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Alice Guy Blaché: conheça a primeira mulher cineasta da história, que há mais de 100 anos já questionava o sexismo

A francesa assistiu à primeira sessão pública do cinematógrafo dos irmãos Lumiére, em 1895, e um ano depois escreveu, produziu e dirigiu um dos primeiros filmes narrativos feitos na história
'Alice Guy-Blaché: a história não contada da primeira cineasta do mundo' recompõe trajetória de diretora pioneira em Hollywood Foto: Reprodução
'Alice Guy-Blaché: a história não contada da primeira cineasta do mundo' recompõe trajetória de diretora pioneira em Hollywood Foto: Reprodução

Quando você pensa sobre os titãs do cinema clássico, quem vem à mente? Vá em frente, reserve alguns minutos. Não importa o tamanho da sua lista, é uma aposta justa que a cineasta francesa Alice Guy Blaché — uma das primeiras e mais influentes pioneiras do cinema — não está nela.

Até recentemente, Guy Blaché era em grande parte relegada às notas de rodapé: regularmente creditada como a primeira cineasta (quando creditada), mas esquecida em termos de seu impacto como artista e inovadora.

Mas, começando em 1896, ela fez cerca de 1.000 filmes, constantemente empurrando as fronteiras visuais e temáticas do cinema. Ela foi a primeira a usar son sincronizado, cores pintadas a mão, close-ups e efeitos especiais. Ela explorou gênero, raça e classe. E ela inspirou futuros gigantes como Sergei Eisenstein, Alfred Hitchcock e Agnès Varda.

Agora, em meio a uma reavaliação mais ampla dos papeis femininos em Hollywood, seu legado está ressurgindo. Graças em parte a um novo documentário de Pamela Green chamado "Alice Guy-Blaché: a história não contada da primeira cineasta do mundo”, que chega aos cinemas neste mês, Guy Blaché pode finalmente estar recebendo o devido crédito, quase um século depois de ela ter feito seu último filme.

Green disse que ficou surpresa quando, em 2000, ela conheceu Guy Blaché em um documentário de TV de Susan e Christopher Koch chamado “Reel Models”, sobre mulheres pioneiras no cinema.

Shelley Stamp, uma historiadora de cinema que curou o box set de 2018 de Kino Lorber "Pioneers: First Women Filmmakers", que reúne mais de uma dúzia de filmes de Guy Blaché, disse que pensou muito sobre essa questão.

— Eu sou questionada o tempo todo sobre as primeiras cineastas. E você sabe, existem maneiras de contornar a resposta. Mas acho que a única explicação é o sexismo.

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— Há um antigo mito de que o cinema é um jogo para homens e essa narrativa teve muita influência e obscureceu a carreira de muitas mulheres, provavelmente mais flagrantemente a de Guy Blaché — completa.

Guy Blaché nasceu em 1873, como Alice Guy, de mãe francesa educada em um convento, que fora criada para se casar com um intelectual franco-chileno mais velho. Embora sua vida tenha começado em meio a circunstâncias burguesas bastante tradicionais, desde cedo houve sinais de que Guy Blaché poderia estar destinada a um caminho incomum. Seu pai era dono de livrarias em Valparaíso e Santiago, e sua mãe grávida insistia em viajar de barco do Chile para a França, apenas para que sua filha pudesse nascer em Paris.

Tendo aprendido estenografia quando jovem, Guy Blaché candidatou-se em 1894 a um emprego de secretária com Léon Gaumont, um dos vários inventores franceses que experimentaram o potencial da cinematografia inicial. Homens como Gaumont e os irmãos Lumière, que patentearam e apresentaram um primeiro cinematógrafo em 1895, concentraram-se na mecânica das imagens em movimento como forma de documentar a vida real: trabalhadores saindo de uma fábrica, multidões reunidas para um desfile, trens viajando ao longo dos trilhos.

Mas Guy Blaché viu um caminho diferente.

“Achei que alguém poderia fazer melhor do que esses filmes de demonstração”, escreveu ela em sua autobiografia espirituosa, “As memórias de Alice Guy Blaché”. “Reunindo coragem, propus timidamente a Gaumont que poderia escrever uma ou duas pequenas cenas e fazer com que alguns amigos atuassem nelas.”

Gaumont concordou com seu pedido, mas isso foi apenas, ela escreveu, "com a condição expressa de que isso não interferisse em minhas funções de secretária". Em pouco tempo, ela dispensou essas tarefas para uma lista cada vez maior de outras: caçadora de locações, diretora de elenco, figurinista, cinegrafista, editora, escritora, diretora e produtora.

