes. De acordo com dados fornecidos pela DEPCA, referentes ao ano de 2001, foram registradas 920 denúncias relacionadas à Violência Doméstica/Intrafamiliar, sendo: 662 denúncias de Violência/Abuso Físico; 79 de Violência/Abuso Sexual; 94 de Violência/Abuso Psicológico; e, 85 de Negligência. Esses dados revelam ainda, que a faixa etária em que ocorre o maior número de Violência Doméstica/Intrafamiliar é a que compreende dos 0 aos 7 anos de idade, ou seja, na infância, período da vida em que se constrói a personalidade e acontece o início da socialização , quando as crianças são mais dependentes de seus pais ou responsáveis, não podendo, por si mesmas, defender-se. De acordo com esse levantamento, o pai aparece como o principal agente nos seguintes tipos de Violência Doméstica/Intrafamiliar: Física, Sexual e Psicológica. A mãe aparece em segundo lugar, predominando a sua ação violenta nos casos de Negligência. São dados importantes para se ter idéia do que se passa no espaço familiar, revelando a urgência da necessidade de políticas públicas e intervenções junto às famílias, de forma que seja possível facilitar uma convivência saudável as nossas crianças e adolescentes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Nosso objetivo com esse trabalho foi apresentar um recorte sobre a violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes no Recife e Região Metropolitana, fenômeno insidioso que faz milhares de vítimas todos os anos, sem que ainda tenhamos acesso à sua real dimensão, mesmo que as estatísticas oficiais apontem para o aumento de sua incidência. Isto porque, os casos que são registrados representam muito mais o aumento de denúncias do que propriamente da sua ocorrência. Enquanto fenômeno que se instala na intimidade da família - a partir do estabelecimento de relações de poder abusivas, com graves repercussões quanto ao desenvolvimento global de suas vítimas - a violência doméstica/intrafamiliar ainda é mantida como um segredo ou mesmo não reconhecida como algo a ser combatido, pois, na concepção popular, os pais ou responsáveis têm o direito de disciplinar suas crianças e seus adolescentes, mesmo que para isso se utilizem de meios inapropriados, até mesmo cruéis, para atingirem seus objetivos. A sociedade, de modo geral, ainda não questionou seriamente tais práticas, mantendo uma atitude ainda um tanto permissiva em relação às famílias vitimizadoras. Talvez porque, para isso, seja necessário confrontar-se com as contradições que alimentam o problema e que estão na base de sua própria estrutura. Quando se fala de violência, necessariamente está se remetendo para a maneira como a sociedade e a cultura lidam com a questão do poder. E a marca que mais ressalta nas relações de poder, estabelecidas em nossa sociedade, é a “naturalização” do seu abuso. Para o brasileiro, de modo geral, é “normal“ o patrão abusar do seu empregado; o homem abusar da mulher; a mulher abusar de outra que socialmente esteja em uma posição inferior; os pais abusarem de seus filhos etc. E é essa “normalidade” que precisa urgentemente ser desmistificada, de modo que se identifique, na família sua real magnitude e importância para o desenvolvimento saudável de seus filhos, a fim de que seja possível desconstruir um mito para reconstruir uma referência. Em nossa sociedade, é a família o lugar onde se estabelecerão as relações afetivas básicas através das quais a criança aprenderá como interagir com os demais, de acordo com os valores e normas prevalentes na cultura em que está inserida. Daí ser relevante, para se combater a 37


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violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e adolescentes, que se trabalhe também as famílias, não apresentando a elas um modelo a ser seguido, mas questionando e refletindo junto com elas o modelo no qual estão enquadradas, revendo como está distribuído o poder entre seus membros, de forma que seja possível uma convivência menos autoritária. Uma outra característica da violência doméstica/intrafamiliar é o silêncio instalado à sua volta, geralmente rompido apenas quando atinge os limites da crueldade. Comumente as pessoas não querem se envolver em questões desta natureza, seja por medo das ameaças que são feitas ou mesmo por terem a opinião de que não devem se intrometer em assuntos familiares. Isso contribui não só para a subnotificação do problema, mas principalmente para o agravamento do abuso, revelando um descompromisso com o bem-estar do outro que pode trazer sérias conseqüências para sua vida. Assim, faz-se necessário sensibilizar a comunidade para que cumpra a sua parte de responsabilidade nos cuidados que deve dispensar às crianças e aos adolescentes, de acordo com o que está determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda poderíamos apontar outros aspectos importantes a serem considerados, quando se tem como objetivo combater a violência doméstica, como: a responsabilização do abusador seu tratamento e suas conseqüências; uma maior sensibilização dos profissionais que lidam com crianças e adolescentes, para notificarem os casos suspeitos e/ou confirmados de abuso; a aplicabilidade da lei, favorecendo as vítimas e protegendo-as, e não criando vieses para atenuarem a conduta do abusador etc. O nosso propósito foi o de introduzir o tema da violência doméstica/ intrafamiliar contra crianças e adolescentes, destacando o seu processo de construção, as suas formas de expressão, as dificuldades para conceituá-la de modo a se ter uma terminologia inequívoca que viesse facilitar sua compreensão. Tentamos também registrar, brevemente, como se iniciou o combate à violência doméstica/intrafamiliar no Brasil através da defesa dos direitos humanos da população infanto-juvenil, especialmente no Recife, tentativas estas consolidadas com as conquistas obtidas pela aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, citando algumas entidades que se dedicam a esse combate. Todos esses aspectos serão abordados nos demais artigos pelos respectivos autores, com maior 38


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propriedade e profundidade, dando o tratamento necessário ao enriquecimento desta obra.

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A DOR DA VIOLĂŠNCIA Carlos Alberto Domingues do Nascimento



VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A violência é, atualmente, reconhecida como um problema que mobiliza a atuação das diversas instituições, governamentais ou nãogovernamentais, envolvidas com a promoção da saúde pública. As vertentes desse problema são várias: a violência estrutural, determinada pelas condições socioeconômicas e políticas; a violência cultural, oriunda das relações de dominação de diversos tipos: raciais, étnicas, dos grupos etários e familiares; e a violência de delinqüência, caracterizada pelos casos socialmente vinculados à criminalidade (Brasil, 1993). Dada a situação de pobreza da grande maioria da sociedade brasileira, historicamente caracterizada pela desigualdade social, a violência doméstica1 contra a criança e o adolescente é tida como estrutural, sem com isso, por essa mesma desigualdade social, ser também cultural e de delinqüência (Brasil, 1993). Dessa forma, as crianças e os adolescentes encontram-se ilhados no conjunto de atos violentos que os cercam, e que são oriundos e manifestos no contexto familiar, no comunitário e no social, ou em todos concomitantemente. A violência praticada no ambiente familiar, que tanto pode ser por negligência, física e psicológica2 , embora guarde uma relação direta com a violência estrutural, não é um problema de saúde circunscrito a uma Os tipos de violência e suas respectivas definições serão considerados segundo o estudo de Ferreira

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(2002) apresentado nesta coletânea e intitulado Violência doméstica/intrafamiliar contra crianças e

adolescentes – nossa realidade. Neste estudo, circunscreveremos a abordagem à violência física, à psicológica e àquela por

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negligência, evitando a sexual. O motivo de tal exclusão é a complexidade que o tema exige no contexto da teorização psicanalítica, especialmente quando observamos o caráter estruturante da sexualidade e do desejo incestuoso no complexo denominado por Freud de Complexo de Édipo. Tal abordagem exigiria uma explanação teórica que escapa às condições de exposição da presente coletânea. Fica, portanto, uma dívida a ser quitada em breve, inclusive para denunciar a falsa idéia de que Freud descria no incesto como um fato real. Freud, a bem da verdade, nunca negou o incesto real, apenas constatou que, ocorrendo ou não, o que causa angústia à criança é o desejo, o qual sempre existe. Quando o desejo incestuoso é realizado por um dos pais, caso dos sujeitos violentados, tem-se uma experiência dolorosa e desestruturante, certamente muito mais intensa do que quando apenas fantasiada. 47


A DOR DA VIOLÊNCIA

classe social, mas, principalmente, uma conseqüência das relações interpessoais dos atores envolvidos: criança/adolescente e familiares (pais, tios, irmãos etc.). Repetindo Guerra (1988, p.31-32), observamos, em relação aos aspectos intersubjetivos, que esse tipo de violência consiste: a) numa transgressão do poder disciplinador do adulto, convertendo a diferença de idade, adulto-criança/adolescente, numa desigualdade de poder intergeracional; b) numa negação do valor liberdade: a violência exige que a criança ou adolescente sejam cúmplices do adulto, num pacto de silêncio; c) num processo de vitimização como forma de aprisionar a vontade e o desejo da criança ou do adolescente, de submetê-la ao poder do adulto a fim de coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas e as paixões deste.

Como salienta Guerra (1988, p. 32), a violência é um processo de objetalização da criança e do adolescente, na qual ambos são despidos de qualquer subjetividade e reduzidos à condição de objeto de mautrato. Neste contexto, para a autora, é possível dizer que, entre outras características, o ato violento doméstico: · é uma violência interpessoal; · é um processo de imposição de maus-tratos à vítima, de sua completa objetalização e sujeição; (GUERRA, 1988 p. 32).

O presente estudo focalizará as conseqüências da violência infligida pelos pais, considerando, para tanto, que o ato violento pode decorrer de uma ação psíquica e/ou somática, mas sempre acarreta uma dor e trauma psíquico. Para qualquer tipo de violência, ainda que na violência física sobressaia a dor somática, é sempre a dor psíquica que vigora como fator traumático e desestruturante da personalidade. Diremos, então, que a descrição e a distinção fenomenológicas dos tipos de violência têm um substrato comum, a dor psíquica, que qualifica todo ato violento como uma violência psíquica. O conjunto das considerações a serem desenvolvidas, tendo o campo conceitual da Psicanálise como referencial teórico, almeja propor subsídios teóricos que facilitem ao profissional envolvido com o problema da violência doméstica agir clinicamente sobre a dinâmica psíquica do sujeito violentado. 48


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

A SUBJETIVIDADE DA VIOLÊNCIA: O DESEJO DE DESTRUIÇÃO Comecemos nossa digressão sobre o tema, discutindo as proposições de Guerra, citadas anteriormente, sobre o caráter da relação interpessoal presente na violência doméstica, e o façamos a partir da perspectiva psicanalítica. Para tanto, sintetizemos a distinção entre os conceitos de instinto e pulsão e seus correlatos tal qual formulada por Freud ao longo de seus escritos. É uma distinção significativa, pois permite a derivação de uma outra, a que se realiza entre o conceito de ato agressivo e o de ato violento. O conceito de instinto, como bem afirma Darwin (1985, p. 185), não é fácil de definir, mas tem, por assim dizer, um colorido que permite reconhecê-lo quando observado no conjunto dos comportamentos de um animal: Quando uma ação, para ser praticada por nós, exige experiência, o que não acontece quando praticada por animais, especialmente quando estes não passam de animais de filhotes inexperientes, e quando tal ação é praticada por muitos indivíduos de maneira idêntica, sem que estes desconheçam sua finalidade, costuma-se dizer que aquela ação é instintiva.

Estamos, aqui, no ambiente natural, na situação em que o organismo, orientado pelas necessidades de conservação de si ou da espécie (fome, sede, reprodução etc.), portanto, por um estado de insatisfação/desadaptação, organiza e realiza um conjunto de ações prédeterminadas, o comportamento instintivo, direcionado a um objeto específico propiciador da satisfação/adaptação. Outra é a perspectiva quando se considera a formulação freudiana de que o impulso acionador do comportamento humano não é o instinto, mas a pulsão de vida (sexual3 ) ou de morte (destruição). Trata-se de um processo dinâmico originado no corpo e cuja manifestação suscita um estado de insatisfação (desprazer), que, por sua vez, pressiona o organismo em direção a um objetivo, a busca da satisfação (prazer), tendo como meio um objeto escolhido para tal fim. Usamos o termo 3

O termo sexual não está relacionado apenas à função genital. Toda relação situada na dicotomia

prazer/desprazer é, em termos psicanalíticos, sexual. 49


A DOR DA VIOLÊNCIA

escolhido para ressaltar que, diferentemente do que ocorre no instinto, o objeto não é fixo, podendo ser qualquer um eleito para tal. A pulsão, frisemos, não é observada diretamente, mas apenas enquanto associada a uma idéia, uma fantasia, que é a expressão de um desejo4 , em torno da qual é experienciado um estado afetivo (angústia, alegria, tristeza, euforia, medo etc.). Neste contexto, a realização de um desejo corresponde à apropriação de um objeto, uma coisa ou alguém, por um sujeito, para que o mesmo sirva de meio à realização das fantasias sexuais (pulsão de vida) ou destrutivas (pulsão de morte), permitindo, assim, a saída do estado de insatisfação (desprazer) para o de satisfação (prazer). No âmbito das relações humanas, inclusive aquelas entre familiares, especialmente entre pais e filhos, subentendemos sujeitos que se colocam para o outro ou o outro para si, como meio de satisfação de fantasias oriundas de desejos sexuais ou destrutivos. O conjunto dessas considerações mostra o afastamento da concepção biologizante do comportamento, tido como instintivo, e a aproximação de uma outra, a subjetiva que tem o comportamento como desejante. Nesta, como bem mostram as perversões 5 , o comportamento humano não é a expressão de uma articulação prédeterminada entre o indivíduo e o objeto, mas de uma orientada pelas fantasias dimensionadas no âmbito do prazer/desprazer. O objeto perverso não é concebível como uma escolha determinada instintivamente, ao contrário, é uma escolha que ofende ao caráter adaptativo do instinto, ao menos no que se refere à perpetuação da espécie. Portanto, trata-se de uma escolha eminentemente subjetiva e sustentada, fundamentalmente, na realização de um desejo com a finalidade da obtenção da satisfação (prazer). Com a perspectiva freudiana, observa-se a passagem de uma concepção do homem como ser eminentemente biológico, instintivo, para outra, como essencialmente subjetivo, desejante, naquilo que o desejo, 4

O desejo pode ser apreendido pela consciência ou, por causa do conflito e da angústia que provoca,

ser recalcado e apreendido apenas inconscientemente. 5

Para a psicanálise, as manifestações perversas (homossexualidade, fetichismo, sadismo, masoquismo

etc.) são próprias à constituição do sujeito humano e evidenciam a saída da condição instintiva para uma desejante. 50


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

de vida ou de morte, é um endereçamento a si mesmo ou ao outro, visto como objeto pulsional. A distinção feita, ainda que lacunar, é suficiente para que apreendamos a formulação de Costa (1982, p. 30), que, após tecer comentários sobre a irracionalidade de atentados a personalidades célebres, assassinatos compulsivos e a conduta brutal de pais em relação a filhoscrianças, diz: 6

todos esses exemplos e outros do gênero, só atestam a diferença existente entre a violência humana e a agressividade animal. O motivo é evidente: esse tipo de ação destrutiva é irracional, mas porta a marca de um desejo. Violência é o emprego desejado da agressividade com fins destrutivos. Esse desejo pode ser voluntário, deliberado, racional e consciente ou pode ser inconsciente, involuntário e irracional. A existência destes predicados não altera a qualidade especificamente humana da violência, pois o animal não deseja, o animal necessita. E é porque o animal não deseja, que seu objeto é fixo, biologicamente predeterminado, assim como o é a presa para a fera.

O ato violento é, então, a expressão de uma realização pulsional na qual o objeto violentado serve como meio à realização de uma fantasia destrutiva ou, com outras palavras, na qual o outro é o objeto de satisfação de um desejo de morte. O autor suscita a exigência de se distinguir o ato agressivo, impulsionado por uma necessidade (fome, sobrevivência etc.), cujo fim último é a adaptação ao meio, do ato violento que, impulsionado pelo desejo, visa, no outro, à satisfação de uma fantasia associada à realização de um desejo de destruição. O primeiro é próprio ao animal; o segundo, ao homem. Neste contexto, é possível conceber o ato violento contra a criança 7 ou adolescente com a marca da morte, como expressão da realização de um desejo com fim destrutivo. O ato violento doméstico não está condicionado a uma necessidade instintual, mas à existência, no outro, de um desejo de destruição: aquele que violenta deseja, física ou psiquicamente, a destruição do violentado. 6

Trata-se aqui do narcisismo a ser comentado no tópico seguinte.

Usamos o termo criança para abarcar a faixa etária de desenvolvimento compreendida entre o

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nascimento e o início da adolescência. 51


A DOR DA VIOLÊNCIA

Nossas considerações sobre o ato violento permitem, agora, redimensionar o caráter intersubjetivo dessa relação na qual se dá a violência contra a criança e o adolescente. Assim, reconsiderando a caracterização de Guerra (1988) mencionada há pouco, diremos que o ato violento: · Não é uma relação interpessoal que se dá entre um agressor e uma vítima, mas entre um violentador e um violentado. Essa mudança terminológica ressalta o caráter subjetivo da relação a partir da oposição traçada anteriormente, entre desejo e instinto em que o ato violento é desejado e o ato agressivo é instintivo; · No ato violento, a objetalização e sujeição do violentado figura um desejo de morte do violentador. Neste contexto, temos os tipos de violência como a expressão intersubjetiva de uma relação na qual o violentador é aquele que deseja e realiza, no outro (a criança ou o adolescente), um desejo de destruição: a objetalização do violentado corresponde ao violentador colocá-lo como objeto do seu desejo de morte. Diremos, então, o ato violento é aquele em que se percebe, mais ou menos, a satisfação da realização de um desejo de destruição. Para entendermos a dimensão traumática e trágica do ato violento, discutamos, agora, o conceito de dor.

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMO UMA EXPERIÊNCIA DOLOROSA Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP), o conceito de dor refere uma experiência desagradável, sensitiva e emocional, associada com lesão real ou potencial dos tecidos ou descrita em termos dessa lesão. Os limites dessa definição, no contexto da violência, especialmente a doméstica contra a criança e o adolescente, é visível, pois como conceber a dor associada a uma lesão real ou potencial do tecido quando se trata de uma violência por negligência, psicológica ou física? A definição só é aplicável à violência física no registro do que essa é 52


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

estritamente somática. Para articular o conceito de violência doméstica (negligência, física e psicológica) ao de dor, concebamos este último segundo a exposição de Nasio (1998) em O livro da dor e do amor. O autor não distingue a dor como física ou psíquica, mas um fenômeno misto, ou melhor, limítrofe entre o físico e o psíquico. Por outro lado, relaciona o conceito de dor ao conceito de eu, que, no campo teórico da psicanálise, significa a instância psíquica que, entre outros aspectos, experiencia o desprazer associado ao surgimento dos desejos ou, ao conflito entre os desejos ou destes, com a realidade8 . Todavia, a relação proposta por Nasio (1998, p. 22) considera uma outra perspectiva para a articulação do eu com a dor: ao passo que o desprazer exprime a autopercepção pelo eu de uma tensão elevada mas passível de ser modulada, a dor exprime a autopercepção de uma tensão incontrolável em um psiquismo transtornado. O desprazer é pois uma sensação que reflete na consciência um aumento da tensão pulsional, aumento submetido ás leis do princípio do prazer. Em contrapartida, a dor é o testemunho de um profundo desregramento da vida psíquica que escapa ao princípio de prazer.

Essa experiência singular ocorre com a perda de um objeto amado, o abandono pelo objeto amado, a mutilação de uma parte do corpo ou a humilhação que fere o narcisismo, e isso num processo de três tempos: o tempo da ruptura, o tempo da comoção e o tempo da reação (NASIO, 1978, p. 17-21). Para compreendermos cada uma dessas experiências em acordo com esses tempos, tenhamos a clareza de que aí tanto se dá um processo consciente como inconsciente. É consciente naquilo que o eu percebe a dor relacionada a acontecimentos externos (perda de um objeto, abandono, lesão etc.) e inconsciente na medida que o eu desconhece os desejos e as fantasias às quais a experiência dolorosa está relacionada. Lembremos que a qualidade de ser inconsciente, em termos psicanalíticos, é atribuída aos desejos e fantasias que, por causar angústia, foram recalcados, ou seja, excluídos da consciência. As fantasias inconscientes são as representações recalcadas tanto do que desejo do outro e de Esta definição é extremamente limitada e simples, mas suficiente para o interesse deste estudo.

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A DOR DA VIOLÊNCIA

mim como daquilo que o outro e meu próprio eu é psíquica e corporalmente para mim. Em relação à dor da perda e do abandono, temos a experiência da fratura da fantasia que laça o eu ao amado ou ao seu amor. O amado é um outro externo, todavia, presentificado no inconsciente como uma fantasia, o que faz toda experiência de perda externa ser também, e principalmente, uma perda interna. A fratura dessa fantasia é a ruptura do que sutura o eu ao amado. O desejo e as pulsões, com a perda desse objeto, por morte ou desamor, entram em desgoverno, em comoção, e isso não é outra coisa senão a dor, confrome se vê: agora que reconhecemos a fratura da fantasia como o acontecimento maior, intra-subjetivo, que se sucede ao desaparecimento da pessoa amada, podemos afirmar que a dor exprime o encontro brutal e imediato entre o sujeito e o seu próprio desejo enlouquecido. (NASIO, 1998, p.51) Na ausência do objeto, por morte ou desamor, portanto, na impossibilidade da satisfação, o eu é tomado pela dor e o que dói não é perder o ser amado, mas continuar a amá-lo mais do que nunca, mesmo sabendo-o irremediavelmente perdido. (NASIO, 1998, p.30)

A violência por negligência relaciona-se ao abandono, ou seja, quando o outro, pelo descuido, pelo desamor, rompe o laço amoroso mostrando o desejo de destruição. Na dor da mutilação, o eu experiencia uma percepção de ruptura oriunda da excitação da lesão dos tecidos orgânicos. A ruptura é, externamente, percebida como a apreensão da lesão e da sensação (somato-sensorial) e, internamente, como o estado de comoção vivido pelo eu (somato-pulsional). Um exemplo apresentado por Nasio (1998, p.75), sobre a lesão provocada por queimadura, é esclarecedor: o sujeito percebe ao mesmo tempo a dor que emana do seu braço ferido e o sofrimento interior que o abala. A dor da lesão o incomoda na fronteira do seu corpo, enquanto a da comoção o consome a partir do interior. Tudo acontece como se houvesse primeiro a lancinante sensação de queimadura no braço, localizada em um ponto da periferia: “Tenho dor” significa que circunscrevo e, afinal, enfrento a dor. Mas logo se eleva, do âmago do ser, 54


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

uma dor, bem diferente, essencial e profunda. Essa dor, não a possuo, é ela que me possui: “Sou dor”. (1998, p.75)

Considerando também o corpo como representação inconsciente, observa-se que diante do trauma físico, da perda de uma parte do corpo, o eu superinveste a representação dessa zona lesada e dolorida, naquilo que a tem como integrante de suas fantasias. O superinvestimento no eu leva a uma autopercepção (somato-pulsional) de um estado de comoção ditado pela perda da integridade corpórea: tenho uma perda de meu corpo, tenho dor; sou uma perda de meu corpo, sou dor. Desta forma, diremos que a violência física infligida pelo outro, como ato de mutilação, gera a autopercepção (somato-pulsional) pelo eu de um estado de comoção oriundo da destruição da fantasia corpórea, uma destruição perturbadora, desregradora das tensões pulsionais, que, ao comentar a perda ou do amado ou de seu amor, vimos ser a dor. Voltemos a Nasio (1998, p.90): a dor corporal resulta do apego reativo e apaixonado do eu ao símbolo do lugar lesado do corpo. Vamos dizer com mais rigor: o referido símbolo, hipertrofiado de afeto, se cristaliza como um corpo estranho e pesa sobre a trama do eu até rasgá-la. É essa rasgadura das fibras íntimas que provoca a dor.

É a rasgadura dessa fibra, a rasgadura do eu, que o ato violento produzido pelo outro gera na criança ou no adolescente vitimado. E a dor de humilhação? O que vem a ser? Somos aqui levados ao conceito de narcisismo tal qual desenvolvido por Freud (1974, p.104106): o investimento pulsional em que o eu toma a si mesmo como objeto de desejo, ou seja, uma escolha em que o sujeito ama o que ela própria é, foi, gostaria de ser ou alguém que já foi parte dela como, por exemplo, o amor da mãe pelo filho. No âmbito desta conceituação, Freud diferencia duas instâncias: o eu ideal e o ideal do eu. A primeira, compreende as fantasias que colocam o eu, para si mesmo, como imagem de perfeição e, a segunda, aquelas fantasias oriundas da identificação com as figuras parentais instituidoras de um modelo para o eu. Essa conceituação remete a um questionamento: o que se passa 55


A DOR DA VIOLÊNCIA

no eu quando um endereçamento do outro, o que é o caso da violência psicológica, provoca uma ruptura parcial ou total dessas fantasias narcísicas? A lógica que vimos perseguindo coloca como resposta, novamente, o desregramento da pulsão e do desejo, já que aqui também se dá, pelo desdenhamento do outro, a perda de um objeto amado, ou seja, o próprio eu investido por si mesmo como objeto de perfeição (eu ideal) ou modelo (ideal de eu). O que se tem na violência psicológica é um estado de comoção no qual o outro leva o eu a submergir na dor da perda de si mesmo como objeto da sua própria pulsão e desejo. O ato que humilha diz ao sujeito que nada há nele para ser amado pelo outro e também por ele mesmo. Analisando a dor presente no ato violento, chegamos a uma constatação única de que não é uma experiência de desprazer, é uma experiência limítrofe entre o psíquico e o somático vivida pelo eu como o desregramento das pulsões e do desejo. E o que dizer do tempo da reparação associado a cada uma dessas experiências dolorosas? Como reparar a dor vivida em qualquer dessas violências? É sempre a fala (verbal ou não), o choro e o grito, as formas pelas quais o eu, desgastando a dor, reage ao estado de ruptura e comoção e, assim, supera a idéia de enlouquecimento provocada pelo desregramento da pulsão e do desejo: a dor exprime o encontro brutal e imediato entre o sujeito e seu próprio desejo enlouquecido (NASIO, 1998, p.51). É apenas no campo da simbolização, mais ou menos articulada pela palavra, que será possível a criança ou adolescente superar sua dor de abandono, de mutilação ou humilhação.

SOBRE A VIOLÊNCIA PATERNA E MATERNA Considerando o conjunto das digressões feitas sobre a dor, é possível dizer que o desejo expresso em um ato violento é diferenciável quanto a sua manifestação, ou seja, é negligente, psicológico ou físico, mas é idêntico naquilo que é sempre um ato endereçado à destruição do outro e, se percebido como tal, traumático, pois leva o eu a um estado de ruptura e comoção. É importante observar que a dor não se define pelo ato em si, mas pela articulação subjetiva entre o violentador e o violentado. 56


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

A dor da violência é tão mais intensa e, portanto, traumática, quanto maior é o amor que o violentado endereça ao outro que o deseja destruído, mais ainda se a fantasia que enlaça um e outro é estruturante. Qual o contexto da dor, da ruptura e da comoção, quando se tem um dos pais ou ambos como violentador? Os pais, quando se considera a concepção psicanalítica da estruturação psíquica, especialmente as fantasias edípicas inconscientes, são o objeto de amor por excelência para a criança e o adolescente. Portanto, em qualquer dos tipos de violência haverá a percepção de que aquele que regula o desejo da criança ou do adolescente, o amado, pai e/ou mãe, deseja-lhe a morte, estando perdidos enquanto objeto do desejo de amor. Diante dessa perda, o eu da criança, segundo o que foi visto, experiencia a dor própria ao desregramento da pulsão e do desejo. Ocorre a fratura da fantasia que enlaça filho e pais, dando ao primeiro uma percepção como: esse(s) a quem dedico e suponho que me dedica(m) um amor incondiconal nega(m) tal amor, tanto que deseja(m) minha destruição, me abandona(m), me mutila(m) ou me humilha(m), mostrando-se ausente para o meu desejo de amor. O que é vivido neste contexto não é uma experiência de desprazer, de insatisfação, mas de dor, pois ocorre a perda do objeto amado. O atributo da afiliação é, biologicamente, uma propriedade essencial, naquilo que não se pode ser filho de outros que não aqueles de quem realmente somos filhos. O biológico é, por assim dizer, inegável. O mesmo não ocorre quando se pensa tal atribuição no âmbito da subjetividade, posto que aí se impõe o reconhecimento: o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo outro (LACAN, 1998, p.269).

O atributo da afiliação, em termos subjetivos, não existe a priori, é uma contingência do conjunto de sinais que permite à criança ou ao adolescente reconhecer-se como filho, portanto, como objeto do desejo (amor) daqueles que são seus pais. Com o ato violento, temos uma situação inversa na qual é sinalizada a falência desse reconhecimento, sendo a criança ou o adolescente levado a se perceber como um objeto 57


A DOR DA VIOLÊNCIA

não desejado e, como tal, violentado física e/ou psiquicamente. Nessa situação de desconhecimento, o que emerge é a dor que, antes de tudo, é psíquica. É importante sublinhar que nem todo ato violento é necessariamente desestruturante. Não há que se imaginar a relação da criança e do adolescente com os pais como uma relação apenas de amor depurada de qualquer expressão de ódio e destruição. Como bem mostra Freud (1974) em suas considerações sobre a pulsão de morte, essas manifestações desejantes são partes da subjetividade, sendo, portanto, humano, demasiadamente humano, que tanto a criança e o adolescente as apresentem em relação aos pais, como estes últimos em relação àqueles. O caráter traumático e a dor concernente estão diretamente relacionados à percepção de que o desejo de morte prepondera ou é absoluto. Neste sentido, alguns aspectos como a freqüência e a intensidade da violência podem, sem dúvida alguma, contribuir para a consolidação desta percepção. Nem todo ato de abandono, mutilação ou humilhação é, necessariamente, traumático e desestruturante, ainda que seja mais ou menos doloroso. Essas considerações sobre a dinâmica da violência pretenderam alertar sobre a necessidade de se observar, prioritariamente, a escuta da subjetividade da criança e do adolescente violentados. Uma vez ocorrida a violência, se olharmos para o sujeito violentado, deveremos observar mais uma questão de subjetividade, de uma dor avassaladora, do que de um fenômeno com implicações culturais, sociais e de acionamento do sistema legal em sua função punitiva. Essas últimas são de extrema importância, principalmente quando se trata de uma ação preventiva para evitar o surgimento de novos casos ou mesmo de interromper o ciclo da violência em relação a determinado sujeito, contudo não são as mais importantes quando se trata de cuidar do sujeito já violentado. Neste o que conta, principalmente, é o trauma e a dor que o invadem, desorganizando seu psiquismo. Conhecer a implicação dinâmica da dor, gerada pela violência, é condição primeira para explicá-la e, conseqüentemente, agir clinicamente no sujeito, restituindo-lhe a integridade psíquica. Foi esse o aspecto que se pretendeu discutir sem a pretensão de uma formulação excludente ou última, mas, apenas, de contribuir para a definição de parâmetros que 58


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

norteiem a relação intersubjetiva entre a criança/adolescente violentado e o cuidador imediato (enfermeiros, médicos, assistentes sociais, advogados etc.) ou de médio e longo prazos (pedagogos, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas). É preciso que os cuidadores observem, cada um no âmbito de suas atribuições, que, prioritariamente, a violência, para o sujeito violentado, além de um fenômeno sociocultural ou legal, é um trauma doloroso que comove e irrompe a estruturação psíquica do seu eu, do seu ser, da sua vida.

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A DOR DA VIOLÊNCIA

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NEGLIGÊNCIA CONTRA A CRIANÇA: UM OLHAR DO PROFISSIONAL DE SAÚDE Maria Aparecida Beserra Maria Suely Medeiros Corrêa Karine Nascimento Guimarães



VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

INTRODUÇÃO O fenômeno da negligência e do abuso da criança e do adolescente é uma realidade que se observa em diversas culturas desde os tempos mais remotos. A preocupação com a proteção da criança, segundo KRINSKY et al (1985), data do século XIX, quando a criança passa a ser vista como um ser humano autônomo. As crianças, seres diversos dos adultos, precisariam de cuidados e de proteção para que pudessem se desenvolver plenamente. A negligência é a negação desses cuidados: a falta de atenção, de interesse e de esquecimento. A negligência ocorre devido à dificuldade na interação entre os membros da família, o ambiente físico, o simbólico e a sociedade. Envolve atos de omissão, nos quais os adultos responsáveis não provêm adequadamente os nutrientes para o corpo nem suporte para o psiquismo, não oferecem supervisão e proteção adequadas e estão física e emocionalmente indisponíveis para a criança (FARINATTI, 1993). Segundo Azevedo & Guerra, tais falhas só podem ser consideradas abusivas quando não são devidas a carências de recursos socioeconômicos, porém, enfatizam as autoras: Se todo o dinheiro conseguido e que seria, por exemplo, para a atenção da prole é desviado para o consumo de bebidas alcoólicas, então poderia configurar um cuidado negligente. (1998)

Pensa-se na criança como um ser inserido no seu meio familiar do qual derivam, de forma natural e espontânea, todas as atenções, afetivas e matérias de que necessitam para o seu desenvolvimento normal. Todavia, há ocasiões em que este mesmo núcleo familiar se torna hostil para a criança, resultando, às vezes, no abandono, nos maus-tratos, no abuso sexual e na morte da vítima. A negligência é reconhecida mundialmente como um problema de saúde pública, devido a sua incidência ser bastante elevada, como nos mostram as estatísticas nacionais e internacionais. 63


NEGLIGÊNCIA CONTRA A CRIANÇA: UM OLHAR DO PROFISSIONAL DE SAÚDE ○

Nos Estados Unidos da América, Wolock & Horowitz apud Tomison (1995) constataram que nos casos de maus-tratos à criança, 65% estão relacionados à negligência, demonstrando que esse tipo de violência é mais prevalente do que outros. Segundo Tomison, na Austrália, aproximadamente, 15% de todos os casos de negligência envolviam alguma forma de abuso físico. Minty & Pattison (1994) afirmaram que assistentes sociais britânicos, freqüentemente, deixam de valorizar a problemática da negligência, apesar da evidência indicar que ela poderá levar sérios danos ao desenvolvimento psicológico, podendo aumentar o risco de a criança ser ferida ou morta. Eles notaram que havia uma proporção significativa das mortes de crianças terem sido atribuídas à negligência dos pais e a falha de profissionais em reconhecer adequadamente o risco para a criança pelos casos mais severos da negligência. O agressor principal era a mãe com uma incidência de 77% dos casos. No Brasil, Vanrell (s.d), analisando os casos de violência contra a criança em São José do Rio Preto (SP), verificou que a negligência aparecia em segundo lugar entre os tipos de agressão, apontando a desorganização familiar como um dos principais fatores que leva os pais a praticarem esse tipo de violência. Em outro estudo, Garbin & Ferriani (1998), caracterizando a criança negligenciada e seus agressores na cidade de Ribeirão Preto (SP), constataram que a maioria das vítimas é do sexo masculino, e que o principal agressor era a mãe, sendo que a maioria delas trabalhava fora de casa. O período de ausência da genitora no lar poderá representar a perda de oportunidade de estabelecer uma relação de afetividade, proteção e confiança com a criança, o que desfavorece, desta maneira, o vínculo mãe-filho. Para Barudy apud Morais (1999), os pais negligentes são adultos que não se ocupam com seus filhos, apresentando deficiências importantes em suas funções parentais que podem ser resultado de três dinâmicas que se entrelaçam: a biológica, a cultural e a contextual. Segundo esta autora, a deficiência biológica trata-se de uma perturbação no “attachement” (apego, união, vínculo) biológico entre o adulto e a criança, particularmente entre a mãe e o filho. No segundo caso, a cultural, o problema situa-se na transmissão transgeracional dos 64


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comportamentos e modos adequados de cuidar de seus filhos. O terceiro tipo de negligência, a contextual, trata da ausência ou insuficiência de recursos do meio onde está inserida a família. Geralmente este tipo de negligência é provocado pela pobreza e pela exclusão social. A identificação da negligência no dia-a-dia do trabalho do profissional de saúde é complexa, devido às dificuldades socioeconômicas da população, o que leva ao questionamento da existência de intencionalidade. No entanto, independente da culpabilidade do responsável pelos cuidados da vítima, é necessária uma atitude de proteção em relação a esta. Percebe-se que na prática, a identificação e a suspeita de violência contra a criança surgem durante o procedimento da anamnese e do exame físico da criança. Na anamnese, os profissionais têm a oportunidade de detectar casos de violência em que não há evidências físicas. A entrevista é de fundamental importância para se estabelecer uma relação de confiança entre o profissional e os pais ou responsáveis pela criança. Os questionamentos devem ser isentos de qualquer conotação de acusação ou de censura, porém se deve esclarecer a suspeita ou confirmação de maus-tratos. Segundo o Guia de Atuação Frente aos Maus-tratos na Infância e na Adolescência da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, a negligência é um dos tipos de maus-tratos mais freqüentes, aparecendo, muitas vezes, associada a outras formas. Refere que são necessários dois critérios para caracterizar a negligência: a cronicidade e a omissão. Mesmo em condições de pobreza, a família possui um estoque de responsabilidades para prover os cuidados de que a criança necessita (SOCIEDADE DE PEDIATRIA, s.d). Azevedo & Guerra (1989) descrevem a negligência contra a criança através de algumas modalidades: 1) Médica (incluindo a dentária) - as necessidades de saúde de uma criança não estão sendo preenchidas; 2) Educacional - os pais não providenciam o substrato necessário para a freqüência à escola; 3) Higiênica - quando a criança vivencia precárias condições de higiene; 4) De supervisão - a criança é deixada sozinha, sujeita a riscos; 5) Física - não há roupa adequada ao uso, não recebe alimentação suficiente. 65


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A negligência física, conforme as autoras, pode ser classificada: a) Severa - nos lares das crianças, submetidas a essas práticas, os alimentos nunca são providenciados, não há roupas limpas, o lixo se espalha no chão, há fezes e urina pela casa; não existe rotina para as crianças; são deixadas sós, por muitos dias, podendo vir a falecer de inanição, de acidentes. Nesses lares, pode haver uma presença relevante do uso de álcool, de drogas pesadas, de quadros psiquiátricos complicados e de retardos mentais; b) Moderada - nos lares de crianças, submetidas a essas práticas, existem alimentos, estão cozidos, mas com balanceamento errado; há sujeira nas casas, mas sem as características do tipo anterior; há algumas roupas limpas; as crianças são deixadas sós, por algumas horas; os pais ignoram, por exemplo, um resfriado crônico, mas levam ao hospital para emergências. Para abordar a família negligente, os profissionais de saúde devem adotar uma abordagem que alguns autores qualificam como empática, o que não implica em endossar ou diminuir a responsabilidade do agressor, mas, sim, em entender o ato negligente como resultado de elementos associados à dinâmica da família. Ao conduzir o processo desse modo, a equipe evita atribuir a um único membro da família a responsabilidade da agressão. A violência doméstica (intrafamiliar) envolve uma dinâmica complexa, resulta de valores sociais mais amplos que integram a história de vida do sujeito e, às vezes, eclodem na forma de uma reação violenta ou de omissão. A negligência é vista como um tipo de violência em que o agressor é passivo, e a agressão acontece justamente pela falta de ação; portanto, é, muitas vezes, tida como menos importante. O adulto negligente não pode ser “culpado” pelo que não fez, entretanto, a falta de ação em prover as necessidades da criança, o classifica como “culpado”. Não devemos esquecer que a negligência é crime, já que suas conseqüências 66


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podem provocar a morte ou deixar seqüelas na saúde da criança para o resto da vida. Neste sentido a violência doméstica, caracterizada pela negligência, é uma violação aos direitos humanos fundamentais da criança, tais como: direito à vida, à liberdade, à segurança e ao lazer. Faz-se necessário que medidas sejam tomadas, principalmente por parte dos profissionais de saúde, no que diz respeito a diagnosticar e a denunciar, para possibilitar maior visibilidade desse tipo de violência. Daí, avaliar a dimensão de sua magnitude e contribuir para a redução do sofrimento de crianças e de adolescentes que a ela estão submetidos, garantindo, em todos os aspectos, que seus direitos humanos sejam preservados. Não devemos esquecer que a atuação do profissional de saúde é de fundamental importância no sentido de prevenir a ocorrência da negligência contra a criança, quando, no seu dia-a-dia de trabalho, ele tem a oportunidade de identificar fatores de risco para a família cometer esse tipo de violência. Ao mesmo tempo, buscamos no Estatuto da Criança e do Adolescente, Artigo 13, alertar o profissional de saúde sobre “a sua obrigação de denunciar os casos de maus-tratos, e no Artigo 245 determina a punição destes profissionais com multa de 3 a 20 salários de referência, e o dobro, caso aconteça reincidência do não-cumprimento da Lei “ (Brasil, 1991). Para Paiva (s.d), o descrédito nas possíveis ações do Estado para solucionar o problema e a banalização dos efeitos provocados nas vítimas decorrentes da violência sofrida, interfere no enfrentamento dos profissionais face à violência contra a criança. Deslandes (1994) refere que apesar da violência contra criança e adolescente não ser um problema novo, enfrentado pelos profissionais de saúde, no seu dia-a-dia de trabalho, pode-se perceber que grande parte dos casos de maus-tratos que chegam a esses serviços não é identificada. Os motivos para tal situação são vários e se interligam. O primeiro diz respeito ao nível insuficiente de informação que os profissionais de saúde dispõem sobre o tema. Essas informações, geralmente, provêm dos meios de comunicação de massa ou de eventuais casos identificados na prática clínica. O segundo refere-se ao desconhecimento da lei por parte desses profissionais. Para a autora acima, outro aspecto que também dificulta a 67


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identificação dos casos de violência é o processo de atendimento, geralmente condicionado pelas limitações estruturais do serviço, como uma prática unicamente socorrista. Dificilmente as verdadeiras causas dos agravos são investigadas, o que contribui para seu ocultamento e repetição. Talvez isso seja justificado por questões éticas de não querer se envolver com problemas alheios, ou seja, problemas do âmbito familiar. Nesse caso a família é entendida como uma propriedade privada, caracterizada pelo sigilo dos acontecimentos internos, na qual a violência vem a público eventualmente, necessitando, muitas vezes, da interferência de terceiros para que seja divulgada e comunicada. Em virtude das conseqüências orgânicas, físicas e psíquicas para a saúde das crianças, procuramos com este trabalho buscar, através das representações sociais do profissional de saúde acerca da negligência, respostas que possibilitem melhor compreensão do significado desse fenômeno, a fim de que se possa vislumbrar a possibilidade de prevenção, com o intuito de melhorar a qualidade de vida da população infantil. É um fenômeno extremamente complexo que perpassa por todas as classes sociais, produzindo sérios agravos à saúde física e mental das crianças, chegando, em alguns casos, à morte das vítimas. A questão norteadora da pesquisa constituiu-se em identificar qual a representação social do profissional de saúde acerca da negligência contra criança. Os pressupostos que orientaram a análise neste estudo estão calcados na Teoria das Representações Sociais, proposta por Moscovici (1978), em “A Representação Social da Psicanálise”. Sendo uma das funções da representação social a de orientar, ou seja, guiar os comportamentos e as práticas, apreender as representações da negligência dos profissionais de saúde serve para interpretar a realidade que rege as relações destes com o seu meio físico. O ato de representar é dinâmico, envolvendo os sujeitos atores e suas construções mentais em torno de um objeto sobre o qual se constroem as representações e o meio (social, econômico, político, cultural), no qual se dá a relação entre ambos, sendo também fonte de representação e de recriação desta. Portanto, a importância deste estudo se traduz na busca da representação do profissional de saúde, acerca da negligência contra criança, por acreditar que a relação que se estabelece entre o profissional 68


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de saúde e a vítima poderá determinar uma linha de conduta, orientada pelas representações sociais.

