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Construção de hidrelétrica na Etiópia ameaça controle do Egito sobre o Rio Nilo

Obra levanta discussão sobre fornecimento de água potável e estremece relação entre os dois países
O pescador Abdel Halim Abdel Aziz no Rio Nilo, em Aswan, Egito. Foto: LAURA BOUSHNAK / NYT
O pescador Abdel Halim Abdel Aziz no Rio Nilo, em Aswan, Egito. Foto: LAURA BOUSHNAK / NYT

MINYA, Egito - O fazendeiro egípcio estava no campo coberto pela terra seca, lamentando sua sorte. Alguns anos atrás, estufas cheias de trigo e tomate cobriam o terreno. Agora, o deserto está tomando tudo.

— Olha. Estéril — ele disse, apontando para o solo arenoso e estufas abandonadas.

Hamed Jarallah atribui suas angústias à irrigação cada vez menor do Nilo, o lendário rio no coração da identidade egípcia. O Nilo já estava sob os ataques da poluição, da mudança climática e do crescimento populacional do país, que atinge oficialmente 100 milhões de pessoas este mês.

E agora, acrescenta Jarallah, uma nova calamidade surgiu.

Uma barragem hidrelétrica colossal que está sendo construída no Nilo, 3,6 mil quilômetros rio acima, nas planícies da Etiópia, ameaça restringir ainda mais o suprimento de água do Egito — e ela deve começar a encher neste verão.

— Estamos preocupados. O Egito não existiria sem o Nilo. Nosso sustento está sendo destruído, Deus nos ajude — ele disse.

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A disputa entre os dois países sobre a Grande Barragem do Renascimento da Etiópia se tornou uma preocupação nacional em ambas as nações, alimentando patriotismo, medos arraigados e até rumores de guerra. A represa estimada em US$ 4,5 bilhões (cerca de 20 bilhões de reais) será a maior da África e terá um reservatório do tamanho de Londres.

A Grande Barragem do Renascimento da Etiópia em Benishangul-Gumuz, região da Etiópia. Foto: LAURA BOUSHNAK / NYT
A Grande Barragem do Renascimento da Etiópia em Benishangul-Gumuz, região da Etiópia. Foto: LAURA BOUSHNAK / NYT

Para os etíopes, a barragem é um acalentado símbolo de suas ambições — um megaprojeto com o potencial para iluminar milhões de casas, gerar bilhões com venda de eletricidade para países vizinhos e confirmar o lugar da Etiópia como uma potência africana em ascensão.

Depois de anos de progresso instável, incluindo escândalos de corrupção e a misteriosa morte de seu engenheiro-chefe, as duas primeiras turbinas foram instaladas. Autoridades dizem que a barragem começara a encher em julho.

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Essa perspectiva induz o medo no Egito, onde a barragem é vista como a mais fundamental das ameaças. O país é um dos mais secos do mundo, com 95% da população morando ao longo do Nilo ou do seu Delta. O rio, que flui de sul para o norte, fornece quase toda a sua água potável.

Especialistas emitiram previsões terríveis de campos ressecados, torneiras vazias e ameaças aos agricultores no extenso Delta do Nilo, que produz dois terços do suprimento alimentar do Egito. Os riscos de secas frequentes e intensas em um planeta mais quente aumentam a tensão.

O presidente Abdel Fattah el-Sisi, o governante autocrático do país, apostou sua autoridade na defesa do rio.

— O Nilo é uma questão de vida, uma questão de existência do Egito — ele disse na Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro.

A localização da represa na Etiópia Foto: Fonte The New York Times
A localização da represa na Etiópia Foto: Fonte The New York Times

Durante oito anos, autoridades do Egito, Etiópia e Sudão — que fica entre os dois países — brigaram sem sucesso pela barragem. Os egípcios temem que, se cheia rapidamente, a barragem possa reduzir drasticamente seu suprimento de água. Em novembro, em um esforço de última hora, as negociações foram para Washington, com mediação da Casa Branca.

O presidente Donald Trump, jogando com sua autoimagem como negociador, sugeriu que seus esforços poderiam merecer um prêmio Nobel. A Casa Branca está pressionando por um acordo até o final de fevereiro, mas autoridades egípcias e etíopes alertam que não será fácil.

Em uma entrevista no mês passado, Seleshi Bekele, ministro da Água na Etiópia, chamou as reinvindicações do Egito para o Nilo de “a coisa mais absurda que você já ouviu”.

