Esportes

Mário José dos Santos Júnior e a marcha atlética

Atleta de Cubatão fala sobre o esporte mais desgastante do programa olímpico
Mário José dos Santos Júnior e Rambo na pista de treino Foto: Marcos Alves / Agência O Globo
Mário José dos Santos Júnior e Rambo na pista de treino Foto: Marcos Alves / Agência O Globo

RIO - O menino Mário desejava ser lutador. Fã de artes marciais, vibrava com os filmes Jean-Claude Van Damme. Não perdia uma luta na TV. E o ouro no judô de Rogério Sampaio nos Jogos de Barcelona, em 1992, o fez sonhar olimpicamente. Em breve, na sexta-feira 19 de agosto, Mário José dos Santos Júnior marchará por seu sonho olímpico.

Infográfico: Marcha atlética: demorado e desgastante

Ele é um dos três brasileiros na marcha atlética de 50 km, uma das possibilidades de pódio do Brasil no Rio-2016. Trata-se da competição mais dura e desgastante das Olimpíadas. Manter o passo que produz o rebolado característico da marcha por horas a fio é somente para os fortes. Mário desistiu da luta e virou guerreiro. Em sua terceira participação olímpica, ele enfrentará a distância e a dor em busca de uma medalha.

“Vi o treino e achei esquisito. O que o meu pai não iria achar daquele movimento? Ele não iria gostar... Mas queria muito uma vaga em algum esporte e aceitei. Os treinadores viram que eu tinha talento e me convenceram a continuar”

Mário José dos Santos Júnior
Atleta da marcha atlética

A velocidade é a de corrida. Ultrapassa 14 quilômetros por hora, ou pouco mais de quatro minutos por quilômetro. Mas a regra é não correr jamais. A marcha atlética honra o pedestre. Cobra resistência para superar a exaustão e o sofrimento do corpo, sobrecarregado pelo esforço, e da mente, que não pode se dar ao luxo de desconcentrar. O marchador mantém contato com o solo o tempo todo. Um pé obrigatoriamente precisa estar no chão. Para impedir que se corra, a perna que avança fica reta, com o joelho estendido, até que a outra passe à frente do corpo. E isso por 50 quilômetros, oito a mais do que na maratona.

Serão 25 voltas no circuito olímpico de dois quilômetros na Praia do Pontal. Cinquenta e quatro mil passos por atleta, a grosso modo. Um desses passos em falso significa desclassificação. Oito juízes de países diferentes se alternam no circuito e tiram da prova quem voa. Na marcha, voar é cometer pecado mortal. Tirar os dois pés do solo por instantes, o chamado tempo de voo, típico do movimento de correr, constitui falta grave.

RIGOR TÉCNICO


Sem tirar os pés do chão. Mário treina ao lado do fiel escudeiro Rambo. Segundo o atleta, o estresse é enorme: “Há pressão dos juízes, do tempo, dos outros competidores”
Foto: Agência O Globo / Marcos Alves
Sem tirar os pés do chão. Mário treina ao lado do fiel escudeiro Rambo. Segundo o atleta, o estresse é enorme: “Há pressão dos juízes, do tempo, dos outros competidores” Foto: Agência O Globo / Marcos Alves

Com a velocidade de meta, o rigor técnico como condição e dor por companheira, Mário pretende marchar rumo ao pódio. É o atual campeão sul-americano dos 50 km e tem o segundo melhor tempo do Brasil (3h55m36). Jonathan Riekmann, com 3h55m26, estabeleceu o primeiro este ano. Mário é treinado por Adauto Domingues no BM&F Bovespa, em São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo.

Como o judoca Sampaio, que lutou com um quimono emprestado em Barcelona, Mário não tinha dinheiro quando decidiu que queria ser um atleta olímpico. Filho de uma família de retirantes pernambucanos, ele buscou uma vaga numa escolinha esportiva de Cubatão, onde nasceu. Artes marciais foram descartadas de largada por falta de recursos. Tentou, então, corrida, mas não tinha vaga:

— Na verdade, só havia vaga para marcha. Vi o treino de um menino e achei esquisito. O que o meu pai não iria achar daquele movimento? Ele não iria gostar... Mas queria muito uma vaga em algum esporte e aceitei. Acabou que fiquei em sexto num campeonato estudantil. Os treinadores viram que eu tinha talento e me convenceram a continuar. Ganhei uma bolsa e isso foi decisivo. Fiquei. Tomei gosto. Virei marchador. É um esporte extremamente desafiador.

TREINO EXAUSTIVO

Passaram-se duas décadas, e o menino de 13 anos que queria ser lutador é hoje um homem de 36 no auge da carreira, num esporte em que muitos competidores têm mais de 30 anos. Talento é fundamental, mas experiência faz diferença:

— Já competi na Olimpíada de Atenas (2004) e Pequim (2008). O Rio é minha meta, meu grande sonho. Atingi um nível de amadurecimento fundamental. Mas isso não significa que vá me aposentar. Tenho planos para os Jogos de Tóquio, em 2020.