METODOLOGIA Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa. O campo de realização da pesquisa foram os setores de Puericultura, Alojamento Conjunto e Berçário do Centro de Saúde Amaury de Medeiros, sendo este referência para o atendimento à criança em todo o seu processo de desenvolvimento. Como método de coleta de dados, foi utilizado um formulário semi-estruturado através de uma entrevista com os profissionais de saúde (Enfermeiros, Assistentes Sociais, Psicólogos e Médicos Pediatras) gravada com autorização prévia dos entrevistados. Os dados foram categorizados e analisados através da análise temática, fundamentados na Teoria das Representações Sociais.Considerando a fala no cotidiano do ser humano como um modo mais puro e sensível de relação social, Bakhtin (1986) apud Minayo (1998) refere ser a palavra a arena onde se confrontam interesses contraditórios, vinculados e sofrendo os efeitos das lutas de classe, servindo, ao mesmo tempo, a compreensão das relações sociais que expressam.

ANÁLISE DOS DADOS DA FAMÍLIA À SOCIEDADE Em geral, a família é vista pelos profissionais de saúde de maneira positiva, quando esta segue o padrão do modelo tradicional que não foge de suas obrigações, como estrutura responsável pela formação do indivíduo na sociedade, portanto como célula primária de socialização da criança. Isto fica evidente nos discursos dos profissionais de saúde entrevistados, como se segue: A família é o conjunto, é a base de tudo. Sem a família, você não tem estrutura (...) É o começo do desenvolvimento do caminhar de qualquer ser humano. ( Ent. 02) 69


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A família é a base da sociedade, sendo o primeiro grupo social. É nela (família) que se aprende conceitos, valores para uma melhor formação do homem. (Ent. 04) (família) É necessária. É importante para que você possa se direcionar, para você ter ajuda, ter apoio. Família é apoio, é tudo, é a base do ser. (Ent. 05)

Segundo Mielnik (1993), a família dá à criança tradições, costumes, linguagem, religião, noções de moral e caráter, ética, atitudes, preconceitos, crenças e valores sociais. Forma-lhe a consciência e a existência. Portanto, uma criança, que desde o seu nascimento, vivencia experiências favoráveis, é tratada com amor, carinho, respeitada pela sua personalidade em desenvolvimento, será uma criança física e mentalmente sadia. Saffioti acrescenta que essa instituição é também responsável pela reprodução biológica e social dos seus membros. Não basta que os casais tenham seus filhos. É preciso criá-los, ensinandoos a desempenharem os papéis sociais, específicos de cada idade, de cada gênero (masculino e feminino), de cada raça/etnia e de cada classe social. (SAFFIOTI,1997. p44)

Percebe-se, também, no imaginário dos profissionais de saúde, a família como um ambiente de ordem, harmonia e disciplina, na qual os pais têm a função de educador, orientador e condutor. Os pais são guardiões dos filhos, são responsáveis pela orientação, educação e encaminhamento desses filhos na vida. (Ent. 08) Os pais têm uma responsabilidade imensa, em todos os aspectos, ele tem que ser um grande observador para identificar muitos pontos na criança...tem que ser um protetor, protegê-la tanto em termos biológicos como psíquicos, dar carinho, afeto, abraçar e quebrar arestas. (Ent. 06)

Os dados referentes ao relacionamento entre pais e filhos revelam alguns pontos a serem destacados no que se refere à afetividade dos pais e ao estabelecimento de relações abertas como forma de respeito mútuo. 70


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Acho que (a relação entre pai e filho) deve ser de amizade, de confiança, não de autoridade. Deve ser de troca. (Ent. 07) (Deve ser um) Relacionamento aberto. Tem que conversar. Com um bom diálogo, você consegue tudo (...). Agora, tem momentos, é claro, que você vai ter que usar sua autoridade, não deixar a criança fazer de tudo. (Ent. 01)

Diante desses discursos, fica evidente que a família na visão desses profissionais, comporta, além do relacionamento democrático, o relacionamento de poder, demonstrando, dessa forma, que o adulto em posição superior, desempenha o papel tanto de protetor afetuoso quanto de chefe autoritário. Na lógica dominante da sociedade, a família é um espaço na qual seus membros se unem por amor, respeito e solidariedade. De acordo com Guerra (1985, p. 106) “família e sociedade estão unidas (...) na luta pela preservação do mito que ela representa, um lugar de proteção para a criança, mito este que não só a família, como a sociedade tem se esforçado em perpetuar”.

A INFÂNCIA NA VISÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE Entre os vários conceitos de infância, referidos pelos profissionais de saúde, encontra-se como a fase primária do desenvolvimento do ser humano um período de aquisição de conhecimentos responsável pela formação do indivíduo. A infância, eu vejo assim, como a formação, ou seja, primeiro é a hora da descoberta. Dali é que vai a criança aprender valores, ter conhecimento para uma melhor formação quando homem. (Ent. 04) É um período onde a criança está abrindo os olhos para o mundo, tá começando a perceber o mundo, ter contato com esse mundo. ...A infância é a base de tudo, por isso deve ter um acompanhamento, uma orientação adequada. (Ent. 08) 71


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Nesta última fala, a entrevistada traz a infância como um período de fantasia que deve ser vivido plenamente, ao mesmo tempo em que vislumbra uma infância diferente daquela esperada para toda criança.

NEGLIGÊNCIA, UM DIFÍCIL CONCEITO É notório que o tema da negligência contra criança é difícil de ser abordado pelas formas convencionais de conhecimento, em razão da carga de ideologia, de preconceitos e de senso comum que, invariavelmente, o acompanham, como também, por ser um fenômeno multifacetado. Os profissionais tentam construir conceitos, apoiando-se nos seus conhecimentos do cotidiano de trabalho. Observam-se, nos discursos dos entrevistados, que esses conceitos são polissêmicos e, muitas vezes, controversos. (Negligência) É uma expressão bastante forte. Negligência, onde? E até quando os pais são negligentes com seus filhos? É difícil. Negligência é o descuido. Todo ser humano tem um pouco de negligência. (...) Na vida em que estamos vivendo, a gente está tão bitolada ao social, ao econômico, que a gente deixa de lado o chamado amor familiar. (Ent. 02) É muito difícil de julgar. A mãe chegar aqui e a gente dizer: aquela mãe é péssima, ela nem pega no seu bebê. Como é que ela pode dar amor se ela nunca teve? Ela saber cuidar, se ela nunca foi cuidada? Ela sai para fumar, ir ao banheiro, não pede ajuda de ninguém, não vê as necessidades do bebê... (Ent. 05) (Negligência) É toda essa falta de cuidado, de atenção. Você pode ser negligente quando você não cuida da criança adequadamente, quando não tem tempo para perceber o que está acontecendo com ela, em relação ao desenvolvimento psicológico, social e físico. Porque não tem tempo, deixa pra lá, a criança come qualquer coisa, adoece com freqüência. (Ent. 07)

Um dos problemas principais que o tema da negligência apresenta é a interpretação de sua pluricausalidade, na qual os profissionais tentam explicações para sua ocorrência, muitas vezes, relacionando-a a problemas 72


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de ordem psicológica, biológica e social dos pais. Barudy apud Morais (1999) refere que os pais negligentes são adultos que não se ocupam de seus filhos e que apresentam deficiências importantes em suas funções parentais.

IDENTIFICANDO A NEGLIGÊNCIA Todos os profissionais entrevistados relataram que já identificaram a negligência contra criança no seu ambiente de trabalho. Porém, revelam dificuldades em determinar o que é uma negligência. Vale ressaltar que a questão da violência contra a criança demanda uma série de serviços, e não, apenas aqueles específicos de atendimento às vítimas. Entretanto a escassez e as deficiências dos recursos, aliadas, muitas vezes, ao despreparo dos profissionais, podem levar ao não-vislumbramento dos casos. Na maternidade, a gente vê o abandono de bebês no berçário, a rejeição do RN (recém-nascido) no alojamento conjunto. (Ent. 04). Eu não sei até que ponto eu posso considerar negligência ou até mesmo falta de orientação. Eu já identifiquei assim: mães que não ligam para os seus bebês, que não os querem. São mães com muitos filhos que moram na rua. (Ent. 05) A criança chegou com o abdome superdistendido. O que foi dado para ela? Foi dado farinha. Então, foi dado por quê? Pela cultura da mãe ou por que ela não tinha outra coisa para dar? Ou, se ela tinha leite materno, por que não deu? (Ent. 05)

A mãe aparece sempre nos discursos das entrevistadas como o principal agressor. Analisando este fato à luz das relações de gênero1 , percebe-se que a divisão do trabalho doméstico, dominante em sociedades patriarcais como a nossa, os cuidados com os filhos sempre foram considerados uma tarefa materna. De acordo com Azevedo & Guerra 1

O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais e culturais fundadas sobre as diferencias

percebidas entre os sexos e o gênero, é o primeiro modo de dar significado às relações de poder. (SCOTT, 1990) 2

Esta teoria postula que a mãe é a única capaz de ocupar-se do bebê, porque está biologicamente

determinada para isso...legitima-se, assim, a exclusão do pai e se reforça a simbiose mãe-filho... (BADINTEr apud AZEVEDO & GUERRA, 1998) 73


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(1998), esta tarefa guarda relação com a teoria do instinto materno 2 que constitui um dos mitos da divisão sexual de tarefas. Estas autoras destacam a importância de desmistificar que a mãe é o único membro familiar responsável pelos cuidados com seus filhos, que ela não é um ser perfeito e que a qualidade de ser “boa mãe” está relacionada com a história de vida de cada mulher, do momento da gravidez, do grau de desejo de ter o filho, das relações que mantém com o pai, assim, como também, de fatores sociais, culturais, profissionais etc. Observa-se, nos discursos dos entrevistados, que a negligência aparece como resultado da história de vida dos pais, levando-os ao nãocumprimento de suas funções. Para Barudy apud Morais (1999), tais falhas podem estar relacionadas à deficiência biológica, que se trata de uma perturbação no “attachement” (apego, união, vínculo) biológico entre os pais e a criança; às deficiências culturais que se dão através de transmissão transgeracional do comportamento e modo de cuidar da criança e à deficiência contextual, causada pela falta de recursos econômicos dos pais, ou seja, deficiência de meios para sobrevivência digna do ser humano, conforme visto anteriormente.

SENTIMENTOS DOS PROFISSIONAIS DIANTE DA CRIANÇA NEGLIGENCIADA Dentre vários sentimentos relatados pelos profissionais de saúde, a raiva se sobressai como sentimento de revolta contra aqueles que praticam a negligência com a criança, chegando, muitas vezes, a verbalizar o desejo de agredir o responsável. Num estudo realizado por Brêtas et al (1994) com enfermeiros, o autor descreve o que ele chama de paradoxo emocional, no qual ele relata que aprendemos que as crianças e suas famílias constituem unidades psicológicas e sociais. Quando ocorre o rompimento dessas unidades por um caso de negligência, costumeiramente, resulta numa resposta de justa raiva, expressada pelo profissional. Os autores ainda acrescentam que esse sentimento exacerba-se e torna-se uma difícil tarefa controlar-se diante dos adultos que maltratam as crianças, principalmente tratando-se de seus próprios pais. 74


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Na hora, você sente um pouco de revolta contra os pais. (Ent. 10) O primeiro sentimento da gente é raiva daquele ser que está com aquela criança. Você fica com raiva da pessoa, você quer julgar e você, realmente tem aquela vontade, assim, de até agredir também. Você vai dizer: Como é que você foi tão irresponsável desta maneira? (Ent. 03)

Mesmo em meio a esse turbilhão de emoções, percebe-se que os entrevistados se dão conta de que seus sentimentos necessitam ser controlados, para que se possa desenvolver o papel que lhes cabe num caso de negligência, como assistir à vítima e fazer os devidos encaminhamentos necessários. Os depoimentos acima, ratificam, respectivamente, esta necessidade: Mas depois você vai pensando, aparecem outros motivos na história e você começa, não é entender a negligência, mas você descobre o motivo que levou estes pais a negligenciarem a criança. ( Ent. 08) A gente tem que manter o lado profissional, se controlar, procurar abordar por que aquela mãe deixou aquilo acontecer e procurar aconselhar, ajudar, dar uma orientação naquele momento. (Ent. 06)

Os discursos acima também revelam que é necessário, como afirma Brêtas et al (1994), ter conhecimento do problema, que é maior que as idéias dramáticas e externas, para que se possam cumprir as responsabilidades profissionais, legais e morais ao comunicar este problema. Agir dessa maneira não só implica em identificar a negligência, mas desvelar os fatores culturais, psicossociais e econômicos que envolvem esta problemática. A impotência é outro sentimento que se mostrou como algo desmotivador para atuação do profissional. Um sentimento de impotência muito grande. A tristeza, porque você está trabalhando num serviço, onde as condições são mínimas. (Ent. 12) Um sentimento de falta de capacidade, da gente não poder procurar fazer o melhor (...). Então, muitas vezes, a gente sente-se até desiludido com o trabalho. (Ent. 08) 75


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Acredita-se que a pluricausalidade desse fenômeno aliada à falta de conhecimento gera este sentimento que causa angústia. Segundo Buzzi (1998), quando estamos angustiados, nos damos conta do que verdadeiramente somos. Esta situação nos ensina e educa, porque percebemos que o ser humano não é um dado firme e estável, mas, sim, um ser constituído, também, de fragilidades, medos e incertezas. Esse pensamento facilita a compreensão de alguns casos de negligência, proporcionando, assim, não uma conduta condenadora com o agressor, mas oferece uma abertura para se trabalhar de forma real e humana.

ATUANDO NA NEGLIGÊNCIA CONTRA A CRIANÇA Os profissionais, ao interagirem com situações de negligência e ao organizarem seus ambientes de trabalho, o fazem de acordo com as representações e expectativas que têm sobre as mesmas. Essas representações são adquiridas em suas experiências de vida e em um meio sociohistórico específico, culturalmente estruturado e organizado, exercendo forte poder significativo sobre os membros ali inseridos. Vejamos os depoimentos. É na presença dos pais que eu procuro conversar, aconselhar e mostrar, ver dentro do que eles podem fazer, em termos de alimentos, de higiene e de saúde para os filhos, na maneira de se comportar, passando educação para os filhos. (Ent. 06) Os casos maiores, como são os de abandono no berçário, a gente entra com a questão judicial, que é acionar o Conselho Tutelar. E no caso de rejeição, o que a gente tem que fazer é conversar com esta mãe. (Ent. 04)

Em relação ao abandono da criança no berçário referido pelos profissionais, vale salientar que este tipo de negligência é classificada como a forma mais grave, tido como negligência precoce, no qual ocorre desordem na ligação afetiva da mãe em relação ao bebê. Trata-se de uma situação onde a criança está privada do relacionamento com a mãe, tão necessário para o seu desenvolvimento afetivo e neurológico (BALLONE, s.d). 76


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Procurei orientar a família, tentar chamar a responsabilidade, mas eu digo que não é fácil, mesmo porque, em alguns casos, a criança é o produto de uma relação totalmente desajustada. (Ent. 08)

Nessa última fala, percebe-se que o profissional enfrenta dificuldades em lidar com a questão da negligência que, muitas vezes, foge de seu controle, já que esta negligência, em alguns casos, é fruto de uma sociedade desorganizada, na qual o indivíduo é oprimido e excluído pelas classes dominantes, marcadas pela desigualdade social, refletindo nas relações interpessoais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a elaboração dessa pesquisa, nos deparamos com algumas dificuldades. Em primeiro lugar, em relação à escassez de pesquisas sobre esta temática. Em segundo lugar, em abordar um tema em que os profissionais não estavam habituados a refletirem sobre ele no seu ambiente de trabalho, causando, de certa forma, dificuldades em se expressarem em relação ao problema. Ao mesmo tempo, constatou-se que o conhecimento apropriado pelos profissionais de saúde sobre a negligência, ficava, de certa forma, subordinado a sua verificação na prática cotidiana de trabalho, já que não tinham tido nenhum preparo, porém, todos referiram já terem identificado casos de negligência no seu ambiente de labor. Observou-se também que os pesquisados não estão alheios à situação da negligência contra a criança, uma vez que eles sentem, reagem, mas não exteriorizam, controlam-se, a fim de que os seus sentimentos não atrapalhem nas suas condutas. Ficou evidente que o saber científico sobre a negligência contra a criança é constituído de um corpo de conhecimento que faz parte do senso comum, não havendo, portanto, oposição entre os dois, mas ao contrário, há uma predisposição à formação de aliança de saberes que guiam os comportamentos e as práticas dos indivíduos. Acredita-se que este trabalho trouxe, de certa forma, a reflexão sobre a negligência contra a criança, possibilitando ao profissional de saúde 77


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repensar as suas práticas diante desse fenômeno para que haja uma maior visibilidade, contribuindo de alguma maneira para a melhoria da qualidade de vida da população infantil. Diante do exposto, percebe-se a necessidade de elaborar proposta que venha facilitar o trabalho do profissional de saúde no enfrentamento da violência contra a criança, tais como: 1 2

3

- Curso de capacitação para atuação do profissional frente à violência contra a criança; - Palestras educativas para as mães, pais e/ou responsáveis pela criança nos setores de pré-natal, alojamento conjunto, puericultura e pediatria; - Protocolo de atendimento para as crianças vítimas de violência.

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NEGLIGÊNCIA CONTRA A CRIANÇA: UM OLHAR DO PROFISSIONAL DE SAÚDE ○

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FERIDAS QUE Nテグ CICATRIZAM Inalva Regina da Silva Renata Nテウbrega (colaboraテァテ」o)



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Ao ser convidada a participar da elaboração deste livro, em decorrência da vivência com crianças e adolescentes, vítimas de violência, para dar um depoimento sobre violência física, fui tomada

por um

sentimento de ousadia, de tentar romper o paradigma da aceitação e da banalização da violência por nossa sociedade, sem a preocupação de investigar a sua origem. Como policial, tenho por missão investigar o crime ocorrido; como cidadã, tenho a obrigação de me policiar, para não permitir que crimes ocorram, acobertados por preconceitos de uma sociedade da qual faço parte e que, lamentavelmente, ainda entende que garantir direitos de crianças e adolescentes, principalmente daqueles que entram em conflito com a lei, é se tornar cúmplice da criminalidade. A violência é uma doença contagiosa e como tal, provoca feridas que não cicatrizam nem no corpo nem na mente daqueles que foram contaminados, tanto como oprimido quanto como opressor.

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FERIDAS QUE NÃO CICATRIZAM ○

A VIOLÊNCIA HOJE E SEMPRE Na atualidade, abordar, sob qualquer aspecto, o tema violência, implica trazer, às claras, uma realidade de banalização que acontece nas suas mais diversas variáveis. A violência, no mundo de hoje, parece tão entranhada em nosso dia-a -dia que pensar e agir em função dela deixou de ser um ato circunstancial, para se transformar numa forma do modo de ver e de viver o mundo do homem. (ODALIA, 1986)

Desde o princípio de sua existência, o homem, dentre os seres vivos, é o ator principal na prática de violência. Não se pode pensar que ela é característica específica de nossa época, levando-se em conta que o primeiro registro oficial de homicídio tem assentamento na Bíblia, em Gênesis (cap. IV), relatando a conhecida história de Caim e Abel. O fenômeno da violência teve o seu alicerce na forma de sobrevivência do homem primitivo, para superar a hostilidade da natureza no início dos tempos. Entretanto, hoje, ele assume uma nova face: a de continuar existindo como conseqüência da organização humana no espaço. Tanto no passado quanto no presente, retrata o ser humano diante das desigualdades na relação entre superior e inferior, utilizando o poder com fins de dominação, exploração, opressão e morte. A sociedade em que vivemos cultiva a ficção da cordialidade, para mascarar a prática histórica da violência em suas várias formas, dentre elas destaca-se aquela que covardemente atinge seres humanos completamente indefesos, por se encontrarem no processo biológico de desenvolvimento.

CRIANÇA E ADOLESCENTE COMO VÍTIMA DE VIOLÊNCIA FÍSICA Diferente dos animais irracionais, o homem ao nascer sofre a incapacidade de sobreviver por seus próprios meios, necessitando 86


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estabelecer vínculos sociais com as figuras de apego capazes de garantir a sua sobrevivência. O grupo familiar é o primeiro contexto que pode satisfazer às suas necessidades físicas (alimentação, abrigo e proteção) e socioemocionais (aceitação, afeto, atenção etc.), bem como é o primeiro causador da sua vitimização. Aquele que retém a vara, quer mal ao seu filho, mas o que o ama, cedo o disciplina. (Pv. 13:24)

Através deste provérbio bíblico, é possível, claramente, entender-se que, há séculos, a humanidade se escuda em justificativas de caráter religioso para praticar violência contra criança e adolescente. Nossa cultura e nossas religiões apoiam, de modo quase unânime, a onipotência da autoridade parental. A agressão física ou punição corporal se configura na primeira representação simbólica que habita o imaginário coletivo, partindo-se do pressuposto de que esta medida é eficaz para o controle ou modificação de um comportamento. As conseqüências desse tipo de violência se apresentam desde simples marcas no corpo até a presença de lesões tóraco-abdominais, auditivas e oculares; traumatismos cranianos; fratura dos membros superiores e inferiores, queimaduras e ferimentos diversos que podem causar invalidez temporária ou permanente, quando não, a morte. A mortalidade por violência se constitui, atualmente, na segunda causa morte para crianças e jovens na faixa etária de 5 a 19 anos e é a segunda causa de morte na faixa etária entre 1 a 4 anos de idade, perdendo, por pouco, para as doenças do aparelho respiratório. Porém, nem só de violência física padece uma criança. Negligências, abusos e explorações de todas as espécies são formas camufladas ou declaradas da negação do seu direito de ser tratada como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, mas estas outras faces da violência não são, no momento, objeto central de discussão. Fazendo-se uma análise do “locus” do problema da violência física e das demais formas de agressões, obviamente não é apenas no núcleo familiar que essas vítimas são alvos fáceis de serem atingidos. Nos demais 87


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grupos sociais, a violência as persegue como a qualquer outro cidadão. A criança e, principalmente, o adolescente são atingidos tanto pela discriminação quanto pela violência urbana, que se vinculam numa relação de causa e efeito, interferindo diretamente na ocorrência da violência física. A partir dessas idéias, a apreensão do conceito de violência física se torna bem mais próxima de nosso entendimento lógico. Deixando de lado as barreiras culturais que, porventura, permeiem nosso ser, a violência física contra criança e adolescente deixa de ser apenas aquela que se encontra estatisticamente registrada nas ocorrências policiais ou nas entradas dos hospitais, onde se constata um número assustador de graves lesões contra aqueles seres. O conceito é ampliado e passa a abranger, principalmente, as agressões que essa mesma estatística não aponta, agressões estas ditas “menos severas” que passaram invisíveis aos olhos da comunidade e não foram denunciadas: A violência física é caracterizada por qualquer ação única ou repetida, não acidental (ou intencional), perpetrada por um agente agressor adulto ou mais velho, que provoque dano físico à criança ou ao adolescente, este dano causado pelo ato abusivo pode variar de lesão leve a conseqüências extremas como a morte. (DESLANDES, 1994)

É bem verdade que definir violência contra criança e adolescente é também variar junto às mudanças culturais e históricas em todo o mundo, entretanto, é meta mundial ampliar esse conceito, de modo mais universal possível e, junto a ele, buscar o aumento da conscientização de que efeitos podem ser gerados sobre o desenvolvimento de uma criança ou de um adolescente em decorrência da violência sofrida e vivida. Na atualidade, essas formas de violências, assim apresentadas, merecem destaque e atenção de muitos dos segmentos sociais; contudo, essa temática ainda encontra resistência tanto na discussão aberta quanto na erradicação do problema. Tais dificuldades remontam a uma história de aceitação da prática de violência na sociedade; seja como método satisfatório de educação, seja como mecanismo presente no cotidiano de sanção utilizado junto às crianças e aos adolescentes por seus responsáveis: 88


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O estudante A.J.S., 13 anos, cresceu vendo sua mãe e seus irmãos serem espancados diariamente. No último sábado, ele tentou defender a irmã, M.M., 12, da fúria do pai, o agricultor José Antônio da Silva. No tumulto, teve parte do seu dedo médio esquerdo arrancado a pauladas. Também sofreu traumatismo encéfalo-craniano. O crime aconteceu no Sítio Balança, em Macaparana, Zona da Mata, e engrossa a lista da violência contra menores no Estado. (...) A mãe de A.J.S., Maria José Silva, contou que é casada há 16 anos, mas o excesso de bebida deixou o marido mais violento. No sábado, José Antônio bebeu o dia inteiro e chegou brigando com todos em casa. Meu marido tem os pés defeituosos e nunca fica descalço. Quando chegou, pediu para minha filha buscar os chinelos, mas ela não ouviu e, por isso, apanhou com várias chineladas no rosto, contou. (Jornal do Commercio, Cidades/Violência, 29/ 05/2001)

Durante muito tempo, a criança e o adolescente eram simplesmente objetos de realização das determinações paternas. Sem vontades próprias e sem necessidades claramente estabelecidas, a responsabilidade com criança e adolescente significava ter poder absoluto sobre seus caminhos até certa idade. Tudo isso, inclusive, com respaldo legal. Basta lembrarmos de visões arcaicas do instituto do pátrio poder e do texto infraconstitucional, que até 1988 estava em vigor no país, trazendo em seus dispositivos distinções entre filiação, classificando-a em legítima e ilegítima.

CRIANÇA E ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE DIREITOS Uma série de mudanças sociais trouxeram essas questões para o centro das atenções; mudanças estas que foram desde a mera alteração nos trajes e vestimentas infantis até a importância que assumiu a estrutura escolar em nossa sociedade. Todavia, essas questões ainda sofrem a interferência dessa herança cultural: A Violência Doméstica Contra a Criança e o Adolescente tem suas raízes na maneira como nossa sociedade percebe a criança e o período de infância, concepção essa que só pode ser compreendida e transformada dentro do seu contexto histórico. (...) Dentre as formas de manifestação do fenômeno em questão, culturalmente a Violência Física é adotada pela sociedade como método educativo e disciplinar. (SILVEIRA, 1999) 89


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A despeito dessa realidade cultural, ainda, ser uma constante em nosso dia-a-dia, o fato é que não se pode permitir pessoas fazendo uso do bordão do senso comum de que “violência gera violência”, sem se perceber que para a violência física contra a criança e o adolescente, a premissa também é verdadeira: É curioso ouvir-se, com freqüência, que violência gera violência, quando se trata de apreciar uma medida repressiva a ser ou já aplicada a agressores de adultos. Por que não se aplica o mesmo raciocínio quando se trata de agressão doméstica, no sentido de que pais que praticam violências contra os filhos estão criando filhos violentos quando adultos? (...) Laços de consangüinidade não asseguram o amor. (SAFFIOTI, 1985)

Nas atividades de conscientização desse fenômeno e no combate a ele, as características familiares são importantes para se constatar e se modificar essa prática, sendo necessário fazer perceber que a criança e o adolescente não podem ser mais vistos como meros objetos; não permitir que eles sirvam de válvula de escape dos problemas familiares que, porventura, existam e, sobremaneira, fazer seus responsáveis perceberem que eles não são de sua propriedade. É um trabalho a ser desenvolvido ao longo do tempo, para que as previsões legais de proteção a essa parcela de cidadãos, que alicerça o nosso futuro, possam ser eficazes. As próprias crianças e os adolescentes necessitam desse trabalho de conscientização de seus direitos, trabalho este que se encontra prejudicado pelo fosso enorme entre a realidade e o dispositivo constitucional que prevê ensino público e de qualidade para todos. Ainda assim, as tentativas existem, como é o caso do autor infanto-juvenil Luiz Antônio Aguiar: Em O goleiro e a fada de batom, de Luiz Antônio Aguiar (Atual Editora), Cristina e Maurício são vítimas de maus-tratos. O livro aborda, de modo ficcional, a violência familiar - que atinge um número assustador de crianças e adolescentes -, mas também dá informações sobre o que deve ser feito. Luiz não nega que o tema seja espinhoso, mas acha que a sociedade e a cultura são extremamente repressoras e domesticadoras com a criança e o jovem. A grande maioria ainda acredita que pancada ensina: então, a Febem 90


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deveria ser uma fábrica de gênios, Prêmio Nobel de produção em série, certo?’ (Jornal do Commercio, Família/Cultura, 02/09/2001)

OS INEVITÁVEIS REFLEXOS DE UMA INFÂNCIA MARCADA PELA VIOLÊNCIA Na humanidade, o único segmento portador do futuro é aquele representado por crianças e adolescentes. Essa afirmativa é de perto acompanhada pela realidade vivida por esse segmento. Uma criança que tem os seus direitos fundamentais violentados, certamente, no futuro, terá dificuldades, para se livrar dos ensinamentos que lhe foram impostos de forma brutal. Negando a sua culpa, acobertando-se em seus preconceitos e ignorando a dramática realidade da maioria das crianças e dos adolescentes no País, a nossa sociedade tende a imaginá-los como um grande problema sem solução. Independentemente da classe social em que viva, tudo começa quando as necessidades físicas e socioemocionais de uma criança e um adolescente são desrespeitadas. O primeiro reflexo geralmente atinge o grupo familiar em forma de rebeldia, desrespeitos e fugas. Quantas vezes já ouvimos pais dizendo que não conseguem mais controlar os seus filhos? O segundo reflexo atingirá, de alguma forma, a omissa sociedade que ajudou a violentar os seus demais direitos e os considera como potenciais agressores. Em alguns casos, o jovem, sobremaneira aquele cercado pelo estereótipo da classe e da cor, consegue expressar seu sentimento de revolta diante dessas violências, sem que, necessariamente, se envolva em atos infracionais. Não é exagerado afirmar que há mais adolescentes engajados em ações, para melhorar a sociedade, do que envolvidos em delitos. No entanto, são, muito pouco, valorizados e divulgados pelos seus feitos. Em Pernambuco, o movimento hip-hop é um exemplo bastante claro desse tipo de extravasamento da juventude. Em pesquisas feitas para o mestrado em Sociologia da UFPE, Sílvia G. Paes Barreto identificou essa realidade: 91


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Eles encontram no hip-hop um modo de ser diferente, ante a massificação dos produtos destinados ao consumo juvenil e ante a opressão relacionada ao estigma de classe e de cor, que os associa à violência e à marginalidade (....) por meio do hip-hop reformulam suas identidades, excluídas ou desvalorizadas(...), atribuindo a estas um valor positivo. (BARRETO, 2000)

Vários outros exemplos poderiam ser mencionados, como é o caso dos adolescentes do bairro de Jardim São Paulo, em Recife, que em busca de sensibilizar e mobilizar jovens para a questão do enfrentamento da violência contra criança e adolescente, formaram a Rede Infanto Juvenil de Combate à Violência Sexual e Doméstica. No entanto, uma outra boa parte de jovens não descobre meios alternativos e acaba sendo alvo fácil para a forma de violência física mais sórdida e intangível: a morte. Quando, em um crime de homicídio, a vítima ou o autor é um adolescente, com raras exceções, encontraremos dados biográficos diferenciados. Os históricos assemelham-se em vitimização e vitimação. Uma vida marcada pela violência, com total carência de apoio afetivo, espiritual e mesmo material de um ambiente familiar, propício ao seu desenvolvimento, somada, na maioria das vezes, à falta de habitação em condições dignas e da alimentação indispensável ao seu crescimento sadio, além da absoluta falta de perspectiva de um futuro decente, contribuem para um provável direcionamento ao mundo do crime. Mas a análise seria incompleta, se não percebêssemos o porquê desse envolvimento. A freqüência com que esses fatos ocorrem, de alguma forma, nos faz banalizar esse tipo de violência. Dr. Benilton Bezerra Júnior, Psicanalista e Professor do Instituto de Medicina Social da UERJ, assim se expressa: A terrível freqüência com que episódios como esse chegam até nós: adolescentes, matando e sendo mortos, são personagens cada vez mais freqüentes nas páginas dos jornais. A violência invadiu o cotidiano de forma surpreendente, já começa a fazer parte daquelas coisas esperadas que compõem um dia-a-dia qualquer: lutas entre gangues, a violência no trânsito, a ferocidade nos trotes, o ataque covarde a menores de rua e a mendigos, a valentia insensata dos alunos de lutas marciais, a agressão anunciada nos bailes e 92


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boates, o clima de insegurança onipresente. Ser adolescente, hoje, nas metrópoles do país, é ter de dominar um complicado código de sinais e condutas, uma cartografia bélica dos espaços públicos, que lhe permita circular pela cidade, reduzindo os riscos de se tornar alvo preferencial da violência disseminada grifo nosso. (BEZERRA JÚNIOR, 1999)

Ao se discutir essa realidade, há um agente institucionalizado da violência que não pode ser esquecido: o Estado, que por suas omissões e abusos, sempre presentes em nosso dia-a-dia, permite que crianças e adolescentes estejam sujeitos à violência em todas as suas variáveis. Polícia ineficiente ou corrupta, pobreza, má distribuição de renda, desemprego, alta evasão escolar, aumento do narcotráfico, descrença na Justiça, valorização dos esquadrões da morte, vistos nas comunidades como justiceiros. Esses fatores banalizam a morte, tornando as comunidades insensíveis. (DIMENSTAIN, 1999)

