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Cultura Segundo Caderno+

Brasil tem cerca de 40 especialistas em margarida

‘Margaritólogos’ se dedicam a estudar mais de duas mil espécies

Margaridas
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Custodio Coimbra
Margaridas Foto: / Custodio Coimbra

RIO — Quando disse que “a incerteza é uma margarida cujas pétalas nunca acabam de desfolhar”, Mario Vargas Llosa se referia a dúvidas humanas. Mas acabou por fazer uma observação botânica. A margarida concretiza a incerteza em forma vegetal. A vastidão do mundo das margaridas está sempre a produzir dúvidas, tão numerosas quanto as mais de 24 mil espécies deste tipo de planta. Nesse mundo cabem girassol, crisântemo, dália. Mas também alface, chicória, alcachofra, escarola. E ainda camomila, arnica, calêndula e a doce estévia. Todos da família das margaridas.

INFOGRÁFICO: Margaridas que você provavelmente nunca viu

Margaridas alimentam. Curam. E elevam o espírito, seja pela beleza ou pelo teor alcoólico, caso do absinto, ele também da família margarida. Para dar conta dessa diversidade toda, há botânicos taxonomistas que se dedicam integralmente à família batizada pela ciência de Asteraceae. São os “margaritólogos”, em linguagem popular.

Alguns dos maiores margaritólogos brasileiros foram reunidos pelo Jardim Botânico do Rio este mês para o Dia da Margarida. Vieram apresentar palestras e lançar uma obra que reúne o conhecimento sobre o assunto.

O Brasil não sabe, mas é o país das margaridas. Tem até agora 2.013 espécies, espalhadas sem exagero do Oiapoque ao Chuí, pois a família tem membros da Floresta Amazônica aos Pampas. É a maior diversidade do planeta. E este número pode aumentar, porque conhecemos apenas parte do patrimônio natural.

— Por isso, investigar essas plantas é tão fascinante — afirma a botânica da Universidade Federal da Bahia Nádia Roque, uma das organizadoras de “A família Asteraceae no Brasil”, livro que reúne 38 autores, quase a totalidade dos margaritólogos do país.

Por que tão poucos? O motivo, especula Maria Alves, uma dessas autoras, talvez seja porque as margaridas podem ser fáceis de encontrar, mas sabem se fazer de difíceis na hora de revelar seus segredos.

— Há muitas espécies e enormes desafios — conta a doutoranda na Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia. — Foi o que me atraiu. Queria algo que me instigasse e encontrei nas margaridas.

BONITO ATÉ NO CARDÁPIO

Margaridas mostram que não conhecemos a riqueza que temos e tampouco o que comemos. Salada de alface é, na verdade, feita com as folhas da Lactuca sativa. Se deixada se desenvolver em paz, ela dá margaridinhas azuis. Mas como flores custam energia à planta, e sem energia não há viço, a alface é colhida antes de as flores brotarem. E ninguém fica a par de que no prato havia uma margarida.

A alface, como a maior parte das espécies populares da família, é estrangeira. Veio do leste do Mediterrâneo. O girassol comum, comprado na feira, é mexicano. E a margarida corriqueira, a Leucanthemum vulgare, europeia. Também vieram de fora calêndula, camomila, arnica-verdadeira, absinto e alcachofra.

E assim os especialistas do Brasil se veem em meio a extremos. O país tem mais margaridas nativas do que qualquer outro, mas nenhuma é realmente popular. São bem brasileiros o jambu, típico da culinária do Norte e conhecido por deixar a boca dormente; e o guaco, um dos reis de aplicação na farmacopeia, com usos como o combate à bronquite e ao reumatismo.

A serralha, pouco consumida, não faz feio em saladas. Ultimamente, ganhou algum destaque como Panc (Planta Alimentícia Não Convencional), uma aposta cada vez mais frequente em cardápios de restaurantes dados a modernidades. Aliás, o que não faltam são Pancs nativas na família. Tem picão-preto para saladas e farofas. Almeirão-do-campo para sopa e refogado. Já rabo-de-foguete agrada quem procura as sensações de temperos picantes.

Para alguns margaritólogos, o desconhecimento pode levar à extinção de algumas espécies. É o caso da arnica brasileiras. Chamada coletivamente de arnica-da-serra, é coletada à exaustão por seus muitos usos medicinais contra dores. E restam poucas.

— É um extrativismo selvagem — frisa Aristônio Magalhães Teles, da Universidade Federal de Goiás. — Não há educação, e as pessoas acreditam que essas plantas existirão para sempre.

Rafaela Forzza, coordenadora do Projeto Reflora do Jardim Botânico e da Lista de Espécies da Flora do Brasil, vê mais que insanidade. Enxerga falta de senso de empreendedorismo e oportunidade. Flores historicamente são um bom negócio. A primeira bolsa de valores do mundo surgiu para negociar bulbos de tulipa na Holanda.

— Temos uma riqueza enorme em margaridas, e quase ninguém sabe — diz a organizadora do Dia da Margarida. — Algumas têm uso ornamental, outras medicinal ou alimentício. E outras podem não ter uso humano algum. Mas representam conhecimento. E conhecimento é civilizatório.

E foi aí, nos desafios, que a margarida enganou Vargas Llosa e muita gente. Ninguém pode despetalar uma margarida — ou desfolhar, como disse o Nobel de Literatura. O que muitos chamam de pétalas são, na verdade, flores femininas. E elas cercam um miolo constituído de dezenas, por vezes centenas, de minúsculas flores hermafroditas. São difíceis de enxergar e, mais ainda, de estudar. O que se acredita ser uma flor é uma inflorescência, um conjunto delas. A ideia da natureza é enganar, com a aparência de uma única e chamativa flor. O alvo do engodo não são, obviamente, pessoas. Mas polinizadores, como borboletas e abelhas.

Como gosta de desafios, Maria Alves escolheu o maior de todos do mundo das margaridas, o dos girassóis. Cada girassol pode ter até mil pequeninas flores:

— Dá muito trabalho. Por isso, muitos pesquisadores fogem dessas flores. Mas vejo aí um novo mundo pela frente

Como se vê, brincar de bem me quer, mal me quer é mais complexo do que se imagina.