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Nos 70 anos de Hiroshima, pesquisadores discutem o que levou os EUA a detonarem a bomba

Enquanto uns acreditam que as explosões nucleares foram uma arrogante demonstração do poder americano, outros historiadores alegam que elas evitaram ainda mais mortes
Terra arrasada. Parte da cidade de Hiroshima após o ataque nuclear ocorrido em 6 de agosto de 1945. O edifício de pé, 160 metros a noroeste do epicentro da explosão, ficou depois conhecido como a “cúpula da bomba atômica” Foto: EFE/ PEACE MEMORIAL MUSEUM
Terra arrasada. Parte da cidade de Hiroshima após o ataque nuclear ocorrido em 6 de agosto de 1945. O edifício de pé, 160 metros a noroeste do epicentro da explosão, ficou depois conhecido como a “cúpula da bomba atômica” Foto: EFE/ PEACE MEMORIAL MUSEUM

RIO — Foi como dar um esbarrão no Sol. Às 8h15min daquela segunda-feira, 6 de agosto de 1945, o policial militar Takashi Morita viu a ensolarada Hiroshima se transformar em cinzas, e seus habitantes, em zumbis, queimados, implorando por socorro e bebendo a chuva preta de líquido contaminado que jorrava do céu. O horror da primeira bomba atômica do mundo volta à tona nos 70 anos da explosão. O japonês Morita, atualmente com 91 anos e morador de São Paulo, está de volta ao local para participar de cerimônias oficiais com os sobreviventes, conhecidos no Japão como “hibakushas”. Enquanto isso, retoma-se a discussão sobre as razões que levaram os EUA a detonar sua arma mais letal. Se, por um lado, alguns historiadores veem como principal motivação a defesa de interesses políticos, como intimidar os rivais soviéticos na madrugada da Guerra Fria, outros creem que as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram necessárias para pôr fim à Segunda Guerra, evitando uma invasão do Japão, o que poderia causar uma perda ainda maior de vidas.

Oitenta mil pessoas tiveram morte instantânea em Hiroshima. Outras 80 mil morreram depois, por causa da radiação. Em Nagasaki, três dias mais tarde, foram 40 mil vidas ceifadas pela queda da segunda bomba nuclear.

De acordo com o professor de Relações Internacionais Márcio Scalercio, da PUC-Rio, por trás da decisão do então presidente dos EUA, Harry Truman, houve no mínimo três aspectos a serem levados em conta. Com base nas batalhas de Iwo Jima e Okinawa, nas quais os japoneses lutaram até o último homem, os americanos sabiam que uma invasão do Japão traria um número elevado de mortes para suas tropas. Em segundo lugar, um acordo entre EUA e União Soviética determinava que, após a guerra terminar na Europa, os soviéticos invadiriam a Manchúria — região do leste asiático na época ocupada pelo Japão — e, logo depois, o território japonês. O controle do arquipélago, então, seria dividido entre EUA e URSS. No entanto, o sucesso da produção da bomba atômica teria feito Truman mudar de ideia: usando a arma, ele faria o Japão se render sem a ajuda da URSS. O terceiro ponto é que o uso das bombas justificaria a fortuna que essas armas custaram ao Tio Sam.

— A bomba atômica representou o auge das campanhas de bombardeio estratégico e de longo alcance feitas durante a Segunda Guerra, principalmente por ingleses e americanos. Esses bombardeios atingiam mais a população civil do que os militares e serviam para minar a moral. Com a bomba atômica, isso foi potencializado — afirma Scalercio. — O que aconteceu em Hiroshima e Nagasaki não tem outro nome senão bombardeio terrorista. Um crime de guerra. É uma situação que, atualmente, a opinião pública não sustenta. Mas, na época, acreditava-se que, enquanto alemães e japoneses apoiassem seus governos autoritários, eles teriam que ser detidos a qualquer custo.

