O artista — ou artesão, como ele prefere ser chamado — Hélio Leites | (Foto: Lex Kozlik)

O Significador de Insignificâncias

Em 1986, Paulo Leminski escreveu a famosa crônica com este mesmo título para apresentar ao mundo o artista Hélio Leites. Trinta anos depois, tenho o prazer de revisitar o texto, o artista e o poeta.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
10 min readNov 27, 2016

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Fernando Pessoa

No poema O Guardador de Rebanhos, Fernando Pessoa fala de como as pedras são engraçadas quando as gente as tem nas mãos e olha devagar para elas. Ele usou a palavra engraçada, mas poderia ter usado qualquer outro adjetivo. O que está em jogo, no momento, é o ato de olhar para o trivial, o ponto de vista, a perspectiva, o como se vê. O gesto de olhar com atenção para alguma coisa corriqueira e achá-la feia, engraçada ou bonita. Como uma pedra.

Carlos Drummond

Drummond, por exemplo, tropeçou numa pedra no meio do caminho e a eternizou num poema. De lá para cá, esse poema veio rolando, tropeçando no caminho de muita gente. Foi imortalizado no inconsciente coletivo de milhões de brasileiros.

Depois dele, muitos de nós tropeçamos junto com ele, por causa dele, a mesma pedra. Tendo, graças a ele, o mesmo alembramento: nunca nos esqueceremos deste acontecimento.

Paulo Leminski

Por aqui, em Curitiba, de tanto olhar com atenção para as pedras, Paulo Leminski, outro poeta, virou uma delas. Muitas. Uma Pedreira inteira.

Olhou devagar e com tanta atenção para tantas pedras e tantos seres — alguns deles aparentemente tão corriqueiros quanto pedras no caminho — que acabou dando significado a muitas coisas que, assim como a pedra de Drummond, não teriam passado de insignificâncias. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.

Foi assim que, em 1986, Leminski publicou, no Correio de Notícias, o texto homônimo, Significador de Insignificâncias, apresentando, conceituando, retratando e traduzindo Hélio Leites.

“Até então eu estava igual à Rita Lee”, entalha o artista, “ainda não tinha uma tradução. Leminski foi meu padrinho de cisma”, trocadilha ele. “Eu levei minha cisma para ele e ele entrou na onda, deu valor.”

No dia que Hélio leu o texto escrito por Leminski, correu lavar a alma, tomar banho de cachoeira, como se tivesse tido uma benção. “O quê? Ele viu isso em mim?”, remonta ele à memória daquele momento, três décadas atrás, quando da publicação do artigo.

“Detalhezinho, uma palavra que fosse, Leminski sacava a história.” Se tinha alguém que sabia andar distraído, era ele. Tanto que venceu.

Hélio, em um de seus autorretratos | (Foto: Lex Kozlik)

Alice Ruiz

“Alice conheceu Leites no Rio e dele me trouxe curiosas impressões”, escreve Leminski no conhecido texto, falando de como sua esposa, Alice Ruiz, conheceu o artista, no Rio de Janeiro. Resumidamente, o poeta escreveu assim:

“Belo dia, Leites me visita em casa. Já chegou perguntando quantos botões eu tinha na roupa. Confesso que embasbaquei. Quem não embasbacaria? A gente não presta atenção nessas coisinhas. De imediato, percebi que estava diante de um mestre zen. Alguém que, através do humor, chama atenção para as pequenas coisas da vida que a própria vida não deixa que a gente perceba.”

Hélio Leites

De lá para cá, muitas pedras rolaram. Na série de mini-vídeos O Que é Tristeza para Você?, em que diversos artistas revelam suas perspectivas sobre a tristeza, Hélio Leites registra que “a tristeza é boa, porque faz você ver outras coisas que a alegria não deixa.”

"Helio Leites — O que é tristeza para você?", de André Saito & Cesar Nery | (Duração: 3:29)

“A tristeza é boa, porque faz você ver outras coisas que a alegria não deixa.”

É como se Hélio fosse uma espécie de tristeza, então? Como se transformasse sua tristeza em pedra?, pergunto eu, trinta anos depois da publicação do texto de Leminski, quando da minha vez de ir à casa do homem dos botões, em uma inversão daquela clássica visita de 1986.

“Ou em pão”, responde ele, introduzindo aqui uma de suas também clássicas provocações: “Eu pego um palito de picolé e transformo num São Francisco. Daí, vendo o São Francisco por dez reais e compro um pacote de pão. Ou seja, embaixo daquele palito, tinha um pacote de pão”, explica ele.

Antes da transformação, Hélio conversa com os palitos, trabalha com eles. No início, se o palito estivesse quebrado, o artista não o pegava. Até que, um dia, passou por cima de um, sentiu uma pontada nas costas e uma voz que dizia que os mais machucados eram os que mais precisavam.

