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O sertão erudito do mestre Sivuca
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O sertão erudito do mestre Sivuca

De "Feira de Mangaio" à devoção pela obra de Bach, Sivuca combinou formação clássica e experiência popular como poucos e assim criou uma obra imortal
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Foto tirada em setembro de 2006, durante o Philips World Music Festival, no Recife. Sivuca morreria 3 meses depois, vítima de câncer na laringe, aos 76 anos (Foto: LEOPOLDO NUNES/AE)
Foto: LEOPOLDO NUNES/AE Foto tirada em setembro de 2006, durante o Philips World Music Festival, no Recife. Sivuca morreria 3 meses depois, vítima de câncer na laringe, aos 76 anos

Já vai quase o fim da gravação de "Feira de Mangaio" quando Clara Nunes não se contém e solta: "Êta sanfoneiro da gota serena". O sanfoneiro em questão era Sivuca, autor daquele que é um dos mais reconhecíveis riffs da MPB. Clássico absoluto entre os mestres do acordeom, a composição revela muito sobre seu autor. Começa que é uma parceria com Glória Gadelha, com quem Sivuca dividiu vida e carreira. Outro detalhe é que esse forró nasceu nos EUA, num momento em que casal conversava sobre do que sentiam saudades do Brasil. E levar a tradição nacional para o exterior - bem como trazer de lá pra cá - está entre as grandes contribuições daquele senhor talhado em tons de branco.

Foi no 26 de maio de 1930 que nasceu Sivuca. Ou melhor, Severino Dias de Oliveira, filho de gente simples do município paraibano de Itabaiana. Sivuca, mesmo, só foi nascer mais adiante, quando aquele menino albino, ainda adolescente, trabalhava em rádios tocando acordeom. "Ele começou a tocar com um (acordeom) 8 baixos e, como era albino, não podia brincar na rua e ficava em casa estudando", conta o músico Adelson Viana.

Autodidata, Sivuca nem tinha 10 anos quando já tocava em bailes, feiras e festas de sua cidade. Por volta dos 15, foi pra Pernambuco, onde participou de regionais e trabalhou em trilhas de radionovelas. Seu próximo destino foi São Paulo, a convite da cantora Carmélia Alves que o queria no seu próximo disco. E foi dela a primeira gravação de "Adeus Maria Fulô", parceria dele com Humberto Teixeira. Antes, Sivuca parou para estudar teoria musical e harmonia com César Guerra Peixe.

Esse contato com o maestro petropolitano talvez seja a senha para compreender a grandiosidade de Sivuca. Sua música tinha o barro do interior nordestino e as luzes dos salões elegantes. Ele era o sanfoneiro do resfolego ágil e o admirador de Johann Sebastian Bach. De São Paulo, ganhou o mundo tornando-se um dos artistas brasileiros mais reconhecidos internacionalmente. Sua primeira viagem para a Europa foi integrando uma comitiva de músicos que contava ainda com o Trio Irakitan nos vocais, Abel Ferreira nos sopros, Dimas e Pernambuco na percussão, e Guio de Moraes na direção artística.

Dessa viagem, em meados dos anos 1950, até o fim da vida, em 14 de dezembro de 2006, vitimado por um câncer, Sivuca visitaria muitos países, moraria em alguns deles e encontraria algumas das mais importantes personalidades da música moderna. Paul Simon, Bete Midler, Hugh Masakela, Astrud Gilberto, Stanley Turrentine, Toots Thielemans, Airto Moreira, Flora Purim e Hermeto Pachoal só pra ficar numa lista modesta. Foi ainda parceiro de Chico Buarque em "João e Maria" e teve canções gravadas por uma infinidade de artistas que vão dos roqueiros Mutantes ao cantor português António Zambujo.

"Ele teve contato com grandes maestros, arranjadores, cantores de sucesso. E teve uma temporada muito boa nos EUA, onde gravou um disco incrível, 'Live at the Village Gate'. Lá, ele misturou música brasileira, tocou Baden Powell, composição dele, standard de jazz, revisitou compositores mais antigos", aponta o guitarrista Mimi Rocha. "Quem é mais aficionado com o trabalho dele como sanfoneiro, não conhece muito desse lado dele de compositor e arranjador", completa.