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Seu primeiro filme, um curta chamado “A Fada do Repolho”, foi um dos primeiros filmes de ficção já feitos, oferecendo uma reviravolta charmosa sobre a questão: De onde vêm os bebês? (A resposta, pelo menos em 1896, foi que eles nasceram em pés  de repolho.)

Nos 23 anos seguintes, Guy Blaché trilhou uma variedade de trilhas narrativas e artísticas. Ela fez comédias, aventuras e romances. Ela fez thrillers, melodramas e Westerns. Ela fez épicos religiosos e documentários, nunca hesitando em se expandir para domínios novos ou provocativos.

Sua curta comédia de 1906, “The Consequences of Feminism” (As consequências do feminismo, em tradução livre), na qual homens e mulheres trocam de papéis, ainda parece notavelmente moderna em sua avaliação implacável de padrões duplos. “A Sticky Woman” e “Madame’s Cravings”, também feitos em 1906, descaradamente destacaram o desejo feminino com humor e inteligência.

— Ela estava muito interessada nas normas de gênero. Ela se interessava muito por sexismo. E ela estava muito interessada em fazer filmes com heroínas femininas ativas e aventureiras —  disse Stamp.

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Quando seus atores brancos se recusaram a aparecer na tela com atores negros, ela transformou “A Fool and His Money” (1912) no que é amplamente considerado o primeiro filme narrativo com um elenco inteiramente afro-americano. “A Man’s a Man” (1912) ofereceu uma perspectiva rara e simpática de um protagonista judeu na tela. “The Making of an American Citizen” (1913) abordou a imigração e o abuso conjugal.

Rumo aos EUA

Depois de dirigir o estúdio da Gaumont em Paris, Guy Blaché foi para os Estados Unidos e abriu a bem-sucedida Solax, em Fort Lee, Nova Jersey, uma das primeiras produtoras dos Estados Unidos. Seus filmes foram distribuídos em todo o país e no exterior, servindo não apenas como entretenimento, mas também como um alicerce para a forma como o público e os cineastas entendiam o cinema.

Guy Blaché nunca foi estranha a ser colocada de lado, até mesmo por seu marido, Herbert Blaché. Embora ela tivesse fundado a Solax, seus poderes lá eram limitados. “Eu teria envergonhado os homens, disse Herbert”, escreveu ela, “que quisessem fumar seus charutos e cuspir à vontade enquanto discutiam negócios”.

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Eventualmente, Herbert montou um estúdio paralelo que batizou com o seu nome. Ele desviou seus recursos para Blaché Features, e Solax perdeu força. Alguns anos depois, ele trocou Guy Blaché por uma atriz em um de seus filmes, e juntos se mudaram para Los Angeles. A Blaché Features acabou, e Herbert continuou sua carreira lá, como diretor de estúdio contratado.

Deixada para sustentar seus dois filhos, Guy Blaché também se mudou para Hollywood. Mas as ofertas não vinham, e ela foi forçada a aceitar uma posição como assistente de seu ex-marido. Arrasada, ela se mudou com os filhos de volta para a França, onde tentou gerar trabalhos cinematográficos em Nice e Paris, sem sucesso.

Ela nunca foi capaz de fazer outro filme.

Guy Blaché viveu até os 94 anos, o que significou que ela teve muito tempo para ver os historiadores minimizarem ou ignorarem suas realizações. Textos respeitados a ignoravam inteiramente ou simplesmente a mencionavam como uma mulher rara na indústria. O próprio Gaumont omitiu suas contribuições copiosas ao escrever a história de sua empresa. Seu livro de memórias contundente, que não foi publicado até depois de sua morte em 1968, foi em parte uma tentativa de corrigir o registro — para estabelecer seu lugar de direito em uma cultura que ela ajudou a criar.

Décadas depois, Hollywood ainda se mostrou lenta para evoluir. Quando Green tentou compartilhar a história de Guy Blaché nos dias anteriores à existência do movimento Time’s Up, ela descobriu que a indústria não estava interessada.

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— Ninguém queria falar de uma mulher mais velha, que era francesa, que estava no início do cinema — disse ela.

Desde então, ela descobriu que a necessidade de contar essa história sempre existiu. A experiência da narradora do documentário, a atriz Jodie Foster, ilustra perfeitamente:

— Quando percebi que queria ser diretora, tinha tão poucos modelos históricos. Descobrir a história de Alice foi como uma celebração, uma vingança, uma redenção. Queria que ela estivesse aqui para curtir a festa.