O “sonho lúcido” e a pobreza da experiência

Muito se diz hoje em dia sobre os avanços da neurociência e suas conquistas no campo do funcionamento mental. Do ponto de vista científico tais avanços são incontestáveis. Contudo, gostaria de pensar numa outra ordem de implicações a partir deste campo de saber, mais especificamente no que tange à produção da subjetividade na contemporaneidade. Segue uma breve análise de um pequeno fragmento do discurso em torno dos avanços da neurociência.
A matéria intitulada “Estou sonhando”, escrita por Suzana Herculano e publicada no Jornal Folha de S. Paulo em 30 de setembro de 2014 tem o sabor das grandes revelações científicas que prometem um novo mundo à aventura humana. Trata-se de um tema bastante em voga: as “mais recentes” descobertas da neurociência investem na conquista de um campo da experiência humana até então fechado aos esforços de domínio e controle conscientes: as profundezas psíquicas do Inconsciente. Essa investida, vale notar, é também a expressão arrogante de um saber que muitas vezes se coloca como um desmistificador dos grandes enigmas da existência:
“Como você sabe se está acordado ou apenas sonhando que está lendo o jornal? Dizem alguns livros de filosofia que não há como saber: sua vida toda poderia ser um sonho. Mas, com um pouquinho de conhecimento de neurociência, a resposta é quase trivial.”
No interior desse regime discursivo que parece querer negar a terceira ferida narcísica provocada pela descoberta freudiana, o universo fantástico dos sonhos, com seus mistérios e devires insondáveis, passa a ser objeto de intervenção neurocientífica. E nesse processo de objetificação da subjetividade, novos agentes entram em cena e atuam, em conjunto com os procedimentos laboratoriais, como operadores técnicos implacáveis. Neste caso, o “agente da subjetividade” seria o “cérebro”:
“Grupos independentes de pesquisadores mostraram recentemente que o sonho lúcido é um estado misto de sono e consciência, nem lá, mas nem ainda cá, no qual o cérebro consegue, ainda adormecido, acessar memórias, saber-se sonhando e até interferir na direção do que sonha.”
Sabe-se, a partir de Freud e a Interpretação dos Sonhos, que o sonho é produto de um trabalho psíquico que se realiza no interior de um “aparelho” composto por diferentes instâncias psíquicas que operam de modos distintos os fluxos de excitação e energia. A relação dinâmica entre os sistemas Ics, Pcs e Cs é marcada pela interferência de mecanismos de censura que atuam entre os sistemas produzindo uma expressão distorcida. Freud se utiliza da metáfora ótica para pensar a configuração resultante da relação entre o desejo inconsciente e os traços mnêmicos que compõem as imagens oníricas: os dispositivos de projeção da imagem através das lentes do telescópio ilustram a presença dos diferentes sistemas, e a refração do raio luminoso ao passar para um novo meio, a atividade da censura. O trabalho de análise e interpretação dos sonhos, dentro de um encontro entre sujeitos comprometidos eticamente com a verdade, necessariamente coloca o sujeito diante de uma realidade psíquica que vai muito além do registro consciente. Através das marcas deixadas pela censura, resultando em efeitos de deslocamento e condensação no conteúdo onírico, vemo-nos frente à possibilidade de investigação dos elementos inconscientes que, ainda que inacessíveis em sua positividade, dão indícios de sua presença e importância na vida psíquica.
Voltando à matéria publicada, percebemos, neste avanço da racionalidade da neurociência, um projeto de destituição da subjetividade fundada numa postura ética frente ao conflito instaurado entre desejos inconscientes, valores e normas sociais. Essa destituição do sujeito dá-se travestida de uma promessa de poder e controle sobre a vida psíquica. Ainda no tom de uma suposta conquista da maioridade sobre um tempo que deverá ser deixado para trás como um período de infância da humanidade, o dispositivo de controle consciente sobre a vida onírica é tratado pelos pesquisadores e leitores como uma espécie de “brinquedo” capaz de realizar alguns “truques”:
“Um grupo na Alemanha, contudo, foi além e descobriu como provocar sonhos lúcidos. O truque tem a ver com esperar os voluntários começarem a sonhar, o que pode ser verificado pelo eletroencefalograma e pela perda de tônus muscular, e então produzir à força 40 ondas por segundo na região frontal do cérebro dos voluntários adormecidos, usando um equipamento de estimulação transcraniana.”
