Brasil

Miséria na primeira infância, problemas para a vida toda

Economista do BID pede rede de proteção mais eficaz a crianças pequenas; Colômbia e Chile, diz, são os melhores da América Latina
Crianças pobres no Zimbábue: miséria na infância repercute por anos Foto: AP
Crianças pobres no Zimbábue: miséria na infância repercute por anos Foto: AP

RIO - Crianças raquíticas, deitadas na terra, explorando valas de esgoto. A ideia da miséria como um fardo quase sempre vem em uma imagem ligada à infância. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) confirma essa impressão. As condições de vida até os 30 meses de idade têm consequências que nos acompanham por décadas, como baixos níveis de nutrição, desenvolvimento cognitivo inadequado, taxas mais altas de desemprego e maior envolvimento com o crime.

É possível compensar esses atrasos durante a juventude, mas o preço é muito mais alto do que erradicar a miséria enquanto a criança está no berço.

— O que acontece na primeira infância repercute por um bom tempo, determina tudo o que ocorre depois — ressalta o americano Norbert Schady, economista-chefe do BID, que participou esta semana do Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, em São Paulo. — Em toda a América Latina, apenas Chile e Colômbia têm políticas consistentes e regulares voltadas para essas crianças. Mas, infelizmente, ainda não coletamos os dados em muitos países.

O BID financia a criação de políticas de intervenção para a primeira infância em alguns municípios. Em nível federal, o Brasil não passa na prova. O país, segundo Schady, conquistou pontos ao aumentar esforços nos últimos anos, como o combate à mortalidade infantil Alguns aspectos, no entanto, precisam de atenção. A cobertura de creches não aumentou a qualidade do ensino. De acordo com o economista, o currículo é fraco, e falta interação entre os pais e as escolas.

— Faltam programas com os pais para promover mudança de comportamento. Existem esforços, mas precisamos melhorar a integração entre governo, ONGs e sociedade — afirma. — Também temos que mensurar o resultado dos projetos desenvolvidos, que são essenciais para garantir oportunidades a fim de que as pessoas saiam da pobreza.

‘CONDENAÇÃO CRUEL’

Os maiores prejuízos estão justamente nas famílias em que os pais têm menores índices de educação, como ele avalia:

— Estamos permitindo a perpetuação da pobreza, sua transmissão de uma geração para outra. Uma criança, por puro azar, vai nascer em uma casa onde não há recursos que permitam ir à escola e progredir na vida. Essa é uma condenação muito cruel.

Ainda há poucos estudos relacionando desigualdades socioeconômicas e diferenças no setor cognitivo. Uma pesquisa realizada no Equador mostrou como crianças das zonas rurais de cerca de 3 anos têm vocabulário, memória e integração visual menores do que meninos da mesma idade, urbanos e de classes sociais mais abastadas. A diferença é cada vez mais acentuada com o passar do tempo.

O estudo mais complexo sobre o tema foi realizado nos EUA a partir de 1962, quando um grupo de cientistas da cidade de Ypsilanti, em Michigan (EUA), começou a acompanhar 123 crianças afro-americanas de até 3 anos de idade. Cinquenta e oito foram inscritas em programas pré-escolares de alta qualidade; as outras seguiram cursos normais.

O monitoramento se estendeu por 40 anos. Durante esse período, 21% das crianças “eleitas” para a elite escolar repetiram de ano pelo menos uma vez; entre os outros, 41% passaram pela mesma situação. As comparações foram gritantes em diversas áreas, como a saúde financeira, o envolvimento com drogas e a estrutura familiar. Aos 40 anos, 70% dos homens que tiveram melhor qualificação estavam empregados; no segundo grupo, apenas metade. Só 8% dos “privilegiados” se casaram mais de uma vez. Entre os outros, foram 29%. Quando o quesito é violência, 14% dos escolhidos para ter uma educação melhor foram presos por crimes violentos. O índice é de 31% entre os outros jovens do estudo.

De acordo com o BID, o resultado da pesquisa seria equivalente em outros países desenvolvidos, mas precisaria ser adaptado para diagnosticar como o estilo de vida da primeira infância pode se refletir ao longo da vida. A América Latina, considerada pelo banco a região mais desigual do mundo, é terra fértil para novas análises.

— No continente, os gastos com a primeira infância são proporcionalmente muito menores do que os registrados com alunos do ensino básico ou pessoas na terceira idade — destaca Schady. — Não estamos pedindo para que o investimento caia em qualquer segmento da população, mas é importante entender como esses primeiros meses de vida são importantes para o futuro da sociedade.