“Parei contrariado, voltei irritado, catei agachado”, rima Hélio. “Levei no desleixo, lavei no relaxo, guardei no descuido. No outro dia, distraído, olhando para o palito, meio mordido, parecia os pezinhos de São Francisco. Não é que era, meu filho?”, finaliza ele, me chamando pela primeira vez do que me chamaria para sempre depois, de “meu filho”.

Uma das miniaturas de Hélio, que recicla materiais destinados ao lixo e constrói com eles um universo próprio, repleto de novos significados | (Foto: Lex Kozlik)

Roberto Carlos

Além de seu significado de descoberta do óbvio oculto, como descreve Leminski na crônica de 1986, o botão tem outras conotações que a Botânica de Hélio já detectou. “É um nada, mas está li juntinho com você, colado na sua pele, você pega nele em média 37 vezes por dia, às vezes não sabe nem quantos furinhos ele tem”, começa Hélio, na minha visita.

“Se você não sabe quantos furinhos tem o botão da sua camisa, meu filho, me desculpe, mas com que moral você vai querer saber sobre rabo de cometa, disco voador, mancha solar, vida em outro planeta? As pessoas ficam tão preocupadas com as coisas que estão lá longe", indigna-se o artesão, "que perdem o que está perto".

Traduzir o Hélio, Leminski já tinha feito. Eu, na minha visita, queria ir além. Desconstrui-lo. Saber como pensa e de onde vem esse personagem — “nem eu sei”, diz ele — , me conectar com ele. Tirar leite de pedra, como se diz.

Para isso, fiz um jogo: me abrir. Se eu só tenho do outro quanto mais eu me abro, e se botão une ao mesmo tempo que revela, que tal se, durante a entrevista, eu não só abrisse os botões da blusa que eu usasva, mas também os tirasse e os costurasse à blusa que o Hélio usava?

Eu não sairia desta conversa mais livre, peito nu, cabelo ao vento? Mais do que isso, eu não sairia desta conversa unido ao Hélio para sempre? Uma parte de mim comungada com ele?

Deu certo. Quanto mais eu me revelava, mais leite de pedra eu tirava. Água mole em pedra dura, tanto bate até que. Vira Leites.

Hélio Leites posando com uma de suas miniaturas. Ao fundo, detalhe dos botões da blusa que eu usava, agora costurados ao avental do artista | (Foto: Lex Kozlik)

O "i" da questão

Na cultura japonesa, de acordo com Hélio, as pessoas vão mudando de nome à medida que a vida vai acontecendo com elas. Com ele também, sem que ele soubesse, isso foi acontecendo. É que, para ser feliz num lugar, para sorrir e cantar, tanta coisa a gente inventa. Contorna, entorna, transforma, disforma.

Tanto que, à época da crônica de Leminski, em 1986, Hélio ainda não tinha feito o caminho das pedras. Ainda se chamava Letes, sem o “i”.

Antes ainda, assinava JHSL, iniciais de seu nome. Até que. Foi fazer a cabala. “O cara falou para eu escrever Leites com ‘i’. Eu havia pago setenta reais por aquele ‘i’, não ia jogar fora”, conta Hélio. “Comecei a usar. Igual Leminski, eu não discuto com o destino, o que ele pintar, eu assino.”

O Chapeleiro Maluco

Escrevendo para esta mesma editoria da Revista One em outra ocasião, me senti transformado na Alice do País das Maravilhas. O personagem era o ilustrador André Coelho e usamos seu xará no livro de Alice, o coelho, para entrar no ateliê do artista.

Desta vez, com Hélio, me senti novamente no País das Maravilhas, tomando café com o Chapeleiro.

“Meu filho, você já foi parar dentro da xícara?”, pergunta ele. Eu digo que não. “Então vá. Se agente não vai para dentro da xícara, não acha mais lugar nenhum no mundo em que caiba”, responde, empunhando uma xícara com um céu, uma escada e um mongezinho desenhados à porta.

Hélio, com uma de suas dezenas de São Francisco na mão direita e um retrato de família na mão esquerda | (Foto: Lex Kozlik)

“Eu pego uma xícara, empapelo por dentro, pinto nela um céu, faço uma escadinha e coloco um monge subindo. É ele quem vai te ajudar a viajar para dentro da xícara”, chapeleia o maluco. Com sabedoria, está falando de autoconhecimento e compreensão.

“Conhece-te a ti mesmo”, parafraseia ele, Sócrates. “Sabe Sócrates, aquele jogador do Corinthians?”, pergunta Hélio, referindo-se ao pensador grego. “O problema é o que as pessoas põe dentro da xícara.”

Foi numa caneca, aos 7 anos, que o Chapeleiro descobriu o seu destino. A professora pegou uma bola de argila, tirou o miolo e transformou em uma caneca. O menino Leites, ainda água, ficou transtornado. “Imagina! Com 7 anos, você vê uma pessoa com uma bola de barro, e dali a pouco ela está com uma caneca.”

Até então, para Hélio, um botão era apenas um botão, e uma caixa de fósforo era apenas uma caixa de fósforo. “Esta professora me fez ver que eu podia transformar as coisas.”