A MÍDIA NO PROCESSO DE BANALIZAÇÃO As noções das pessoas sobre criminalidade nem sempre correspondem à realidade, pois são, em grande parte, influenciadas pela forma como os meios de comunicação tratam o tema. Existe geralmente uma distorção, na percepção da população, sobre criminosos e criminalidade, causada, entre outros fatores, pelo preconceito social, pela ênfase da mídia em certos tipos de crimes de interesse jornalístico, pelo contato com filmes e livros de ficção sobre o tema, pela exploração política do tema da segurança pública ou ainda por simples desinformação, principalmente quando a conduta delituosa é atribuída a um adolescente em conflito com a lei. A imprensa tem insistentemente pecado, quando o assunto é adolescente em conflito com a lei e parece-nos que, ainda, levará muito tempo para se corrigir, pois tal fato depende da quebra de mais um paradigma: o jornal mais vendido é o que divulga espetáculos de miséria. De um modo geral, a mídia se revela preconceituosa, superficial e mal informada, quando em suas matérias sensacionalistas, que não 93


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conseguem prever uma trajetória de vida, refere que menino de rua é vítima, criança abusada é vítima, pequeno trabalhador é vítima, mas adolescente que comete algum delito é apenas bandido, dando ênfase à imagem de um facínora que ameaça cidadãos desprotegidos e pagadores de seus impostos. Assim, a mídia é a primeira a legitimar a criminalização das questões sociais, omitindo o ponto crucial do problema, prestando assim um desserviço à comunidade à que serve. E.F.G.S., 15 anos - Homicida e traficante. Começou a matar aos 12 anos de idade e assume, desde então, a autoria de 30 homicídios, todos relacionados ao tráfico de drogas. Participou das duas chacinas de Rio Doce. Assume também ser um dos autores de um crime que chocou os moradores da região, ao matar um rapaz dentro de uma igreja durante a missa e outro durante um show no Centro de Convenções. (in Folha de Pernambuco, Polícia, p.03, 19/02/2002)

A matéria acima mencionada transformou o infrator em um caso único e exclusivo de polícia, omitindo que esse adolescente, antes de entrar no mundo de crime, teve uma trajetória de vida marcada pela violência doméstica e desestruturação familiar, trazendo, em seu corpo, marcas de violentos castigos e surras que seu pai lhe dava com facão e borracha de sofá, nas ocasiões em que se encontrava drogado. Os seus responsáveis, pai e mãe, passaram a maior parte da sua infância cumprindo pena por assalto e tráfico de drogas respectivamente, enquanto ele e seus irmãos eram depositados em abrigos públicos, de onde quase sempre conseguia fugir, passando a mendigar e a fazer pequenos furtos . Aos 10 anos de idade, retornou ao convívio familiar, em razão do seu genitor ter voltado para casa após sair do presídio, passando a “trabalhar” com o mesmo, vendendo maconha, tendo contato direto com arma de fogo. Com essa mesma idade, presenciou o seu responsável ser assassinado em decorrência de um acerto de contas por um assalto. Estava só outra vez, e tal fato o fez jurar vingança. A delinqüência passou a ser o seu cotidiano. Usar de violência física, em seus atos, passou a ser a sua característica. Já havia sido privado da sua liberdade, antes dessa última apreensão, cumprindo Medida Socioeducativa. No entanto, revelou que, durante o período de seis meses que passou acolhido, não 94


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recebeu nenhuma orientação pedagógica que o ajudasse a se ressocializar, uma vez que era temido pelos seus feitos rebeldes em tentar fugir. Seu maior desejo era possuir uma submetralhadora para matar “almas sebosas”, expressão que certamente aprendeu com a mídia. A vida desse adolescente e de tantos outros com a mesma biografia, certamente, não pode ser tratada da forma piegas do “ coitadinho “ nem tampouco com a visão distorcida da maior parte da sociedade, de que pelo fato dele ser “ menor” os delitos praticados “ não vão dar em nada”. Ele é uma vítima que se transformou em vitimizador em decorrência de todas as formas de violência com que foi obrigado a conviver. Como infrator, irá responder pelos delitos que cometeu, mas quem irá responder pela destruição da sua vida na mais tenra infância? Onde estão as falhas? Desafio o leitor, a, durante poucos segundos, mentalmente, interpretar essa história real de vida, assumindo o papel do autor principal e, no final da trajetória, responder a ele mesmo qual seria o seu destino e se as suas feridas, abertas pelo sofrimento da violência, conseguiriam cicatrizar. Certamente, a mídia ainda levará muito tempo para entender que os fatos (o crime, a violência) nunca deveriam ser narrados desprovidos das trajetórias e histórias de vida das vítimas e dos agressores. A biografia revela os determinantes sociais, culturais e econômicos que levam ao encontro/desencontro entre agressor e vítima e que podem revelar causas, contextos e fatores que os levaram à violência. Fazem-se necessárias a reeducação e a sensibilização do profissional de comunicação, principalmente dos que dão cobertura às matérias policiais, da sua responsabilidade e da sua participação no aumento da criminalidade, quando reforça e mitifica a imagem do jovem que exerce atividade marginal. Os adolescentes, principalmente na faixa dos 15 aos 17 anos, diante da ausência de Políticas Públicas articuladas, vivendo em ambientes familiares marcados pela violência, sendo constantemente motivados a consumações fora da sua realidade social e com raríssimas possibilidades de inserção no campo do trabalho, tendem a copiar as ações dos infratores da lei que são apresentados como super-heróis, na esperança de encontrar, no mundo da criminalidade, a oportunidade de subsistência e de pertinência social, mesmo que, para isso, a sua vida deixe de ter valor e o seu destino seja fatal. 95


FERIDAS QUE NÃO CICATRIZAM ○

GARANTIR DIREITOS É UM DEVER DE TODOS E NÃO UMA FANTASIA A sociedade clama por segurança e justiça no nosso país, diante do constante aumento da criminalidade que nele impera. Cria-se lei, para que seja cumprida, revogada ou tenha a sua pena aumentada. A implementação da pena de morte e a redução da maioridade penal são temas, hoje, bastante debatidos como pressupostos para a erradicação desse grande problema. Entende-se que a solução desse caos tem que, necessariamente, passar pelo aumento da repressão ou até mesmo pelo extermínio das pessoas que praticam crimes considerados como hediondos. Essa mesma sociedade ignora ou dá pouquíssimo valor ao real significado da palavra prevenção e muito pouco ou quase nada está verdadeiramente comprometida em combater a violência praticada contra criança e adolescente, esquecendo que eles serão os adultos do amanhã. É muito cômodo ignorar que a criança vista na rua mendigando, dormindo embaixo de marquises enroladas em trapos ou em pedaços de papelão é o resultado do somatório dos problemas sociais que ajudamos a construir. É mais fácil não nos preocuparmos com a erradicação do trabalho infantil e da exploração sexual de crianças e de adolescentes, porque, assim, não corremos o risco de ver refletida a nossa omissão. Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (CF – 88)

A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu Artigo 227, a consolidação dos direitos e garantias individuais de crianças e adolescentes, que em sua decorrência, posteriormente, foram reafirmados através da Lei Nº 8069, datada de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente.

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Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. (ESTATUTO)

Discorrer acerca dos avanços alcançados e das distorções sobre as interpretações decorrentes dessa Lei, foge ao objeto deste texto. Contudo, não seria nenhum exagero afirmar que no cumprimento integral dos seus preceitos jurídicos e conseqüências decorrentes, se encontra o mais próspero caminho para modificar a caótica realidade em que vivemos. Tal desafio para o Brasil somente será vencido quando a sociedade se despojar do preconceito de ver a garantia dos direitos da criança e do adolescente como algo fantasioso, romântico ou irreal e arrancar as máscaras daqueles a quem interessa, por auferir vantagens pessoais, que esses direitos nunca sejam reconhecidos. Somente quando a sociedade entender que as feridas, provocadas pela violência de hoje, não cicatrizarão na criança que será o adulto do amanhã, é que poderemos adotar políticas verdadeiramente eficazes para a maior parte da população, sem qualquer discriminação e sem privilégios.

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VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR RELATO DE UMA PRÁTICA EM PSICOLOGIA JUDICIÁRIA TANIA GUERRA CARDOSO



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Desde que a Vara Especializada de Crimes contra a Criança e o Adolescente de Recife - VCCCA foi instalada, em 1996, ocupo a função de Psicóloga daquele Juízo, tendo sido aprovada e selecionada no primeiro concurso do Tribunal de Justiça de Pernambuco para essa função, realizado em 1993. Em quase cinco anos de atuação como Psicóloga Judiciária, tenho lidado com os mais diversos tipos de violência perpetrados contra crianças e jovens, desde tentativas de sedução a homicídios. Nos processos dessa natureza, de competência da Vara, o Ministério Público requer ao Juiz a escuta psicológica da vítima e/ou agressor, familiares e de outros que se fizerem necessários. O Juiz determina, então, que eles sejam submetidos à entrevista pela Psicóloga do Juízo, para fins de estudo do caso. Os resultados da análise psicológica, refletindo não apenas os dados colhidos nas entrevistas, mas também aqueles de outras técnicas aplicadas, são apresentados através de relatório que será anexado aos autos do processo, devendo oferecer elementos importantes à decisão do Juiz. As atribuições dos Psicólogos Judiciários inseridos nas Varas da Infância e Juventude, constam do Artigo 151 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que reza: Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.

O enfoque do trabalho desenvolvido na área em que atuo é bastante precioso, seja dos pontos de vista antropológico, cultural, político, social, econômico, mas, sobretudo, por ser investigado à luz da psicanálise. Muitas são as dificuldades encontradas, porém, a um mais satisfatório cumprimento desta missão, como, por exemplo, certas atitudes preconceituosas presentes, não apenas no meio jurídico, como também, 101


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e o que é no mínimo surpreendente, entre os próprios profissionais das áreas de ciências humanas e de saúde. Em relação a estas atitudes, principalmente àquelas referentes ao autor de atentado ao pudor no âmbito familiar, campeão das estatísticas criminais contra os costumes, vejo que a reserva, a evitação ou o ataque são posturas percebidas em representantes de algumas categorias no lidar com tais assuntos. Embora aqui o foco seja a violência sexual doméstica, o episódio que será narrado, em seguida, serve apenas para ilustrar a questão do preconceito, alertando para as implicações negativas que acarreta, sobretudo, quando ele emerge de algum profissional envolvido em julgamentos, mormente aqueles de cunho judicial. Num processo em que um transexual estava sendo acusado de abusar sexualmente de um menino de dez anos que residia com a mãe, um irmão e a babá, a promotora questionou veementemente o meu relatório através de vários despachos ditados pelo preconceito, insatisfeita com a abordagem psicológica desenvolvida. Embasada em conceitos científicos, porém, dissertei e reiterei o mesmo ponto de vista acerca da análise anteriormente apresentada, acatada inclusive pelo Juiz, que apontava para a inocência do transexual acusado. De fato, dezessete dias após, a mãe da criança apresentou uma declaração, retirando a acusação e admitindo uma precipitação da sua parte, ao considerar o rapaz denunciado responsável por haver molestado o seu filho. E aqui seria pertinente ressaltar a importância de uma investigação psicológica mais acurada, atentando para o fato de que certas ações de crimes de abuso sexual não passam de argumentos falsos, como já tive a oportunidade de tomar conhecimento em meu dia-a-dia de trabalho no judiciário, podendo possuir como pano de fundo, por exemplo, contendas de casais em processo de litígio, brigando pela posse do filho ou fruto de vingança entre as partes litigantes, transformando a criança em mero objeto de barganha, expondo-a aos vexames da opinião pública e da mídia, em que nem sempre há uma preocupação em salvaguardar os sentimentos infantis. Existe, inclusive, uma página na Internet, na qual os pais, falsamente acusados de abuso sexual contra os filhos, pretendem se organizar para fazer frente às denúncias infundadas. Por outro lado, seria de suma importância considerar que comportamentos disfuncionais, apesar de indesejáveis e considerados 102


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como criminosos pelo nosso código penal, possuem complexas nuances, aspectos científicos pouco conhecidos ou estudados que exigem uma análise mais detida e aprofundada, sob pena de se estar apenas punindo e não, oferecendo condições de tratamento a uma remoção do comportamento patológico. Uma variável importante a ser considerada na pesquisa sobre o comportamento sexualmente abusivo e que eu pude observar pelo menos em dois processos que foram submetidos ao estudo psicológico na instância criminal onde atuo, é que o abuso sexual intrafamiliar foi confissão dos próprios acusados. É relevante destacar que ambos os acusados destes dois casos se encontravam em processo psicoterapêutico e que as suas revelações só foram possíveis graças à consciência que eles adquiriram de que o primeiro passo para a busca da cura para o transtorno do seu comportamento seria a própria admissão do ato transgressor. As duas ocorrências, apesar de não possuírem expressividade do ponto de vista estatístico, serviram para demonstrar, sem dúvida alguma, um ponto em comum entre elas: o fato dos acusados estarem sob tratamento psicoterapêutico. Comumente, vê-se que outros casos de acusados, que chegaram a admitir a ação infratora, ocorreram, apenas, porque o flagrante não lhes permitia negar as evidências. Em setembro de 97, tive a oportunidade de participar do IV Curso de Atualização na Área de Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes, promovido pelo LACRI/IPUSP, em São Paulo. Convidado como palestrante, o Dr. Tilman Furniss advertia para o entendimento que deveria ser reservado ao agressor, mas que, na maioria das vezes, é mal interpretado. Expressar empatia e compreensão para pessoas que cometeram abuso sexual freqüentemente provoca fortes respostas irracionais e de raiva entre o público e os profissionais da área. (FURNISS,1991, p.21)

Chamou-me a atenção a sua abordagem, sobretudo, porque sempre me causou estranheza o tratamento da questão, em que a ênfase era dada apenas aos cuidados com a vítima. Em contrapartida, omissão e pouco caso dispensados à possibilidade de recuperação ou intolerância pouco racional à figura do abusador, que sempre era rotulado 103


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de “monstro” ou coisa que o valha e encerrado no cárcere. É preciso que não se perca de vista que o desejo da criança vitimizada é o de mandar embora o “pai agressor”, mas trazer de volta o “pai protetor”. Na maioria das vezes, lamentavelmente, o que ocorre é apenas a reclusão do pai agressor e o esfacelamento da família. A inexistência de sistematização ainda de dispositivos legais que, por força de lei, vincule o tempo de reclusão do agressor a igual tempo de terapia psicológica, impõe certa frustração à atuação do Psicólogo no lidar com estas questões. No capítulo Terapia por Ordem do Tribunal, Furniss chama atenção para o fato de que a terapia não pode ser pré-condição para a reabilitação da família, mas, sim, pré-condição para uma avaliação onde é possível a reabilitação. Textualmente, diz Furniss: A ordem do tribunal deve ser “Você terá que fazer terapia e ao final da terapia nós, o tribunal, ou outros em nosso nome, iremos reavaliar se a situação mudou suficientemente ou não. Nós então decidiremos se tentaremos ou não uma reabilitação”. (FURNISS, 1991, p. 295)

Mesmo assim, aqui no Brasil, ouvem-se, apenas, comentários de que, em um ou outro estado, algumas sentenças estariam vinculando o tratamento psicoterapêutico às sentenças proferidas. E o que acontece, de fato, é que apesar da emissão do diagnóstico psicológico, a indicação de tratamento não encontra eco, uma vez que não foram criadas, ainda, as condições jurídicas acima mencionadas, o que vem a atar as mãos de um juiz na hora de prolatar uma sentença, mesmo que, porventura, este magistrado possua uma compreensão mais ampla da patologia que envolve tais crimes. Além disto, a precariedade do sistema penitenciário, a reduzida equipe de profissionais de saúde mental nos presídios e a escassez de equipamentos produzem uma morosidade no atendimento às solicitações de exames feitas pelas diversas áreas do judiciário. De certa feita, solicitei dois exames em um detento, os quais eu entendia necessários à avaliação do caso em que estava trabalhando. Após vários contatos telefônicos e a intervenção do próprio Juiz Auxiliar requerendo as providências, apenas, um ano depois, obtivemos os resultados. De tal modo insisti na realização dos exames que um psiquiatra da instituição solicitada ficou curioso, indagando se eu era “psicóloga de 104


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criança”. Respondi-lhe, apenas, que antes de qualquer coisa, eu era psicóloga, e acredito ser possível que se possa proteger a criança de vir a ser vítima, sendo indispensável o tratamento do adulto agressor. O mais lamentável, porém, é que, devido aos problemas de operacionalização já elencados, ainda não é possível contar com um trabalho psicoterapêutico padronizado e permanente nas áreas de confinamento judicial. Em que pese o trabalho psicológico na Justiça se pautar pela ética e por buscar, incansavelmente, um mais elevado grau de verdade humana, ainda assim, ele restará insatisfatório, enquanto as medidas de tratamento psíquico indicadas não forem atendidas, respaldadas pelo apoio do aparato judicial. Atributos indispensáveis, aliás, ao perfil do psicólogo que atua nesta esfera, é o de resistência à frustração, que pode ocorrer quando a orientação prescrita por seu diagnóstico não é viabilizada, e o de persistência em sua crença profissional. Mesmo quando a rotina e o cansaço tentam ditar medidas mecânicas, é imprescindível rechaçá-los sempre, para que não se corra o risco de realizar um trabalho psicanalítico de resultado parcial e duvidoso. No âmbito jurídico, fala-se muito sobre a “parelha penal” que consiste em vítima/acusado. No meu entender, deveria existir, também, para os protagonistas dos casos de violência sexual doméstica, a “Parelha Terapêutica”, constituída pelos mesmos vítima/acusado, em que ambos fizessem parte de um programa de intervenção psicossocial familiar, amplamente amparados pela legislação. A observação desses indivíduos, em conflito com a lei, portadores, indiscutivelmente, de uma psicopatologia intrínseca, me tem revelado serem eles dotados de uma afetividade coartada em suas personalidades, e além disto, tentando sobreviver em meio a um contexto emocional, e sócio-econômico-cultural, adverso ou caótico. Na ótica moderna, aliás, encontramos: É pouco provável que haja benefício na ação que se contenta em localizar agressores e vítimas, punir os primeiros e proteger os segundos. A violência, produto da cultura que explode em relações interpessoais, deve ser vista de modo mais abrangente. (GONÇALVES, 1999, p.157)

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O que significa dizer que o aspecto cultural se constitui em variável não menos importante e não pode deixar de ser incluído na análise e na condução desses casos. A escuta profissional das suas miseráveis histórias de vida, a interpretação dos seus desejos e suas expectativas malogradas, seus conflitos, detectados através de vários instrumentos, fez-me refletir sobre a sua condição de vítima, tanto quanto a da sua própria vítima. São pessoas provenientes, principalmente, de minguadas ou turbulentas relações afetivas em suas famílias de origem. Em meus pareceres, ao diagnosticar tais casos, sempre recomendo a necessidade da intervenção psicoterápica, muito embora já saiba, de antemão, que tal prescrição não será contemplada, seja em virtude da desatualização do Código Penal, neste sentido, no caso de réus presos, seja em virtude da falta de poder aquisitivo, que é a questão da maior parte da minha clientela no judiciário, que não dispõe de muitas opções para participar de um eficiente serviço terapêutico gratuito. Isto sem mencionar os casos que, apesar de sabermos da sua existência, não se pode acenar-lhes com perspectivas de solução terapêutica, uma vez que eles não tramitam na esfera da justiça, por força do famoso “pacto de silêncio”, no qual o abuso é mantido em segredo atendendo a uma série de conveniências que vão desde o receio de perder o respeito da comunidade, do escândalo social até a pressão da própria família, temerosa de não mais contar com certas benesses. E, por não possuirmos, ainda, uma determinação judicial garantida por um sistema de tratamento eficaz que proporcione assistência psicológica regular e maciça aos detentos portadores de anomalias em seus comportamentos, eles vêm a sofrer tão somente os efeitos do castigo e nunca os benefícios redentores de um possível controle sobre os seus atos transgressores. O mais próximo de uma profilaxia, concedida a um presidiário que apresente e cause transtornos em seu meio coletivo carcerário, é o pseudoalívio das drogas químicas, dos tipos Dienpax, Lexotan, Diazepan, Gardenal etc., ou um aconselhamento breve. Isto sem falar no tratamento dispensado pelos outros presos aos autores de crimes sexuais, infligindo-lhes a mesma violência pela qual estão na cadeia cumprindo pena, o que só vem agravar as chances de prognósticos promissores ao quadro. 106


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Todos os crimes sexuais têm somente penas de reclusão, em especial o estupro e o atentado violento ao pudor, que foram considerados crimes hediondos e estão incluídos na Lei 8.072, de 25.7.90. Parece haver, mesmo contemporaneamente, um profundo desconhecimento do legislador sobre as causas e as motivações dos agressores sexuais. Ainda que a medicina e a psicologia não disponham de tratamento para alguns tipos de pedofílicos ou indivíduos com anomalias na estrutura do superego, não restam dúvidas sobre a psicopatologia inerente aos agressores sexuais. Assim, é fundamental que a lei possa admitir que pessoas doentes possam ter acesso ao atendimento especializado e não encarceradas, como sugerem Satler e Chaffin. (CAMINHA, 1994)

Outro aspecto bastante preocupante é aquele em que os profissionais de saúde mental que acompanham alguns desses acusados em processos judiciais, em caráter particular, se recusam a fornecer informações que poderiam contribuir no esclarecimento do real estado mental dos seus pacientes. E, conseqüentemente, agindo assim passam a ser co-autores da sua sentença de prisão, uma vez que não disponibilizam seu depoimento em favor de uma intervenção terapêutica para os agressores sob sua orientação. Tal omissão ocorre pelo fato de alguns profissionais confundirem, ainda, que as informações desejadas implicam quebra de sigilo terapêutico. Entretanto, não se está pedindo a eles uma devassa da vida dos seus clientes, mas um resumo daquilo que eles pudessem entrar em consenso sobre o que é possível declarar acerca do estado psíquico dos seus pacientes. Recordo um caso recente que atendi, no segundo semestre de 2001, em que um senhor aposentado, apresentando razoável nível de esclarecimento, estava sendo acusado de molestar sexualmente as duas netas da sua companheira. Esse foi um dos raros casos judiciais da VCCCA, em que o entrevistado confessou a autoria do abuso. Denotava arrependimento e mostrava-se empenhado em averiguar as causas que o levaram ao procedimento abusivo, afirmando enfático: “Eu só vou parar, doutora, quando descobrir porque eu fiz isto” (sic). Assim sendo, informou-me o telefone do seu terapeuta, com o qual vinha fazendo análise há exatos um ano e quatro meses, concedendo-me plena permissão para que eu 107


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pudesse solicitar um parecer a respeito do seu caso. Para minha surpresa, porém, o citado profissional, após algumas tentativas telefônicas minhas mal sucedidas, resolveu atender-me para comunicar a sua recusa em prestar quaisquer tipos de informação acerca do seu cliente. Diante da sua decisão, só me restou lamentar a sua indiferença para com o destino do seu cliente, fazendo-o refletir sobre o quão prejudicial seu silêncio seria a um mais justo entendimento, e conseqüentemente, julgamento do caso. Eu me pergunto, inclusive, caso o acusado venha cumprir pena em regime fechado, como provavelmente deverá acontecer, se o seu terapeuta se disporá a prosseguir com o processo psicoterápico na penitenciária. No meu Relatório Psicológico anexado aos autos, com vistas, primordialmente, ao Juiz e à Promotoria, registrei o fato, lastimando que a esquiva de alguns desses profissionais, cuja contribuição certamente seria de grande valia à compreensão do agir dos seus pacientes acusados pela prática de delitos de ordem, essencialmente afetivo/emocional, o que poderia servir, inclusive, até, de atenuante na execução da sua sentença, evitando uma interrupção muito longa e prejudicial ao seu processo psicoterapêutico de recuperação. (GUERRA, 2001) A ausência de posicionamentos mais firmes, mais consistentes e mais corajosos que viessem demonstrar, não apenas um senso de dever profissional, mas de cidadania, ao meu ver, contribuem para um enfraquecimento do nosso papel profissional em interface com a justiça e da valorização da nossa prática. Medo de participar de litígios na justiça, de se expor profissionalmente, são motivos que em nome de uma compreensão errônea ou limitada da sua função, são motivos que parecem fazer com que muitos desses profissionais cometam um duplo engano: o de negar o devido suporte emocional ao seu cliente e o do descompromisso com a construção de uma sociedade mais justa. Aliás, penso que os mencionados profissionais responsáveis pelo acompanhamento psicológico de indivíduos em conflito com a lei, antes mesmo de serem solicitados, deveriam espontaneamente tomar a iniciativa de se pronunciarem sobre seus clientes. Com isso eles estariam demonstrando, sobretudo, o esforço daqueles em buscar o autoconhecimento, sob supervisão terapêutica, que lhes permitisse não 108


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apenas a chance de se conscientizarem e de se redimirem das atitudes anti-sociais praticadas, mas a oportunidade de virem a ser reinvestidos adequadamente das funções de pai, marido, avô, e outras. Assim procedendo, estes profissionais estariam, principalmente, criando as condições para que a vítima, muitas vezes, o próprio filho ou filha do agressor, possa admiti-lo como portador de um distúrbio e não apenas um criminoso, possibilitando até um resgate futuro da sua imago paterna, contribuindo até, quem sabe, para um duplo perdão filial/conjugal e para a diluição da mágoa. Tal procedimento em nada feriria os princípios éticos do exercício do seu ofício. Aqui caberia citar que o que configura realmente a peculiaridade da perícia na área da saúde mental é nunca ter por finalidade a constituição da prova da materialidade dos acontecimentos, mas proporcionar elementos e conclusões a respeito da saúde mental de um indivíduo. (COHEN, 1996, p.243) Outro episódio aconteceu há cerca de três anos, e este foi uma das falsas alegações de abuso anteriormente mencionadas. Um casal de classe média, ele profissional liberal, estava se separando judicialmente, e a mulher queixou-se do ex-marido, denunciando-o por abusar sexualmente do filho de quatro anos nos dias de visita, uma vez que este residia na companhia materna. No que concerne às apreciações técnicas sugeridas no parecer, ao final do relatório sobre este caso, em que pese a suspeita de violência sexual não haver sido comprovada, orientei que os pais, em especial a mãe, fossem ao menos admoestados pelo abuso psicológico sintomaticamente observado no comportamento da criança, decorrente da competição parental pela posse da sua guarda. Como a mãe da criança mencionou que havia levado o menino para se submeter a sessões de terapia, cerca de um mês após haver denunciado o ex-marido, convidei a terapeuta do garoto a vir conversar comigo. Após a nossa conversa, solicitei-lhe uma apreciação escrita sobre o seu atendimento, com o que ela prontamente concordou. Entretanto, o tempo foi passando, e cada vez que eu entrava em contato, ela se desculpava por ainda não haver elaborado a síntese prometida. Finalmente, como eu necessitava concluir o meu relatório, e já se aproximava o dia da próxima audiência do caso, voltei a telefonarlhe para obter uma decisão a respeito. A profissional resolveu, então, 109


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confessar que não iria mais fornecer o referido laudo, uma vez que a mãe do garoto não lhe havia pago as sessões. Apesar de concordar com ela sobre a sua insatisfação por não haver sido remunerada devidamente pelo trabalho, fiz-lhe sentir, também, o quanto ela havia desperdiçado o meu tempo e, mais que isso, questionei o tipo de compromisso que ela tinha com o seu paciente, uma vez que, segundo o motivo alegado por ela, o não-recebimento do pagamento, fez com que relegasse uma importante oportunidade de prestar seu serviço em prol do bem-estar da criança que estava sob seus cuidados profissionais. Por outro lado, em outras oportunidades, já pude contar com a excelente disponibilidade da competência profissional de vários colegas, cujas contribuições foram importantíssimas para um delineamento mais preciso da saúde mental dos seus pacientes em confronto com a justiça e, com isto, pelo menos, apontar caminhos para trabalhar o comportamento inadequado, apostando assim em sua reinserção social/familiar. Para ilustrar tais atitudes cooperativas, farei referência pelo menos a dois casos. Primeiro, o caso de gêmeas, vítimas de seu pai, que estavam sob tratamento psicoterapêutico com duas psicólogas distintas, graças ao esclarecido zelo materno. O que havia sido caracterizado em minhas investigações acerca do comportamento das crianças como indícios do abuso sofrido, pôde ser confirmado pelo depoimento técnico daquelas profissionais, o que aumentava ainda mais o grau de confiabilidade do meu diagnóstico, fruto das situações de entrevista e de algumas técnicas empregadas. As referidas psicólogas se dispuseram, inclusive, a acompanhar suas pacientes nas audiências, caso se fizesse necessário ao bem-estar das crianças, dando uma prova de dedicação e discernimento profissionais. Em outra oportunidade, quando fazia o acompanhamento do caso de um réu preso sob a acusação de haver molestado os filhos, recorri a sua psicoterapeuta a qual forneceu uma síntese por escrito, contendo elementos fundamentais a um mais preciso entendimento do comportamento do seu cliente. Para que se possa vislumbrar a conquista de devolver, ao convívio da criança ou do adolescente vitimizado, pai, mãe, padrasto, tio, avô, irmão ou outro com o qual ela ou ele mantinha uma relação de confiança, não há outro caminho a não ser acreditar e trabalhar pela remoção do 110


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comportamento abusivo e pela recuperação do agressor. Enquanto este procedimento não for realizado, acredito que a mágoa, o trauma, o sofrimento da vítima permanecem pela vida adulta afora, uma vez que não lhe foi dada a chance de superar a dor através do reconhecimento da patologia e do processo de reabilitação da imagem do seu agressor. Em meu trabalho de monografia do curso de especialização da UFPE, reflito: A despeito da indignação que o delito provoca em todos nós, causando uma reação de revolta coletiva, é imprescindível que não se perca de vista as circunstâncias em que ele ocorre, não para relevá-lo, porém, para compreendê-lo, adotando-se as medidas cabíveis que o problema requer. (GUERRA, 1999, p.22)

Aproveitei a oportunidade desta publicação, para descrever as circunstâncias que podem contribuir para um melhor ou menos bem sucedido desempenho do trabalho psicológico no judiciário, numa tentativa de sensibilizar pensadores, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, assistentes sociais, legisladores, juízes, promotores, advogados, médicos, enfermeiros, pedagogos e a população em geral, para que venham somar com aqueles partidários desse pensamento. Assim, lidar com os problemas dos casos de violência sexual intrafamiliar merecerá a devida compreensão e o tratamento legal. Desta forma, poderemos conquistar o nosso espaço, quando as leis forem atualizadas dentro de uma perspectiva mais coerente com o modo de ser humano, e o combate ao comportamento abusivo for proporcional, cada vez mais, a uma redução do número de vítimas, com isto, a minimização da criminalidade e, melhor ainda, a possibilidade de organização de famílias mais felizes. Em última análise, gostaria que ficasse bem claro que tudo aqui relatado não possui a pretensão de fazer nenhum tipo de apologia, tampouco uma crítica pessoal antiética a quem quer que seja. Apenas estou colocando, à disposição, os resultados das minhas próprias experiências e observações acerca do tema da violência sexual intrafamiliar, compartilhando-a para que, juntos, possamos nos empenhar em pesquisar, descobrir e corrigir distorções, aperfeiçoando os acertos que conduzam 111


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ao reconhecimento legal da sistematização dos benefícios que a nossa prática produz, visando sempre à reconstrução dos núcleos familiares disfuncionais, tentando torná-los mais satisfatórios ao desenvolvimento da criança e do adolescente, tendo, como fim último, uma sociedade menos sofrida e mais bem constituída.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMINHA, Renato e outros – Abuso Sexual: Sugestões e Orientações Jurídicas, Médicas e Psicológicas, in Doutrina – Infância e Juventude, Porto Alegre: Revista do Ministério Público/RS, n° 30, 1994. CHAFFIN, M. – Factors associated with treatment completion and progress among intrafamilial sexual abusers, Child Abuse & Neglet 26:251-265, 1992. COHEN, Cláudio - Saúde Mental, Crime e Justiça – O Profissional de Saúde Mental no Tribunal –São Paulo: Edusp, 1996. FURNISS, Tilman. – Abuso Sexual da Criança : Uma Abordagem Multidisciplinar, Manejo, Terapia e Intervenção Legal Integrados – Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. GONÇALVES, H. Signorini – Infância e Violência Doméstica: um tema da modernidade in, Temas de Psicologia Jurídica /organização. Leila Maria Torraca de Brito – Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. SATTLER, M.K. – Abusos Sexuais, um assunto proibido. Anais da 1a. Jornada da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, 1992. GUERRA, Tania – O Perfil Psicológico do Agressor em um Abuso Sexual Intrafamiliar – Disfunção ou Crime? – um estudo de caso - Monografia do curso de Pós-Graduação lato sensu de Especialização em Intervenção Psicossocial à Família no Judiciário – Recife: UFPE, 1999.

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O TRABALHO INFANTIL E AS MÚLTIPLAS FACES DA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES Maurício Antunes Tavares



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INTRODUÇÃO A sociedade brasileira avançando na vivência da experiência democrática, cresce a consciência coletiva acerca dos direitos da cidadania, e o combate às desigualdades marca presença na pauta política dos movimentos sociais, partidos políticos e governos. Neste contexto, a exploração do trabalho infantil está presente como uma das frentes de combate, para tornar a sociedade brasileira menos desigual e mais afinada com os princípios que regem a modernidade. Nas sociedades modernas, – que no senso comum é entendida como um “modelo ideal” ou um estágio de desenvolvimento a ser atingido pelos países periféricos do sistema capitalista, inspirado nas sociedades ocidentais industrializadas – a infância e a adolescência são etapas valorizadas do ciclo da vida, merecedoras de atenção especial e proteção e, por isso, são elementos centrais na definição da organização familiar que ambienta o seu cotidiano para o processo de socialização das crianças e adolescentes.(ÁRIES, 1978) As manifestações contra a exploração do trabalho de crianças e adolescentes vêm da constatação das condições de degradação física, afetiva e moral que afetam aqueles que estão vivendo um estágio de suas vidas em que os direitos à educação, à saúde, ao esporte, ao lazer, à dignidade, ao respeito e às convivências familiar e comunitária são prerrogativas garantidas por um novo código legal, o Estatuto da Criança e do Adolescente. O aparato jurídico brasileiro, de um modo geral, está adequado aos padrões internacionais definidos na Convenção Internacional dos Direitos da Infância e nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho. Os direitos relativos ao trabalho infanto-juvenil são regulamentados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pela Constituição Federal e pela Consolidação das Leis do Trabalho. A Emenda Constitucional nº 20, aprovada em dezembro de 1998, elevou a idade mínima de admissão ao trabalho de 14 para 16 anos, admitindo porém a possibilidade do adolescente trabalhar, como aprendiz, a partir dos 14 anos de idade. Mas, para os 117


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aprendizes, o Estatuto define como aprendizagem a formação técnica profissional ministrada de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Art. 62), em que os aspectos produtivos estão subordinados ao processo pedagógico (Art. 68). E para todos os adolescentes em idade legal de trabalhar, o Estatuto assegura os direitos trabalhistas e previdenciários (Art. 65) e proíbe o trabalho noturno, perigoso, insalubre, penoso ou em locais que tragam prejuízo aos desenvolvimentos físico, psíquico, moral e social, ou ainda, em horários que prejudiquem a freqüência à escola. (Art. 67) De forma complementar, no Artigo 69 do Estatuto, é afirmado o direito do adolescente à profissionalização, respeitada a sua “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” e recebendo “capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho”. Assim, assinalam-se os marcos legais que garantem o direito das crianças e dos adolescentes menores de 16 anos de não trabalharem, e os direitos à profissionalização e à proteção no trabalho para os adolescentes aprendizes acima de 14 anos e para todos os adolescentes de 16 a 18 anos que trabalham. Na fundamentação destes marcos legais, estão presentes argumentos relativos à cidadania, considerando-se também os impactos prejudiciais do trabalho precoce sobre a capacitação desses sujeitos para sua futura inserção no mercado de trabalho, de forma mais qualificada. Apesar do avanço legal, na realidade brasileira, o trabalho de crianças e de adolescentes é amplamente aceito, quase naturalizado de tão comum que é. Tanto entre as elites como entre as classes trabalhadoras, o fato de as crianças e de os adolescentes das camadas mais pobres da população trabalharem é considerado normal, ou porque aceitam que o trabalho destes é válido como uma estratégia de sobrevivência dos mais pobres ou simplesmente porque acreditam que a “ociosidade” das crianças e dos adolescentes pobres os leva ao vício e à violência. Assim, a presença de crianças trabalhando no campo ou nas cidades, nas feiras, nos mercados, nas oficinas, nas fábricas ou nas ruas, vendendo produtos, guardando carros, engraxando sapatos e catando latinhas, passa desapercebida para muitas pessoas. Outros se indignam, sentem “dó”, movidos pela compaixão. Mas esses olhares ainda não conseguem enxergar o que é a essência do trabalho infantil: a violência de uma sociedade “adulta” que empurra crianças e adolescentes para o 118


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trabalho precoce que, geralmente, é irregular, sub-remunerado, insalubre, perigoso, penoso e extremamente explorador. São crianças e adolescentes que, pelas condições e relações de trabalho, foram e continuam sendo maltratadas física e psicologicamente, cujas possibilidades de participar da sociedade como cidadãos de plenos direitos e de viver em condições dignas diminuem cada vez mais, a começar pelo prejuízo à escolarização. O trabalho infantil revela uma inversão de valores de uma grande parte da sociedade brasileira, levando- a a aceitar que crianças e adolescentes sejam explorados no mercado de trabalho, e a inversão é esta: a necessidade se impõe sobre os direitos. Assim, o trabalho infantil, mesmo sendo considerado um problema social grave, é tolerado, ou mesmo “justificado” a partir da ótica da necessidade, como sendo uma forma de minorar a pobreza familiar. O direito que toda criança e todo adolescente têm à educação, “visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes: I- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (Estatuto, Art. 53), é negado às crianças e aos adolescentes que trabalham precocemente, comprometendo seu futuro. Por isso, o grande erro em considerar, de os “justificar” o trabalho infantil como uma estratégia de os pobres enfrentarem a miséria é que, ao ingressarem no mundo do trabalho sem a devida preparação, as crianças e os adolescentes pobres reproduzem para si e para as futuras gerações as desigualdades sociais que mantêm as suas famílias na situação de pobreza que as lançaram no trabalho irregularmente. O trabalho precoce e irregular das crianças e dos adolescentes das camadas mais pobres da população brasileira, além de pouca efetividade na redução da pobreza a curto prazo, visto que contribui tão somente e muito mal para ajudar a complemetar a alimentação diária, provoca um impacto negativo muito grande para o futuro dos envolvidos e das futuras gerações, pois alimenta os perversos mecanismos que corroboram a exclusão social no Brasil, tal como o atraso escolar (LAVINAS, 2000). É impossível pensar num futuro melhor, quando não se garante o direito à educação em condições dignas que possibilitem o sucesso escolar, ainda mais em um mundo dominado pela tecnologia, onde o acesso aos bens sociais requer uma educação que seja também tecnológica, plural, 119


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humanista, ética e que contribua para solidificar direitos já consagrados e construir novos direitos. Dentro desse contexto, que é social e cultural, procuramos, neste texto, abordar a exploração do trabalho infanto-juvenil como um fenômeno social em que se entrecruzam múltiplas faces da violência contra crianças e adolescentes. Trata-se de uma violência que vem das relações de trabalho, que são determinadas por um complexo de variáveis econômicas e sociais e de sujeitos, entre os empresários, autônomos e atravessadores e outros que se beneficiam desse trabalho, impondo condições exploratórias que são prejudiciais à criança e ao adolescente, que nada mais é do que um dos lados da violência institucionalizada pela brutalidade das desigualdades sociais no Brasil, impondo o trabalho a quem deveria ser garantida a educação, onde o Estado se mostra também violador de direitos. E como uma manifestação da violência vivenciada dentro da família, quando os maus-tratos, o abuso sexual e as agressões sofridas em casa levam as crianças e os adolescentes a procurarem qualquer trabalho para saírem de casa, sendo também determinante na vida daquelas que trabalham no mercado do sexo, da pornografia e do turismo sexual ou vivenciada também fora da família, como no caso de muitas das meninas que trabalham como empregadas domésticas, sofrendo todo tipo de discriminação, dominação autoritária, maus-tratos e violência sexual nas “casas de família” onde trabalham. Embora seja uma tarefa difícil a empreender, ao optar por uma abordagem do trabalho infanto-juvenil como um efeito de múltiplas violências, temos a perspectiva de tratar a criança e o adolescente como ser integral, merecedores de proteção contra “qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Estatuto, Artº 5), e que, na realidade do trabalho infantil, essas formas, muitas vezes, se encontram associadas.