O japonês Takashi Morita, de 91 anos, tinha apenas 21 quando trabalhava como policial militar em Hiroshima no dia em que a bomba caiu Foto: Marcos Alves / Agência O Globo
O japonês Takashi Morita, de 91 anos, tinha apenas 21 quando trabalhava como policial militar em Hiroshima no dia em que a bomba caiu Foto: Marcos Alves / Agência O Globo

'FORAM NECESSÁRIAS DUAS BOMBAS'

As batalhas na Europa cessaram em maio daquele ano. No Pacífico, no entanto, a guerra ainda parecia ter fôlego, e os japoneses sinalizavam uma repetição da atitude dos alemães, que resistiram até a conquista da última cidade — a capital, Berlim. Enquanto os Aliados planejavam uma possível invasão do arquipélago nipônico em novembro de 1945, na chamada Operação Downfall, os EUA tomaram a decisão extrema de jogar em cidades populosas do Japão as duas bombas atômicas que tinham fabricado, com o cuidado de não provocar as explosões em Tóquio, sede do governo com o qual deveria ser negociada a posterior rendição.

Um dia depois de a primeira bomba cair, a URSS chegou a iniciar a invasão da Manchúria. Em 9 de agosto, veio a segunda bomba — que só não foi jogada sobre a cidade de Kokura porque havia muitas nuvens por lá. No dia 15, o governo imperial japonês baixou as armas.

— Essa ofensiva soviética não teve papel importante para o fim da guerra, porque começou dias antes de o Japão se render. O ponto final do conflito foi a explosão das bombas — diz o britânico Andrew Roberts, autor de “A tempestade da guerra: uma nova história da Segunda Guerra Mundial” (Record).

Professor do Departamento de Estudos de Guerra do King’s College, em Londres, Roberts jamais chamaria o uso das bombas de crime de guerra.

— O Japão não tinha intenção de se render antes das bombas. Interceptações secretas mostraram que a força aérea japonesa tinha dez mil aviões para defender a nação. Eles contavam com os pilotos kamikazes, bombas voadoras, torpedos humanos, barcos de ataque suicidas, minissubmarinos suicidas e nadadores da Marinha que já tinham sido usados como minas humanas nas batalhas de Okinawa e das Filipinas, com resultados letais. Considerando tal resistência, é inconcebível pensar que um mero bloqueio do país e a continuação de bombardeios convencionais poderiam ter forçado uma rendição. Foram necessárias duas bombas para que o imperador Hirohito se convencesse.

O professor destaca um artigo publicado em 1983 no “Jornal da Associação Médica Americana”, em que o físico japonês Taro Takemi escreveu que, “quando se considera a possibilidade de que os militares japoneses teriam sacrificado a nação inteira se não fosse pela bomba atômica, pode-se dizer que essa bomba salvou o Japão”.

— Ele [Takemi] estava certo. Os aviões americanos continuariam atacando mais cidades, e a Marinha continuaria seu bloqueio, que teria resultado numa fome em massa — alega Roberts.

FORMATAÇÃO DE UM NOVO MUNDO

O consenso entre historiadores é que as bombas nucleares foram decisivas para a formatação do mundo nos anos seguintes. Com o desenvolvimento dessas armas também na URSS quatro anos mais tarde, duas grandes potências emergiram.

— Há sinais de que Truman usou a bomba para amedrontar os soviéticos, para que eles se mantivessem dóceis depois da guerra — ressalta Angelo Segrillo, coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP. — A bipolaridade da Guerra Fria foi um período relativamente seguro, pois os dois “xerifões” sabiam que uma guerra atômica poderia destruir o mundo.

Sobrevivente de Hiroshima, Takashi Morita chegou a fundar em São Paulo uma associação de vítimas da bomba e ainda visita escolas para dar palestras contra o uso de força nuclear.

— Num português precário, ele se esforça para falar com jovens, porque acredita que a mudança depende deles, e não dos mais velhos — diz a filha do japonês, Yasuko Saito, de 68 anos.