Ou transtornar, como costuma dizer. Porque “transformar é pouco.”

Marisa Monte

Hélio considera que foi desempregado durante muito tempo: todos os anos em que trabalhou em banco. Afinal, “trabalhar no que a gente não gosta é o maior desemprego do mundo”. E que não gosta de ser chamado de artista. Prefere artesão.

“É uma coisa mais descente”, desdenha Hélio, simpático e bonachão. “Se você fala que é artista, eles querem saber se é de televisão, de cinema… Eu sou artista de feira.”

Hélio Leites, artista nato, artesão de feira, simpático de nascimento, só foi entrar para a Faculdade depois de idade. Cursou Belas Artes, na Embap, aos 60 anos. Por isso eu pergunto, a você no mundo, se é mais inteligente o livro ou a sabedoria, como cantou Marisa Monte sobre o profeta Gentileza na composição homônima de alguns atrás.

E, na sequência, pergunto ao Hélio se ele, por sua vez, se considera um profeta. “Claro que não, menino”, nega, enfático. “Mas tem hora que parece que não sou eu que estou falando”, pondera.

“Se você fala que é artista, eles querem saber se é de televisão, de cinema… Eu sou artista de feira, artesão.”

Titãs

“As ideias estão no chão, você tropeça e acha a solução”, dizem os versos de uma música dos Titãs. Pois para além da caneca transtornada do barro pelas mãos da professora, a história que se inventa pelo próprio Hélio para sua gênese criativa também estava no chão.

“Eu estava passando na rua, meio desanimado. Cuspi, e o cuspe caiu em cima de um botão”, conta ele. “Eu voltei, tive que limpar a ideia da boca e o cuspe do botão. O botão dizia assim: você vai dar um jeito, Hélio, a gente vai dar um jeito.”

O que me lembra outros versos, de outra música, de outros compositores, cantados pela mesma banda: “Toda pedra no caminho, você pode retirar”.

Detalhes de obras do artista Hélio Leites: "As ideias estão no chão" | (Foto: Lex Kozlik)

Ney Matogrosso

“O que eu preciso são histórias, menino”, muda ele o vocativo, transformando-me outra vez criança, como no poema de Fernando Pessoa citado no início.

“Sem as histórias, os objetos não seriam tudo que são. Eu conto uma história para a pessoa, a pessoa se emociona e leva uma peça. Ou guarda a história no coração, não precisa levar a obra.”

Tem uma mulher lá na Bahia, conta Hélio, que mandou “não sei quantas caixas de fósforo” para ele, todas com palito queimado, e disse assim: sempre que eu acendo um palito de fósforo, me lembro de você.

“Você não precisa trazer para mim um palito de picolé toda vez que encontrar”, diz Hélio. Mas precisa pensar no artista para fortalecer o recado da transformação dele. "Reciclar, botar uma história em cima.”

“Pedras sonhando pó na mina. Pedras sonhando com britadeiras”, canta Ney Matogrosso em composição de Pedro Luís e a Parede. E continua: “Cada ser tem sonhos à sua maneira.”

Parque das Pedreiras

E assim vamos nós, todos, rolando. Como água, como pedra, como gente. Nos transformando em leite, lattes, Leites, poemas. Em pó, em som, em sombra, em água, em nada. Pedra, pedreira, britadeira.

“Queria fazer música. Como não sei, crio ruídos”, canta Hélio.

(Foto: Lex Kozlik)

“Se você não sabe quantos furinhos tem o botão da sua camisa, meu filho, com que moral você vai querer saber sobre rabo de cometa, disco voador, mancha solar, vida em outro planeta?”

“Leminski não era apenas um escritor, mas um pensador”, solta Hélio. Não há quem não tropece numa frase dessas — “distraídos venceremos” — e não se lembre para sempre desse acontecimento. Como se fosse uma pedra. No meio do sapato ou do caminho.

É o olhar do outro que me transforma em pedra, mas sou eu que lapido a pedra do meu pensamento. É assim que os artistas transformam distração em vitória, água em leite, miniatura em arte, jornalismo em literatura, encontro em história, destino em sina.

Seguimos, todos — Leminski, Hélio, você e eu — , muito distraídos. Sabemos que já vencemos. Temos tempo de sobra para nos perder pelas beiradas do caminho. Tropeçando em pedras, seres, poemas. E vendo, em cada um deles, a terra inteira, mais o Sistema Solar, a Via Láctea, o Oceano e o Indefinido.

E cá fico eu, a pensar com os meus botões, a me abotoar e tentar entrar para a história. Não discuto com o destino. O que ele traçar, eu pinto.

Quem souber olhar de forma diferente para cada pedra e cada ser, vai virar pedra, pedreira, britadeira. Afinal, cada ser tem sonhos à sua maneira.

Assista aqui ao documentário "O Significador de Insignificâncias" (2016), de Fernando Severo e Diego Lopes, sobre a arte e o universo de Hélio Leites | Duração: 15:04

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Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.