ALGUNS DADOS ESTATÍSTICOS Segundo o relatório Trabalho Infantil no Brasil, publicado pela OIT, em 2001, tomando como base os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), em 1998, havia, em todo o Brasil, cerca de 7,7 120


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milhões de crianças e de adolescentes, na faixa etária entre 5 e 17 anos trabalhando. Desse número, se excluirmos os adolescentes que têm 16 e 17 anos, portanto dentro da idade legal para o trabalho, ainda assim o número permanece alto: mais de 3,6 milhões de crianças e de adolescentes trabalhando antes da idade legal. Se isolarmos os que têm 15 anos de idade, eles representam 34,4% dos adolescentes dessa mesma idade. Entre os adolescentes brasileiros com 17 anos de idade, 50% estão no mercado de trabalho. No estado de Pernambuco, em 1998, existiam 123 mil crianças e adolescentes, na faixa etária entre 5-15 anos, trabalhando nas áreas urbanas e mais 180 mil trabalhando na área rural, de acordo com esse mesmo estudo. É para todo esse contingente que devem ser desenhadas políticas públicas para a erradicação do trabalho infantil e para a proteção dos adolescentes no trabalho.

A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTO-JUVENIL: A VIOLÊNCIA QUE VEM DAS RELAÇÕES DE MERCADO E DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO O trabalho infantil está presente em praticamente toda a história das sociedades, ganhando maior ou menor visibilidade em determinadas sociedades e em períodos históricos específicos. Desde tempos remotos, o trabalho de crianças e de adolescentes é utilizado como extensão do trabalho dos adultos, desenvolvendo diversas tarefas relacionadas à sobrevivência do núcleo familiar. Mas é com o advento da indústria moderna que o trabalho infantil se manifesta como um fenômeno econômico e social relevante, pois, no bojo da Revolução Industrial, um enorme contingente de crianças e de adolescentes foi incorporado como ajudantes de operadores de máquinas, para realizarem o suprimento da matéria-prima ou para executarem a limpeza dentro dessas máquinas. Marx, no capítulo de “O Capital”, que trata da maquinaria e da indústria moderna, relata o processo da incorporação de mulheres, de crianças e de adolescentes na indústria inglesa do século XIX e os efeitos 121


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sobre o trabalho, o mercado de trabalho, a família e a sociedade. Ele demonstra de que modo a mecanização, como um “meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e de idade, sob o domínio direto do capital” (MARX, 1987, p. 450), provocou profundas mudanças no universo familiar aniquilando todo o universo simbólico infantil ao tomar “o lugar dos folguedos infantis e do trabalho livre realizado, em casa, para a própria família, dentro dos limites estabelecidos pelos costumes” (MARX, 1987, p.450), e ao afastar as mães do cuidado dos filhos, ocasionou o aumento da mortalidade infantil, segundo muitos relatórios médicos da época utilizados como fontes. Ao se apropriar da força de trabalho de mulheres e crianças, o capital altera o modo de reprodução da força de trabalho, desvalorizando o valor do trabalho do adulto: O valor da força de trabalho era determinado não pelo tempo de trabalho necessário para manter individualmente o trabalhador adulto, mas pelo necessário à sua manutenção e à de sua família. Lançando à máquina todos os membros da família do trabalhador no mercado de trabalho (...) Assim, desvaloriza a força de trabalho do adulto.(MARX, 1987, p. 450)

Essa desvalorização do trabalho adulto também foi constatada pela pesquisa “Os Trabalhadores Invisíveis”, realizada em 1993 pelo Centro Josué de Castro, ao verificar a condição de trabalho nos canaviais pernambucanos, onde um imenso exército de crianças e de adolescentes trabalhavam “ajudando o pai”, visto que este, ganhando por produção, não conseguia manter as condições mínimas necessárias para a sua sobrevivência e a de sua família somente com o seu trabalho. No Brasil, o trabalho infantil tornou-se mais visível a partir das primeiras décadas do século XX, quando, em 1920, já se registrava a presença de cerca de 30 mil crianças e adolescentes abaixo dos 18 anos de idade, que, na época, equivalia a 13% da força de trabalho na indústria, atingindo a marca, no início dos anos 50, de 180 mil trabalhadores industriais. As condições de trabalho, na indústria nascente dos séculos XIX e XX, eram as piores possíveis para o conjunto dos trabalhadores, quanto 122


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mais para as crianças e os adolescentes: jornadas de trabalho de 12 a 16 horas; trabalho ininterrupto sem dias de folga; péssimas condições de higiene e de segurança, ocasionando um alto número de mortes e acidentes de trabalho graves; violência e maus-tratos por parte de muitos chefes. Mas, se é com a industrialização que o trabalho de crianças e de adolescentes adquire a “cara” que ele ainda mantém até hoje, de exploração, de abuso e de violência, é com o movimento operário que ele é primeiramente denunciado como um grave problema social. Nas primeiras lutas sindicais e nas greves, destacam-se as reivindicações para as crianças e os adolescentes trabalhadores. Primeiramente, foram enfocados os aspectos relacionados à saúde e à integridade física da criança e do adolescente, devido ao grande número de acidentes e doenças. Depois, foram incorporadas as questões que dizem respeito às relações de trabalho: limitação da jornada de trabalho, definição dos tipos de atividades permitidas e proibidas até a abolição completa do trabalho para as crianças, já como manifestação do interesse das classes trabalhadoras pela universalização do acesso à educação e da valorização da família. Assim, é no bojo da modernização da sociedade brasileira que a exploração do trabalho de crianças e de adolescentes ganha visibilidade e, pela primeira vez na história, é tratado como um problema social. No mercado, a exploração do trabalho infanto-juvenil é uma forma de aumentar a concentração de renda, pois permite diminuir os custos de produtos e de serviços através de uma menor remuneração à atividade e sua conseqüente desvalorização, atingindo desta forma, até mesmo, o trabalho adulto — que atinge até mesmo o trabalho adulto nas atividades exercidas pelas crianças e adolescentes — e da sonegação de impostos e obrigações sociais sobre o trabalho. E isto acontece tanto nas relações de trabalho no setor formal da economia quanto no setor informal, como acontece com muitas crianças e adolescentes que vendem produtos nas ruas das cidades, repassados por atravessadores ou comerciantes, para que vendam por “consignação”. Acontece também nas relações de trabalho com meninas empregadas domésticas, que são exploradas por uma classe média que quer conforto, mas quer gastar pouco, pagando menos que o salário mínimo e sonegando a contribuição previdenciária. O fator idade é a base de muitas discriminações e violências, como o abuso de autoridade, o abuso e a exploração sexual, o abandono 123


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e os maus-tratos, às crianças e aos adolescentes. Essa “lógica” perversa de discriminar e de violar os direitos daqueles que deveriam ser protegidos também está presente no trabalho infanto-juvenil: quanto menor a idade da criança ou do adolescente, mais fácil de enganá-los e maltratá-los, submetendo-os a longas jornadas de trabalho; impondo atividades que causam danos à saúde e que podem provocar a mutilação de membros, doenças do trabalho e até a morte, ou submetendo-os a atividades ilícitas no narcotráfico e na exploração sexual; negligenciando direitos elementares de qualquer trabalhador, como o direito ao descanso, à alimentação e a um salário; agredindo, dando tapas, beliscões, impondo castigos, confinando em cubículos ou assediando e abusando sexualmente. Diversos estudos apontam riscos à saúde e à vida das crianças e dos adolescentes que trabalham; riscos que diferem de acordo com a atividade e com os fatores relacionados à localização ou às condições do trabalho. São deformações ósseas, provocadas pelo transporte de cargas pesadas ou por ficar muitas horas em pé; queimaduras e contaminações provocadas por agentes químicos ou substâncias quentes; distúrbios do sistema nervoso; lesões decorrentes do trabalho repetitivo; cortes; perdas de membros; doenças respiratórias; desenvolvimento de câncer; esgotamento físico ou mental; abuso físico por parte de clientes, encarregados ou negociantes etc. Assim, no mercado de trabalho, a exploração de crianças e de adolescentes é a manifestação de uma violência social, em que estes são tratados mais como mercadoria, e as relações e as condições de trabalho impostas provocam graves danos ao desenvolvimento físico, psicológico e emocional. Além disso, em qualquer atividade, o trabalho precoce tem um efeito perverso sobre as crianças e os adolescentes envolvidos: a desescolarização.

A VIOLÊNCIA INSTITUCIONALIZADA: TRABALHO VERSUS EDUCAÇÃO NO UNIVERSO DE CRIANÇAS E DE ADOLESCENTES Por que a sociedade brasileira é tolerante com o fato de as crianças e os adolescentes trabalharem, sacrificando a escolarização, o lazer e a 124


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convivência familiar e comunitária? Se for certo que a necessidade econômica é o principal fator na determinação de que crianças e adolescentes vão para o mercado de trabalho, também é certo que determinados aspectos culturais, que se expressam nas relações entre adultos e crianças, na divisão social e sexual do trabalho, na condição privilegiada que o trabalho adquire entre as classes trabalhadoras no processo de socialização das crianças e dos adolescentes e na visão das elites brasileiras sobre as classes trabalhadoras, são fatores relevantes para explicar a persistência do trabalho precoce para as crianças e adolescentes das classes populares. Devemos considerar que o trabalho infanto-juvenil está presente em toda a economia, seja na produção, no comércio e no transporte informal, seja no trabalho doméstico. É um fenômeno comum entre assalariados, pequenos produtores e comerciantes, e está relacionado à forma como as famílias dos trabalhadores organizam estratégias de assegurar a reprodução social da família. Marca também o momento da passagem das crianças do domínio privado do lar, que é socialmente representado pela figura protetora da mãe, para o domínio público, que é socialmente representado pela figura provedora do pai – imagens socialmente construídas que marcam significativamente o processo de socialização da maioria das crianças brasileiras, muito embora seja uma generalização de um padrão familiar que exclui uma grande parcela de famílias brasileiras, quer pela composição familiar diferenciada (cerca de 30% de famílias brasileiras são chefiadas por mulheres), quer pelas relações intestinas estabelecidas entre os pares cônjuges e entre os adultos e crianças, em que, muitas vezes, a violência familiar marca a vida dos mais fracos. Por isto o ingresso no mundo do trabalho adquire um significado que vai além da situação real vivida, ao estabelecer a passagem para o mundo adulto. Esse processo tem a força de um ritual na sociedade brasileira, tanto que não se restringe unicamente às classes populares, embora, nestas, o fator econômico contribua para elevar a importância dessa relação. Quando se trata da educação dos jovens das classes trabalhadoras, essa visão de que para estes a educação deve ser orientada para uma rápida inserção no mercado de trabalho, é inerente ao projeto educacional das elites dirigentes do Brasil, por isso que essa idéia ecoa em 125


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todas as classes sociais e é reproduzida dentro das classes trabalhadoras. Não devemos esquecer que o projeto educacional brasileiro se constituiu como um dos pilares sobre os quais foi construída aquela que é uma das sociedades mais desiguais do mundo em distribuição de renda. Todos os tipos de propostas educativas, aplicadas à rede pública de educação, há pelo menos 50 anos, têm sido subordinados às leis do mercado, respondendo aos interesses de manter a ordem social vigente, e, durante todo este período, a escola pública, destinada aos filhos das classes trabalhadoras, não fez senão formar “apertadores de parafuso” e uns poucos operários especializados através do sistema SENAI/SENAC. Além disto, em um país onde o direito universal de acesso à educação para todas as crianças somente se concretizou no final do século XX, o trabalho tomou o lugar da educação como elemento de construção da identidade dos filhos das classes trabalhadoras. Como analisa Heilborn, referindo-se aos projetos governamentais e não-governamentais que se ocupam das crianças e dos adolescentes de comunidades pobres: O trabalho, aparentemente ausente ou em segundo plano diante das questões da marginalidade e da educação, tem sido a forma encontrada para todos os tipos de propostas educativas neste campo, seja para “recuperar” ou para “desenvolver as potencialidades individuais” de sua clientela. (ALVIM, 1995, p. 97). Enquanto, no início do século, se pretendia que o trabalho assumisse o lugar da escola para as crianças pobres e eliminasse o perigo das ruas e da criminalidade, atualmente existe uma pedagogia profissionalizante apressando a entrada precoce no mercado de trabalho, secundarizando a educação formal. É como se para as crianças e adolescentes das classes populares, sejam elas de rua ou não, a única forma de livrar-se da criminalidade seja o destino do trabalho precoce. (HEILBORN, 2000, p.1)

Antes de construir o conceito e vivenciar a experiência de ser cidadão, excluído da participação política por uma sucessão histórica de massacres sangrentos e ditaduras a submeter as revoltas populares, o brasileiro das classes populares construiu o conceito e a imagem de trabalhador. Ser trabalhador, para o brasileiro “comum”, significa ter respeito, ter direitos, ter identidade, não ser tratado como preguiçoso ou como vagabundo nos termos popularmente utilizados. Durante os anos 126


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da ditadura militar, andar com a “carteira de trabalho assinada” era a garantia de não ser preso pela polícia por vadiagem ou como suspeito de algum ato anti-social. Ainda hoje, para os pais, o trabalho representa também o distanciamento dos filhos da marginalidade, dos “bandidos”, da violência que ronda pelo bairro. Esse aspecto é bastante reforçado pela forma como os meios de comunicação de massa associam pobreza e violência, como se a violência da sociedade brasileira viesse exclusivamente dos mais pobres. Para a filósofa Marilena Chauí, no artigo Uma ideologia perversa, publicado na Folha de São Paulo em 14 de março de 1999: A violência real é ocultada por vários dispositivos: - um dispositivo jurídico, que penaliza a violência apenas nos crimes contra a propriedade e contra a vida; - um dispositivo sociológico, que considera a violência um momento de anomia social, onde os “desadaptados” tornam-se violentos; - um dispositivo de exclusão, isto é, a distinção entre um “nós brasileiros não-violentos” e um “eles violentos”, os atrasados que empregam a força contra a propriedade e a vida de “nós brasileiros não-violentos”; - um dispositivo de distinção entre o essencial e o acidental: por essência, a sociedade brasileira não seria violenta e, portanto, a violência é apenas um acidente na superfície social sem tocar em seu fundo essencialmente não-violento. (1999)

Dessa forma, as desigualdades – econômicas, sociais e culturais, as exclusões – econômicas, políticas e sociais, o autoritarismo das relações sociais, o racismo, o sexismo e a corrupção de nossas instituições e de parte das nossas elites dirigentes não são consideradas como formas de violência, muito embora sejam as bases de uma sociedade estruturalmente violenta. É essa violência estrutural, social, que penetra em toda a estrutura política e social brasileira, atingindo profundamente a vida das classes trabalhadoras e das famílias mais pobres, pois que se reproduz como exclusão social e se manifesta em diversas formas de violência, em que os mais fracos são sempre os que mais perdem. 127


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Está em curso, portanto, o enfrentamento de uma questão social que se inscreve em múltiplas dimensões da realidade. É, de um lado, eminentemente política, no que toca implementar um novo olhar sobre direitos sociais – reconhecendo o que juridicamente é estabelecido pelo Estatuto: que crianças e adolescentes são sujeitos de direito – e que como tal não pode ignorar o modo como a riqueza está distribuída de forma marcadamente desigual no país. Por outro lado, é uma questão cultural, uma vez que a persistência do trabalho, exercido por crianças e adolescentes, expressa também valores distintos sobre infância, trabalho, família e educação. Ao tecer esta breve análise sobre os aspectos materiais e culturais que determinam a decisão de enviar as crianças e adolescentes das classes trabalhadoras para o mercado de trabalho, estamos buscando entender os mecanismos internos que contribuem para a permanência do trabalho infanto-juvenil na sociedade brasileira. Não se trata de delimitar as causas deste à “lógica” da necessidade das classes sociais que vivem com baixos rendimentos e, tampouco, de isolar as características socioculturais que influem na saída das crianças e dos adolescentes para o mercado de trabalho como se fossem “costumes” das classes trabalhadoras e não manifestações culturais presentes em toda a sociedade brasileira, também entre as classes médias. Nestas últimas, o trabalho infanto-juvenil também encontra apoio, quer através da contratação dos serviços de crianças e adolescentes trabalhadoras, quer enviando seus filhos para trabalharem no mercado dos entretenimentos, da televisão, da moda e da propaganda, buscando conquistar maior conforto e melhorar seu padrão de vida, mesmo quando implica em submeter seus filhos a longas jornadas de trabalho, situações de estresse e riscos para o desempenho escolar e para o desenvolvimento psicológico e emocional. Por isso, entender a permanência do trabalho infanto-juvenil na sociedade brasileira requer um olhar atento, buscando iluminar a complexa trama tecida entre os aspectos econômicos, sociais e culturais dos sujeitos sociais envolvidos, e as interações e ressonâncias entre a violência estrutural-social e a violência doméstica nas relações entre adultos e crianças/adolescentes. 128


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TRABALHO INFANTO-JUVENIL E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA No lugar da brincadeira, o trabalho. Não há mediações, não há tempo para vivenciar, junto aos seus, os sentimentos de angústia, euforia e descoberta que chegaram no bojo das modificações corporais, psicológicas e culturais da adolescência. O trabalho infanto-juvenil impede que as crianças vivam como crianças e que os adolescentes sejam adolescentes. Para as crianças e os adolescentes trabalhadores, a experiência do trabalho é também uma experiência de distanciamento do grupo familiar. Por isso, o trabalho marca definitivamente a perda da infância. Essa distância da família nem sempre é física. Ela é também uma distância criada exclusivamente pelas condições de trabalho, pela jornada longa e extenuante e, sobretudo, pela falta do abraço, do afeto, da conversa, da brincadeira com os membros da família. É uma distância criada pela exploração. Em uma pesquisa que coordenei no Centro Dom Helder Câmara junto a crianças e adolescentes que trabalham como empregadas domésticas em Recife, constatou-se este distanciamento das crianças e adolescentes de suas famílias tanto nos casos das originárias de cidades do interior do estado que migraram para trabalhar como também entre as que moram no perímetro da Região Metropolitana: a longa jornada de trabalho, que inclui também o trabalho aos sábados e, por muitas vezes, aos domingos e feriados, provocando fadiga e cansaço, subtrai em quantidade e qualidade o tempo de convivência familiar e comunitária, essenciais para o desenvolvimento afetivo, moral e psicológico. Mas nem sempre a relação com os familiares provê as necessidades afetivas e, muitas vezes, é na própria família que as crianças e adolescentes tiveram suas primeiras experiências com a violência e a exploração. A violência contra essas crianças é, às vezes, psicológica através de punições, ofensas ou sofrimento em virtude de situações vividas por si ou por outro membro familiar, ou mesmo violência física. Na pesquisa supracitada, são inúmeras as narrativas de violência familiar, vivenciadas pelas crianças e adolescentes do grupo. Mas ela também se manifesta na falta de carinho e de afeto, acentuada pelas duras condições de vida, ocasionada pelas situações de desemprego e de absoluta falta dos mínimos 129


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sociais para manter os padrões de sobrevivência com dignidade, sendo que, nestes casos, é comum constatarmos o recurso às drogas, principalmente o álcool. Assim, não é apenas pelo aspecto socioeconômico que a violência doméstica estabelece um vínculo com a violência social. A violência se reproduz na família e fora da família através da combinação de aspectos psíquicos individuais, relativos às experiências vivenciadas por cada um, do grau de influência de valores tradicionais relacionados ao machismo e ao patriarcalismo, das condições socioeconômicas da família e do maior ou menor acesso à educação e à informação por parte dos pais. Cada sociedade, em um marco histórico particular, apresenta uma combinação específica destes aspectos. Assim, é comum encontrarmos narrativas de crianças e de adolescentes que informam os diferentes fatores que influenciam na determinação do trabalho precoce, algumas vezes relacionados à violência doméstica. Para trabalhar como doméstica, geralmente, vão as meninas, as mais velhas ou quem os pais escolherem para ir “morar” com a Dona Fulana, às vezes, aquela(e) filha(o) que é de outro casamento e não encontra seu lugar no novo arranjo familiar, ou aquela(e) que sofreu abuso sexual intra ou extrafamiliar. Para trabalhar nas ruas, vendendo pequenos produtos ou prestando serviços vão aqueles filhos ou filhas que “não dão para o estudo”, que “nem amarrando nem batendo, segurava ele(a) em casa”. Porém, ao deixarem suas famílias para dedicarem a maior parte de seu tempo ao trabalho, as crianças e os adolescentes precisam construir um outro espaço vital para a afirmação de sua identidade e de sua autoestima. Empreendem essa tarefa num ambiente permeado de condições adversas: pela ausência de suporte para o processo natural de desenvolvimento biológico, psicológico e social que atravessa na adolescência, pela sensação de abandono e de solidão, pela carga excessiva de trabalho, pela submissão a padrões de comportamento e valores estranhos aos seus e pela discriminação, baseada na hierarquia etária e nas diferenças raciais e sexuais. As condições em que trabalham as crianças e os adolescentes, muitas vezes, as deixam mais expostas e vulneráveis a situações de maus-tratos, assédio e abuso sexual. Na convivência dessas crianças e 130


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desses adolescentes com pessoas estranhas que podem ou não ser sensíveis às necessidades afetivas deles, os riscos destes sofrerem maustratos, assédio e abuso sexual não podem ser vistos como situações de exceção, mas, sim, como uma situação recorrente numa sociedade fortemente marcada pelo escravagismo, machismo e patriarcalismo. Na pesquisa com as crianças e os adolescentes trabalhadoras domésticas de Recife, como também nas narrativas das empregadas domésticas adultas, especialmente das valorosas mulheres que compõem a diretoria do Sindicato das Domésticas do Recife, os casos de violências domésticas, sofridas pelas trabalhadoras no interior das casas onde trabalham, se repetem inúmeras vezes, ainda mais quando se tratam de crianças e adolescentes: confinamento compulsório, tapas, beliscões, castigos, ofensas e toda sorte de humilhações, advindas do autoritarismo baseado nas diferenças de idade, cor, raça e cultura.

À GUISA DE CONCLUSÃO Enquanto para os mais favorecidos, o trabalho pode ser traduzido em um meio de conquistar realização pessoal ou profissional, ascensão social, status, reconhecimento etc., para grande parte dos brasileiros, o trabalho é o meio de não passar fome, de ganhar a vida, comendo o pão que o diabo amassou. As razões para tão diferentes formas de experimentar o trabalho devem ser procuradas, menos nas motivações individuais, como quando os portugueses atribuíam à preguiça a resistência dos índios em se submeterem ao trabalho escravo, e mais nas condições de vida e nas relações sociais, vivenciadas pelos que formam esses dois brasis. Para as classes médias e ricas, o trabalho vem como uma boa fruta madura, no tempo certo, depois de um longo período de crescimento e preparação, daí ele pode ser saboreado, curtido, mesmo quando dá trabalho pra descascar e separar a polpa da semente. Para os pobres , a grande maioria deste país, o trabalho chega cedo, antes do tempo, como fruta verde que amarga na boca e dá dor de barriga. A Convenção 138, ainda em processo de ratificação pelo Brasil, estabelece que a idade mínima de admissão em qualquer tipo de trabalho 131


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nunca “deverá ser inferior à idade de conclusão da escolaridade compulsória ou, em todo caso, a 15 anos”. A Convenção 182, já ratificada e vigente no Brasil, estabelece “a adoção de medidas imediatas e eficazes, visando à proibição e à eliminação das piores formas do trabalho infantil, com caráter de urgência”, sendo definidas como piores formas de trabalho, o trabalho escravo ou compulsório, a exploração sexual comercial, as atividades ligadas à produção, ao tráfico de drogas e às atividades perigosas, insalubres e penosas, para todos os que estão abaixo dos 18 anos de idade. A ratificação desses instrumentos obriga o país a implementar políticas públicas capazes de erradicar e combater a exploração do trabalho infanto-juvenil. Por que combater a exploração do trabalho infanto-juvenil? Porque precisamos diminuir a desigualdade social que é brutal neste país. Porque precisamos construir uma democracia verdadeira, com cidadãos capazes de participar ativamente da vida pública, diminuindo o espaço para as ladroagens e maracutaias que são feitas às escondidas nos gabinetes e palácios. Porque queremos construir uma cultura de paz, e a paz não virá enquanto houver esse abismo social no Brasil, com poucos acumulando supérfluos e artigos luxuosos, enquanto muitos não têm nem mesmo o humanamente necessário para viver. Porque sonhamos viver em um país mais justo e feliz, e se sonhamos é porque pensamos no futuro e não se pode pensar no futuro sem agir no tempo presente. E o futuro do Brasil será feito pelas crianças e pelos adolescentes de hoje. O desrespeito aos direitos de crianças e de adolescentes, conjugado às condições aviltantes, e relações de trabalho precárias a que estão submetidos tornam o trabalho infanto-juvenil abusivo, explorador e violento, contra o qual toda a sociedade brasileira deve se mobilizar. Para garantir o acesso à educação é que o trabalho de adolescentes menores de 16 anos é proibido. A realidade da educação pública brasileira, cuja perda de qualidade acentuada devemos, em grande parte, às 3 décadas de ditadura militar, revela que uma parcela expressiva dos adolescentes das classes populares não completa o ensino fundamental aos 14 anos, apresentando atraso de 2, 3 ou 4 anos, em média. Ora, se a entrada e o sucesso no mundo do trabalho está estreitamente ligado à educação, então é coerente que se possibilite à maioria dos adolescentes das classes trabalhadoras mais empobrecidas a conclusão do ensino 132


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fundamental, para que possam ter melhores condições de competitividade no mercado. Por isto devemos garantir condições dignas de vida para estes, lutando pela ampliação do atendimento e pela construção de políticas públicas integradas para a criança e o adolescente explorados no trabalho, capaz de mobilizar e provocar uma mudança de valores culturais em nossa sociedade, para que as crianças e os adolescentes sejam respeitados como sujeitos de direitos, e a educação dos mais pobres não seja preterida pelo trabalho. Entendemos que há um longo caminho para a desconstrução do processo ideológico que dá suporte ao trabalho infanto-juvenil, que passa pela “construção de uma identidade política comum capaz de criar as condições para o estabelecimento de uma nova hegemonia articulada por meio de novas relações sociais, práticas e instituições igualitárias.” (MOUFFE, 1996, p. 117) Zizek, em “O Espectro da Ideologia”, mostra a ideologia como a “externalização do resultado de uma necessidade interna” (1996, p.10). É este processo de construção ideológica do sentido que verificamos em relação ao trabalho infanto-juvenil, em que ele se torna tolerável para a sociedade na medida em que adquire, através de vários mecanismos sociais, econômicos e culturais, a função de suprir uma carência material da família e da própria criança e, assim, evitar o pior. Desse modo, fica oculta a necessidade que a sociedade capitalista tem de usufruir do trabalho infanto-juvenil para diminuir os custos da reprodução da força de trabalho, mantendo, sob controle, os custos do trabalho produtivo, aumentando a rentabilidade do capital. Isto também não teria relação com o processo de inversão da culpa e da responsabilidade pessoal? “A idéia de um sujeito plenamente responsável por seus atos esconde os pressupostos histórico-discursivos”, ou seja, o contexto, as condições sociais do ato praticado que “definem de antemão as coordenadas de seu sentido: o sistema só pode funcionar se a causa de sua disfunção puder ser situada na “culpa” o sujeito responsável” (ZIZEK, 1996, p.11). É assim quando determinadas formas de exploração do trabalho infanto-juvenil se tornam intoleráveis para a sociedade, porque esta fica estarrecida com as complicações que o trabalho, realizado em condições brutais, provoca na saúde da criança, e conseguindo 133


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identificar os responsáveis e culpá-los pela situação. Normalmente, é a família das crianças e dos adolescentes e os empregadores envolvidos que são responsabilizados/culpados pela situação, mas enquanto indivíduos, isoladamente. Assim, privatiza-se a culpa que recai sobre a família e sobre o individuo empregador, para que o sistema permaneça funcionando e a sociedade se sinta aliviada por ter descoberto quem são os responsáveis pela exploração do trabalho infanto-juvenil. Finalizando, convém refletirmos sobre o que Cristovam Buarque escreveu em 16 de novembro de 2001, comentando a certa, porém incompleta, condenação dos assassinos do índio Galdino, que exprime, de forma contundente, o grande dilema da sociedade brasileira de superar a exclusão social que reproduz, em toda a sociedade, a doença e a violência: Eles são o símbolo de um país doente que brinca com os pobres, sem escolas, sem comida, sem emprego, dormindo em uma parada de ônibus, sem teto, sem terra, sem esperança. O pior é que, ao condena-los, jogamos neles toda a culpa, como se não fôssemos culpados também. Ao condenar quatro jovens a 14 anos de prisão por queimarem um índio que dormia em uma parada de ônibus, nós ficamos livres para passar com a consciência tranqüila ao lado de milhares de outros pobres dormindo em paradas de ônibus, porque, se forem queimados vivos, nós voltaremos a condenar os autores. Só eles, como se os autores materiais, induzidos por uma sociedade doente, fossem os únicos culpados do crime. A pena foi certa, mas incompleta. E pode ter um efeito contrário: liberar todos nós para continuarmos no grande crime social, enquanto estão presos os que cometeram o crime individual.

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O MAU-TRATO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: OS CAMINHOS DA PREVENÇÃO, DA PROTEÇÃO E DA RESPONSABILIZAÇÃO. Valéria Nepomuceno



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CONSIDERAÇÕES INICIAIS Existem aspectos da história humana que, infelizmente, não mudaram desde que o homem deu os seus primeiros passos na terra. Não é que exista um eterno retorno às mesmas situações já vividas, o que ocorre é que essas situações perduram desde tempos imemoriais até a atualidade. A civilização evoluiu, o homem já adentrou o espaço sideral, mas ainda continua se matando por conta de valores culturais, religiosos ou por pura ambição. Conta-se que a empregada de Sigmund Freud ao ver a escultura do busto do criador da psicanálise, executada pelo escultor iugoslavo Olem Nemon, disse para Freud: “o professor parece que está com raiva”, ao que o velho pensador respondeu: “E estou mesmo muito aborrecido com a humanidade. A atitude do mundo não é, agora, mais amistosa do que há vinte anos”. Isso foi em 1939. A violência praticada contra crianças e adolescentes, ao longo da história, é um dos aspectos da civilização que ainda continua a existir a despeito de já estarmos em um terceiro milênio. Na China, dos dias atuais, ainda é comum o infanticídio de bebês do sexo feminino, como ocorria na antiga Grécia com os portadores de malformação congênita.O que, por vezes, muda é a forma como essa violência se expressa, mesmo que em essência, ela continue a mesma. Felizmente, na atualidade, embora a violência contra crianças e adolescentes ainda continue a existir, a atitude da sociedade com relação a esta prática não é mais a mesma. Vozes se levantam nos mais distantes rincões do planeta contra a idéia de que crianças e adolescentes podem ser brutalizados e, muitas vezes, sob a desculpa de que essa violência é um meio de educá-los. Dentre as formas em que se expressa a violência contra meninos e meninas, o maltrato infantil é uma das mais antigas e corriqueiras. Essa forma de violência se caracteriza por um dano causado à criança ou ao adolescente pelos pais, parentes ou responsáveis pelos mesmos. Esse dano pode ter por causa uma violência física, sexual, psicológica ou omissiva. O mau-trato infantil é uma forma de violência que se processa no ambiente intrafamiliar, daí porque ações preventivas ou protetivas com 139


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relação ao mau-trato infantil não podem deixar de considerar ações que tenham como objetivo a estrutura familiar. Um dos instrumentos criados pela sociedade brasileira, visando combater a violência contra crianças e adolescentes, e conseqüentemente o maltrato infantil, foi a Lei 8.069 ou Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto, que tem por base a Doutrina da Proteção Integral, propagada pela Declaração Internacional da Criança, editada pela ONU, em 1989, veio consolidar uma nova visão da problemática infanto-juvenil. O Estatuto representou um avanço em relação ao Código de Menores que, calcado na Doutrina da Situação Irregular, só admitia a intervenção do Estado quando o menino ou a menina estivesse em uma situação tida como irregular, isto é, fora dos padrões da sociedade vigente. De acordo com a Doutrina da Proteção Integral, os componentes do grupo, formado por crianças e adolescentes, passam a ser sujeitos de direitos e com necessidades específicas inerentes a sua condição de pessoas em desenvolvimento. Sob a influência da Doutrina da Proteção Integral, o Estatuto, em boa parte de seus dispositivos, trata dos Direitos Fundamentais de Crianças e Adolescentes, que a partir desta Lei, precisavam ser garantidos e respeitados. Esses direitos já haviam sido elencados no Artigo 227, da Carta Constitucional de 1988, também na esteira da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. São eles: os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Uma das principais inovações, trazidas pela Lei nº 8.069, foi a participação da sociedade na formulação da política de atendimento a criança e ao adolescente. Essa participação é viabilizada através dos Conselhos de Direitos que são órgãos do poder executivo, seja municipal, estadual ou federal e contam com representantes da sociedade civil e do Estado, tendo como objetivo decidir sobre a formulação e controle das políticas de atendimento à população infanto-juvenil. Outra inovação, trazida pelo Estatuto, foi o Conselho Tutelar que, por sua vez, também é um órgão do Executivo, mas sua existência se restringe ao âmbito municipal. Esse órgão tem por função zelar pelo cumprimento dos direitos de meninos e meninas inscritos na Lei nº 8.069. 140


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Em diversos artigos, o Estatuto trata da violência contra crianças e adolescentes e em alguns deles, mais especificamente, da violência doméstica ou mau-trato infantil. Três linhas de ação devem ser seguidas no enfrentamento aos maus-tratos infligidos às crianças e aos adolescentes. A primeiro delas é a prevenção, que visa evitar que o maltrato se instale. A segunda é a proteção, voltada para o apoio e a recuperação das vítimas. E a última, visa à responsabilização dos culpados. O Estatuto também dispõe sobre cada uma delas. Este trabalho pode ser dividido em dois momentos. No primeiro momento, apresentamos a Lei nº 8.069 e procuramos demonstrar sua importância na luta contra o maltrato infantil e, no segundo, discutir as linhas de atuação no enfrentamento ao maltrato infantil que são a prevenção, a proteção e a responsabilização dos culpados.

O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Um dos instrumentos mais recentes, criados pela sociedade brasileira para garantia dos direitos de crianças e adolescentes, é a Lei Nº 8.069 ou Estatuto da Criança e do Adolescente. Considerado um avanço na garantia dos direitos da população infanto-juvenil, o Estatuto trata, além de outros temas, da prevenção e da repressão à violência, praticada contra crianças e adolescentes, ocorra ela no ambiente intra ou extrafamiliar. Essa Lei não surgiu por uma mera outorga do poder público, mas como fruto da mobilização da sociedade civil, preocupada em modificar a situação desumana em que vive a grande maioria de nossas crianças e adolescentes.

QUANDO TUDO COMEÇOU Até a década de oitenta, a atenção dada pelo Estado às questões relacionadas à criança e ao adolescente não é muito diferente do resto da América Latina. Até fins do século XIX não se registra no Brasil qualquer intervenção estatal em termos de políticas de atendimento à criança e ao adolescente. Neste período, as iniciativas deste campo estavam ligadas à Igreja católica ou a outras entidades de caráter privado. 141


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Já no século passado, em 1922, no Distrito Federal, então Cidade do Rio de Janeiro, foi criado o primeiro estabelecimento público de atendimento a menores. Em 1927, surge o primeiro Código de Menores da lavra do então juiz de menores, da capital da República, Mello Matos. A partir da década de quarenta, começa o declínio das práticas privadas e caritativas da assistência pública, e, na década de cinqüenta, por sua vez, começa a surgir a ideologia e a prática das políticas públicas. De acordo com Emílio Garcia Mendez (1994), neste período: O Estado populista-distribucionista cobre, com relativa eficiência, o campo das políticas básicas. As omissões do sistema, que do ponto de vista quantitativo, têm pouco peso relativo, são resolvidas através de intervenções supletivas de caráter judicial. Para isto, as legislações de menores, precedentes a este processo, outorgam poderes muito amplos aos juízes, poderes estes que são trazidos numa competência ilimitada penal-tutelar. Os movimentos sociais, nesta área específica, são ainda inexistentes.(p. 54)

Já na década de sessenta, assiste-se ao começo de um processo de crise com um impacto direto nas políticas públicas. O executivo transfere então ao judiciário a solução de problemas que o Estado deveria solver através de suas políticas públicas. Ocorre uma diminuição dessas políticas e um aumento da transferência da resolução das deficiências para a esfera jurídica. Na década de setenta, por sua vez, observa-se que essa tendência se mantém. A partir da década de oitenta, os movimentos que se vinham gestando em torno das questões das crianças e dos adolescentes, se consolidam no processo de discussão da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. É a Convenção que põe em relevo e na pauta dos movimentos sociais a dimensão jurídica da problemática do grupo formado pelas crianças e pelos adolescentes. A partir desse momento, passa a haver uma preocupação com a criação de instrumentos jurídicos que possam garantir o respeito aos direitos da população infanto-juvenil. Quando se instalou o processo de discussão da Carta Constitucional de 1988, formou-se uma articulação que ficou conhecida como “A Criança e Constituinte” que conseguiu inserir, na Magna Carta, o Artigo 227, cuja redação trazia, em seu conteúdo, os postulados da Convenção 142


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Internacional dos Direitos da Criança, apesar de a mesma só ter sido finalmente adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. O Artigo 227 dispõe : É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O Artigo 227, por outro lado, lançava as bases para um debate e mobilização que levaram ao surgimento da Lei nº 8.069 ou Estatuto da Criança e do Adolescente. Formada uma comissão redatora para o texto da lei, seus artigos correram o país, sendo exaustivamente debatidos e negociados por plenárias compostas por representantes de entidades dedicadas à infância (RIZZINE, 2000, p.77).

