João Cutileiro: o erotismo e a pornografia

Perdemos João Cutileiro. E perdemos, colectivamente, porque João Cutileiro está encastrado no nosso tecido comum da memória: fez esculturas que estão à vista de toda a gente e fez outras que se guardam nas mãos fechadas em concha, como segredos. 

João Cutileiro é o escultor do corpo feminino, muito essencialmente, que apresentou de forma constante e obsessiva; mas também é o escultor das flores. No ano 2012, em artigo do Correio da Manhã, aludiu à sua exposição de Homenagem a Mapplethorpe, de tributo e de reconhecimento e de admiração relativamente ao fotógrafo norte-americano, e afirmou também o seguinte: “Aquando dessa minha homenagem, as pessoas pensavam que iam lamber os beiços porque esperavam caralhadas à Bocage, mas encontraram flores! O Jorge Amado dizia que as flores eram os órgãos sexuais das plantas.” Em face de um fotógrafo conotado com a pornografia, mas que também captou de forma encantadora as flores, tendo sido esse universo que inspirou directamente João Cutileiro para encetar a exposição Homenagem a Mapplethorpe, e vindo o escultor de um espectro de nus, realmente poder-se-ia esperar “caralhadas à Bocage”, o que a experiência infirmou.  

Lembram-se, eventualmente, da exposição que a Fundação Calouste Gulbenkian apresentou entre 20 de Abril e 10 de Setembro de 2018, Pós-Pop. Fora do Lugar-Comum, com curadoria de Ana Vasconcelos e Patrícia Rosas e constando de obras de arte produzidas entre 1965 e 1975, em Portugal e Inglaterra: mais de 200 obras, 47 artistas? Lembram-se, eventualmente, que Pós-Pop. Fora do Lugar-Comum incluía três caixas negras, correspondentes a três salas, alusivas ao secretismo com que se desenrolavam diversas actividades em Portugal em tempo de Estado Novo, e uma delas refere a questão da sexualidade: nela se apresenta Relicário, de Clara Menéres, bem como umas pequeninas esculturas eróticas de João Cutileiro? Lembram-se, eventualmente, que a opção pela blindagem da sexualidade se apresentou polémica? Mas a sexualidade, de facto, é algo recôndito e, por exemplo, a mania de incluir numa apresentação de si a “identidade” sexual, neste mundo actual muito afirmativo e assumido, torna-se um tanto desconfortável, ou mesmo macabra.  

Aliás, até espanta que a necessidade de confessar a “identidade” sexual seja essencialmente defendida por pessoas que se posicionam num patamar de flutuação identitária, digamos assim, normalmente tendentes a atacar a heterossexualidade normativa, que consideram ser um lugar de conforto genético (como se o amor fosse uma coisa garantida na heterossexualidade), e que exigem do/as outro/as uma posição taxativa. Pessoas que exigem, e lutam, pelo direito à diferença e que, depois, dirigem para cada um/a uma lanterna potente, tipo arma luzidia, a reclamar uma confissão despudorada: és homossexual? És lésbica? És heterossexual? És bissexual? És…? Eu também luto pela diferença, e luto por um mundo plural e por um mundo em que não se incidam focos descarnados sobre os seres humanos, a despi-los dos segredos que os formam, e lhes dão um sopro interior que ninguém deve violar: isso é pornografia.

As mulheres, as meninas, as flores, de João Cutileiro, são eróticas e inflamam o interior: são pólen que fertiliza a imaginação e desenham-nos um arco de sorriso nos lábios. Cada pessoa tem um desígnio na sua passagem pela Terra: a cada artista cabe desenvolver, obsessivamente (porque é um móbil repetitivo, que se instala, que impregna o sujeito e o instiga), o seu sistema particular de necessidades, de interesses, de memórias, de vontades. Foi o que fez João Cutileiro, obsessivamente.

© Imagem de entrada: João Cutileiro “Princípio de Religação”, Mármore, 1974

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