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Esportes

Meu jogo inesquecível: Brasil 4x1 Camarões, em 2014, minha segunda primeira vez no estádio

Como todo conto de fadas, este também teve um momento de frustração
Daniel Alves tenta conter Aboubakar na Copa de 2014 Foto: Ricardo Nogueira/23.06.2014
Daniel Alves tenta conter Aboubakar na Copa de 2014 Foto: Ricardo Nogueira/23.06.2014

Todos falham miseravelmente quando tentam descrever a sensação de romper o corredor e encarar um estádio lotado pela primeira vez. Ao menos para os verdadeiramente apaixonados por futebol. E posso dizer que tive o privilégio de viver isso duas vezes. A primeira, ainda moleque, como a maioria; e a segunda, em 2014, quando subi as rampas do Mané Garrincha e testemunhei pela primeira vez um jogo — o meu jogo inesquecível — de Copa do Mundo, que serviu para renovar os votos de um casamento selado no Maracanã, em mil novecentos e noventa e bem pouquinho. Só que mais para frente vocês saberão como esta mesma visão panorâmica me traiu.

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Por pouco aquele Brasil x Camarões não seria uma história a se contar aqui. Dois meses antes, com ingresso comprado há um tempinho, eu havia acabado de iniciar minha trajetória no Grupo Globo. Contratado às vésperas da Copa para a editoria de Esportes do Expresso, jornal popular da empresa, sabia que o dever me chamava. Mas como convencer meus novos chefes a abandonar a redação em pleno dia de jogo da seleção num Mundial dentro de casa? Eu também não tinha essa resposta, mas encarei a roleta russa. Era uma bala, que acertou em cheio o alvo. Fui liberado a embarcar para Brasília, desde que me empenhasse em dividir minha aventura com os leitores que comprariam o jornal na banca no dia seguinte.

Não havia me dado conta, mas eu faria assim, aos 23 anos, minha primeira cobertura de Copa do Mundo. Sem estar credenciado, sem ter um computador à mão e muito menos o distanciamento emocional necessário para executar a tarefa. Eu era só mais um entre os 69.112 torcedores presentes naquele estádio, e foi essa a experiência que resolvi compartilhar.

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Não posso dizer que acordei cedo naquele dia, pois só acorda quem dorme. O despertador foi um artigo de luxo totalmente dispensável. A ansiedade àquela altura era bem maior que o sono. Então partimos meu pai, minha namorada, meu sogro e eu para o aeroporto, onde chegamos mais cedo que o necessário. Afinal, perder aquele voo significaria jogar no lixo um sonho. Chegamos em Brasília perto da hora do almoço. Depois de um tour e algumas sessões de fotos na cidade até então desconhecida para mim, resolvemos comer em um shopping, onde dois enormes telões exibiam os jogos em andamento. De pé com o prato na mão, já que sentar era privilégio para poucos naquele animado formigueiro, vi a Holanda colocar o Chile no caminho do Brasil nas oitavas de final e a Espanha se despedir com uma vitória por 3 a 0 sobre a Austrália, que, embora elástica, não serviu para recuperar a dignidade de uma atual campeã eliminada precocemente na primeira fase.

Mas era a hora de partir para o estádio, a poucos quilômetros dali. Da janela do táxi, a movimentação de centenas de torcedores vestindo a camisa canarinho — que na época ainda não havia sido tomada de assalto para representar uma parcela extremista da população brasileira, apesar dos protestos políticos que dominaram as ruas um ano antes —  fazia minha ficha cair: aquilo tudo era real, eu estava mesmo a caminho de um jogo de Copa do Mundo.

Ao subir a rampa e me deparar com aquele mar amarelo (tá bem, admito, havia enormes “manchas” vermelhas das cadeiras de um Mané Garrincha ainda semi-cheio, mas elas não favorecem tanto a narrativa assim), vivi aquela catarse mental. Foram alguns minutos de êxtase até a procura por nossos lugares. Mas foi na hora do hino meu grande choque, para o qual eu não estava preparado. Quando os auto-falantes interromperam a música, a multidão seguiu à capela. Já tinha virado tradição. Mas olhar para o lado e ver meu pai com lágrimas nos olhos automaticamente me levou àquele estado também. Por alguns segundos me esqueci de onde estava e só conseguia pensar que eu nunca tinha visto meu velho chorar. Ele jura de pés juntos até hoje que era só um cisco que caiu em seu olho. Eu finjo que acredito.

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Quando a bola rolou, nem os cantos chatíssimos de “eu sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor” e “le, le le ô, le le ô, le le ô, Brasil!”, quase um insulto a quem frequenta estádio rotineiramente para ver seu time jogar, foram capazes de diminuir minha empolgação. Num lapso, lembrei que precisava registrar aquele jogo. Por (muitos) instantes esqueci que também estava ali a trabalho. Saquei o celular do bolso e passei a rascunhar algumas palavras. Em campo, diante de um adversário frágil, Neymar deitava e rolava — neste caso, exibindo seu talento mesmo, não no sentido literal da expressão que o caracterizou quatro anos mais tarde, na Copa da Rússia. Dois gols do camisa 10 e vitória encaminhada. Mas como todo conto de fadas, este também teve, particularmente para mim, um momento de frustração.

Vocês lembram que lá em cima eu disse que aquela visão do estádio havia me traído, né? É preciso contextualizar. Eu era (e ainda sou) um defensor do Fred. Aquele era o terceiro jogo do Brasil naquela Copa, e ele não havia marcado um gol sequer. O jejum incomodava mais a mim do que a ele, ouso afirmar. Durante a viagem, o trio que me acompanhava sofreu, infernizado por um mala (no caso, eu) que se dizia o amuleto do camisa 9 injustamente apelidado de cone, e que iria ver “in loco” um gol dele pelo Brasil.

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Pois bem, tudo começou quando resolvi passar por aquele mágico corredor para, num ato de generosidade ou estupidez, comprar cerveja para nós quatro. Eu era o quinto da fila quando ouvi o apito do juiz sinalizar o início do segundo tempo. Entrei num dilema moral e cogitei abortar a missão, deixando todos de bico seco. Mas raciocinei, cá com meus botões: “o máximo que vou perder são 3 ou 4 minutos de jogo, não tem problema”. Pois eles foram suficientes para, quando eu ainda subia a rampa equilibrando quatro copos muito cuidadosamente, ouvir o êxtase da torcida com o terceiro gol do Brasil, marcado por... Fred! Não, eu não vi o gol. E, de quebra, levei um banho gelado (daqueles em câmera lenta, como num filme tragicômico) quando uma criança correu e esbarrou em meu braço. Fiquei sem a cerveja e, pior, sem ver o único gol (de bigode) do Fred naquela Copa.

Precisei me contentar com uma assistência do então atacante do Fluminense para o gol de Fernandinho, que selou a goleada brasileira por 4 a 1. Nem a decepção por não ver o gol que gostaria e o perrengue para conseguir chegar ao aeroporto conseguiram arrancar de mim o que acabara de viver. Já no avião (depois de invocar o Usain Bolt entre um terminal e outro para não perder o voo), enquanto batia a matéria que sairia no jornal, eu sabia que tinha escrito também um capítulo importante na minha história como um torcedor apaixonado por futebol e Copa do Mundo. E foi essa história que o leitor conheceu: a do dia em que pela segunda vez eu entrei num estádio pela primeira vez.