“Meu treino longo semanal é do tamanho ou maior que os 42 quilômetros da maratona. Claro que isso dói, e muito”

Mário José dos Santos Júnior
Atleta da marcha atlética

Na marcha atlética de 50 quilômetros, não há espaço para fraqueza. São 250 quilômetros percorridos, em média, por semana de treinamento. Isso fora musculação, fisioterapia e outras atividades.

— Meu treino longo semanal é do tamanho ou maior que os 42 quilômetros da maratona. Claro que isso dói, e muito. Treino serve para aprender a conviver com o sofrimento. É brutal. As competições são a cereja do bolo. Você fica tão focado, tão absurdamente concentrado, que chega no limite ou além dele.

O que mais dói, segundo Mario, é o músculo tibial anterior (fica na parte de fora da canela). É ele que levanta o pé a cada passada — erga o pé e o sentirá trabalhar:

— Digo que marchador tem tibial de vidro, de tão sensível e frágil pela sobrecarga. Imagine numa prova de 50 quilômetros, na qual fazemos o mesmo movimento com o tibial anterior cerca de 27 mil vezes por perna. No meu caso, que peso 60 kg, cada passada representa 120 kg sobre esse músculo. Agora, multiplique por 27 mil e veja o tamanho do esforço. Dói sempre. A vontade de vencer a prova é o que nos leva adiante.

Músculos, tendões e articulações doloridos se somam aos nervos, que precisam virar aço.

— O estresse é enorme. Há pressão dos juízes, do tempo, dos outros competidores e do desejo imenso de ganhar. Pense que no quilômetro 42, quando termina uma maratona, ainda estamos a oito quilômetros da chegada. O maratonista pode se arrastar, mas nós não podemos parar de marchar. Não há brecha para vacilar no padrão técnico. Tem atleta que chega ao quilômetro 46 ou 47 e não suporta mais, flexiona a perna. E aí fracassa. É tirado pelos juízes. Fora a exaustão, o rigor das regras representa um obstáculo a mais — explica ele.

Para continuar bem na prova a partir do quilômetro 40, Mário diz ser preciso ter extrema força física e mental:

— A mental, para não desistir. E a física, pois, a certa altura, me sinto um trator arrastando um peso de 200 quilos.

COMPANHEIRO CAMPEÃO

Os horários e a disciplina rígida, Mário compartilha com seis amigos. É assim que se refere aos cães Sttafordshire Bull Terrier que cria em casa. Ele é um admirador da raça que, como a marcha atlética, engana a quem só vê aparência. Se o rebolado do marchador esconde competidores fortes, a cara de mau do sttafordshire guarda um coração de manteiga. Dócil e dedicada, essa raça é uma das mais indicadas para companhia de crianças pequenas.

“Quantos talentos poderíamos ter no tênis? E até no golfe? Tenho certeza que há muitos, ocultos pela pobreza.”

Mário José dos Santos Júnior
Atleta da marcha atlética

— Já foram usados para rinhas no passado porque são musculosos. Mas esses cães têm um temperamento excelente — diz Mário.

Como o dono, seus cães são campeões. Um deles, Zutar African Rambo, ou apenas Rambo, é campeão pan-americano, brasileiro, argentino e paraguaio de beleza em concursos caninos. A carreira de marchador, mesmo mais longa do que a da maioria das modalidades, não garante futuro nem aos campeões. Por isso mesmo, Mário e a maioria de seus colegas buscam outros caminhos para o futuro. O dele é ao lado dos animais. E não apenas cães. Mário é médico veterinário. Dedica o parco tempo que lhe resta a um mestrado em patologia animal:

— O mestrado ainda dá para levar porque tem horário flexível. O treinamento não deixa tempo para nada. Adoraria poder comprar games, assistir a seriados. Mas nem pensar agora. Porém, é preciso ter um plano B. Mais de 90% dos marchadores são formados. Agradeço ao esporte poder ter viajado o mundo e conseguido bolsas que me permitiram estudar. Mas sei que isso terá um fim.

A carreira de vitórias lhe trouxe bolsas. Mas, ainda assim, as condições no Brasil estão anos-luz atrás das de outros países.

— Marchadores americanos e europeus fazem, em média, seis treinamentos em altitude (aumentam a resistência e capacidade aeróbia) por ano. Eu não pude fazer sequer um nesta temporada — afirma.

Mário Jr. pensa sobre o que poderia ter se tornado se não fosse marchador:

— Será que, se eu tivesse dinheiro para pagar aulas e comprar um quimono quando menino, não poderia ter me destacado no judô? Hoje, isso já não importa. Mas quantos talentos poderíamos ter no tênis? E até no golfe? Tenho certeza que há muitos, ocultos pela pobreza.

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