A TRÍADE DOUTRINÁRIA A atenção dispensada pelo Estado às questões da criança e do adolescente no Brasil, até o advento da Lei nº 8.069, tinha como fundamento a Doutrina do Direito do Menor e a Doutrina da Situação Irregular. A primeira delas foi à base do Código de Menores de 1927. Esse Código consolidou toda a legislação brasileira sobre crianças que até aquele momento era aplicada. Legislação esta, oriunda de Portugal, da época imperial e da própria República. De acordo com a Doutrina do Direito do Menor, os dispositivos do Código abrangiam os chamados efeitos da ausência, tutelando o órfão, o abandonado e os pais presumidos como ausentes, cujo pátrio poder se tornaria disponível. Já as crianças, inseridas em uma família, que obedecesse aos moldes socialmente aceitáveis, continuariam tendo seus direitos protegidos pelo Código Civil Brasileiro. Se os pais descumprissem qualquer das obrigações atribuídas a 143


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eles pelo Código Civil ou se a criança apresentasse uma conduta tida como anti-social, a tutela passava do Código Civil para o Código de Menores e dos pais, para o Juiz de Menores. O Código de 1927 tinha como objetivo legislar sobre as crianças de 0 a 18 anos que estivessem em situação de abandono, não possuíssem moradia certa ou os pais fossem falecidos, ignorados, desaparecidos, declarados incapazes, presos há mais de dois anos, qualificados como vagabundos, mendigos, de maus costumes, exercentes de trabalhos proibidos que fossem prostitutos ou incapazes de prover economicamente as necessidades de seus filhos. Para o Código de 1927, as crianças menores de sete anos eram denominadas expostos, as menores de 18 anos, abandonadas, os atuais meninos em situação de rua eram os vadios, as crianças que esmolam ou vendem bugigangas na rua eram os mendigos e aqueles que freqüentavam casas de prostituição eram chamados de libertinos. No Artigo Nº 68, o Código ocupava-se do já denominado menor delinqüente e fazia uma diferenciação entre os menores de 14 anos e aqueles entre 14 anos completos e 18 anos incompletos. Propugnava também por uma separação, nos estabelecimentos prisionais, dos menores delinqüentes dos condenados adultos. A Doutrina da Situação Irregular veio à cena com o Código de Menores de 1979. Sua formulação é atribuída ao jurista argentino Ubaldino Calvento, tendo sido propagada no Brasil pelo Juiz de Menores do Rio de Janeiro, Alyrio Cavallieri. Dito Juiz foi quem propôs, para o Código de 1979, o fim da terminologia utilizada pelo Código de 1927 como exposto, abandonado, delinqüente, transviado, vadio, infrator, libertino etc. As crianças abrangidas por essas denominações seriam agora colocadas como estando em situação irregular. De acordo com Porto (1999): “situação irregular foi o termo encontrado para as situações que fugiam ao padrão normal da sociedade saudável em que se pensava viver”. (p. 78) Encontravam-se em situação irregular os abandonados, as vítimas de maus-tratos como também os miseráveis e os infratores. Se a criança fosse enquadrada em qualquer das situações descritas no artigo segundo do Código de Menores, passaria à tutela do Juiz de Menores, que deveria aplicar, em sua defesa os preceitos do Código. A terceira doutrina é conhecida como Doutrina da Proteção 144


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Integral e tem por base os postulados da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, promulgada pela Organização das Nações Unidas. Essa Doutrina foi incorporada à Constituição de 1988 e posteriormente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069. A Doutrina da Proteção Integral apresenta três pontos principais. Em primeiro lugar, as crianças são vistas como cidadãos e cidadãs completos, com os mesmos direitos que os adultos e ainda, alguns outros, referentes às peculiaridades dessa fase do desenvolvimento. Em segundo lugar, a atenção às necessidades da criança deve ser dada de uma forma integral, levando-se em conta aspectos físicos, mentais, culturais, espirituais etc. Em terceiro lugar, é colocado, que a proteção das crianças e adolescentes, bem como a garantia dos seus direitos, não é responsabilidade apenas da família, mas também do Estado e da sociedade como um todo. Nessa nova perspectiva que orientou a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se cuida mais de crianças em situação regular ou irregular, mas apenas de crianças e de adolescentes que precisam ter seus direitos respeitados independente de de cor, religião ou da classe social a que pertençam. O atendimento a necessidades como educação, saúde ou lazer, deixam de ser favores para se transformarem em direitos a serem exigidos e respeitados.

PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE O ESTATUTO E A LEGISLAÇÃO ANTERIOR A primeira delas, como já vimos, diz respeito à doutrina que embasa os preceitos desses dois diplomas legais. Enquanto o Código de Menores se regia pela Doutrina da Situação Irregular, que preconizava a ação do Estado, apenas, quando a criança ou adolescente estivesse em uma situação fora dos padrões sociais, o Estatuto rege-se pela Doutrina da Proteção Integral que percebe a criança ou ao adolescente como um sujeito de direitos, que precisam ser garantidos e respeitados. Com relação ao pátrio poder, a legislação atual não mais prevê a sua destituição ou suspensão por motivo de pobreza como acontecia na anterior. Assim se tornou menos arbitrária a intervenção judicial no âmbito da família. Outra importante diferença é quanto à apuração dos atos 145


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infracionais praticados por adolescentes. No Código de Menores de 1979, esse processo não era penal, mas de cunho administrativo, no qual o Juiz de Menores tinha amplos poderes para descobrir o crime e punir o criminoso, além de atuar como defensor do menor. A Lei nº 8.069 garante ao adolescente, autor de ato infracional, o contraditório e a ampla defesa com a assistência de um advogado. Na legislação atual, o adolescente só poderá ser privado de sua liberdade em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Anteriormente, no entanto, era permitida a prisão cautelar do adolescente suspeito de ato infracional e qualquer um teria autoridade para prendê-lo, mesmo em caso de mera suspeição. Outra diferença significativa é com relação ao antigo Juiz de Menores que a partir do Estatuto, passou a chamar-se de Juiz da Infância e Juventude. Esse Magistrado, ao invés do plenipotenciário do Código de Menores, funciona agora somente como autoridade judiciária e tem sua competência rigorosamente determinada pelo Estatuto. Com a Lei nº 8.069, o Ministério Público também passou a ter importantes funções na área dos direitos de crianças e adolescentes e um destacado papel na defesa desses direitos. Talvez um dos maiores avanços do Estatuto em relação ao Código de Menores tenha sido a criação de mecanismos de participação da sociedade na formulação e controle das políticas de atendimento à criança e ao adolescente. Essa participação, prevista na Carta Constitucional de 1988, pode agora ser operacionalizada através dos Conselhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares.

O ESTATUTO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA O conceito expresso pelo termo direito abriga várias noções, sendo as mais comuns a de direito objetivo e a de direito subjetivo. No primeiro caso, temos o conjunto de normas postas pelo Estado, é o direito positivado, que ganha forma nas legislações e impõe preceitos a serem observados por cada cidadão e cidadã. No segundo caso, temos o direito 146


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subjetivo, que se relaciona ao próprio cidadão ou cidadã e representa a faculdade ou poder de agir que as normas lhe conferem. Vemos desse modo, que o direito subjetivo pressupõe sempre a existência do direito objetivo, pois como prescreve nossa Constituição ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei. (Art.5 - § II) O direito subjetivo, portanto, surge artificialmente, a partir da criação de uma lei. Existe, porém, uma categoria de direitos, que apesar de terem sido também positivados ao longo do tempo, ou seja, escritos em lei, remontam ao surgimento do ser humano na terra e são por isso anteriores à criação de qualquer legislação. Esses direitos são catalogados como humanos ou fundamentais e correspondem aos direitos à vida, à liberdade, ao trabalho, à segurança, entre tantos outros. Os Direitos Fundamentais da Pessoa Humana, que inicialmente eram pouco considerados, com o evoluir da civilização foram ganhando relevância. Sob a influência de doutrinas como o contratualismo e o jusnaturalismo, eles acabaram por ser introduzidos nas Constituições de diversos países. Dois escritos são considerados como marcos iniciais da positivação dos Direitos Fundamentais, que são os Bills of Rights de várias colônias americanas e a Declaration des droits de l’omme et du citoyen votada pela Assembléia Nacional Francesa de 1789. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão propugnava pela igualdade nos direitos de todos os homens, e pela defesa de seus direitos naturais e imprescritíveis como a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Em 1948, com a humanidade ainda sob o pavor das atrocidades acontecidas na segunda guerra mundial, a Assembléia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos1 . O genocídio de milhões de pessoas associado ao horror nuclear, visto pela primeira vez nas explosões de Hiroshima e Nagasaki, tornou de uma urgência gritante, a necessidade de mais do que nunca, se preservar os Direitos Fundamentais do ser humano. O artigo primeiro da Declaração estabelece que Todas as pessoas nascem livres e iguais em A Declaração da ONU teve por base, um texto anteriormente redigido para a Liga das Nações pelo humanista e escritos britânico Herbert George Wells. Wells e autor do famoso romance de ficção cientifica A Máquina do Tempo. 1

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dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas as outras com espírito de fraternidade. As Constituições brasileiras sempre inscreveram, em seus textos, referências aos direitos fundamentais dos homens, tendo sido a Carta Magna de 1824, a primeira do mundo a positivar os direitos humanos. A atual Constituição de 1988 trata do tema com uma abrangência muito maior que as anteriores, tendo o seu Título Segundo sido reservado aos direitos e às garantias fundamentais. Vale notar que existe mais de uma classificação para os Direitos Humanos, mas de acordo com José Luiz Quadros de Magalhães, eles podem ser divididos em Direitos Individuais, Sociais, Econômicos e Políticos. Os Direitos Individuais dizem respeito à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança e à igualdade. Os direitos Sociais compreendem os direitos relativos à saúde, à educação, à previdência e à assistência social, ao lazer, ao trabalho, à segurança e ao transporte. Já os Direitos Econômicos são aqueles capazes de viabilizar uma política econômica e estão entre eles os direitos ao pleno emprego, ao transporte integrado à produção, o Direito Ambiental e o Direito do Consumidor. Por fim, temos os Direitos Políticos que são os direitos que permitem participar da vida política do país. A evolução conseguida no respeito e garantia dos Direitos Humanos, no entanto, não teve um reflexo imediato na situação de grupos sociais como, por exemplo, as mulheres, os negros, os índios ou as crianças. Com relação às crianças, alguns estudos históricos nos informam que, a princípio, não se fazia qualquer distinção entre a criança, o adolescente ou o adulto. A criança era vista apenas como um adulto em miniatura e tratada como tal. Essa concepção fazia com que, entre os mais aquinhoados economicamente, as crianças fossem obrigadas a uma exaustiva escolarização precoce e entre os mais pobres a trabalhar logo cedo. Foi com a ascensão da burguesia que a idéia que se tinha da infância começou a mudar, pois os burgueses, com melhores recursos, interessavam-se mais em proteger e educar seus filhos que pô-los a trabalhar. Apesar da evolução dos Direitos Humanos e de um maior conhecimento do que seja a infância e a juventude, por muito tempo, pouca atenção foi dada à garantia dos direitos fundamentais das crianças 148


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e adolescentes. A criança ainda continuou a ser vista como um semiadulto e não como um ser humano completo, com necessidades próprias. A legislação penal, por exemplo, não fazia distinção entre crianças e adultos. O crescente interesse pela problemática das crianças e adolescentes, no entanto, fez com que, no século passado, em 1959, as Nações Unidas editassem a Declaração Universal dos Direitos da Criança2 . Seguiu-se, trinta anos depois, a Convenção Sobre o Direito da Criança aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro através do Decreto Legislativo de 28 a 14 de setembro de 1990. A Convenção foi ratificada pelo então Presidente da República através do Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990. Em nosso país, a Constituição Federal de 1988 faz referência à garantia aos Direitos Fundamentais das crianças e adolescentes no artigo 227, por nós já citado neste trabalho. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, regulamentando o artigo 227 de nossa Constituição, trata exaustivamente dessa categoria de direitos das crianças e adolescentes.

O DIREITO À VIDA E À SAÚDE No Estatuto da Criança e do Adolescente, os Direitos Fundamentais são tratados no título II, da parte geral. São os direitos à vida e à saúde, à liberdade, ao respeito e à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, cultura, esporte e lazer e à profissionalização e à proteção no trabalho. O Capítulo I, do Título II, dispõe sobre o direito à vida e à saúde das crianças e adolescentes. No Artigo Sétimo, vamos encontrar que: A criança e o adolescente têm direito à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. As disposições do Estatuto neste primeiro Capítulo, trazem uma 2 O primeiro documento onde foram colocados os direitos das crianças veio à luz em 1923, de autoria da enfermeira ingleza, fundadora da Save the Children, Eglantyne Jebb. Neste documento conhecido como Declaração de Genebra, ela já chamava a atenção para a responsabilidade dos Estados e da Sociedade com o futuro das crianças.

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preocupação com o nascimento e o desenvolvimento saudável da criança, pois para que seu direito à vida possa se efetivar, é preciso que lhe sejam dispensados cuidados especiais desde o nascimento. A proteção à vida e à saúde começam com o atendimento adequado a sua mãe, devendo ser assegurado à gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perinatal. (Art. 8) O Artigo onze do Estatuto remete para a garantia de crianças e adolescentes, em particular, os portadores de deficiência, terem um atendimento satisfatório no que diz respeito a sua saúde. Esse artigo desmente, com invulgar clareza, o mito de que a Lei nº 8.069 é uma lei para países de primeiro mundo. Nos países desenvolvidos, os direitos mínimos são respeitados, independentemente de uma legislação para esse fim. É triste ter que nomear o direito dos deficientes físicos, sensoriais e mentais à proteção e ao tratamento; porém, quem desconhece o descaso e o abandono de que é vítima essa porção discriminada de nossa população? (MINAYO, 1996, p. 51) Vejamos como está colocado o Artigo onze no Estatuto: Art. 11 - É assegurado atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. § 1 A criança e o adolescente portadores de deficiência receberão atendimento especializado. § 2 Incumbe ao Poder Público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação. No Brasil, a situação de extrema pobreza em que vive a maioria das famílias não permite que as mesmas supram as necessidades alimentares e até as emocionais dos pequenos, em seus primeiros anos de vida. Aliam-se a isso as péssimas condições de moradia, desprovidas de saneamento ou água potável. Nessas condições, muitas de nossas crianças morrem de desnutrição e doenças infecto-contagiosas, quando não adquirem seqüelas que vão acompanhá-las para o resto da vida. 150


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O DIREITO À LIBERDADE, AO RESPEITO E À DIGNIDADE No segundo Capítulo do Título II, o Estatuto trata do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade. No Artigo quinze, temos que: A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Em seguida, os Artigos 16, 17 e 18 especificam o que na Lei nº 8.069 se entende por liberdade, respeito e dignidade. A liberdade compreende a possibilidade de ir, vir e estar em logradouros públicos e espaços comunitários; de opinião e expressão; de crença e culto religioso; de brincar, praticar esportes e divertir-se; de participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação; de participar da vida política, na forma da lei e de buscar refúgio, auxílio e orientação. Com relação ao respeito, o Estatuto nos diz que este consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente e na preservação de sua imagem, identidade, autonomia, valores, idéias, crenças, espaços e objetos pessoais. No Artigo 18, o Estatuto determina que velar pela dignidade da criança e do adolescente é dever de todos, bem como colocá-los a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA Não obstante, eventuais experiências negativas que se possa ter no ambiente familiar, sabe-se que a vida em família é uma determinação humana motivada pelas necessidades de reprodução biológica e social. No espaço familiar, as possibilidades para um desenvolvimento biopsicológico sadio são maiores e, ainda, é no ambiente de casa que o futuro adulto começa a introjetar os valores do grupo social a que pertence. A família é também o “porto seguro” para onde se pode retornar do mar revolto do mundo, onde os peixes maiores estão sempre a querer devorar os pequenos e onde se sofre com frustrações, humilhações e fracassos. 151


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A importância das questões relativas à família foi ressaltada por nossa Lei Maior que tratou do tema no Capítulo sétimo, de seu oitavo Título, juntamente com a problemática da criança, do adolescente e do idoso. Isso por entender que tanto as questões das crianças e dos adolescentes quanto à dos idosos estão intrinsecamente ligadas àquelas relativas à família. A Carta Constitucional de 1988, em seu Artigo 226, prescreve que: a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. A Lei nº 8.069, regulamentando o que vem determinado na Constituição de 1988, quando trata dos direitos à vida, às convivências familiar e comunitária, traz vários artigos dispondo sobre a família e sua relação com a criança e com o adolescente. No Artigo 19, temos que: Toda criança e adolescente têm direito a ser criado e educado no seio de sua família, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

A Constituição de 1988, em seu Artigo 227, parágrafo sexto, acaba com a discriminação entre os filhos havidos ou não da relação de casamento ou por adoção. Para todos são atribuídos os mesmos direitos e qualificações além de serem proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. O Estatuto reforçou as determinações da Lei Máxima em seu Artigo 20. Não era mais possível que, em nosso ordenamento jurídico, continuassem a serem usadas designações discriminatórias e até constrangedoras de filho adulterino, ilegítimo, incestuoso ou adotivo. Na nova ordem estabelecida pelo Estatuto, o pátrio poder passa a ser o instrumento que os pais possuem para cumprirem os seus deveres de guarda, sustento e educação dos filhos. Ele será exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe, só podendo ser quebrado em processo judicial com direito à ampla defesa. O Estatuto, em seu Artigo 23, determina que a pobreza não será mais razão para quebra do pátrio poder, derrogando o que estabelecia o Código de Menores, na qual o Juiz de Menores podia retirar o filho da guarda de seus pais, alegando que eram pobres. O Estatuto trata da família de origem ou natural nos Artigos 25, 26 e 27, definindo-a como a comunidade formada pelos pais ou qualquer 152


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deles e seus descendentes. Ao tratar da família substituta, a Lei nº 8.069 esclarece que esse mecanismo só será utilizado em caso excepcional, devendo, sempre que possível, a criança ou o adolescente permanecer em seu lar de origem. O Estatuto dispõe sobre a família substituta, nos Artigos 28 e seguintes. Ele não define o que seja a mesma, mas nos diz que a colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção. O pedido de colocação em família substituta não será deferido à pessoa que se revele incompatível com a medida ou que não ofereça um ambiente familiar adequado à execução da medida.

O DIREITO À EDUCAÇÃO, À CULTURA, AO ESPORTE E AO LAZER Seguindo a orientação da Doutrina da Proteção Integral, o Estatuto se preocupou em garantir uma educação que não esteja voltada apenas para a transmissão de informações, mas, sobretudo, com a formação do cidadão e cidadã. Sendo assim, em seu Artigo 53, vamos encontrar que: Art. 53 - A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado por seus educadores; III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV – direito de organização e participação em entidades estudantis; V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência. A educação para a cidadania busca mostrar a crianças e aos jovens que eles são sujeitos de direitos e de responsabilidades, que devem respeitar, mas que também podem exigir respeito. Que podem e devem participar das decisões em sua família, comunidade, escola, cidade ou país. Nesse processo, é importante a participação nas entidades estudantis como grêmios ou Conselhos Escolares, daí porque o Estatuto garante a organização e a participação nas entidades estudantis. No Artigo 54 do Estatuto, na linha do que foi colocado pelo artigo 153


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208 da Constituição Federal, temos que a educação é um direito público subjetivo e que o não oferecimento do ensino obrigatório ou sua oferta irregular implica em responsabilização do administrador público. Sendo a educação um direito público subjetivo, pode ser exigida diretamente do Estado pelo cidadão. Esse direito expressa-se principalmente pelo acesso à escola e pela permanência nesta. O acesso é o direito de toda criança e todo adolescente de estarem na escola, seja do adolescente que trabalha durante o dia e precisa estudar à noite, seja do portador de deficiência que precisa ser incluído na rede regular de ensino como forma de evitar a segregação. A permanência ou não na escola, está diretamente ligada às difíceis condições de vida enfrentadas por crianças, adolescentes e suas famílias. O Estatuto, não obstante esta realidade, traz nos Artigos 53 e 54 disposições, visando possibilitar uma maior permanência de crianças e adolescentes nas unidades de ensino. No inciso terceiro do Artigo 53, temos que é assegurado aos meninos e meninas o direito de contestar critérios avaliativos e recorrer a instâncias estudantis superiores, isto porque critérios rígidos de avaliação, muitas vezes, têm sido causa de afastamento de muitos alunos das escolas. O inciso sétimo do Artigo 54, por sua vez, estabelece que é dever do Estado o atendimento ao ensino fundamental através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. A garantia suplementar de material didático impede que estabelecimentos públicos exijam qualquer tipo de material de seus alunos; a garantia suplementar de transporte e alimentação visa suprir a carência da maioria dos usuários da rede pública de ensino que, muitas vezes, deixam de ir à escola por não terem o que comer ou meios para se transportar. Por fim, a assistência à saúde, como forma de atender aqueles que deixam a escola por motivo de doenças.

O DIREITO À PROFISSIONALIZAÇÃO E À PROTEÇÃO NO TRABALHO O trabalho infantil é atualmente uma preocupação que está na pauta de governos e sociedade civil por todo o mundo. Segundo dados 154


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da Organização Internacional do Trabalho - OIT, passa de 250 milhões o número de crianças trabalhadoras em todo o planeta. O pior é que a maioria dessas crianças e adolescentes trabalham em condições que os impedem de freqüentar a escola, prejudicando-lhes, as saúdes física e mental. Apesar de muitos falarem em erradicação do trabalho infantil em países desenvolvidos, isto não é real, o que ocorre é que nesses países, os explorados na sua maioria pertencem a grupos de imigrantes ou minorias étnicas. É o que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos da América onde as crianças que trabalham são oriundas da Ásia ou da América Latina. Existe quem defenda que determinadas formas de trabalho infantil não prejudicam e são até benéficas para crianças e jovens. Isso não corresponde à realidade, uma vez que, na infância, a liberdade e o brincar são fundamentais para a estruturação de uma personalidade sadia no futuro adulto. Qualquer forma de trabalho, mesmo que não exija esforço físico ou mental do infante, vai privá-lo de um relacionamento livre com o universo que o cerca. As causas do trabalho infantil são diversas, mas é inegável que a sua causa principal está relacionada à pobreza. A situação miserável em que vive a grande maioria das famílias em países como o nosso, faz com que crianças e adolescentes se lancem muito cedo no mundo do trabalho, como forma de aumentar a renda familiar. Empurrados pelas necessidades, meninos não têm outra alternativa a não ser esquecerem seus dias de infância e assumirem um papel que ainda não é o deles. O Estatuto da Criança e do Adolescente, incorporando essa preocupação mundial com a exploração do trabalho infantil, dispõe entre suas disposições sobre os Direitos Fundamentais das crianças e adolescentes, o direito à profissionalização e à proteção ao trabalho. Assim é que em seu Artigo 60, arrimado no inciso XXXIII do Artigo sétimo da Carta Magna de 1988, temos que: é proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. A emenda Constitucional número 20, por sua vez, alterou o Artigo sétimo da Lei máxima e conseqüentemente o Artigo 60 do Estatuto. Agora só é permitido o trabalho a maiores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos de idade. Como meio ainda de proteger o adolescente que trabalha, o 155


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Estatuto proíbe que o mesmo exerça atividades noturnas entre as vinte e duas horas de um dia até às cinco horas do dia seguinte; perigosas, insalubres ou penosas; em locais que prejudiquem a sua formação, os seus desenvolvimentos físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a freqüência à escola. Nesse caso, não importando que o trabalho seja na condição de aprendiz, em família, em escola técnica, em entidade governamental ou não-governamental. Em seu Artigo 69, o Estatuto finaliza o Capítulo cinco, determinando que o adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho, observando-se os seguintes aspectos: o respeito a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e a capacitação adequada ao mercado de trabalho.

A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE Um dos avanços, trazidos pela Carta Constitucional de 1988, foi a abertura para a participação da sociedade nas decisões com relação à formulação, ao implemento e à fiscalização das políticas públicas. Essa abertura à participação não ocorreu por acaso, mas veio na esteira do processo de redemocratização e fim da ditadura militar. Convergiram, naquele momento, dois interesses. O da sociedade civil, cansada de uma democracia meramente representativa e ineficaz, ansiando por uma democracia participativa e o do Estado, que por ter falhado em atender às demandas da sociedade, procurava agora dividir com a mesma as responsabilidades por suas políticas públicas. Em diversos dispositivos, o texto constitucional prevê a criação de espaços institucionais para a participação da sociedade, seja nos níveis federal, estadual ou municipal. São nesses espaços, que as propostas são colocadas e negociadas por representantes da sociedade civil e do Estado. Com relação à criança e ao adolescente, a Constituição, quando trata da assistência social, em seu Artigo 203, determina que entre os objetivos da mesma estão as proteções à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, além do amparo às crianças e aos adolescentes carentes. No Artigo 204, temos que: As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no 156


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Art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes : I – descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e à coordenação e execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. O Estatuto da Criança e do adolescente, como não poderia deixar de ser, contemplou a participação da sociedade nas decisões relacionadas às políticas públicas, direcionadas à população infanto-juvenil, quando determinou a criação dos Conselhos dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes e dos Conselhos Tutelares.

OS CONSELHOS DE DIREITOS O Estatuto, em seu Artigo 88, inciso II, nos diz que uma das diretrizes da política de atendimento à criança e ao adolescente é a criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federais, estaduais e municipais. Os Conselhos são órgãos que fazem parte do executivo não devendo, portanto, até mesmo em respeito à autonomia dos poderes da República, serem integrados por representantes do Legislativo ou do Judiciário. A formulação e implementação das políticas públicas como se sabe está na esfera do executivo, sendo um desvio de atribuições à participação do judiciário ou do legislativo na composição desses Conselhos. Legislativo e judiciário não podem, segundo a norma constitucional, invadir as atribuições próprias do executivo. É desvio grave em relação à norma, que o Judiciário integre qualquer desses Conselhos. O mesmo se dá em relação à Câmara de Vereadores (e esse desvio vem ocorrendo em alguns municípios). (SEDA, 1993, p.59) 157


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Por outro lado, com relação ao Judiciário, cabe a ele dirimir qualquer controvérsia legal que eventualmente venha a existir entre o Conselho e a própria administração pública, donde se conclui pela impossibilidade do mesmo emitir uma decisão em uma demanda, em que ele próprio seja parte. O Ministério Público, por sua vez, também é uma instituição independente do executivo, daí porque ser um desvio da norma constitucional e estatutária sua inclusão como representante de Conselhos de Direitos. Além do que, do mesmo modo que ocorre com o Judiciário, como pode o Ministério Público exercer a sua função básica de fiscalização da lei, se tiver atrelado ao executivo, tendo por missão cumprir esta lei. O Ministério Público estaria, portanto, aplicando a função de fiscal da lei a ele próprio. O Conselho de Direitos, como se depreende da lei, tem três características básicas. São deliberativos, paritários e controladores das ações em todos os níveis. Os Conselhos são deliberativos, porque tem o poder de decidir sobre as propostas colocadas em discussão nas reuniões do conselho. As propostas que podem ser formuladas pelo próprio Conselho ou por órgãos governamentais são apreciadas e discutidas pelos representantes do executivo e da sociedade civil que então deliberam sobre as mesmas. Ações voltadas para o atendimento à criança e ao adolescente, que não passem pelo crivo do Conselho, estarão indo de encontro ao Estatuto. Os Conselhos são paritários, o que quer dizer que são compostos em número igual por representantes do executivo e da sociedade civil. Esses representantes serão indicados, no caso da representação governamental, e eleitos em uma assembléia, no caso dos representantes não-governamentais, por entidades inscritas no Conselho. Quanto ao controle das ações em todos os níveis, ela implica em uma fiscalização por parte do Conselho quanto à execução do que foi deliberado pelo mesmo ou, ainda, se está havendo algum desvio entre a execução de ações e as normas do Estatuto. Daí porque notícias de desvios devem ser encaminhadas aos Conselhos de direitos.

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OS CONSELHOS TUTELARES A existência do Conselho Tutelar está prevista no Artigo 131 da Lei nº 8.069, que nos diz ser o mesmo um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei. A idéia de permanência, colocada pelo Estatuto com relação aos Conselhos Tutelares, decorre de ele passar a integrar definitivamente o conjunto das instituições brasileiras. O Conselho Tutelar é ainda autônomo e não jurisdicional. A autonomia quer dizer que o mesmo tem competência para tomar decisões e medidas sem qualquer interferência externa. O fato de os conselheiros serem escolhidos pela própria sociedade reforça essa autonomia dos Conselhos. Ele é não jurisdicional, porque não pode tomar medidas típicas do judiciário, como, por exemplo, emitir ordem de prisão ou dirimir conflitos de interesse. O Conselho Tutelar, no entanto, conta com o apoio de outros órgãos públicos. De acordo com a Lei nº 8.069, o Conselho Tutelar deve ser composto por cinco membros que terão direito a serem reconduzidos apenas uma vez para seus cargos. Estes serão eleitos pela comunidade atendida pelo Conselho, sendo o processo de escolha definido em Lei Municipal e realizado pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, sob a fiscalização do Ministério Público. Segundo ainda o Estatuto, em seu Artigo 133, para participar da eleição, o concorrente deverá ter idade superior a vinte e um anos, ter reconhecida idoneidade moral e residir no município de atuação do Conselho. Existem ainda alguns impedimentos colocados pela Lei nº 8.069 com relação aos conselheiros. Esses impedimentos estão elencados no Artigo 140, em seu parágrafo único. De acordo com esse Artigo, são impedidos de atuar, no mesmo Conselho, marido e mulher; ascendentes e descendentes; sogro e genro ou nora; cunhados durante cunhadio; tio e sobrinho; padrasto ou madrasta e enteado ou que tiverem tais graus de parentesco com o Juiz ou o Promotor da Infância e da Juventude com atuação local. Os conselheiros, após eleitos pela comunidade, de acordo com a lei municipal que instituiu o Conselho e devidamente nomeados e empossados pelo Prefeito para mandato de três anos, deverão, como 159


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dispõe o Artigo 136 e incisos, da Lei nº 8.069, exercer as seguintes atribuições: a. Atender crianças e adolescentes quando ameaçadas e violadas em seus direitos e aplicar medidas de proteção; b.Atender e aconselhar os pais ou responsável, nos casos em que crianças e adolescentes são ameaçados ou violados em seus direitos e aplicar aos pais medidas pertinentes previstas no Estatuto; c. Promover a execução de suas decisões, podendo requisitar serviços públicos e entrar na justiça quando alguém, injustificadamente, descumprir suas decisões; d. Levar ao conhecimento do Ministério Público fatos que o Estatuto tenha como infração administrativa ou penal; e. Encaminhar à justiça os casos que a ela são pertinentes; f. Tomar providências para que sejam cumpridas as medidas de proteção (excluídas as socioeducativas) aplicadas pela justiça a adolescentes infratores; g. Expedir notificações em casos de sua competência; h. Requisitar certidões de nascimento e de óbito de crianças e adolescentes, quando necessário; i. Assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente; j. Entrar na justiça, em nome das pessoas e das famílias, para que estas se defendam de programas de rádio e televisão que contrariem princípios constitucionais, bem como de propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente;

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k. Levar ao Ministério Público casos que demandam ações judiciais de perda ou suspensão do pátrio poder; l. Fiscalizar as entidades governamentais e não-governamentais que executem programas de proteção e socioeducativas (SEDA, 1997, p. 12).

OS CENTROS DE DEFESA Os Centros de Defesa dos Direitos de Crianças e de Adolescentes são entidades da sociedade civil que, com a aprovação do Estatuto, ganharam status legal, sendo previstos no Artigo 87, inciso V, da Lei nº 8.069. Segundo esse dispositivo, uma das linhas de ação da política de atendimento é a proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Constituídos de equipes multidisciplinares, compostas em sua maioria por advogados, assistentes sociais, sociólogos e psicólogos, esses Centros, embora sendo organizações não-governamentais, têm sua atuação inserida no campo da política de atendimento. A entidade se constitui estatutariamente como Centro de Defesa de Direitos, e isto lhe permite entrar com ações na Justiça para garantir os direitos de crianças e de adolescentes. E como podemos notar, no Anexo 1, dispõe-se de um atendimento jurídico-social, em sua sede, que desempenha atividades que vão desde o recebimento da denúncia até a participação em Fóruns e Redes específicos, para tratar da questão da violência contra crianças e adolescentes, segundo Wanderlino Nogueira (1998): O Centro de Defesa tem de trabalhar com Educação, Saúde, Trabalho, Assistência, Direitos Humanos etc, porque a Política da Criança e do Adolescente é, na verdade, uma estratégia, ou melhor, um conjunto de ações. Ela é uma articulação e integração de políticas em favor da Criança e do Adolescente. A chamada Política de Atendimento a Direitos da Criança e do Adolescente atravessa todas as políticas tradicionais, advogando os interesses deles em todas as áreas. (p. 21-22)

O mesmo autor discute que o Centro de Defesa pode ser executor de política pública, mas ressalta que deve ser na ótica da alternatividade, 161


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isto é, para apontar o não-atendimento ou o mau-atendimento do Estado. E ainda, para propor alternativas de atendimento. O Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social -CENDHEC tem sido referência no estado de Pernambuco e reconhecido nacionalmente por defender, de uma forma abrangente, os direitos de meninos e de meninas. Alguns Centros, inclusive o CENDHEC, têm ampliado seu âmbito de trabalho, implantando o atendimento psicológico às vítimas de violência e a seus familiares. Os fluxogramas dos Anexos 1 e 4 são inspirados no trabalho do Centro. A previsão legal dos Centros de Defesa permite a utilização do instrumental jurídico, social e político, disponível na defesa dos direitos de crianças e de adolescentes, a articulação com órgãos estatais, como o Ministério Público, a Polícia ou mesmo o Judiciário. Os Centros de Defesa, portanto, propiciam à sociedade participar das ações governamentais na área do atendimento às crianças e aos adolescentes e na formulação da política quando são membros dos Conselhos de Direitos. Para se determinar o que seja um Centro de Defesa, o mais importante é verificar se ele faz uma intervenção jurídica com intervenção social, isto é, se ele trabalha o jurídico numa linha de mobilização social, comunicação e formação. De outra forma, temos apenas escritórios de advocacia com serviços gratuitos. Em outras palavras, a especificidade do Centro de Defesa é justamente a defesa jurídico-social.

O MAU-TRATO INFANTIL NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O mau-trato infantil aparece em diversos momentos nos dispositivos da Lei nº 8.069. De início, temos o Artigo quinto, no qual é colocado que nenhuma criança ou adolescente será exposta a qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão e que deverá ser punido, na forma da lei, qualquer atentado que possa ocorrer, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Confrontando essa afirmação do Estatuto com a afirmação de que o mau-trato infantil é qualquer ato ou omissão praticada contra a criança ou o adolescente, por pais ou responsável, capazes de causar-lhes dano 162


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físico, psicológico ou sexual, podemos constatar que a segunda afirmação está contida na primeira. A negligência é uma das formas de expressão do mau-trato infantil. Apesar de o Estatuto não colocá-la diretamente como violência, pensamos tratar-se de uma forma de violência omissiva, que se caracteriza pelo descuido, incúria ou desleixo a que são submetidos meninos e meninas, no atendimento às suas necessidades de alimentação, moradia, educação, saúde ou lazer. Por outro lado, o Estatuto coloca como violência, propriamente dita, aquela caracterizada pelo dano mais diretamente físico, moral ou sexual. Violência esta que se torna mau-trato infantil, quando praticada por quem é responsável pela criança ou pelo adolescente e tem o dever de protegê-los e zelar por seu desenvolvimento sadio. O Estatuto prevê, ainda, neste dispositivo, a punição para aquele que atentar contra os direitos fundamentais de meninos e meninas e conseqüentemente para os que promoverem o mau-trato infantil. No Artigo 17, quando cita o direito ao respeito, o Estatuto esclarece que o mesmo consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente e que essa inviolabilidade abrange a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, das idéias e das crenças, dos espaços e dos objetos pessoais. O mau-trato infantil, como já vimos, vai de encontro a esse dispositivo ao se caracterizar justamente por uma violência física, psíquica, sexual ou omissiva contra meninos e meninas. Com relação ao dever dos pais para com suas crianças e adolescentes, a Lei nº 8.069 estabelece, em seu Artigo 22, que incumbe aos pais o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. O não-cumprimento injustificado dessa determinação do Estatuto caracteriza também uma forma de mau-trato infantil que pode ser punida até com a suspensão ou perda do pátrio poder, decretadas judicialmente nos termos do Artigo 24 do Estatuto. Quando existir suspeita ou confirmação de maus-tratos infligidos contra crianças ou adolescentes, estes deverão ser obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar sem prejuízo de outras providências legais. Isso é o que dispõe o Artigo 13 da Lei nº 8.069. O Conselho 163


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Tutelar, como já vimos, é o órgão criado pelo próprio Estatuto com a finalidade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. A escola é uma instituição onde quase todo ser humano se insere muito cedo. Os maus-tratos sofridos em casa se refletem no aprendizado e, muitas vezes, a investigação levada a cabo pelo próprio estabelecimento de ensino termina por confirmar esses maus-tratos. Em muitos casos, eles são visíveis, como nas agressões físicas que deixam marcas no corpo do menino ou da menina. Por outro lado, a falta à escola ou mesmo a não-permanência na mesma pode ter por causa a omissão dos pais. Sendo assim, o Estatuto determina, em seu Artigo 55, que os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino e no Artigo 56, que os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de maus-tratos, envolvendo seus alunos e a reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares. Nosso entendimento é de que é preciso enfrentar o mau-trato infantil, a partir de ações articuladas em 3 eixos: prevenção – proteção – responsabilização. Os eixos estão conectados, um viabilizando a existência do outro, como propõe a representação gráfica do Anexo 2. A prevenção aparece como uma das maneiras de proteger crianças e adolescentes dos maus-tratos praticados por seus parentes, pais ou responsáveis. Quando buscamos a responsabilização desses violadores de direitos, estimulamos e encorajamos outras pessoas a fazer o mesmo, a denunciar e a procurar a punição legal para o mesmo, com isto provemos a proteção de outras crianças e prevenimos outros casos.

