A vanguarda diluída em Juventude Transviada

Gio
5 min readDec 13, 2018
James Dean e Natalie Wood em Juventude Transviada. Imagem: Universo Retrô

Ao assistirmos Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, EUA 1955) pela primeira vez, a impressão que o filme pode nos passar é de que a sua temática é um tanto comum. A narrativa de um jovem colegial que se transfere para uma escola nova e desafia os padrões, hábitos e hierarquias do lugar foi explorado pela cinematografia hollywoodiana à exaustão. De cabeça, posso lembrar da trilogia High School Musical (2006), de seu predecessor Meninas Malvadas (2004), e do musical Footloose (1984). Todos, porém, bebem da mesma fonte — o filme de Nicholas Ray que colocou James Dean no ápice de sua carreira — , mas diminuem o nível de complexidade e carga dramática de seu progenitor, tornando-se meros simulacros do clássico da cultura pop.

O adolescente constitui um verdadeiro interesse dos cineastas em razão da volubilidade de sua personalidade. O processo de construção de caráter do jovem — que vai influenciar o tipo de adulto que este virá se tornar — encontra terreno fértil na adolescência, pois é neste período que as primeiras ideologias e mantras se aferram com propriedade.

Sendo assim, o filme Juventude Transviada veio a calhar no seu momento histórico. O período de guerra, que endureceu muito seus contemporâneos, produziu uma área de não-comunicação entre pais e filhos que contribuiu muito para o afastamento filosófico e principista dos membros da família burguesa. O protagonista interpretado por Dean, Jim Stark, revela uma caracterização indumentária e conceitual do adolescente deste tipo de família: excluído do seu círculo familiar, que rejeita e é rejeitado pelos pais, incompreendido pelas autoridades em geral, tanto escolares como policiais, que sofre com vícios e com a incapacidade de pertencimento. A identificação dos jovens da época com o personagem é instantânea, e a disseminação de “James Deans” pelas ruas se daria com uma amplitude inesperada. Ao mesmo tempo, o conceito da família burguesa tradicional tornaria a cair exponencialmente, enquanto uma juventude desalinhada e desajustada viria a ditar as regras não só da nova moda, mas também da vida moderna.

Junto com o conceito de jovem moderno surge uma “ideologia da juventude”: propõe que deveriam ser questionadores e insatisfeitos com os padrões, tendo desejos de liberdade e de revolução. Que deveriam viver num eterno carpe diem, cometendo uma série de erros e infrações enquanto ainda são jovens e podem justificar como imaturidade ou inconstância. Os novos valores da juventude também vêm associado ao sexo pré matrimonial, opondo-se de uma só vez às três instituições que constituíam a base da sociedade na época: a família, o casamento e a Igreja. São as primeiras experiências que vão constituir a identidade do jovem, que agora pensa e age de forma independente dos pais. A maior parte desses ideais etários sobrevive até hoje, ultrapassando as demandas geralmente associadas às gerações. Assim, não se relaciona à “juventude dos anos 50”, mas à juventude como um todo, um bloco homogêneo e uníssono.

O imaginário juvenil é então composto pela figura de Jim Stark: assim como eles, um herói anti-heroico. Imperfeito, instável, confuso e exausto, cujo único desejo é viver longe dos moralismos sociais e da hipocrisia da família. Sua Pasárgada é viver em consonância com aquilo que acredita, e não em função do que lhe foi imposto. A cultura de massa se apropria desse personagem — e do padrão comportamental inerente à ele — , e o torna representante do ideal a ser seguido. Com isso, sua perpetuação ao longo das décadas é imprescindível. Da mesma forma, a vida e morte de James Dean ganharam ares mitológicos e foram decisivos para os ecos do filme na contemporaneidade. O ator, morto prematuramente num acidente de carro alguns dias antes do lançamento do filme, tornou-se ídolo do século XX por ter repetido em vida real uma das grandes cenas de Juventude Transviada. Dean captava a essência do que era ser jovem: viver no momento sem preocupações com o amanhã, tornando-se por vezes irascível e imprudente. A personagem rebelde e a morte trágica juntas constituíram o fenômeno da cultura pop.

O sucesso do filme se dá por uma confluência de outros fatores, ademais de sua inserção na ascendente cultura jovem. Neste, o diretor Nicholas Ray optou por incluir as mais recentes inovações tecnológicas do período, como a exibição em widescreen — fruto do cinemascope, processo de filmagem revolucionário dos anos 50 criado pela Fox contra o avanço das técnicas televisivas, que posteriormente viria a se disseminar para outros estúdios — , que expandia o quadro, dando-lhe a forma panorâmica. Como exemplos podem ser citadas a cena da escada, em que Jim conta da morte de Buzz para a família e ameaça ir à polícia para esclarecer seu envolvimento, e a emblemática cena final, quando a catarse de acontecimentos culmina na morte de Plato. Os cuidadosos movimentos de câmera, como o ângulo holandês e a câmera subjetiva, também contribuem para o êxito da película.

Apesar do valor simbólico do filme — que representou a tomada de poder econômico, social e cultural pelos jovens — , existiram outros filmes contemporâneos à Juventude Transviada que contaram com maior liberdade produtiva, já que este ainda se encontrava preso à certos códigos sociais e valorativos tradicionalistas. É o caso, por exemplo, de Acossado, dirigido por Jean-Luc Godard. A obra mostra-se menos conservadora ao retratar a relação afetiva e sexual de um criminoso bon vivant chamado Michel Poiccard e da aspirante a jornalista norte-americana Patricia. Os dois personagens apresentam personalidades pouco convencionais: enquanto Patricia será símbolo da modernidade comportamental da mulher jovem, Michel virá a ser, assim como Jim, um herói anti-heróico, que desvia do modelo de cavalheirismo e moral incorruptível dos homens dos anos 20 e 30.

Em ambos Poiccard e Stark, a rebeldia em relação à sociedade de consumo e a exploração liberalizada da sexualidade são as bases de seu comportamento divergente do padrão moral. Acossado é visto como mais libertário, porém, pois Poiccard sofre com todas as consequências de sua conduta, enquanto Stark se reconcilia com a família na cena final e passa a ter um relacionamento padrão com Judy. Também, pode-se citar a ausência de cenas explícitas de afeto físico entre os protagonistas em Juventude Transviada como mais uma evidência da diluição de sua juventude. Deve-se guardar, porém, o lapso temporal entre as duas produções — Juventude Transviada precede Acossado em cinco anos — , e a diferença cultural acentuada pela distância do Atlântico, já que a primeira é americana, e a segunda, francesa.

Ao final, o filme de Nicholas Ray alcançou o posto dos grandes de Hollywood, e serve até hoje de influência para outras produções sobre adolescentes deslocados e com problemas familiares. Porém apesar de ter servido como base para a idealização e constituição de uma juventude inexistente até então, que se lançou sob os preceitos de rebeldia em relação aos pilares do capitalismo, ainda pode ser considerado conservador em certos aspectos que só viram a ser questionados posteriormente, como o estereótipo de masculinidade, a homossexualidade e o tabu da nudez. Assim, mesmo sendo pioneiro com aura pressagista, é também a dose exata do que a sociedade aguentaria digerir: mais que isso, teria sido escandaloso, audaz e, muito provavelmente, revolucionário.

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