“Para quem acha que não sonha (o que não é verdade; todos sonhamos, e várias vezes por noite), o brinquedo oferece uma janela para o próprio inconsciente. Mas o grupo vê utilidades mais nobres: por exemplo, oferecer a quem sofre de distúrbio de estresse pós-traumático com pesadelos frequentes uma oportunidade de interferir conscientemente em seus próprios sonhos. Parece ficção científica, mas é só ciência.”
O ideal de ciência freudiano rompeu definitivamente com o positivismo dominante nos séculos XIX e início do XX. Nesse sentido, percebemos que a concepção psicanalítica do funcionamento psíquico não poderia deixar de se contrapor ao surgimento de concepções biologizantes do funcionamento mental (“o cérebro” capaz de agência), ou mesmo às tentativas de esgotar o domínio das forças inconscientes através da intervenção de dispositivos técnico/científicos. Para Freud,
representações, pensamentos e formações psíquicas em geral absolutamente não podem ser localizados em elementos orgânicos do sistema nervoso, e sim entre eles, por assim dizer, onde resistências e facilitações constituem seu respectivo correlato. (Freud, 2012, p.638)
Além de refutar as teses que sustentam a redução do fenômeno psíquico a elementos orgânicos, Freud também destacou a impossibilidade de se acessar diretamente o registro do Inconsciente. Assim, não caberia pensar numa “janela para o próprio inconsciente” ou mesmo a possibilidade de alguém “interferir conscientemente em seus próprios sonhos”. A produção do “sonho lúcido” através de um aparato técnico dá sentido à expressão “(EU) Estou sonhando”, uma alusão ao suposto domínio consciente sobre o universo onírico. O poder conferido ao registro Consciente resgata um antigo desejo narcísico de onipotência do sujeito da consciência. É preciso dizer, contudo, que tal aposta deve resultar, no mínimo, numa má compreensão dos fenômenos psíquicos. Para Freud,
O abandono da superestimação concedida à faculdade da consciência torna-se pressuposto indispensável para qualquer compreensão correta do desenvolvimento do psíquico. (…) O inconsciente é o círculo maior que abrange em si o círculo menor da consciência; tudo o que é consciente tem um estágio prévio inconsciente, enquanto o inconsciente pode permanecer nesse estágio e ainda assim reclamar o valor pleno de uma produção psíquica. O inconsciente é o psíquico propriamente real, tão desconhecido para nós segundo sua natureza interna quanto o real do mundo externo; ele nos é dado pelos dados da consciência de maneira tão incompleta quanto o mundo externo pelas informações de nossos órgãos sensoriais. (Freud, 2012, pp. 639, 640)
As implicações da proposta freudiana de uma subjetividade desde sempre afetada pelas forças inconscientes tem um alcance considerável em termos de investigação e tratamento clínicos. Não podendo admitir um procedimento de intervenção, à psicanálise é possível um outro trabalho, qual seja, o de “construção em análise”, de onde parte-se dos efeitos do Inconsciente sobre a consciência, mediante um “processo de inferência”. O sujeito da psicanálise constitui-se em torno de processos dinâmicos a partir dos quais está em jogo, entre outras coisas, mecanismos de recalcamento, resistência e repressão. Os sonhos, âmbito privilegiado da investigação psicanalítica, torna-se então um palco privilegiado onde se observa através dos mecanismos de condensação, deslocamento e sobredeterminação o jogo de forças e formações de compromisso entre instâncias psíquicas marcadas pelos efeitos da censura.
Enfim, o preço a se pagar pelos procedimentos que achatam a vida psíquica ao registro da consciência, restaurando um desejo onipotente que tudo quer abarcar, é considerável. Nesse sentido, estamos diante de um processo de dessubjetivação ou, noutras palavras, de um empobrecimento da experiência.
Texto citado: Freud, S. A interpretação dos Sonhos. SP: L&PM, 2012.

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