A PREVENÇÃO DO MAU-TRATO INFANTIL A prevenção da ocorrência de violação dos direitos da criança e do adolescente e como decorrência do mau-trato infantil, são explicitadas pelo Estatuto no título III, de sua parte geral, embora essa preocupação com a prevenção apareça também em outros dispositivos da Lei. No Artigo 70, deste título, temos que é dever de todos prevenir a 164


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ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente e no Artigo 73, que serão responsabilizadas, nos termos desta Lei, as pessoas físicas ou jurídicas que não observarem as normas de prevenção. O Artigo 19 nos parece também poder ser relacionado à prevenção do mau-trato infantil, quando prescreve que a criança e o adolescente têm direito a uma convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. Vale lembrar que Isabel Cuadros (2000) nos diz que o uso de substâncias psicoativas é uma das causas freqüentes do mau-trato infantil. El alcoholismo y otros tipos de drogadicción se está asociando cada vez más frecuentemente com todas las formas de maltrato, pero especialmente con la negligencia física e emocional.(p.2)

Quando trata da política de atendimento, o Estatuto determina, no inciso III, do Artigo 87, que uma das linhas de ação desta política são serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. Podemos ainda identificar uma medida de prevenção na atribuição que tem o Conselho Tutelar, prevista no inciso II, do Artigo 136, de atender e aconselhar os pais ou responsável. Se chegar até o Conselho a notícia de ameaça de mau-trato infantil, seja por desajuste familiar, seja por mera falta de recursos dos pais, que os impeçam de exercer adequadamente o pátrio poder, cabe ao Conselho Tutelar orientar esses pais e aplicar aos mesmos medidas previstas no Artigo 129, nos incisos de I a VII. Essas medidas são: I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de promoção à família; II – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; III- encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; IV – encaminhamento a cursos ou programas de orientação; V – obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua freqüência e aproveitamento escolar; 165


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VI – obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado; VII – advertência. Além das medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, acreditamos que para a prevenção do mau-trato infantil se faz necessário desenvolver, articuladamente, um conjunto de ações que destacamos a seguir: a) A realização de campanhas permanentes na mídia, esclarecendo sobre o tema, informando a população sobre os serviços especializados para as vítimas como também formas de prevenção do problema. b) O fomento à realização de estudos e de pesquisas, no campo acadêmico e no campo das organizações não-governamentais, que construam uma tipificação das modalidades de mau-trato infantil, própria da realidade brasileira, que levantem suas causas, avaliem os programas nacionais e locais voltados para a temática e aponte pistas para o enfrentamento dos maus-tratos. c) A formação de pessoal especializado na área do mau-trato infantil, estimulando o surgimento de agentes públicos que podem apoiar as vítimas com segurança e conhecimento. No rol dos agentes públicos, incluímos desde a equipe técnica instalada nas unidades especializadas de atendimento às vítimas deste tipo de violência, como também agentes sociais comunitários, agentes comunitários de saúde, estudantes universitários e aquelas pessoas interessadas no assunto. d) A formação de um público de adolescentes, especializados na temática, em cujas comunidades possam se tornar verdadeiros agentes sociais de prevenção do mau-trato infantil. e) Os Conselhos de Direitos das Crianças e dos Adolescentes, em todas as esferas de governo, podem e devem deliberar diretrizes e políticas de atendimento que favoreçam a prevenção do mau-trato infantil, realizando o devido controle das políticas implementadas. f) O fortalecimento dos Fóruns de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, importante na articulação da sociedade civil organizada para fazer o controle social das ações desenvolvidas no enfrentamento do mau-trato, cumprindo com seu papel político de pressionar o Estado na busca da priorização tanto do tema quanto do público infanto-juvenil. 166


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A PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS Observa-se que a proteção à criança e ao adolescente vítima de maus-tratos pode ser apresentada didaticamente em três momentos: o primeiro, fazer cessar os maus-tratos, denunciando o fato e buscando ajuda. No anexo 3, apresentamos um fluxograma da denúncia. O segundo momento da ação protetiva em favor da criança ou do adolescente é o seu afastamento do convívio com o agressor. Nestas situações, muitas vezes a criança é duplamente penalizada; primeiro, por sofrer a violência e segundo por ser afastada de sua casa, dos seus brinquedos, dos seus amigos e encaminhada para um abrigo ou centro de proteção às vítimas. O último momento é quando a criança passa a receber um atendimento especializado, via de regra através de profissionais da área de saúde, psicologia e serviço social. Este atendimento é fundamental para que se planeje sua vida futura. No Estatuto da Criança e do Adolescente, podemos identificar medidas de proteção a meninos e a meninas, vítimas do mau-trato infantil no Artigo 98 e nos seguintes. Neste dispositivo, vamos encontrar que as medidas de proteção à população infanto-juvenil serão aplicadas sempre que os direitos reconhecidos na Lei forem ameaçados ou violados. Uma das causas dessa ameaça ou violação se dá justamente, segundo o inciso II, do Artigo 98, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável. O Artigo 101, por sua vez, tem a seguinte redação: Art. 101 – Verificada qualquer das hipóteses previstas no Art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I-encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II – orientação, apoio e acompanhamento temporários; III- matrícula em freqüência obrigatória em estabelecimento oficial de ensino fundamental, IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, 167


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em regime hospitalar ou ambulatorial; VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII – abrigo em entidade; VIII- colocação em família substituta. É importante ressaltar que o próprio Estatuto esclarece que tanto a colocação no abrigo quanto em família substituta só ocorrerá em caso excepcional. No Artigo 19, temos que é direito da criança ou do adolescente ser criado e educado no seio de sua família, e o parágrafo único do Artigo 101 nos diz que o abrigo só será utilizado provisoriamente, não implicando em privação de liberdade.

A RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGRESSORES A responsabilização, ao mesmo tempo que fecha o círculo dos passos a serem percorridos na garantia dos direitos de crianças e de adolescentes, vítimas de maus-tratos (prevenção – proteção – responsabilização), é quase sempre o estímulo que a sociedade precisa para denunciar novos casos. Para o sucesso na fase de responsabilização do agressor, tão importante quanto a denúncia feita à polícia é o avanço do caso na esfera judicial. A este respeito, observar-se o anexo 4 que traz o fluxograma da responsabilização. É importante também o monitoramento de novos projetos de lei que tratam do assunto e a formação continuada dos profissionais que atuam nesta área. O Estatuto da Criança e do Adolescente traz alguns dispositivos com medidas punitivas para aqueles que praticam o mau-trato infantil ou que se omitem em denunciá-los, tendo a obrigação de fazerem a denúnica. O Artigo 129, em seus incisos, prevê a perda da guarda; a destituição da tutela e a suspensão ou destituição do pátrio poder para responsáveis por maus-tratos de crianças e adolescentes. No Artigo 130, temos que: verificada a hipótese de maus tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum. (ESTATUTO, 2001) 168


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Essa medida, além de responsabilizar aquele que promove os maustratos busca também proteger a vítima, afastando-a do agressor. Ao cominar penas aos crimes e às infrações administrativas, a Lei nº 8.069 esclarece que suas disposições serão aplicadas sem prejuízo da legislação penal e que os crimes, ali definidos, são de ação pública incondicionada. Crimes definidos no Código Penal como os de abandono material, abandono intelectual e outros, dizem respeito diretamente ao mau-trato infantil. No Estatuto, o Artigo 249 prevê que o descumprimento, doloso ou culposo3 , dos deveres inerentes ao pátrio poder ou decorrente de tutela ou da guarda, ou qualquer determinação judicial ou do Conselho Tutelar, acarretará multa de três a vinte salários de referência, que será dobrada em caso de reincidência. Já o Artigo 245 dispõe que: Art. 245 – Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus tratos contra criança e adolescente. Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.(ESTATUTO, 2001)

Vale salientar que existe ainda uma preocupação em se dar atendimento não só à vítima do mau-trato infantil, mas sempre que possível, também ao agressor. Muitas vezes, aqueles que promovem as agressões são pessoas inseridas em uma comunidade, que trabalham e têm uma vida social satisfatória. A falta de informação ou dificuldades emocionais e econômicas, é que, em muitos casos, transforma cidadãos pacatos em agressores. O tratamento dessas pessoas tem o importante objetivo de manter as crianças em seu ambiente familiar, evitando a reincidência da agressão ou a transferência das crianças para abrigos ou família substituta.

3 Quando a infração é praticada intencionalmente, é considerada dolosa. Quando, ao contrário, o agente não teve a intenção de praticar o delito, estamos diante de uma infração culposa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A atitude da sociedade brasileira, civil e política, frente ao mautrato infantil tem realmente mudado. Os avanços, nos últimos anos, foram bastantes e significativos. A Constituição Federal de 1988, seguindo o viés da Convenção Internacional da Criança, editada pelas Nações Unidas, deu ênfase à proteção integral de meninos e meninas, condensando, no Artigo 227 as aspirações dos diversos movimentos de defesa das crianças e dos adolescentes. O Estatuto, por sua vez, veio regulamentar o disposto na Magna Carta, especificando os direitos da população infanto-juvenil e os meios de garanti-los. Uma das mais corriqueiras formas de violação dos direitos da população, formada por crianças e adolescentes, é o mau-trato infantil. Famílias desajustadas são o ambiente propício para o surgimento desse tipo de violência. Adultos com dificuldades psíquicas e emocionais, agravadas, muitas vezes, por uma condição socioeconômica sofrível, acabam por tornar-se destruidores de sua própria prole. O Estatuto emerge como um eficaz instrumento na luta contra o mau-trato infantil prescrevendo medidas de prevenção, proteção às vítimas e responsabilização dos culpados. As ações de prevenção, de proteção e de responsabilização, entretanto, extrapolam o âmbito do Estatuto, sendo complementadas por medidas extrajurídicas. Campanhas de esclarecimento e de apoio socioeconômico às famílias, por exemplo, parecem estar na raiz da prevenção dos maus-tratos contra crianças e adolescentes. Esse trabalho, no entanto, para ser realizado, necessita de programas de geração de renda para as famílias mais pobres, além de uma rede de saúde dotada de profissionais capacitados no atendimento às famílias. Na proteção à vítima, quando o mau-trato já foi consumado, também é importante uma rede de saúde dotada de profissionais afeitos ao problema do mautrato infantil. Para a responsabilização dos culpados, o Estatuto prevê a cominação de penas para alguns crimes sem, no entanto, prescindir da legislação penal. A participação da sociedade nas políticas públicas de atendimento à criança e ao adolescente, prevista pelo Estatuto, é fundamental para o combate ao mau-trato infantil. Essa participação, entretanto, precisa ser 170


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efetivada através da implantação dos organismos que a possibilitem, como os Conselhos Tutelares. Precisa também ter qualidade, necessitando, para isso, da capacitação de pessoas que representem a sociedade nesses espaços. Algumas distorções são observadas na implantação de Conselhos de Direitos ou no funcionamento dos Conselhos Tutelares. Em alguns casos, inserem-se representantes do legislativo na composição de Conselhos de Direitos; no entanto, em outros, Conselhos Tutelares que deveriam funcionar por vinte e quatro horas, são fechados pelos conselheiros. É preciso corrigir esses desvios de rota, de modo que o mau-trato infantil possa realmente ser enfrentado. Um importante papel cabe também aos Centros de Defesa, uma vez que sua participação nas políticas de atendimento é referendada pelo Estatuto, e essas organizações da sociedade civil, além da defesa jurídicosocial de meninos e de meninas, participam da formulação de políticas, fiscalizam, denunciam e mobilizam a sociedade na defesa dos direitos de crianças e de adolescentes. Os maus-tratos contra meninos e meninas, que ocorrem no interior das famílias, só irão realmente diminuir quando as ações de prevenção, proteção e responsabilização forem realmente eficazes. Dentre elas, a prevenção parece ser a mais importante, pois pode até mesmo, através da informação, levar a uma mudança no imaginário social quanto ao tratamento a ser dispensado aos meninos e às meninas. Em sociedades mais primitivas, como a de nossos índios, os curumins recebem um tratamento nos leva a pensar. Lembramos do relato, que ouvimos em um programa de televisão, de conhecido sertanista brasileiro, que nos deixou impressionados. Disse ele que, ao chegar em certa aldeia, encontrou uma velha fazendo jarras de barro. Sempre que ela terminava de confeccionar, com todo cuidado e esmero, a asa de uma jarra, uma menininha que estava ao lado ia e quebrava aquela asinha que havia sido feita com tanta perfeição. Após esta cena ter se repetido várias vezes, o sertanista impacientou-se e perguntou à velha por que ela permitia que a menina quebrasse as asinhas das jarras. Ao que a velha senhora respondeu-lhe: “ela gosta de quebrar”. Ouvindo esta resposta, o sertanista não se conteve e perguntou-lhe: “Então por que você faz as asinhas com tanta perfeição e cuidado já que vão ser quebradas?” A resposta não poderia ter sido mais singela: “Ela só gosta de quebrar, se elas forem feitas assim”. 171


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Maria Amélia, GUERRA, Viviane. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1996. AROSEMANA, Carlos Alberto Lopes et alli. Abuso e exploração sexual de crianças e de adolescentes: vamos falar sobre isso. Recife: Rede de combate ao abuso e a exploração sexual de crianças e de adolescentes no Estado de Pernambuco, s/d. BETANCOURT, Josceline. Anális de Situación sobre el Maltrato Infantil. Asuncíon/ UNICEF /BECA, 1999. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2001. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei 8.069/1990. Recife: CEDCA, 2001. BRASIL. Ministério da Justiça. SEDH/DCA. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Brasília: MJ/SEDH/DCA, 2001. CONANDA. Diretrizes Nacionais para a Política de Atenção Integral à Infância e à Adolescência. 2001-2005. Brasília: CONANDA, 2000. COSTA, Antônio Carlos Gomes da. É possível mudar: a criança, o adolescente e a família na política social do Município. São Paulo: Malheiros, 1993. ________________________________ De menor a cidadão. Brasília: Ministério da Ação Social/CBIA, s/d. CUADROS, Isabel. Manual básico para el diagnóstico y tratamiento del maltrato infantil. Santafé de Bogotá: Convenio Asociación Afecto y Save the Children, 2000. 172


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

CURY, Munir et all. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros, 1996. GARCIA, Margarita Boch. O papel dos Centros de Defesa. In: Sistema de garantia de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999. LEAL, Maria Lúcia Pinto. Violência intrafamiliar: um estudo preliminar. In: Indicadores de violência intrafamiliar e exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Brasília: CESE/ Ministério da Justiça/ Fundo Cristão para crianças/ CECRIA, 1998. MENDEZ, Emílio Garcia, COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros, 1994. NEPOMUCENO, Valéria. A participação social nos espaços institucionais. In: Sistema de garantia de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999. ____________________ As relações com o mundo do trabalho: adeus infância. In: Sistema de garantia de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999. _____________________ A violência e a exploração sexual: vidas marcadas. In: Sistema de garantia de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999. NOGUEIRA, Wanderlino. O papel e a Natureza dos Centros de Defesa Criança e do adolescente. Revista da ANCED, ano 1, nº 1, março de 1998. PINTO, Nélson Loureiro. Manual de Orientações básicas aos Conselhos Tutelares. Brasília: CBIA; Araucária: APMI, s/d. PORTO, Paulo César Maia. Evolução dos Direitos Humanos. In: Sistema de garantia de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999. 173


O MAU-TRATO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: OS CAMINHOS DA PREVENÇÃO, DA PROTEÇÃO E DA RESPONSABILIZAÇÃO ○

______________________ Direitos Fundamentais da criança e do adolescente. In: Sistema de garantia de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999. _______________________ Principais avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente, em face da legislação anterior revogada. In: Sistema de garantia de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999. _______________________ As mentiras e as verdades sobre o Estatuto da criança e do Adolescente. In: Sistema de garantias de direitos: um caminho para a proteção integral. Recife: CENDHEC, 1999. RIZZINE, Irene. A criança e a lei no Brasil: revisitando a história (18222000). Brasília, DF: UNICEF; Rio de Janeiro, USU: Ed. Universitária, 2000. SÊDA, Edson. Construir o passado ou como mudar hábitos, usos e costumes, tendo como instrumento o Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 1993. ____________ XYZ do Conselho Tutelar. São Paulo: CONDECA, 1997. SILVA, Roberto. Direito do Menor X Direito da Criança. (Kalil@usp.br)

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ANEXOS



VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

ANEXO 1 MAU-TRATO INFANTIL - PROCEDIMENTOS DOS ATENDIMENTOS JURÍDICO-SOCIAL E PSICOLÓGICO DO CENTRO DOM HÉLDER CÂMARA - CENDHEC

DENÚNCIAS

CENTRO DOM HÉLDER CÂMARA - CENDHEC

ATENDIMENTO JURÍDICO-SOCIAL

-

-

-

ATENDIMENTO PSICOSSOCIAL

Intervenção jurídica com intervenção social, isto é, trabalha o jurídico numa linha de mobilização social, comunicação e formação Acompanha o caso nas esferas policial e judicial Visita Domiciliar Avaliação do Caso Parecer Social Diligências ao Fórum, Delegacia Especializada, Juizado da Infância e Juventude Estudo de Casos Articulação com os órgãos de defesa de direitos. Eventos de Formação de Pessoas na temática. Participação em Fóruns e Redes específicos.

-

-

177

Entrevistas de Triagem, de Avaliação Diagnóstica com a Vítima, de Avaliação Diagnóstica com a Família. Orientação Parecer Psicológico Atendimento em Situações Emergenciais Atendimento em Psicoterapia Breve Atendimento a Grupo de Famílias Entrevista de Avaliação Final do Processo Atendimento a Grupo de Vítimas em pré-alta Estudo de Casos Entrevista de Follow-UP


O MAU-TRATO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: OS CAMINHOS DA PREVENÇÃO, DA PROTEÇÃO E DA RESPONSABILIZAÇÃO ○

ANEXO 2 EIXOS DO ENFRENTAMENTO DO MAU-TRATO INFANTIL

PREVENÇÃO

PROTEÇÃO

RESPONSABILIZAÇÃO

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

ANEXO 3 MAU-TRATO INFANTIL - FLUXOGRAMA DA DENÚNCIA

DENÚNCIAS: Comunidade- Família– Responsáveis – Escolas – Creches – Unidades de Saúde – ONGs – Anônima

CONSELHO TUTELAR

Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente

CENTRO DE DEFESA DE DIREITOS

ABRAPIA * 0800-990500 **

Programa de Atendimento JurídicoSocial Centro de Defesa de Direitos

Centro de Referência

Conselho Tutelar

Centro de Defesa de Direitos

Programa de Atendimento Jurídico-Psicossocial

Delegacia Especializada

* ABRAPIA-Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência / Ministério da Justiça – O Cendhec tem um convênio com a ABRAPIA e é Unidade de Referência em Pernambuco do Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, recebe e acompanha denúncias da ABRAPIA de violência e exploração sexual, praticadas contra crianças e adolescentes. ** Este é o número do telefone nacional para denúncias. A ligação é gratuita. 179


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ANEXO 4 MAU-TRATO INFANTIL - FLUXOGRAMA DA RESPONSABILIZAÇÃO DO AGRESSOR - CENTRO DOM HÉLDER CÂMARA - CENDHEC DENÚNCIA

Formaliza para Delegacia de Proteção da Criança e do

CENTRO DE DEFESA DE DIREITOS

Atendimento JurídicoSocial

Adolescente - Encaminha para o IML - Inquérito Policial – apuração dos fatos – depoimentos dos envolvidos - Relatório Final do/a Delegado/a

Vara Privativa de Crimes contra Crianças e Adolescentes

Ministério Público Estadual

Reinicia os depoimentos Juiz prolata a sentença

- O Relatório segue para a Central de Inquéritos do MP - O Relatório é distribuído para um Promotor Público analisar

O Promotor Público oferece a denúncia e qualifica o crime O Promotor Público decide por não denunciar e o inquérito é arquivado 180


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: AS CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA FAMILIAR COMO UMA POSSIBILIDADE DE TRATAMENTO MARIA AZINALDA NEVES BAPTISTA



VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ○

A FAMÍLIA: GRUPO PRIMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS A família é o grupo de origem de todos os outros, de todas as instituições. Por isso, a família é o grupo primário o que equivale a dizer que ela está presente, mesmo que de maneira indireta, em todas as instituições e segmentos da sociedade que terão seu funcionamento condicionado por aqueles valores vindos da origem, da família. Isso é tão verdadeiro, que está, de tal forma, inserido na rotina do dia-a-dia, que nem mesmo nos percebemos. Muitas vezes se discute a inadaptação escolar de um adolescente sem que as causas sejam buscadas em sua origem verdadeira: o que poderá ter acontecido em sua família que o levou a esse tipo de comportamento no ambiente escolar? É verdade que a intensidade dessa influência tende a se tornar menos forte, conforme nos desenvolvemos, participamos de outros grupos, adquirimos maior independência. O recém-nascido é totalmente dependente de sua família, sem cujos cuidados não poderá sobreviver. Quando adultos sobrevivemos fora da família, mas a dependência continua existindoe provavelmente será muito mais afetiva do que material. A família é uma unidade social ou sistema formado por um grupo de pessoas não só com redes de parentesco, mas fundamentalmente com laços de afinidade, afeto e solidariedade, que vivem juntos e trabalham para satisfazerem suas necessidades comuns e solucionarem seus problemas. A importância da família, para cada um dos seus membros, está não só nas funções que ela desempenha na sociedade, mas na intermediação entre o indivíduo e a sociedade. Neste grupo, acidental ou circunstancialmente reunido, cada um carrega toda a sua carga genética, biológica ou física, familiar e social e, ao mesmo tempo, tenta dar o melhor de si ou daquilo que aprendeu a dar. 183


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: AS CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA FAMILIAR COMO UMA POSSIBILIDADE DE TRATAMENTO ○

O fato de a família ser o grupo primário não deve significar apenas mais um conceito teórico, e sim servir como ponto de referência ao lidar com pessoas, grupos ou tentar interferir no funcionamento de instituições. No mesmo sentido, a família é espaço perigoso para as crianças. Não raro, justifica-se a intervenção agressiva dos pais, visando corrigir o comportamento e eliminar condutas consideradas indesejáveis. Crê-se que a imposição de limites às crianças deve necessariamente ser acompanhada de medidas de censura, aplicadas “moderadamente”, que podem ir desde agressões físicas, restrições à liberdade de locomoção, imposição de obrigações ou tarefas humilhantes até rotinas rigorosas que comprometem o desenvolvimento físico e psíquico de crianças e de adolescentes. Fecham-se os olhos para a intensidade e a regularidade com que tais repreensões são praticadas. Alguns estudos vieram lançar certo esclarecimento a respeito desse fenômeno, igualmente oculto e silencioso. Um deles, publicado com o sugestivo título A violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas (GUERRA, 1985), desfez o véu de silêncio que costuma cercar tais acontecimentos. Não somente traçou o perfil de vítimas e de agressores, descreveu a intensidade do dolo cometido, analisou os argumentos empregados pelos agressores para justificar seus atos, examinou o estoque de argumentos disponíveis na literatura especializada, como também observou as táticas adotadas para dissimular os acontecimentos, quase sempre transfigurados em acidentes ocasionais.

A FAMÍLIA NA VIDA DO INDIVÍDUO Família desperta, em todos nós, lembranças, emoções, saudades, expectativas quase sempre contraditórias, intensas e, principalmente, inegáveis. Família é algo universal e, por enquanto, eterno; não foi descoberta outra formação humana capaz de substituí-la. Todos temos e teremos sempre várias famílias — a dos 184


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ancestrais, a da infância, a da adolescência, a do início do casamento... e a própria família da velhice. Embora com características específicas a cada momento de seu ciclo vital, a família permanece com uma mesma função básica, qual seja, a de preservar a integridade física e emocional de seus membros e do próprio grupo. O espaço ocupado pela família na vida individual é um espaço que se alarga e se estreita, aumenta e diminui. É, o tempo todo, mutável e permanente. Acreditamos que família tem um significado único para cada pessoa, e é a partir dele que, como profissionais, nos posicionamos diante da família, objeto de estudo, reflexão e atuação profissional. Por outro lado, ao se considerar o ser humano como uma “unidade biopsicossocial” fica evidente o papel decisivo da cultura, em sentido amplo, na construção da subjetividade. Cremos que a atuação junto à família — Terapia Familiar — implica o conhecimento e a compreensão destes elementos que influenciam e determinam a formação e o funcionamento familiar a cada momento de sua história. Principalmente quando se trata de família com quadro de violência intrafamiliar, assunto a ser discutido neste artigo.

A TERAPIA FAMILIAR PARA OS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A terapia familiar sistêmica nos casos de violência doméstica é sumamente importante, pois ajuda os familiares a refletirem sobre os seus atos e a conscientizá-los sobre isso. Acreditamos que tal perspectiva, acrescida do construcionismo social e da discussão das questões de gênero, ajuda ainda mais a atingir os objetivos propostos no atendimento a essas famílias. Como ilustração, citaremos um caso, no qual o atendimento não ocorreu numa visão sistêmica: uma mãe de três filhos briga muito com o de 12 anos de idade, gritando com ele e batendo-lhe quando se recusa a ir à escola. Um vizinho dá queixa, e uma entidade assume o caso, com mãe e filho como os clientes identificados. A perspectiva utilizada por essa entidade é que as pessoas são indivíduos isolados, cujo comportamento 185


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: AS CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA FAMILIAR COMO UMA POSSIBILIDADE DE TRATAMENTO ○

é determinado por sua composição psicológica. A seguir, coloca-se a mãe (W.) em uma terapia de grupo, para que ela possa explorar suas próprias experiências infantis relacionadas a abusos e encaminha-se o filho (C.) para atendimento individual. Mais tarde, quando W. revela a existência de uma vida em comum com um namorado que é verbalmente abusivo com ela, a orientação profissional recomenda que ele também seja atendido em algumas sessões individuais. Constata-se, portanto, que a equipe está tratando a punição que a mãe impõe a seu filho, a “fobia” à escola de C. e a linguagem abusiva do namorado como problemas separados e não-relacionados. Se a equipe percebesse o comportamento em termos de interações e quisesse entender os padrões prevalentes, precisaria proceder de outra maneira, começando com uma visão mais ampla das pessoas envolvidas. W. e C. estão no centro, mas também estão incluídos F., o namorado de W., e as duas irmãs de C., que moram na mesma casa. Com alguma investigação, ficaria claro que precisam incluir a mãe de W., que tem uma influência considerável sobre ela e as crianças, e os irmãos de W., e ainda sua madrinha, seu tio e uma amiga íntima. Importantes são também aqueles que não são familiares nem amigos, mas que, eventualmente, fazem parte da rede que regula a vida das famílias pobres: um funcionário do Serviço de Proteção à Infância, que vem monitorando a casa há dois anos e as pessoas da escola, incluindo o inspetor escolar com quem W. mantém um relacionamento hostil. Inicialmente, muitas dessas pessoas serão invisíveis ao terapeuta, ou, pelo menos, sua importância e suas interconexões podem não ser aparentes. A família e os amigos podem não aparecer como recursos, porque não estão acostumados a desempenhar esse papel ou porque estão em conflito com o cliente ou um com o outro. E o fato de outros profissionais moldarem a realidade da família pode nunca ocorrer à equipe que não tenha uma visão sistêmica. Se e como estas pessoas estão incluídas no trabalho é uma decisão separada, mas o conhecimento da sua existência é importante. É necessária uma tela ampla para criar um mapa do contexto humano. A equipe deve proceder na suposição de que toda realidade familiar requer mais um mural que uma visão de perto, e que para se entender os problemas e mobilizar os recursos, deve-se reconstruir o maior quadro possível. 186


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Para explorar padrões importantes, convém começar, reconhecendo os subsistemas centrais. Os padrões cruciais de aliança e antagonismo podem estar dentro de um determinado relacionamento, na interação entre os sistemas ou em ambos. No caso de W., saberíamos onde olhar, a partir da natureza da queixa atual e a partir da informação sobre a presença de F. no ambiente doméstico. Sabemos que W. e C. formam um subsistema problemático, W. e F., outro. Através de uma suposição instruída, podemos também supor que a tríade composta por W., F. e C. ocupa uma posição central na organização da família. As alianças e as coalizões, que envolvem as irmãs de C. e a mãe de W., são certamente parte da equação, mas provavelmente não o ponto de entrada. Os profissionais experientes, sabem que, uma vez que entendam o mapa familiar, devem se concentrar nas partes do sistema claramente disfuncionais, ou que, por sua experiência, eles sabem que têm problemas difíceis para serem trabalhados. Neste caso, a equipe poderia explorar os subsistemas em que as interações se tornam abusivas, observando as reações que as pessoas provocam uma às outras, assim como os eventos que fazem W. e F. entrarem em conflito. Entretanto, poderiam também dar atenção especial à tríade composta por W., F. e C., sabendo que os limites e a autoridade, muitas vezes, não são claros, quando alguém de fora se junta a uma unidade estabelecida de pai/mãe e filhos. Nesta família, as regras de autoridade, certamente, não estavam claras para seus membros. W. e F. discordavam com relação à disciplina. C. não se dava com F. e sentia-se protetor com respeito a sua mãe, o que, em parte, explicava por que ele queria ficar em casa ao invés de ir à escola. E os esforços de W. para controlar seu filho aumentavam até uma intensidade de gritos frenéticos, mas somente quando F. estava presente e a mãe dela não estava – ou quando o inspetor da escola aumentava a pressão de suas ameaças, C. se tornava mais recalcitrante e F. mais crítico. Os membros dessa rede eram parte de uma rede de interação; suas reações individuais serviam como estímulos e respostas para o comportamento dos outros. Os padrões particulares que emergiram neste caso não são importantes no momento, como o fato de que a situação não poderia ser resolvida sem reunir outros membros da família e de pessoas da escola. 187


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A questão aqui é que as dificuldades de W. e de seu filho só poderiam ser inteiramente compreendidas no contexto desta organização familiar. As opções para intervenção aumentaram, observando-se como os diferentes subsistemas funcionavam e chegando-se a entender as regras confusas que governam as interações familiares. A discussão sobre a família de W. proporciona um exemplo útil de como as possibilidades de diagnóstico e tratamento mudam, quando se pensa de forma sistêmica. Entretanto, entender os padrões familiares nem sempre é suficiente, embora proporcione uma base essencial. O fator de mudança pode ser uma das forças mais poderosas em suas vidas. As famílias que acabaram de se mudar para um abrigo ou cujos filhos foram levados para serem cuidados por famílias substitutas, ou cuja filha adolescente se tornou grávida, estão todas em transição. Seu comportamento pode ser mais bem explicado, se a equipe compreender o significado e o impacto dos eventos que provocaram as mudanças. Reconhecer os padrões familiares, o contexto e o impacto da transição permite à equipe abordar os padrões e as soluções com uma perspectiva nova que inclui algum otimismo com relação à mobilização dos potenciais familiares. Uma família tem sempre um repertório potencial mais amplo do que parece em seus padrões repetitivos. O comportamento abusivo de W. só a representa parcialmente. Devido a um conjunto de circunstâncias diferentes, seria possível enxergar seu senso de responsabilidade, sua ternura e seu bom humor, assim como o senso de compromisso do seu namorado para com a família de W., característica que está por trás do seu comportamento dominador. Do ponto de vista sistêmico, o comportamento é explicado como uma responsabilidade compartilhada, que surge a partir de padrões que desencadeiam e mantêm as ações de cada indivíduo. É comum pensar que “meu filho me desafia” ou que “meu parceiro me provoca”, mas essas são descrições parciais, lineares. Na verdade, o desafio do filho e a provocação do parceiro são apenas metade da equação. O processo é circular e o comportamento é complementar, o que significa que o comportamento é mantido por todos os participantes. Todos eles iniciam o comportamento e todos eles reagem; não é realmente possível determinar o início ou estabelecer a causa e o efeito. O conceito de complementaridade, assim como a causa e o efeito 188


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têm oferecido uma visão útil, embora um pouco surpreendente, do diagnóstico, mas têm também levantado algumas bandeiras de advertência. O comportamento pode refletir um padrão circular, e alguns comportamentos são perigosos ou moralmente errados, explorando a fraqueza de membros da família e pondo em risco a sua segurança. As feministas têm enfatizado este ponto em relação à violência de homens para com as mulheres, e toda a sociedade condena o abuso infantil. Nessas situações, a principal tarefa é proteger os indivíduos vitimados e assumir uma postura ética, ao mesmo tempo em que se trabalha com a família para mudar padrões recorrentes que são perigosos e ameaçadores para as saúdes física e mental dos indivíduos. Quando descrevemos as famílias como possuindo uma estrutura, queremos indicar algo mais que um mapa de quem pertence à família. Estamos nos referindo a padrões de interação recorrentes e previsíveis. Esses padrões refletem as filiações, tensões e as hierarquias importantes nas sociedades humanas e têm significado para o comportamento e os relacionamentos. Na maioria das famílias, há padrões múltiplos de aliança, envolvendo pessoas que são emocionalmente próximas e prestam apoio mútuo. Algumas alianças assumem uma forma diferente. Elas envolvem pessoas que são unidas por uma oposição a outros membros da família – e sua aliança é descrita com mais acurácia como uma coalizão. Essas coalizões são freqüentemente transitórias e podem ser relativamente benignas. Os padrões, que organizam a hierarquia do poder, aparecem em toda família. Eles definem os caminhos que a família utiliza para tomar decisões e controlar o comportamento de seus membros. Os padrões de autoridade são aspectos particularmente importantes da organização familiar. Esses padrões carregam o potencial para a harmonia e para o conflito e estão sujeitos a ser desafiados à medida que os membros da família crescem e se modificam. Há muitos subsistemas dentro das famílias, assim como em qualquer sistema complexo. A idade e o gênero criam subsistemas familiares, assim como outros fatores. Regras explícitas e implícitas governam os relacionamentos entre as unidades. Por exemplo, as crianças menores não podem perturbar o adolescente, quando a porta do quarto está fechada; as crianças só vão se queixar aos adultos quando atingidas pela injustiça; os filhos não esperam sair no sábado com seu padrasto e o 189


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filho dele, a menos que sejam especificamente convidados; e o avô pode interferir em favor de uma criança que está tendo problemas com seus irmãos, mas não quando os pais estão impondo disciplina. O conceito de fronteiras é importante em relação aos subsistemas e à família como um todo. Os exemplos, citados no parágrafo anterior, referem-se a fronteiras, marcando limiares que não devem ser ultrapassados e também as condições sob as quais elas são mais permeáveis. A permeabilidade das fronteiras expressa as realidades do acesso e da privacidade. O indivíduo é a menor unidade do sistema familiar – uma entidade separada, mas uma peça do todo. Na estrutura de uma abordagem sistêmica, entendese que cada pessoa contribui para a formação de padrões familiares, mas também é evidente que a personalidade e o comportamento são moldados pelo que a família espera e permite. A tarefa conceitual de uma abordagem orientada para a família é dupla: “pensar grande” e reconhecer a organização da família. Pensar grande significa ir além do indivíduo para compreender importantes características de um caso. Também significa uma disposição para fazer uma pausa e olhar em volta – para estabelecer a definição do sistema relevante além das pessoas que vêm mais prontamente à mente. Reconhecer a organização do sistema significa estar alerta para questões como a qualidade das conexões entre as pessoas, os padrões típicos do funcionamento familiar, as regras implícitas que orientam as interações, a natureza dos limites etc. Isto pôde ser ilustrado na descrição de W. e sua família. (MINUCHIN, 1997, pp. 22-26; 40-45) Como é sabido, a terapia familiar surgiu nos Estados Unidos após a II Guerra Mundial, destacando-se hoje em todo o mundo como uma das práticas terapêuticas mais eficazes. No Brasil, a mesma vem se desenvolvendo nos últimos 15 anos e adquiriu status como prática terapêutica também das mais eficazes. Existe um múltiplo universo das escolas terapêuticas que compõe o grupo das terapias familiares. O movimento sistêmico, embora de extrema importância, não esgota, de forma alguma, o conjunto de tendências que se apresenta nesta área. A teoria de Murray Bowen é um modelo que, hoje, fundamenta, junto com a terapia simbólico-experiencial de Carl Whitaker, as abordagens que consideram o mito familiar e a experiência intergeracional o coração 190


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que pulsa no jogo dramático da família. O modelo da terapia contextual de B. – Nagy, constitui-se num método terapêutico que se distingue tanto da terapia individual quanto da terapia clássica. Além disso, abre uma nova perspectiva para a compreensão do funcionamento das relações interpessoais. Fundamentase sobre uma visão dialética das relações humanas e, no campo da terapia, introduz a noção de “ética relacional”. A abordagem contextual distingue-se das demais modalidades terapêuticas por uma série de premissas, as quais não iremos aprofundar neste texto. O modelo trigeracional, que representa uma mudança de óptica e uma nova orientação no domínio da terapia sistêmica, que levando em conta a dimensão histórico-evolutiva do sistema com o qual o terapeuta se encontra em interação, tanto no que concerne ao indivíduo portador do sintoma como em relação aos outros membros da família, tem em Andolfi (1989) seu maiorexpoente. Nesse modelo, a atenção está voltada não apenas para a história pessoal do paciente, mas também para a de seus pais e a das relações que estes mantêm entre si e com suas respectivas famílias de origem. Na terapia familiar psicanalítica que nos fala da vivência da família e do terapeuta no processo evolutivo, o que melhor caracteriza o movimento dos terapeutas familiares psicanalíticos é a sua prática. Muitos deles, analistas práticos, utilizam-se de modelos teóricos diferentes, mas têm, em comum, certas exigências técnicas: o protocolo é organizado como em toda e qualquer terapia analítica de longa duração, com sessões próximas (semanais ou bimensais); o quadro estrito que dá maior relevo à história da família atual e transgeracional, visando à construção do passado recusado, à análise dos conteúdos verbais e às produções fantasmáticas, notadamente pelo relato dos sonhos, e ao interesse pela transferência e contratransferência.