Da soul music ao baião, às valsas, choros, sambas, tudo passava por Sivuca. "Quase tudo que passasse pela mão dele ele tocava. Não só a sanfona, como outros instrumentos. Além de tocar forró muito bem, ele adorava clássicos e lia muito. E era um cara muito positivo", relembra o músico e produtor Lau Trajano, com quem Sivuca dividiu palcos e doses de cachaça. "Ele era um contador de causos. A gente sentava pra papear e ele contava histórias de quando morou fora. Ele dizia que iria sentar a poeira e iria viver na terra dele", revela.

"Sivuca foi um extraordinário músico que elevou o nível da sanfona a um outro patamar. Acho que, se hoje a gente pode subir num palco e tocar sanfona, deve-se muito a ele. Ele tem uma singularidade que é indiscutível", destaca Adelson Viana. "Sivuca estudou muito com violinistas e pegou uma técnica baseada no arco do violino. Ele sincronizava o manejo do violino com a abertura do fole e fazia isso com maestria. Era um músico preparado, ia aos limites do que o acordeom pode dar".

 

Para ver Sivuca:

Live At Berns Salonger 

Gravado em 1966, em Estocolmo, Suécia, o vídeo com cerca de 20 minutos traz a cantora sul-africana Miriam Makeba cantando acompanhada de Sivuca ao violão. Entre as canções, "Chove Chuva", de Jorge Ben.

Com Harry Belafonte 

No início dos anos 1970, o cantor e ator Harry Belafonte convidou Sivuca para integrar sua banda. Juntos, eles participaram de um especial de TV que contou com participação de Julie Andrews. Sivuca toca violão, sanfona e brinca com o elenco.

Feira de Mangaio 

Talvez o maior sucesso de Sivuca, esse forró ganhou um clipe para a TV onde divide atenção com a saudosa Clara Nunes. A música fecha o disco "Esperança", de 1979, que vendeu mais de 350 mil cópias.

Sveriges Radio 1969 

Nesse programa feito para a TV sueca em 1969, Sivuca abre o set com uma interpretação cheia de improvisos para "Céu e mar" (Johnny Alf) e segue com "Arrastão" (Edu Lobo/ Vinicius de Moraes) e outros clássicos da bossa nova.

Aproveita gente 

Em 1984, Sivuca foi um dos convidados de Luiz Gonzaga num especial da TV Globo. Juntando ainda Doinguinhos e Oswaldinho, o programa transforma o estúdio num arraiá. Uma grande festa nordestina.

 

Para ouvir Sivuca

Live at the Village Gate

Gravado em 1975, o álbum traz uma apresentação de Sivuca num famoso clube de jazz de Nova York, acompanhado de um quinteto de músicos americanos. No repertório, tem sucesso próprio ("Adeus Maria fulô"), Ary Barroso ("No rancho fundo") e uma curiosa versão de "Ain't no Sunshine", de Bill Withers.

Let's vamos

De 1987, o disco é uma parceria de Sivuca com o duo de violonistas suecos Guitars Unlimited, formado por Peter Almqvist e Ulf Wakenius. O repertório vai de Moacir Santos ("Coisa No 10") a Dominguinhos ("Nipolitano"). Glória Gadelha participa em "Cheirinho de mulher".

Pau doido

Resultado de uma turnê pela Escandinávia e norte da Europa, esse álbum de 1992 tem homenagens a Tom Jobim ("Um tom para Jobim") e Astor Piazzolla ("Canção Piazzollada"). O músico João Lyra participa tocando violão e na composição de "Riacho seco", parceria com Maurício Carrilho.

Sivuca & Rosinha de Valença

De 1977, a gravação do projeto Seis e Meia, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, rendeu um dos discos mais cultuados da música instrumental brasileira. É aqui que ele mostra ao público, pela primeira vez, sua "Feira de mangaio". Ao lado do violão de Rosinha, Sivuca recria "Asa branca" e "Lamento".

Cada um belisca um pouco

Lançado em 2004, o disco reúne mestres do acordeom: Sivuca, Oswaldinho e Dominguinhos, além de Waldonys, como convidado especial. No repertório, eles passeiam por sucessos acumulados em anos de carreira. "Eu só quero um xodó", "Baião", "Adeus Maria Fulô" e outras.

 

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