O QUE É TERAPIA FAMILIAR? “... a base do tratamento de família é a entrevista terapêutica com um grupamento humano, o grupo familiar funcional, aí incluídos todos aqueles que vivem juntos enquanto uma família, vivendo sob o mesmo 191


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teto e quaisquer outros parentes que exerçam papel significativo na família, mesmo residindo em outro local. Nesse contexto, a unidade referencial de doença e saúde e a unidade de tratamento a ser considerada, é pois o grupamento familiar; não somente o paciente individual tomado isoladamente, mas também pai, mãe, filhos, e, às vezes, avós. Na terapia familiar encara-se o funcionamento psíquico de uma pessoa num contexto mais amplo das adaptações recíprocas do papel familiar, e a organização psicossocial da família como um todo, tanto no aqui e agora, quanto nas três gerações passadas”. (ACKERMAN, 1970, p. 8)

A terapia familiar é um tipo de psicoterapia, onde terapeuta(s) e familiares trocam comunicações entre si, visando promover mudanças. Essas mudanças dizem respeito tanto ao comportamento e às emoções das pessoas envolvidas, quanto ao funcionamento da família como um todo. Portanto, A Terapia Familiar tem, neste grupo, a sua unidade de tratamento. A maioria das outras formas de psicoterapia focalizam o indivíduo e concentramse nos processos intrapsíquicos ou comportamentais. Os terapeutas de família tendem a encarar os sintomas mentais apresentados pelos indivíduos, sempre que possível, como algo intrinsecamente relacionado ao seu habitat natural ou contexto sociocultural e, de modo especial, ao contexto de suas relações familiares específicas. Em outras palavras, durante as sessões terapêuticas, procura-se diagnosticar e tratar, principalmente, os padrões característicos de interação familiar disfuncionais que estariam, de algum modo, relacionados com o aparecimento de sintomas individuais. Conseqüentemente, o objetivo terapêutico é criar uma situação ou contexto favorável para que surjam novas idéias acerca da natureza e da solução dos problemas inicialmente apresentados pela família. Na terapia de família, todos os acontecimentos intrapsíquicos são convertidos em acontecimentos interpessoais. Assim, os sintomas e defesas individuais não são apenas encarados como manifestações, características de acontecimentos de um mundo intrapsíquico encoberto, mas, principalmente, como aspectos 192


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comportamentais de certos padrões interacionais do relacionamento familiar. Desse modo, aquilo que freqüentemente aparenta ser enigmático e imprevisível no comportamento individual ganha significado e previsibilidade, quando observado segundo uma forma de comunicação, ocorrendo num determinado sistema interacional, no qual os comportamentos de seus integrantes sofrem influências recíprocas. A motivação na terapia familiar baseia-se mais no envolvimento naturalmente existente entre eles, exemplificado pelo incômodo experimentado pelos familiares com relação ao aparecimento de transtorno mental num deles (paciente identificado); ela possui uma continuidade histórica em matéria de interdependência pessoal, como também a existência do ciclo vital familiar; podendo ser encarada como possuidora de uma “subcultura”. Isso implica dizer que os familiares adquirem seus próprios valores e ideologias, inclusive mitos, ao longo de sua existência, transmitidos de geração em geração, tornando-os um grupo característico ou singular. Foi a partir da década de 90 que o interesse pela história das terapias familiares tem sido visível, e um aumento das publicações sobre esse percurso mostra, sem dúvida, a importância de se compreender o que foi construído desde o seu surgimento na década de 50 até os dias de hoje, ou seja, nestes 40 anos de sua existência. No campo acadêmico, os congressos, encontros e seminários acham-se repletos de textos sobre esse tema, numa tentativa, inédita, de pensar seus fundamentos e suas práticas. Neste sentido, destacam-se as produções de Haley (1991) e Minuchin e Nichols (1995) que apontam, cada um com seu método próprio de análise, os pilares básicos de sua sustentação. Cabe esclarecer que empregamos o termo no plural – Terapias Familiares Sistêmicas – para marcar a pluralidade de escolas d e n t r o d e s s a p e r s p e c t i v a e t a m b é m p a r a i d e n t i f i c a r, especificamente, as orientações que se utilizam dos conceitos da Teoria Geral dos Sistemas e da Cibernética, diferenciando-as de outras abordagens familiares que não nasceram dessa base 193


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paradigmática, isto é, que não estão comprometidas com a cibernética da comunicação e do contexto humanos, como, por exemplo, a linha psicodinâmica (KEENEY, 1993). Neste sentido: “(...) nunca houve ‘uma’ terapia familiar. Desde o começo houve várias práticas e por conseguinte, várias teorias de terapia familiar, segundo a escolha feita por diversos tipos de terapeutas, uma vez que tiveram acesso às famílias. Uma das variáveis foi o grau de envolvimento entre o terapeuta e a família”. (COLAPINTO, 1996, p. 52)

Segundo alguns autores, (SOUZA 1985; MOTTA 1993) suas origens mais remotas se encontram na Psicanálise, quando, em 1909, Freud se utilizou, no atendimento do pequeno Hans, de seu pai como principal agente terapêutico, trazendo mudanças para a dinâmica familiar e apontando para a relação entre pais e filhos como possível fonte de dificuldades. Antes disto, ainda no século XVIII, o nascimento da noção de Social na Europa é igualmente considerado como uma raiz importante, na medida em que foi sobre a família que tal noção se estabeleceu. Posteriormente, no século XIX, ainda no ambiente europeu, o movimento de educação familiar colocou a família no centro das atenções como principal espaço de proteção à infância, tendo que para isso se organizar dentro de normas sociais estipuladas pelo Estado. Mais adiante, nas primeiras décadas do século XX, o movimento Child Guidance, nos Estados Unidos e na Inglaterra, trouxe a figura da mãe como principal colaboradora no tratamento psicoterápico infantil através de um atendimento direto a ela e dentro do objeto de reconstruir a história familiar e social. Na década de 30, apareceu, tanto nos Estados Unidos como na Europa, o Aconselhamento Conjugal como uma nova modalidade de intervenção sob a tutela da Associação Americana de Conselheiros Matrimoniais, criada em 1940, que, dentre outras funções, institucionalizou a profissão de conselheiro matrimonial. Nesse período, surgiram também importantes pesquisas sobre relações familiares no campo da Saúde Mental, propiciadas por um ambiente científico mais atento às influências 194


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do social e do familiar. O que efetivamente queremos ressaltar é o quanto diferentes movimentos de Higiene Mental, de Orientação Infantil, de Educação de Pais e um conjunto de novas modalidades p s i c o t e r á p i c a s , Te r a p i a s G r u p a i s e B r e v e s , a b o r d a g e n s comportamentais, sexuais, vindas de áreas diversas, criaram um terreno propício para o surgimento, na década de 50, das terapias familiares sistêmicas.

ABORDAGENS SISTÊMICAS Os Estados Unidos, que estão, agora, na terceira geração de terapeutas familiares, reclamam para si o pensamento sistêmico no trabalho clínico com famílias. A partir da teoria geral dos sistemas e da teoria da comunicação, surgiram várias escolas de terapias familiar, e vários institutos e centros de atendimento e de formação foram criados. Os autores das abordagens sistêmicas conceituam sistemas interacionais como duas ou mais comunicações no processo de definição da natureza de suas relações. O sistema familiar é visto como um circuito de feedback negativo, constantemente regulado, na medida em que tende a preservar seus padrões estabelecidos de interação, buscando sempre um equilíbrio, que é mantido pelas regras de interação familiar. Quando, por algum motivo, essas regras são quebradas, entram em ação metaregras para estabelecer o equilíbrio perdido. Os axiomas básicos da teoria da comunicação são apresentados por Watzlawick et al. (1967), que discutem os efeitos comportamentais da comunicação humana. Para esses autores, todo comportamento numa situação interacional, tem valor de mensagem, ou seja, é comunicação. Outro axioma importante é o de que qualquer comunicação implica um envolvimento e, como consequência, define a relação. Para Bateson et al. (1956), essas duas operações constituem, respectivamente, os aspectos de relato e de ordem presentes em qualquer comunicação. 195


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Os estudos de Bateson deram origem à caracterização da comunicação por Watzlawick, como simétrica ou complementar, a partir de relações baseadas na igualdade ou na diferenciação. Tanto os comportamentos complementares como os simétricos podem ser apropriados, dependendo do contexto da situação. O problema surge quando uma relação se cristaliza numa dessas classes, tornando-se, rigidamente, simétrica ou complementar. A terapia desenvolvida a partir deste enfoque enfatiza a mudança no sistema familiar, sobretudo pela reorganização da comunicação entre os membros da família. O passado é abandonado como questão central, pois o foco de atenção é o modo comunicacional no momento atual. A unidade terapêutica se desloca de duas pessoas para três ou mais, à medida em que a família é concebida como tendo uma organização e uma estrutura. É dada uma ênfase a analogias de uma parte do sistema com relação a outras partes, de modo que a comunicação analógica é mais enfatizada que a digital. Os terapeutas sistêmicos se abstêm de fazer interpretações na medida em que assumem novas experiências — no sentido de um novo comportamento que provoque modificações no sistema familiar — como geradoras de mudanças. Neste sentido, são usadas indicações nas sessões terapêuticas para mudar padrões de comunicação e prescrições, fora das sessões, com a preocupação de encorajar uma gama mais ampla de comportamentos comunicacionais no grupo familiar. Há uma certa concentração no problema presente, mas este não é considerado apenas como um sintoma. O comportamento sintomático é visto como uma resposta necessária e apropriada ao comportamento comunicativo que o provocou. A partir do enfoque sistêmico, várias escolas de terapia familiar se desenvolveram. Podemos citar, dentre elas, a escola estratégica, a estrutural e, mais recentemente, a escola construtivista.

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A ESCOLA ESTRATÉGICA Os principais teóricos da terapia estratégica – Jackson, Bateson, Haley, Weakland e Watzlawick – fundaram, em 1958, o Mental Research Institute de Palo Alto, Califórnia. Nessa ocasião, a terapia familiar estava apenas no início de seu desenvolvimento e o Mental Research Institute, dirigido por Jackson, constituía-se num dos primeiros centros onde se faziam pesquisas, se praticava e se dava formação em terapia familiar. O trabalho inicial do grupo de Palo Alto estava centrado nos padrões de comunicação das famílias com um membro esquizofrênico. Bateson et al. (1956) desenvolveram o conceito de duplo-vínculo, apresentando uma teoria da esquizofrenia baseada na análise das comunicações – mais especificamente, na teoria dos tipos lógicos.

A ESCOLA ESTRUTURAL O principal teórico da escola estrutural é Salvador Minuchin q u e , e m 1 9 6 7, p u b l i c o u , e m c o l a b o ra ç ã o c o m u m a e q u i p e interdisciplinar, o livro Family of the Slums, resultado de seu trabalho com famílias de adolescentes delinqüentes na Escola Wiltwych, em Nova Iorque. O objetivo do projeto, iniciado por Minuchin em 1962, era tentar aplicar as idéias recentes sobre terapia familiar a famílias de baixo nível socioeconômico. Nesse trabalho, que é um marco importante para a compreensão dos sistemas familiares de baixo nível socioeconômico, Minuchin questiona a “família delinqüente”, na medida em que as famílias assim rotuladas apresentavam diferentes tipos de organização. Posteriormente, Minuchin assume a direção da Philadelphia Child Guiance Clinic e publica, em 1974, Families and Family Therapy em que expõe, de maneira clara e concisa, sua teoria sobre a estrutura e o funcionamento da família. A terapia estrutural de família é definida por Minuchin (1974) como sendo uma terapia de ação para modificar o presente e não para explicar ou interpretar o passado. O objetivo da intervenção 197


do de da de

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terapeuta é o sistema familiar ao qual ele se une, utilizando-se si mesmo para transformá-lo. Mudando a posição dos membros família no sistema, o terapeuta modifica as exigências subjetivas cada membro.

A ESCOLA DE MILÃO Mara Selvini Palazzoli, depois de ter trabalhado muitos anos numa abordagem psicanalítica com crianças anoréticas, desencorajada com os resultados que obteve e influenciada pela literatura de Palo Alto sobre terapia de família, adota uma posição que chama de sistêmica pura. Em 1967, organiza o Centro para o Estudo da Família, em Milão, que conta também com a participação dos psiquiatras Luigi Boscolo, Giuliana Prates e Gianfranco Cecchin. O grupo de Milão desenvolve então um modelo sistêmico de intervenção familiar que é utilizado não apenas no atendimento a famílias com crianças anoréticas, mas naquelas que apresentam sérios problemas emocionais. Partindo da hipótese de que a família é um sistema autoregulado que se governa através de regras, Palazzoli et al. (1978) relatam suas pesquisas com diferentes grupos de famílias e concluem que as de anoréticos são caracterizadas pela presença de redundâncias comportamentais e por regras particularmente rígidas, enquanto as famílias com um paciente psicótico, embora tenham a rigidez do modelo de base, apresentam enorme complexidade nas modalidades transacionais. O Centro para o Estudo da Família, em Milão, propõe-se atender famílias de diferentes níveis socioeconômicos que pagam pelo tratamento de acordo com suas possibilidades. O atendimento é realizado por uma dupla terapêutica heterossexual, o que, segundo Palazzoli, evita certos estereótipos culturais em relação a ambos os sexos, dos quais até mesmo os terapeutas, inevitavelmente, participam.

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A ESCOLA CONSTRUTIVISTA No final da década de 70, utilizando-se dos conceitos da cibernética de segunda ordem e de sua aplicação aos sistemas sociais, surge a escola construtivista. A partir da concepção de retroalimentação evolutiva de Prigogine (1979), considera-se que a evolução de um sistema ocorre através da combinação de caso e história em que, a cada patamar, surgem novas instabilidades que geram novas ordens e assim sucessivamente. Nesta perspectiva em que os sistemas vivos são considerados como hipercomplexos e indeterminados, a instabilidade e a crise ganham um novo sentido no sistema familiar. A crise não é mais um risco, mas parte do processo de mudança, assim como o sintoma. Assim, os terapeutas de família da escola construtivista passam a considerar a autonomia do sistema familiar, partindo do estudo dos sistemas auto-organizados da cibernética de segunda ordem e dos sistemas autopoiéticos postulados por Humberto Maturana (1990). Ocorre, neste enfoque, uma ruptura entre o sistema familiar/ observado e o terapeuta/observador. O sistema surge como construção de seus participantes. O terapeuta estará interessado não mais no comportamento a ser modificado, mas no processo de construção da realidade da família e nos significados gerados no sistema. A ênfase é deslocada do que é introduzido no sistema pelo terapeuta para aquilo que o sistema permite-lhe selecionar e compreender. Assim como o grupo de Milão, outros terapeutas estratégicos incluíram, posteriormente, nas suas postulações, o modo de pensar construtivista.

DESAFIOS DO EMPREGO DA TERAPIA FAMILIAR As situações de maus-tratos ocorridos dentro da família têm os seus limites na psicoterapia sistêmica, no ponto em que obrigam esta última a se questionar sobre a noção de responsabilidade. Com efeito, como sublinham alguns especialistas em casos de maus199


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tratos à infância, o conceito de causalidade circular arrisca-se a vitimizar a vítima: o que pensaríamos de um terapeuta que, diante de uma situação dessas, agisse como se a criança da violência parental fosse co-responsável pelo que lhe acontece? É isso que leva Luepnitz a afirmar, em seu livro, The Family Interpreted: Feminist Theory in Clinical Practice, que às explicações cibernéticas falta complexidade, ou melhor, elas explicam em que sentido as relações intrafamiliares podem assemelhar-se ao funcionamento de um termostato, mas não em que diferem deste. O fato de uma esposa ser capaz de suportar, contra sua própria vontade, uma situação de abuso não significa, por outro lado, que ela participe dessa situação em igualdade de condições. A diferença fundamental reside na desigualdade que apresentam os dois membros do casal em que a mulher, e isso em diversos níveis, não tem o poder que o homem possui. Na presente obra, tanto Cheryl Rampage, Judith Myres Avis e Doodrich respondem por um capítulo dedicado à identidade sexual, ao feminismo e à terapia familiar, no qual as autoras afirmam com precisão que sua proposta não é um novo modelo de terapia familiar, mas um “filtro crítico por meio do qual todos os modelos são vistos de acordo com o espaço que oferecem às questões de identidade sexual e de poder”. A contribuição dada por esse movimento é de caráter essencial porque faz lembrar, a todos os terapeutas familiares, que uma abordagem terapêutica não pode ser libertadora a não ser que se inclua a identidade sexual em seus parâmetros explicativos e se estabeleça seu distanciamento quanto às relações de poder das quais a família se constitui como veículo tradicional. A terapia feminista da família é uma nova maneira de conceituar e praticar a terapia da família. Ela representa um paradigma que reconhece a natureza sexista da mesma e a interseção do sexo nos recursos materiais e psíquicos desta. É uma abordagem que deixa para trás os modelos estáticos da teoria dos papéis sexuais, do funcionalismo e dos estágios no desenvolvimento psicossexual. Ao reconhecer que ela existe no contexto de uma sociedade patriarcal, ela vai além das saudações ritualísticas, freqüentemente, 200


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encontradas neste campo, esclarecendo a importância do contexto social mais amplo numa sociedade na qual se busca o obscurecimento das injustiças entre homens e mulheres. Como sabemos, a terapia familiar nasceu no movimento revolucionário da teoria das comunicações e do desafio dos sistemas aos modelos lineares. Em lugar da abordagem da psicanálise, centrada no indivíduo, a terapia da família ofereceu uma visão sistêmica das relações e a preocupação com o seu contexto. Mas toda revolução, com o tempo, é fadada a tornar-se conservadora, a ser “mais uma como as outras”. O talento, associado a pioneiros como Gregory Bateson, Paul Watzlawick e Virginia Satir, enfraqueceu diante de um método institucional que nos preocupamos em aprimorar e em modelar sua própria circularidade. Alguns têm a idéia, atualmente, de estar a terapia da família a andar sempre no mesmo círculo. Além disto, nossa muito alardeada e admirada metaposição, coerentemente, fechou um olho à questão do sexo, demonstrando, uma vez mais, o quanto é difícil compreender-se um sistema do qual se é parte. Conforme salientou Judy Libow (1982), tratamos a questão de sexo como um segredo de família. Assim, a terapia tradicional tem falhado em esclarecer às famílias a relação que há entre seus problemas com os estereótipos, amplamente culturais, de sexo e das relações de poder. Como pode alguém obter uma mudança paradigmática? A terapia feminista da família oferece um desafio ao campo da terapia da família, declarando que a revolução não acabou, embora, como em todas as revoluções, ela encontre resistências, mesmo da parte de antigos revolucionários. Alguns teóricos e práticos não estarão prontos para estas novas maneiras de pensar a família e com elas trabalharem, encarando como política a necessidade de mudança. Mas toda organização social é política, assim como todo significado é semântico e todo posicionamento requer que se “assuma um ponto de vista”. A questão não é saber se o ponto de vista é certo ou errado, questão esta sem resposta numa sociedade pósmoderna, mas, sim, conhecerem-se as conseqüências de um ponto de vista em especial. Os terapeutas feministas da família possuem 201


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um modo de pensar que conduz a um modelo no qual as queixas que as mulheres possuem não são recebidas como insignificantes nem são as mulheres culpadas pelos problemas familiares, além do que, as mulheres não são encorajadas a manterem casamentos nocivos e perigosos. No decorrer da última década, com variados graus de sucesso, as representantes do movimento feminista empenharamse em estabelecer a integração das teorias feministas com a dos sistemas. De sua luta surgiu não um novo modelo de terapia familiar, mas, sim, uma nova óptica, por meio da qual todos os modelos do campo podem ser analisados em termos de seu alcance às questões de identidade sexual e de poder. Essa óptica, somada à que diz respeito às questões relativas à etnia e à classe social, oferece a necessária perspectiva crítica pela qual todas as nossas teorias e modelos devem ser observados, para que possam ser expurgados de seus desvios básicos que dizem respeito tanto ao gênero como ao reforço involuntário das desigualdades de poder dentro da família e dos abusos de poder dos terapeutas.

O FEMINISMO E A FAMÍLIA Em sua missão de transformar a verdadeira natureza da ordem social, o feminismo tem seu ponto de partida no lar. A família ocupa uma posição fundamental no universo das idéias feministas por várias razões. Em primeiro lugar, a família serve de fonte principal à transmissão das normas e dos valores da cultura — uma cultura que está sendo indiciada pelas feministas quanto a o s s e u s f u n d a m e n t o s . E m s e g u n d o l u g a r, a f a m í l i a , tradicionalmente, é encarada como o domínio das mulheres, merecendo, conseqüentemente, um exame minucioso de parte dos que se preocupam com a condição feminista. Em terceiro lugar, é na família que os indivíduos têm seus primeiros contatos com o significado das noções de masculino e feminino — definições do eu, encaradas pelas feministas como altamente problemáticas em nossa sociedade. 202


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Quando falamos em feminismo, referimo-nos à filosofia que reconhece o fato de homens e mulheres terem experiências diferentes do eu, do outro, da vida e também o fato de que a experiência dos homens é amplamente divulgada, ao passo que a das mulheres é ignorada ou mal-interpretada. Quando falamos em feminismo, referimo-nos à filosofia que reconhece o fato de esta sociedade não permitir igualdade às mulheres, estando, ao contrário, estruturada de forma a oprimir as mulheres e a enaltecer os homens. Esta estrutura é chamada de patriarcal. Quando falamos em feminismo, remetemo-nos a uma filosofia que reconhece o fato de que cada aspecto da vida pública ou privada traz a marca do pensamento e da prática patriarcalistas, constituindo, conseqüentemente, um foco que requer revisão. Análises feministas da família partem da localização temporal da mesma, uma vez que as definições sobre o valor de seus membros e da participação na família modificam-se a cada época, conforme as necessidades políticas, econômicas, sociais e individuais. Tal perspectiva desafia a crença comum de que família existe à parte da história, de que ela a transcende. Acredita-se, erradamente, por exemplo, que “a infância” sempre existiu como um período de desenvolvimento socialmente reconhecido. Na verdade, a visão da infância como a conhecemos está ligada ao desenvolvimento da “família moderna”, durante a era da Revolução Industrial, estando, desta maneira, relacionada com as mudanças na estrutura familiar, nas classes sociais, na economia e na demografia que ocorreram naquela época (ARIÈS, 1960/1962). O fato de que mesmo uma condição, aparentemente, tão essencial quanto a da infância seja, na verdade, um conceito sujeito ao contexto e a mudanças não foi apreciado pelo leigo ou pelo profissional. As origens de outros aspectos da vida familiar são, da mesma forma, pouco consideradas, fazendo com que tais aspectos sejam encarados como dons naturais e permanentes. Para as mulheres, o lar não tem sido um local revitalizador e, o que é pior, não tem sido um lugar seguro, nem para elas nem para seus filhos. Uma em cada quatro mulheres apanha de seu marido, e estimam-se em quatrocentos mil casos de incestos anuais 203


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dos quais, 97% são cometidos pelos homens Esses dados estarrecedores são considerados muito abaixo da incidência real, sendo também igualmente muito difícil calcular outros atos de violência doméstica, tais como o estupro conjugal e o espancamento de filhos. Os dados reais tornam impossível sustentar a idéia reconfortante de que homens que insultam e maltratam constituem uma pequena minoria. Nossa cultura não somente, permitiu aos homens a crença de que exercem poder sobre suas esposas e filhos como também criou a idéia de sua posição de domínio e a reforça. As feministas têm mostrado a relação entre as violências sexual, física e emocional – e a privacidade do lar, como um local para o exercício dessa prerrogativa masculina. Essa ideologia da privacidade continua a silenciar milhares de vítimas da violência doméstica. O questionamento quanto à forma de tratamento com as mulheres e crianças em casa só é possível com uma mudança de perspectiva, já que existe uma crença generalizada de que aquilo que é bom para a família (leia-se: marido), é bom para todos (leia-se: esposa e filhos). Pense a respeito do contraste que nos mostra de Beauvoir (apud GOODRICH, 1990): “Defendemos que o único bem público é aquele que assegura o bem privado dos cidadãos; julgaremos as instituições de acordo com sua eficiência em conceder oportunidades concretas aos indivíduos”. (p. xxxiii)

É essa posição que assumimos aqui, ao julgarmos a instituição a que chamamos família (GOODRICH, 1990, p. 22). Avaliamos todas as atividades, atitudes, planos de ação e comportamentos, uma vez que eles afetam os indivíduos na família, um processo que significa o reconhecimento não somente do marido/pai/homem, mas também da esposa/mãe/mulher e de cada filho. Percebê-los como indivíduos, e não como uma família coisificada, obriga a um reconhecimento de que os membros de uma família não são iguais em status, recursos ou poder, pois o 204


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marido/pai/homem tem mais de cada um desses elementos. Uma vez que as mulheres e as crianças são os subordinados, numa cultura e numa família onde o homem domina, eles se encontram em perigo. Encarar a sociedade como protetora de seus membros mais fracos é o mesmo que pedir à raposa que proteja as galinhas, já que a sociedade, apesar de ter sofrido algumas reformas recentes, fomenta tanto a fraqueza quanto o perigo.

ESTEREÓTIPOS DO PAPEL DOS SEXOS E A FAMÍLIA O sexo constitui uma categoria biológica que diz respeito à masculinidade e à feminilidade. O gênero é uma criação da sociedade que acarreta a designação de determinadas tarefas sociais a uma sexo e outras, ao outro sexo. Tais atribuições definem o que é classificado como masculino e feminino e representam crenças da sociedade quanto ao significado desses dois conceitos em períodos de tempo determinados. Estereótipos quanto ao gênero são conseqüências do julgamento de comportamentos, atitudes e sentimentos, atribuídos como apropriados a um sexo apenas. Todos agimos como se elas, as diferenças naturais, fossem reais, mais do que configurações sociais; esquecemo-nos de que sexo tem a ver apenas com as diferenças anatômicas. Os papéis genéricos foram organizados de um modo que põem os homens numa posição de domínio e, as mulheres, de subordinação (MILLER, 1978). Tal organização subjaz a todas as diferenciações de superfície entre homens e mulheres e cria a maioria das tarefas atribuídas a cada sexo. As escolhidas pelos que dominam, tornam-se as de maior valor e status, as conferidas por eles aos seus subordinados são vistas como de menor valor e status. Não é típico dos subordinados escolher suas atribuições, a menos que os que dominam permitam-no, o que não seria, propriamente, uma escolha. Tal arranjo exclui a possibilidade de igualdade e reciprocidade, reduz a gama de comportamentos possíveis para ambos os sexos e leva à inflexibilidade e à polarização. E, o que é mais importante, ele declara e apoia a posição dos homens como poderosos e a das mulheres como desprovidas de poder. 205


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A família é uma unidade social que representa os valores, as expectativas, os papéis e os estereótipos da sociedade. Ela ensina os papéis genéricos aprovados culturalmente, tratando meninas e meninos, e reagindo a eles, de formas diversas, defendendo diferentes expectativas para ambos e exercendo pressões sociais, também diferentes, sobre eles. Dessa maneira, produzindo o garoto/homem e a garota/mulher familiares, aquela instituição executa uma função decisiva para a sociedade.

A IDEOLOGIA DA “FAMÍLIA NORMAL” Os conceitos que predominam sobre a família “normal” constituem uma ideologia baseada nos estereótipos dos papéis genéricos: o pai, como o arrimo e chefe da família; a mãe, donade-casa em tempo integral, companheira do marido, guardiã de todas as coisas. Como ocorre com todas as ideologias, esta também cria um sonho para o qual se trabalha, um programa sociopolítico de pressupostos, teorias e objetivos. Como tal, exerce forte domínio sobre as expectativas e as estimativas tanto do observador leigo da família quanto dos profissionais. O fato de a família “normal” ter diminuído drasticamente em número teve pouco efeito sobre o domínio da ideologia, domínio esse visto pelas feministas como danoso, sob vários aspectos. Primeiro, o papel prescrito à mulher, na família “normal”, oprime. Com certeza, o prescrito ao esposo machuca-o, mas as feridas não são iguais. Embora tanto o marido quanto a esposa vejam-se privados de experimentar aspectos de si mesmos, não permitidos no acordo, a esposa possui encargos adicionais. A divisão comum do trabalho impede à mulher o aceso direto a recursos altamente valorizados como renda, autoridade e trabalho com credibilidade. Seu trabalho não-remunerado de dona-de-casa, de criadora de filhos, de quem faz ação comunitária voluntária, não é valorizado. Mesmo quando a mulher trabalha fora, ela ainda traz o encargo da maioria do trabalho doméstico e a responsabilidades com os filhos, deixando-a tenuamente ligada à força de trabalho e 206


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com pouca mobilidade para sua flexibilidade social ascendente. Em geral, a mulher abre mão de muito mais do que o homem ao casar, como seu trabalho, amigos, casa, família, sobrenome. Ela se adapta a vida dele. Estudos mostram que enquanto o casamento acrescenta ao homem em termo de bem-estar físico e mental, ele subtrai à mulher, conforme pesquisa relatada em Bernard (1982). Segundo, a ideologia da família “normal” é perniciosa quanto a seus efeitos sobre as demais formas familiares. Casais homossexuais, pais solteiros, casais sem filhos, organizações comunitárias são todos taxados de “alternativos”, mesmo que ultrapassem, em número, as combinações “normais” (Masnick e Bane, 1980). Tais “alternativas” são implicitamente rotuladas como anormais. A pobreza e o isolamento que freqüentemente caracterizam essas famílias – falsamente imputados à estrutura defeituosa - , na verdade, derivam-se do preconceito criado pela definição limitada do termo “normal”, e encenado no local de trabalho, tanto econômica quanto socialmente. As feministas estão, então, empenhadas em se oporem à ideologia da família “normal”, pelo fato de ela representar, com imprecisão, as verdadeiras famílias, por seus preceitos danosos às mulheres e por sua estigmatização de outras organizações familiares; em resumo, porque tal ideologia fundamenta-se numa única noção de classe (a média), raça (a branca), religião (a protestante), preferência afetiva (a heterossexual) e privilégio de sexo (o masculino). Neste seu desafio e esclarecimento, propõese, portanto, o estudo da família como ela é, e não como ícones. Esse mesmo estudo nos orienta, para que examinemos todas as organizações familiares quanto à sua competência e seus prejuízos, seu esplendor e sua perversidade. O objetivo que as feministas pretendem atingir não é o de preservar qualquer forma especial de família, mas assegurar que as necessidades de cada indivíduo sejam bem satisfeitas.

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IDENTIDADE SEXUAL, FEMINISMO E TERAPIA FAMILIAR Os arquitetos da terapia familiar norte-americana das décadas de 1950 e 1960, com exceção de Virgínia Satir, eram todos homens, brancos e oriundos da classe média. As teorias que esses homens desenvolveram, concernentes à estrutura familiar, à sua função e à patologia, são um reflexo das limitações que lhes foram impostas, e às perspectivas por eles assumidas por sua identidade sexual. Para eles, as famílias eram definidas segundo a presença de um casal heterossexual e sua prole. A maior parte das outras formas de composição familiar era encarada como patológica ou era simplesmente invisível para eles. As teorias e os exemplos clínicos nada diziam quanto às outras múltiplas formas de vida familiar; incluindo aí as famílias compostas por gays e lésbicas, por casais sem filhos e, principalmente, aquelas que não apresentavam um pai residente no lar. O fato de denominarem esta última como “rompida” refletia o preconceito que tinham de que as famílias encabeçadas por mulheres eram insuficientes por natureza, julgamento ainda presente nos casos de mães solteiras e freqüentemente internalizado por estas, o que vem a se somar ao seu sentimento de culpa e de inadequação. O estereótipo de que os lares dirigidos por mulheres ou são patológicos ou apresentam um desvio, manteve-se apesar do fato de hoje tais famílias rompidas abrangerem 16% do total das famílias norte-americanas. Na última década, um número cada vez maior de terapeutas familiares vem criticando os pressupostos sexistas que escoram o entendimento, vigente no campo, da existência de papéis apropriados para homens e de papéis apropriados para mulheres. Tanto na teoria como na prática, os terapeutas familiares têm observado os papéis marcadamente diferenciados que cabem tanto a homens como às mulheres desempenharem no seio de suas famílias, mas raramente têm sugerido que esses próprios papéis, em si, possam ser parte do problema. Assim, quase nunca é encarado como intrinsecamente problemático o fato de uma mulher se perceber e ser percebida por seu marido e filhos como suporte financeiro da família. Inversamente, tem-se também como normal 208


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a posição de caráter, essencialmente periférico, ocupado pelo marido em relação à vida emocional de sua mulher e de seus filhos. Entretanto, quando a primeira ultrapassa as fronteiras que separam o ser responsável do ser invasiva é o funcionamento da mulher que é colocado em questão, e não as exigências características do papel por ela desempenhado. Os papéis que as mulheres desempenham em sua família são mantidos de acordo com os fatores mais complexos e de caráter, consideravelmente, menos benigno do que suas “naturais” capacidades emocionais e nutridoras. A romantização da família, cf. LASCH, (1991) levou a que se acreditasse que a maior fonte de realização das mulheres consiste no atendimento das necessidades alheias; que não se pode esperar que os demais membros da família, em particular, seu marido, participem integralmente dessa tarefa e que sempre que algo corra mal à família, a responsabilidade por isso será sempre e fundamentalmente da mulher. O diferencial de poder existente entre homens e mulheres, levou-as a buscarem e a manterem sua afiliação com os homens como um meio de prover, no mínimo, um sentimento de poder concedido e, no mais das vezes, precário que de outra de maneira elas não poderiam atingir por si mesmas, dados os vários graus de desigualdade social que as mulheres continuam a vivenciar.

DESVIOS CONCEITUADOS E EQUÍVOCOS QUE SE APRESENTAM NA PERSPECTIVA SISTÊMICA A adoção da teoria dos sistemas como modelo explanatório fundamental do comportamento e da dinâmica familiares liberou os terapeutas do constrangimento de terem de culpar alguém ou de serem levados a optar por qualquer uma das partes, quando de seu trabalho com famílias. As ferramentas oferecidas por essa teoria tiveram um caráter forte e revolucionário. Aplicada à teoria familiar, porém, a teoria dos sistemas também apresenta suas limitações que, quando não reconhecidas, afetam negativamente 209


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tanto a família quanto a própria terapia. A teoria dos sistemas é por natureza tão abstrata que parece oferecer uma leitura coerente dos padrões familiares, quando, na verdade, deixa ao lado importantes variáveis que atuam como padrões, tais como as de poder e as de identidade sexual. Ao mesmo tempo, a aplicação dessa teoria é geralmente tão estreita que os fenômenos sistêmicos, que se colocam além das fronteiras do grupo familiar imediato, tais como etnia ou questões que dizem respeito à economia, raramente são considerados. Assim, os padrões de ampla escala que cruzam as famílias, como os referentes ao sexismo, não têm ponto de entrada no discurso do campo. Alguns conceitos da teoria sistêmica e que a tornaram tão conhecida entre os clínicos contribuíram também para tornar invisíveis algumas das piores conseqüências do sexismo e do patriarcado. Muito da discussão que se segue, sobre os conceitos sistêmicos, nos vem de Goodrich et al., 1988. A complementaridade, conceito sistêmico constantemente aplicado à desigualdade que se observa na interação mantida por um casal, mascara o fato de serem as mulheres que, em geral e em última instância, se apresentam em situação de desvantagem, vivendo, como vivem em um arranjo estipulado pela lei, pelos costumes sociais e pelas doutrinas religiosas para assegurar o caráter de subordinação da posição que ocupam. A complementaridade parte do pressuposto de que a desigualdade que se observa em uma interação tem caráter apenas temporário e superficial. De acordo com esse conceito, o marido que insiste em verificar com antecedência todos os gastos efetuados por sua esposa pode, aparentemente, ser detentor de maior poder no relacionamento, mas no nível mais profundo, sistêmico, parte-se do princípio de que os parceiros ocupam uma posição de igualdade. Em tal cenário, o poder da mulher poderia ser visto como fundamento e em sua capacidade de ser de fato o responsável pelas compras da família, uma análise que também ignora que essa capacidade deriva e é contingenciada pela aprovação do marido. A aplicação do conceito de 210


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complementaridade à análise da integração conjugal resulta em constatações acerca do poder da impotência e exclui a realidade da operação estruturada. A circularidade é outro conceito sistêmico que opera no sentido da desvantagem feminina. A noção de que as pessoas se encontram envolvidas em padrões de comportamento de tipo recursivo, reativamente instigados e reciprocamente reforçados tem como resultado responsabilizar a todos por tudo ou não responsabilizar ninguém por nada. No que diz respeito às mulheres, essa nação atua de maneira diferencial e contra elas, pois embora uma mulher possa não ser detentora de poder e de recursos para ser tão influente quanto o seu marido em relação aos acontecimentos da vida familiar, ela é, todavia, considerada como responsável ou ninguém o é. Ela briga com ele porque ele bebe ou ele bebe porque ela briga com ele? Essa dúvida familiar é tida como um profundo enigma filosófico, mas para que funcione como um quebra-cabeças requer um maciço descuido quanto à situação feminina. Uma das leituras trivializa a queixa colocando-a no mesmo nível de um “pegue suas meias do chão”. Outra, sugere que as conseqüências da briga são, de todas as maneiras possíveis, tão mais quanto aquelas provocadas pela bebida; tem a referência de que a primeira causa o hábito da bebida e ignora o fato de a ranzinzice ser um comportamento de impotência. Em ambos os casos ela não é nem mais nem menos responsável, reprimida ou envolvida do que ele. A neutralidade ou parcialidade multilateral é um posicionamento recomendado aos terapeutas pelos teóricos sistêmicos com a finalidade de que cada membro da família o sinta a seu lado e não contra ele (BOSCOLO (1993). Tal como a complementaridade e a circularidade, essa posição torna a todos e a ninguém responsável. Em todas as ocasiões em que as questões trazidas à terapia apresentam um caráter sexista, por sua imparcialidade o terapeuta perpetua a desigualdade. Pode, por exemplo, tentar manter a igualdade das mudanças que sugere ou tentar igualar suas conseqüências. Mesmo que duas pessoas que se encontrem em 211


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uma relação desigual de poder abram mão de 10%, ainda assim se encontrarão na mesma relação de desigualdade em que se encontravam antes. Mais ainda, as conseqüências dos deslocamentos no sentido da igualdade não se mostram igualmente tentadoras a ambas as partes. Quando a igualdade é a meta, o marido necessariamente deixará a terapia sentido-se menos privilegiado do que à sua chegada, enquanto a mulher se sentirá mais favorecida. A conseqüência mais problemática, talvez, decorrente da aplicação dos princípios sistêmicos com o objetivo de chegar a uma compreensão da interação familiar é a perda da capacidade de agir e o desgaste da responsabilidade individual como conceitos explicativos (TAGGART, 1985). A afirmação de que todos são responsáveis pela interação que eles igualmente contribuíram para fazer surgir e manter constitui um problema, uma vez que se pressupõe que são semelhantemente dotados do poder que lhes possibilitem influenciar nos resultados da interação. Tal pressuposto torna totalmente invisível as diferenças de poder e as influências exercidas pelos diferentes membros familiares, não podendo ser conciliado com a experiência vivida pelas mulheres e pelas crianças do grupo familiar, mantê-lo, no mínimo, mistifica e inutiliza a terapia; e, no máximo, torna-se algo inequivocamente perigoso. Outro desvio conceitual teórico básico do campo da terapia familiar diz respeito ao privilegiamento da autonomia sobre o pertencimento. As mulheres tendem a se identificar com sua capacidade de criar e manter profundas ligações de caráter pessoal, enquanto os homens se identificam de forma mais aberta com sua capacidade de independência e autonomia (MILLER, 1986). Essa diferença tem reflexos sobre os valores e práticas esposados pela maioria dos teóricos do campo, os quais têm sido quase exclusivamente do sexo masculino.

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MÃE CULPADA, PAI IDEALIZADO Outro elemento da terapia familiar que é objeto da crítica feminista diz respeito à prática de se responsabilizar as mães pelos problemas experimentados pelas famílias e pelas crianças que nelas vivem. Permeando toda história da psicoterapia em suas áreas teóricas e práticas (CAPLAN, 1984; CAPLAN e HALLMCCORQUODALE, 1985), diversos estudos têm documentado a prevalência da culpa imputa à mãe no âmbito da terapia familiar. Caplan e Hall-McCorquodale (1985), por exemplo, estudaram o fato de se culpar a mãe em nove das maiorias revistas clínicas (porta-vozes de psiquiatras, psicanalistas, psicólogos e terapeutas familiares) e encontram 72 tipos diferentes de problemas atribuídos às mães pelos terapeutas. Embora esta atitude tenha-se apresentado de maneira extensiva em todos os veículos apontados, mostrava-se de modo mais extremado nos periódicos voltados para a área da psicanálise e da terapia familiar. No estudo que realizaram em 1988, sobre quatro veículos especializados neste último campo, Avis e Haig observaram que o culpar a mãe se mostra como um problema sério e difuso, cuja incidência aumentou, no mínimo, levemente, entre 1978 e 1988. Defrontaram-se com dezessete áreas de diferenças significativas no que diz respeito às maneiras pelas quais pais e mães eram tratados pelos terapeutas familiares, incluindo-se aí serem as mães colocadas como centro do tratamento, serem descritas negativamente e serem vistas como fonte dos problemas apresentados pelos filhos. A cegueira, no que diz respeito às questões trazidas pela identidade sexual e promovidas pelas conceituações feitas quanto aos sistemas familiares, teve como resultado a falência em reconhecer o dilema central da vida de muitas mulheres: o ditame da maternidade exige que estas abram mão de suas próprias necessidades em função dos interesses familiares e depois as torna depositárias da responsabilidade básica, e, freqüentemente, exclusiva de criar e alimentar seus filhos, embora desprovidas de poder e de recursos para fazê-lo. Esse ditame é mantido mesmo nas situações em que a mulher trabalha em tempo integral fora do 213


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lar e resulta na expectativa cultural de que a maternidade corresponde a um papel predominantemente na vida de uma mulher e tem precedência sobre tudo mais, inclusive sua própria saúde, bem-estar e necessidades. Quando os filhos apresentam problemas, suas mães são imediatamente consideradas como tendo falhado em sua missão. Naturalmente, tal ditame não existe para os pais, cuja ausência do lar é considerada “normal”, e raramente são apontados como fonte das dificuldades que seus filhos experimentam. Como resultado dessas crenças e atitudes de caráter subjacente em relação às mulheres, os terapeutas familiares com freqüência vinculam-se a comportamentos que são sutilmente, ou nem tanto, de julgamento em relação a essas últimas. Goldner (1985) critica-os por habitualmente explorarem o senso de responsabilidade que as mulheres têm em relação à família e a socialização que fizeram das atividades de cuidados e nutrição, fazendo-as trabalharem mais intensamente do que os demais no sentido de provocar a mudança em sua família. Os terapeutas da linha estruturalista freqüentemente provocam o engajamento de um pai que se posiciona de modo periférico em relação à família, fazendo com que este se encarregue de algum aspecto da parentalidade. A mensagem que se encontra subjacente a essa atitude é: uma vez que a mãe já confundia todas as coisas, resta agora ao pai remediá-las. A outra mensagem clara deixada por esse tipo de intervenção é a de que o pai está tomando conta dessas coisas apenas temporariamente e de que a responsabilidade pela família continua a ser da mãe. Como aponta Taggart (1985, p. 4) essas práticas de acusar a figura da mãe “projetam, como uma patologia feminina, as conseqüências daquilo que se originam em primeiro lugar desse desvio cultural”. A idealização do pai surge de forma complementar ao fato de se culpar a mãe.(CAPLAN, 1985) Geralmente, na literatura da área, os pais são descritos em termos exclusivamente positivo ou neutro, recebem os agradecimentos por, afinal, terem vindo à terapia, recebem os créditos pelas mudanças alcançadas pela família e usualmente a eles são destinadas tarefas de ensino e de 214


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supervisão voltada para as mães de seus filhos. Como resultado de se culpar a mãe e da idealização da figura do pai, a experiência que homens e mulheres têm da terapia familiar é freqüentemente diferente: aos homens, é permitido continuar ocupando posições periféricas que não implicam tantas responsabilidades e não apresentam desafios enquanto as mulheres são levadas a se sentirem responsáveis, culpadas e dignas, apenas, de receberem acusações. Os terapeutas familiares claramente se encontram em risco de perpetuar, em seus consultórios, a prática cultural dominante de acusar as mulheres.

INCAPACIDADE DE SE REFERIR A PROBLEMAS DE ABUSO, VIOLÊNCIAS OU A QUESTÕES RELATIVAS AO CONTROLE É exatamente no campo da violência e do abuso que a falta de poder e o controle das mulheres pelos homens assumem seu caráter mais gritante; e é na conceitualização e no tratamento desses sintomas que a falência das idéias sistêmicas se torna mais clara. Nesse ponto, todos os desvios conceituais a ela subjacentes, somados ao desvio também subjacente da inculpação feminina, trabalham juntos em sentidos que são os mais particularmente danosos às mulheres. A submissão dos terapeutas familiares à teoria dos sistemas resultou não apenas na falência de sua capacidade de analisar os relacionamentos familiares em termos de gênero e poder como também dificultou até mesmo o levantamento dessas questões (TAGGART, 1985). As noções de circularidade implicam que todos os membros do sistema estão vinculados a um padrão interminável e repetitivo de comportamento que se reforçaram mutuamente; são vistas pelas feministas como “tão suspeitas quanto o poderia ser qualquer versão supersofisticada do ato de culpar a vítima, racionalizando-se a status quo”. (GOLDNER, 1985, p. 33) Quando aplicada a casos de agressões, estupro e incesto, a causalidade circular sutilmente retira do homem a responsabilidade por seu comportamento, ao estabelecer a implicação da mulher como coresponsável por esse comportamento uma vez que ela, de alguma forma, “pede por isso”, quando se permite participar do padrão internacional que 215


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resulta em violência e abuso (BOGRAD, 1984). A idéia de “causalidade circular” é dotada de referencial, segundo o qual a mulher tem um papel a desempenhar num padrão de interação que resulta no abuso que é praticado contra ela; dessa forma, sutilmente, retira a responsabilidade que cabe a seu companheiro por seu comportamento abusivo e transferea para a primeira. É demasiadamente fácil para os terapeutas familiares aceitarem essa conceitualização, vivendo como o fazemos no centro de culturas que tradicionalmente vêm culpando as mulheres por sua própria vitimização e as têm encarado como as responsáveis por provocar, pedir por ou, por outro lado, masoquistamente, apreciar o abuso. De acordo com “a casualidade circular”, as razões do comportamento abusivo repousam na própria interação, isto é, se as mulheres fossem levadas a mudar seu comportamento, o padrão alteraria e a violência não mais ocorreria, em vez de na predisposição à violência com a qual o homem enceta o primeiro passo para o relacionamento, as noções de neutralidade, uma posição terapêutica que não responsabiliza o homem por seu comportamento abusivo ou violento, partem do pressuposto da existência de uma equivalência de poder entre as partes. Tal posição é tão claramente ineficaz quanto a não-ética, diante de situações em que o homem detém o poder de controle sobre sua companheira por meio do abuso efetivo ou ameaçador de naturezas física, emocional, psicológica, sexual ou emocional. A despeito do crescente e irrefutável acúmulo de dados que documentam as proporções epidêmicas da violência e do abuso perpretrados basicamente por pais e cônjuges do sexo masculino contra crianças e esposas, a terapia familiar, assim, falhou ao tratar dessas questões de maneira adequada, tanto em sua teoria como em sua prática. A tendência da profissão no sentido de evitá-las e ignorá-las, evidencia-se na escassez de artigos clínicos a elas dedicados nos veículos de terapia familiar) e por intermédio da fuga a essa linguagem documentada em um estudo recente de uma análise de artigos de revistas dedicados a casos de homens que agridem mulheres.

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FUNDAMENTO DE UM PARADIGMA FEMINISTA O gênero como categoria básica da experiência humana A crítica feminista de todas as disciplinas de ordem intelectual tem como base a premissa de que a experiência feminina tem sido universalmente marginalizada ou tornada invisível pela representação que se faz desta e a tem como coerente, se não idêntica à experiência masculina. Miller (1986) propõe que é mais útil pensar em termos de homens e mulheres como duas classes distintas de pessoas. No esquema desse autor, os homens representam a parte dominante, enquanto as mulheres subordinam-se a estes. Essa distinção tem implicações profundas no raciocínio terapêutico. O fato de se reconhecer que homens e mulheres se apresentam como membros de classes distintas traz a análise do poder para o centro da compreensão terapêutica de toda a união. Sejam quais forem as particularidades apresentadas por seu próprio casamento, todos os homens e mulheres são profundamente afetados pelo sistema patriarcal que privilegia os homens à custa das mulheres. Sob a égide desse sistema, os homens sentem que possuem direito ao devotamento constante e inquestionável de sua esposa, de dar a palavra final sobre todas as decisões familiares mais importantes e de ter precedência em suas necessidades sobre as de todos os demais membros da família. Vivendo sob o patriarcado, as mulheres também acreditam que os homens têm direito a todos esses privilégios. O terapeuta que trabalha no âmbito dos paradigmas feministas traz para o diálogo terapêutico um senso agudo das numerosas e, no mais das vezes, sutis maneiras pelas quais o casamento é organizado como uma relação de parceiros desiguais entre si, e se mantém pronto a questionar o comprometimento do casamento com essas estruturas e prerrogativas patriarcais. E isso se mantém como verdade independentemente de o casal definir, de modo explícito, os arranjos concernentes à sua identidade sexual como parte do problema. No paradigma feminista, a verdadeira desigualdade, inerente aos casamentos sexistas, é problemática porque impede o casal de aplicar soluções de adaptação a seus problemas, porque essas poderiam trazer, à tona, os fundamentos patriarcais sobre os quais se apoia o próprio relacionamento. 217


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No relacionamento terapêutico, a influência do patriarcado apresentase sob uma miríade de formas, as quais se evidenciam desde o agendamento do encontro inicial feito geralmente pela mulher, uma vez que esta se sente responsável pela saúde mental de sua família. Os terapeutas familiares feministas incluem em todas as suas avaliações uma análise das crenças e dos arranjos familiares regidos pela individualidade sexual. Em parte, a terapia consiste em auxiliar as famílias a explicitar essa análise e a desafiar os aspectos opressivos do relacionamento, seja nos casos em que o marido consegue o que deseja, intimidando sua esposa, seja naqueles em que ela é colocada como a única responsável pelos cuidados com os filhos, porque é “naturalmente” dotada de habilidades para isso. A família é convidada também a notar as muitas e sutis distinções a que seus próprios membros dão lugar no que concerne às questões relativas à identidade sexual e a desafiar a utilidade dessas distinções.

A IGUALDADE COMO UM IDEAL RELACIONAL As feministas vêem os relacionamentos baseados na igualdade ou no companheiro como a forma mais saudável e eqüitativa de ligação. A partir dessa perspectiva, encara-se como adequada a existência de um certo grau de hierarquia entre as gerações, mas não entre os gêneros. Embora os pais devam apresentar maior poder e autoridade que os filhos, ambos, em família compostas por pai e mãe devem possuir níveis iguais de poder aberto em termos de autoridade, de controle sobre as opções e decisões que digam respeito à sua própria vida, de acesso a recursos e oportunidades e sobre a capacidade para influenciarem-se reciprocamente e de serem entusiasmado também sobre os resultados de suas decisões conjuntas. A elaboração de uma tal igualdade relacional exige a presença de uma alto grau de respeito tanto por si mesmo como pelo outro, a reciprocidade de compromisso relativo ao bem-estar e ao poder que cada um dos pares oferece ao outro, bem como o desejo de abrir mão das tentativas abertas ou encobertas do exercício do poder coercitivo do relacionamento. 218


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Em virtude de os papéis serem uma expressão do poder exercido na família, nas famílias saudáveis, os papéis se mostram flexíveis, intercambiáveis, negociáveis, não-coercitivos e nãobaseados no gênero. Klein (1975) demonstrou as dificuldades em fazer escolhas reais quanto ao desempenho de papéis, à luz da socialização tradicional marcada pela identidade sexual. A liberdade de escolha só é minimamente possível nos casos em que as alternativas são examinadas e os parceiros se encontram realmente desejosos de negociar em um espírito não-coercitivo e cooperativo. A igualdade relacional significa também que o sistema familiar deve considerar como válidos e facilitar o preenchimento das necessidades e o crescimento de todos os membros da família, ao invés de significar que apenas um desses membros e, notadamente, a mãe e esposa, tenha de sacrificar seu próprio bem-estar pela segurança de todo o grupo. A partir da perspectiva feminista, a ausência da igualdade relacional e o resultante desequilíbrio de poder que se instala tanto entre parceiros como no plano dos papéis e responsabilidades a serem assumidas, são vistos como as principais causas da disfunção familiar. Portanto, uma das principais metas da terapia é encontrar meios de ajudar os casais e as famílias a corrigirem esses desequilíbrios. O alcance dessa meta envolve o mergulho nessas questões de poder, tais como as que dizem respeito ao acesso e controle do dinheiro e dos recursos financeiros, às tomadas de decisões, à responsabilidade quanto aos cuidados com os filhos e às tarefas domésticas, e ao acesso às opções como parte tanto da valorização como da terapia.(AVIS, 1991; GOLDNER, 1985) Da mesma forma, envolve estudar a diferença entre custos e benefícios inerentes à participação dos vários membros da família e a relação desses custos e benefícios a papéis estereotipados e divisões de responsabilidade. Seu compromisso de reequilibrar o poder exige que o terapeuta se alinhe de maneira mais forte e consistente com as necessidades e demandas de mudança apresentadas pela esposa do que com aqueles apresentados pelo marido, uma vez que ao tratar com igualdade as demandas de ambos, serve simplesmente para reforçar a desigualdade relacional 219


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pré-existente. (JACOBSON, 1983) Portanto, uma das metas subjacentes à terapia feminista é a promoção da igualdade nos relacionamentos pelo poder oferecido tanto aos indivíduos como às famílias. A meta a ser alcançada é dar condições ao casal ou à família de funcionar de modo tal que cada membro se sinta fortalecido pelo seu próprio senso de valor, pela validade de suas próprias necessidades e de seu próprio crescimento e pelo acesso a uma variedade de opções. Se casamentos e famílias fossem organizados, segundo os princípios que acabamos de resumir, ao invés daqueles concernentes ao patriarcado, ocorreria uma significativa mudança no sentido do que seria conceituado como um nível ótimo de funcionamento familiar. As crianças educadas em um lar, onde os adultos dão mostras de respeito mútuo, de afeto e se conferem num poder igual, absorveriam esses valores por meio dos relacionamentos que estabelecem com seus pais, seus parentes e nas comunidades de que participam. A partir de uma perspectiva feminista, família saudável é aquela em que seus membros se encontram comprometidos com o estímulo do potencial de todos, com a evitação de todo tipo de exploração interpessoal e com recíproco oferecimento de apoio, cuidados, assistência e afeição. No nível individual, o funcionamento saudável, segundo a perspectiva feminista, significa a capacidade de funcionar de maneira efetiva, de acordo com o próprio self, determinar metas pessoais e direcionar uma carga suficiente de energia para alcançá-las – e engajar-se ativa, íntima e generosamente nos relacionamentos que ele estabelece com os demais. O ponto-chave da crítica feminista tem sido o fato de todos os níveis de elaboração teórica terem partido do pressuposto de que a experiência masculina é a norma, e a experiência feminina tanto pode se apresentar como equivalente àquela, como dela derivar. Quando difere dessa norma masculina, a experiência feminina é considerada como desviante.(TAVRIS, 1992) Aplicada ao desenvolvimento humano, a generalização, que parte do masculino para chegar ao feminino, tem conduzido a numerosos equívocos e distorções que encontraram espaço no âmbito da 220


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literatura produzida sobre a área. São eles a noção de que o objetivo básico no desenvolvimento relacional é a autonomia ou a de que a hierarquia é o meio “natural” de organização da vida familiar. Para corrigir essas distorções, na década passada, vários teóricos femininos tentaram estruturar uma teoria voltada para o desenvolvimento feminino, não baseada na experiência masculina, mas, sim, no estudo da vida de meninas e mulheres. (SURREY, 1984; TAVRIS, 1992) Ocupando a parte central desse novo trabalho sobre o desenvolvimento da mulher, situa-se o entendimento de que, diferentemente do masculino, o desenvolvimento feminino se baseia no fato de serem os relacionamentos os que nele ocupam um lugar central, e não a conquista da independência como fator básico de satisfação pessoal. Para que se possa apreender o caráter de centralidade da dialética do crescimento feminino, numerosos autores já começaram a referir-se a ela como teoria do “self-emrelação” .(SURREY, 1984) Os escritores que se voltam para o assunto não se mostram unanimemente de acordo no que diz respeito ao fato das diferenças, que marcam homens e mulheres, se originarem no campo biológico ou social, mas concordam que essas diferenças têm conseqüências profundas sobre os relacionamentos que se estabelecem entre eles. Por exemplo, a compreensão das próprias diferenças que existem entre as formas pelas quais homens e mulheres são socializados, quanto à vivência da intimidade, lança uma luz sobre as observações clínicas freqüentes acerca do fato de as mulheres buscarem a relação com mais intensidade, enquanto os homens procuram manter distância. Em vez de rotularem as mulheres como descaracterizadas, enredadas e indiferenciadas por optarem por esse posicionamento, o terapeuta familiar, por meio desse novo corpo teórico voltado para o crescimento feminino, tem condições de afirmar que este é saudável e competente.

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DEFINIÇÕES AMPLIADAS DE FAMÍLIA Grande parte da literatura ligada à terapia familiar vê a família “normal” como aquela composta por marido, esposa e filhos dependentes e a ocasional inclusão de um avô ou avó ainda vivos. O fato de se privilegiar essa configuração marginaliza ou completamente desqualifica outros arranjos familiares, incluindose aí aqueles formados por parceiros heterossexuais em união estável, homossexuais e os compostos por pais e mães solteiros. O paradigma feminista reconhece que existem várias maneiras pelas quais os seres humanos podem ajustar-se intimamente em relação aos outros, e, de fato, a configuração familiar “normal” diz respeito a menos de um terço de todos os lares norte-americanos.

O EQUILÍBRIO DAS QUESTÕES DE ORDEM FAMILIAR E INDIVIDUAL Um dos aspectos essenciais do paradigma terapêutico feminista é o preço pelo funcionamento e pelas dinâmicas individual e interacional. Isso envolve o reconhecimento do indivíduo como um sistema em si, como resultado da destilação de sua história e experiência pessoais: de ordem genética, familiar, social, cultural de classe e de gênero. Esse entendimento conduz à conceitualização dos problemas relacionais em termos tanto de suas dimensões individuais e interacionais quanto as intervenções voltadas tanto para o nível individual quanto sistêmico. A partir dessa privilegiada percepção, o bem-estar da família e do indivíduo são igualmente valorizados e nenhum dos dois sofrem sacrifícios por causa do outro. Quando as necessidades do indivíduo e da família parecem estar em conflito, respeitar, validar e negociar essas diferentes necessidades é algo essencial para a saúde tanto do indivíduo quanto da relação. Dessa forma, não existe a expectativa de que as mulheres sacrifiquem a si mesmas, suas necessidades, seu crescimento em nome do bem-estar de seu marido ou filhos, embora exista a expectativa de que os membros da família se empenhem em alcançar níveis iguais de ajuste individual às necessidades do conjunto. 222


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UM ENTENDIMENTO DO TRAUMA DE INFÂNCIA, DO ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO E DA DINÂMICA INDIVIDUAL Ponto crítico do paradigma feminista é a compreensão do trauma de infância e de seu conseqüente estresse pós-traumático. Hoje, o impacto, causado pelas experiências traumáticas no posterior funcionamento do indivíduo, é amplamente conhecido, sendo intensificado pelo sentimento de impotência experimentado pela vítima: quanto mais impotente esta última, maior seu trauma. Portanto, as experiências traumáticas, que ocorrem na infância quando o indivíduo se encontra particularmente vulnerável e impotente, são potencialmente capazes de interferir de modo grave no crescimento normal da criança, bem como em seu futuro funcionamento como adulto. O abuso sexual cometido contra crianças é particularmente traumático às suas vítimas, em virtude do sentimento de impotência, de medo, da dor física e dos sentimentos de culpa que estas experimentam. É em razão de tantas mulheres uma em cada cinco, no mínimo, das meninas norte-americanas, terem sido vítimas desse tipo de abuso, quando crianças ou adolescentes que uma significativa porcentagem das mulheres que buscam terapia apresentam traumas de incesto subjacentes ou não-detectados por elas, os quais geralmente se fazem acompanhar por vários graus de dissociação e de flashbacks. Essas mulheres enfrentam um alto risco de ser mal diagnosticadas, muitas vezes como “borderline” ou “depressivas” e de receber um tratamento equivocado de terapeutas mal informados. Quando esses traumas não são reconhecidos e trabalhados em terapia mantêm-se presente na psique a despeito da quantidade de terapia familiar ou de casal que venha a receber as mulheres que os apresentam. As terapeutas familiares entendem a importância do trauma do incesto, confirmam que receberam uma boa formação, reconhecendo, avaliando e respondendo a ele, entendem a dinâmica da dissociação e dos flashblacks e garantem seu apoio às mulheres, oferecendo-lhes o atendimento terapêutico de que necessitam para se libertarem desse trauma. Hoje, cada vez mais se sabe que os meninos também são vítimas do abuso sexual 223


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contra crianças, embora em menor extensão que as meninas e com maior freqüência fora da família do que dentro dela. Naturalmente, é tão importante reconhecer e responder às experiências traumáticas subjacentes masculinas como femininas, incluindo-se aí a maior freqüência de abusos físicos ocorridos entre os homens. As questões referentes aos traumas são levantadas também no trabalho com mulheres que são ou foram vítimas de abuso físicos em seus relacionamentos. Nos casos de abusos constantes e severos, o trauma pode ser semelhante àquele resultante dos traumatismos de guerra, apresentados por alguns veteranos e resultam em uma combinação de medo mortal e impotência. Essas mulheres podem exibir sintomas de “importância adquirida”, o que pode levar um terapeuta mal informado a culpá-las por permanecerem em um relacionamento de caráter abusivo e por não terem uma ação mais efetiva em favor de si mesmas. No trabalho com homens que praticam abusos físicos ou sexuais contra suas próprias companheiras ou filhos, é também essencial que se pesquise a existência entre eles de um trauma subjacente, decorrente de abusos de que também tenham sido vítimas e, caso existam, que se entendam o impacto que tiveram sobre o crescimento e o presente funcionamento desses adultos.

CONFERIR PODER Ajudar os pacientes para que estes se sintam capacitados e reconheçam seu direito de realizar as mudanças em sua vida que lhes permitam funcionar mais efetivamente e se sentirem melhor a respeito de si mesmos, sempre foi o enfoque da terapia familiar. No entanto, sem a presença de uma consciência explicitamente feminista, a terapeuta pode cair na armadilha de reforçar a centralidade das mulheres dentro dos padrões da vida familiar, sem reconhecer que, sob o patriarcado, falta a muitas delas o poder e a influência para determinar as regras, às quais se devem submeter para atingirem os resultados interpessoais que desejam.(AVIS, 1991; GOODRICH, 1991) 224


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Para que se possa por intermédio da terapia familiar oferecer às mulheres o fortalecimento de que necessitam, terapeutas familiares feministas garantem-lhes assistência para que essas sejam capazes de estabelecem a diferença que existe entre o exercício de seu poder pessoal e o ato de dominarem os demais, e as encorajam a compartilhar suas crenças, sentimentos e desejos com os outros membros da família. Como primeiro passo nesse processo, o terapeuta deve procurar ouvir cuidadosamente, procurando encontrar indícios das metas pessoais, desejos e as necessidades de sua paciente que se distingam de seu papel como esposa e mãe. O fato de ouvir cuidadosamente as histórias que essas mulheres contam sobre sua vida pode auxiliar o terapeuta a identificar os tema ainda não-desenvolvidos de competência pessoal e de autoridade. Freqüentemente, nos primeiros estágios da terapia cabe à terapeuta estimular a expressão dessas idéias, porque a própria mulher não acredita que elas sejam legítimas e procura, assim, censurar-se quanto à sua expressão. O terapeuta busca oportunidades de sublinhar a competência feminina e, ao primeiro sinal de resistência dos membros da família, encoraja suas pacientes a não desistirem das posições que assumiram. Encoraja-se, nas mulheres, o estabelecimento de relações com outras mulheres, que possam prover-lhes uma rede de apoio social e para que possam ter diminuído o sentimento de isolamento e dependência que sentem em relação ao cônjuge, sentimento esse que faz com que a mudança pareça tão difícil. (SURREY, 1984) Esses relacionamentos servem também para ajudar as mulheres a contextualizarem sua própria experiência e a observarem que seus problemas refletem mais do que apenas sua idiossincrática fraqueza ou patologia. Conferir-lhes poder também abrange o auxílio às mulheres para que afirmem sua realidade, para que evitem o excesso de ajuda, para que desfiem seus próprios sistemas internalizados de crenças, provendo-as de números maiores de informações e encorajando-as a exercitar de forma direta suas formas de poder pessoal. (AVIS, 1991)

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ANÁLISE SOCIAL Um dos traços que caracterizam a terapia familiar feminista é sua abertura a variáveis culturas, como o sexismo, e sua compreensão dos sistemas familiares particulares. As feministas acreditam que identidade sexual coloca-se como uma categoria de experiência humana, que não pode ser objeto de reducionismos (GOLDNER, 1985), e sob o patriarcado, as diferenças quanto ao gênero têm sido utilizadas para justificarem e manterem os privilégios de poder masculino sobre as mulheres. As terapeutas familiares feministas entendem que não se deve omitir da consideração terapêutica a forma pela qual as crenças relativas ao gênero e aos papéis desempenhados em função deste as quais são determinadas e reforçadas por um grande leque de instituições culturais que vão da igreja aos locais de trabalho, afetam de forma específica o entendimento que a família tem de seus problemas e das potenciais soluções que esta possa apresentar. A análise social é o gume didático da abordagem feminista da terapia familiar. Pode tomar apenas uma pequena parte do total do tempo reservado às sessões, mas ainda assim as feministas acreditam que é da maior importância que as famílias entendam de que modo a forma pela qual estas compartilham das estruturas e divisões de papéis de índole patriarcal pode ter um impacto negativo e limitante sobre suas opções de mudança. Na sala de terapia, a análise social feita pelo terapeuta, por exemplo, pode ser empregada para desconstruir um conflito conjugal no qual o marido afirma que é a sua mulher que cabe levantar-se à noite para atender à criança recém-nascida porque ele deve trabalhar durante o dia e, por isso, necessita de suas horas de sono. A análise social deve permitir à terapeuta a colocação de várias questões concernentes a esse dilema, tais como: é apenas o trabalho remunerado que se constitui como “trabalho”? Algum dos dois acredita que apenas a mãe está capacitada para atender a uma criança? De que forma o fato de cuidar de uma criança se encaixa nas expectativas de cada um deles daquilo que lhes pode ser razoavelmente exigido? Em caso 226


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de desacordo, a qual dos dois pertence a vitória e o que isso tem a ver sobre aquém cabe definir as regras do relacionamento? O objetivo da análise social é auxiliar os membros da família a definirem e a mudarem as restrições que a identidade sexual levanta sobre a participação de cada um deles na vida familiar. Uma vez que as famílias raramente definem as dificuldades que atravessam em termos de gênero, essa análise quase sempre exige que se vá além da apresentação inicial do problema, que é feita pela família.

TRABALHO COM TRAUMA, ABUSO E VITIMIZAÇÃO A partir da perspectiva feminista, o princípio que norteia o trabalho realizado com todas as formas de abuso e de violência é o de que aquele que os perpetra é responsável por seu próprio comportamento violento, coercitivo ou abusivo e assim deve ser considerado. Um segundo princípio-guia é o de que a terapia deve se focalizar na mudança do comportamento violento ou abusivo em si e o terceiro, o de que terapeutas devem trabalhar com a política e com o sistema judiciário para que possam fazer uso do benefício da manifestação de decisões jurídicas de tratamento e das devidas sanções legais. No trabalho que desenvolvem com casais, famílias, mulheres e crianças, os terapeutas familiares feministas desenvolvem sua capacidade de avaliação e diagnóstico de todos os tipos de abusos, sejam eles de ordem física, emocional, psicológica ou sexual. Essas avaliações devem ser vistas como parte da rotina de avaliação que desenvolvem e feitas de forma tal que possam propiciar às mulheres e às crianças, que buscam a assistência terapêutica a oportunidade de abrir-se, com segurança, em relação às formas d e abuso s presentes ou passados qu e e x pe r i me n t a m. Isso geralmente implica algumas sessões individuais voltadas para os processos tanto de avaliação como de tratamento. A prática feminista também exige o desenvolvimento do entendimento e da capacitação pela formação, para o trabalho voltado ao trauma, ao 227


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estresse pós-traumático, à dissociação, a flashbacks e à impotência adquirida, para saber fazer frente às resistências que se corporificam na negação, na minimização, na racionalização e na projeção que tanto vítima como agressor apresentam. O trabalho com trauma, formas de abuso e vitimização também exige dos terapeutas que desenvolvam sua aptidão para lidar tanto com seus afetos intensos como com os seus pacientes, para tratar de questões complexas de ordem emocional, relacional, ética e legal, e para trabalhar de forma equilibrada tanto no nível individual como familiar e com casais. (ELKAIM, pp. 189-212) Enfim, a inserção do feminismo no discurso da terapia familiar afetou profundamente o trabalho e o pensar dos terapeutas familiares, permeando um amplo espectro de pontos de vista teóricos. As terapeutas familiares feministas não se propõem a criar um novo modelo de terapia familiar, mas sim introduzir a questão relativa ao gênero como um prisma pelo qual todas as atividades de cunho teórico, clínico e de formação devam ser examinadas, para que se possam identificar e eliminar os desvios de ordem sexista que nelas se apresentam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A família é o microcosmo; tudo o que se passa no mundo externo tem sua origem primeira no grupo familiar. Entendemos que a família, célula mater da sociedade, pode ser enfocada sob uma dupla ótica. Se vista pelo seu lado interno, refere-se ao indivíduo, sua origem, desenvolvimento e crescimento que o tornam capaz de vir a ser participante em sua sociedade. E este seria o lado externo da família uma vez que está voltado para o mundo à sua volta. Daí podemos inferir que a família é, ao mesmo tempo, origem e consequência da influência de forças diversas, quer psicológicas, sociológicas, econômicas, culturais e todas as outras que fazem parte do universo. A compreensão deste microcosmo representado pela família deve buscar a inter-relação e o conhecimento de como tais forças se integram na realidade de cada família, cada grupo social em um dado momento. Ajudar a família significa criar condições que lhe permitam descobrir228


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se, clarear e ampliar seu espaço e só assim partir em busca de novas negociações e alternativas que lhe permitam usufruir de forma mais plena e fascinante a aventura da vida. À magnitude do problema da violência doméstica em que quase 70% dos casos ocorre no lar, esse dado demonstra que o lar nem sempre é um local de conforto, ele também é um local de agressão e confronto. Nele as relações precisam ser rediscutidas. Faz-se necessário tirar a violência do âmbito privado para colocá-la como um problema público, extremamente importante, pois trata-se de uma violência brutal aos direitos humanos. Não podem existir direitos humanos sem respeito às mulheres. As famílias patriarcais tinham como norma não falar o que acontecia em casa. Diz o ditado: roupa suja se lava em casa. Não acabaremos com o problema da violência contra a mulher se não acabarmos com a cultura do silêncio. Por isso, as feministas afirmaram, com muita propriedade, que o silêncio é cúmplice da violência. Como foi dito nos capítulos anteriores, atualmente, no Brasil, verifica-se que órgãos públicos e entidades sociais, como centros de estudos, de pesquisas e de defesa de direitos, bem como profissionais que atuam nas áreas de saúde, educação, assistência social e justiça vêm se empenhando para romperem o silêncio que têm acerca deste assunto e darem visibilidade ao fenômeno da violência intrafamiliar que tem nas crianças, adolescentes, mulheres e idosos suas principais vítimas. Igualmente, constatase o surgimento de esforços voltados para viabilizar formas para reverterem a tolerância, para combaterem a impunidade dos agressores, existindo ainda uma preocupação em se dar atendimento aos mesmos sempre que possível, como também de atendimento qualificados, aos grupos vitimizados, e para que em todos os espaços públicos e privados essas pessoas sejam reconhecidas e respeitadas como sujeitos de direitos. Diversos são os documentos das Nações Unidas que destacam o papel fundamental da família na organização da sociedade e reafirmam o respeito pela sua diversidade. O Brasil, como grande parte dos Estados Membros das Nações Unidas, inscreveu em sua Constituição, em leis ordinárias e no PROGRAMA 229


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NACIONAL DOS DIREITOS - PNDH, princípios legais de proteção à família. A continuidade dos abusos intrafamiliares é ponto de partida para que se tornem extremamente traumáticos às suas vítimas. As crianças e os adolescentes, entenda-se, em processo de desenvolvimento neurológico e cognitivo, neuropsicológico, tendem a criar protótipos cognitivos e comportamentais, a partir das primeiras experiências de suas vidas. Tais experiências ocorrem no núcleo familiar referencial, seja ele estabelecido por laços consangüíneos ou apenas afetivos. Resumidamente, podemos concluir que as crianças levam os adultos muito a “sério”, utilizando-os como modelo referencial para se comportarem e formarem representações e afetos. Até mesmo porque os primeiros anos de vida são vividos intensamente junto ao núcleo familiar, não havendo parâmetros comparativos comportamentais. Seria correto afirmarmos que crianças e adolescentes, expostos à violência intencional e repetitiva aprendem esses padrões como verdades, e essas verdades internas, padrões mentais representacionais afetivos, serão mediadoras de suas relações sociais. A falta de esperança com a vida, as faltas de prazer social, sexual e profissional são variáveis recorrentes em descrições clínicas de pacientes adultos, masculinos e femininos. Faz-se necessário haver um atendimento de terapia familiar regionalizado. Seja qual for a abordagem, o importante é que seja vista a questão de gênero, como foi discutido anteriormente, pois o fenômeno deve ser tratado junto com a família para que sejam reconstruídos os laços familiares. Precisa-se trabalhar muito e é uma questão de divulgação para mudar a cultura, tendo em vista ser o Brasil um país em que a violência doméstica e intrafamiliar é uma questão cultural.

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PARA REFLEXÃO O ESTATUTO DO AMOR

Afinal vida justa e generosa é aquela que jamais apaga as sombras da casa. Não afugentes assim o convívio dos seres. Enseja que o rosto da mulher e do filho iluminem-se, num átimo, à simples vista da panela a ferver sobre o lume, anunciando o feijão. Este alimento brasileiro que exalta a paz e a abundância. Sobretudo, não despojes a família dos seus privilégios naturais. Não a envenenes com a amargura do teu peito. Não a amordaces com tua ira. Mas assegura-lhe a herança dos teus gestos, das palavras. Recorda que embora o coração humano seja quantas vezes espezinhado pela desmedida cobiça, pela ausência de escrúpulos morais, em ti perdura a ânsia do paraíso. Deste modo, faz resistir nesta família a ilusão de serem todos filhos de Deus. O que seríamos sem aqueles que nos ofertam o arcabouço do lar? Aqueles que batalham para que em nós subsista a soberana emoção de se saber parte de uma família que sucede a si mesma ao longo da peregrinação humana? Mas se no futuro o amor à mulher se esgote, não é razão para deixar em seu lugar os traços do desamor, o estigma da maldade. Nenhum pedaço de carne humana merece ser golpeado pela indiferença, pela violência, pela injustiça. Portanto, não abatas a tiros, a tapas, a arranhões o corpo da mulher. Em comunhão com ela forjaste a família. Respeita, pois, o direito que te foi dado de reproduzir-te em outro ser, o teu filho. A família é o fruto superior da tua radical humanidade. 231


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Não lhe negues, então, um olhar compassivo, as lágrimas conspurcadas por uma realidade que traiu teus sonhos. Quem quer que esteja no recinto sagrado do lar é, ao mesmo tempo, o sucessor do teu horror e da tua capacidade de maravilhar-se. Aprenda que o outro é o teu lar. É o teu corpo, o teu nome, o teu outro rosto. É o verso e o reverso de tuas entranhas. É o espelho de tua irrenunciável humanidade. Não esperes aquele ano que, por obra de tua violência, a tua família seja dizimada, para só então descobrires a gravidade indizível de tua infâmia. Para saberes que gozo terias sentido se, em vez de matá-la, a tivesse levado ao peito enquanto ainda vivia. Mergulha, sim, na liturgia do amor e renuncia a tua descabida violência. O amor é e sempre será o teu melhor gesto na terra. O único capaz de projetar luz sobre esta precária existência humana. (Nélida Piñon)

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