O Egito justificou seu domínio sobre o rio citando um tratado de água da era colonial e um acordo de 1959 com o Sudão. Mas a Etiópia não os reconhece e, quando seu ex-líder, Mengistu Haile Mariam, propôs a construção de uma série de barragens no Nilo em 1978, ele enfrentou ameaças veladas.

A Represa do Renascimento abrange o Nilo Azul, o principal afluente do rio, que fornece a maior parte da água do Egito. O jovem líder modernizador da Etiópia, Abiy Ahmed , insiste que os medos egípcios sobre seu impacto são exagerados. Depois de assumir o cargo de primeiro-ministro em 2018, Abiy voou para o Cairo para oferecer suas garantias

— Juro, juro, não prejudicaremos o suprimento de água do Egito — disse ele a repórteres.

Mas no outono passado, as preocupações estavam voltando a aumentar, e Abiy fez ameaças.

Pescador trabalha no Rio Nilo, em Edfu, no sul do Egito. Foto: LAURA BOUSHNAK / NYT
Pescador trabalha no Rio Nilo, em Edfu, no sul do Egito. Foto: LAURA BOUSHNAK / NYT

Em outubro, menos de duas semanas depois de vencer o Prêmio Nobel da Paz por resolver o longo conflito de seu país com a Eritreia, ele disse aos legisladores etíopes que "nenhuma força pode impedir" a Etiópia de completar a barragem. Se fosse o caso, acrescentou Abiy, ele conseguiria "milhões de pessoas prontas" para a guerra com o Egito.

Enquanto as duas nações discutem sobre a barragem, os hidrologistas dizem que as ameaças mais preocupantes para o Nilo são o crescimento populacional e as mudanças climáticas. A população do Egito aumenta em 1 milhão de pessoas a cada seis meses — uma taxa crescente que a ONU prevê que levará à escassez de água até 2025.

O Egito de Sisi fez pequenos esforços para se preparar. As autoridades impuseram restrições às lavouras intensivas em água, como arroz e banana. Às sextas-feiras, os clérigos fazem sermões ditados pelo governo, enfatizando as virtudes da conservação.

No Dia do Julgamento, advertiu um desses sermões: “Deus verá com bons olhos” o desperdício de água.

Mas há críticas sobre a própria administração egípcia do Nilo. O esgoto flui para as águas, e o lixo causa o entupimento de canais de irrigação. Líderes do país começaram esquemas grandiosos que sugam o rio. O próprio Sisi está construindo uma nova capital administrativa no deserto nos arredores do Cairo que, segundo especialistas, esgotará ainda mais o Nilo.

A represa tornou-se o foco das preocupações hídricas do Egito. O principal ponto de discórdia com a Etiópia é a rapidez com que deve se encher. A Etiópia disse que será em apenas quatro anos, mas o Egito, temendo uma seca durante o período de preenchimento, argumentou por 12 anos ou mais.

Disputa Política

Além dos argumentos técnicos, a disputa é impulsionada pela política. Sisi, um militar forte, é extremamente sensível a insinuações de que é complacente em relação à segurança do Egito.

Abiy, que enfrenta eleições este ano, está sob pressão de etíopes comuns que ajudaram a financiar a barragem comprando títulos emitidos pelo governo. A análise geral é que ele precisa entregar um projeto de prestígio em um país que se considera uma potência emergente.

The fisherman Abdel Halim Abdel Aziz, 62, works on the Nile River in Aswan in southern Egypt, July 17, 2018. To Ethiopians, the Grand Ethiopian Renaissance Dam is a cherished megaproject with the potential to light up millions of homes. Down the Nile, in Egypt, it is seen as the most fundamental of threats. (Laura Boushnak/The New York Times) Foto: LAURA BOUSHNAK / NYT
The fisherman Abdel Halim Abdel Aziz, 62, works on the Nile River in Aswan in southern Egypt, July 17, 2018. To Ethiopians, the Grand Ethiopian Renaissance Dam is a cherished megaproject with the potential to light up millions of homes. Down the Nile, in Egypt, it is seen as the most fundamental of threats. (Laura Boushnak/The New York Times) Foto: LAURA BOUSHNAK / NYT

A  Etiópia tem uma das economias que mais crescem no mundo. A barragem oferece a chance de se tornar o maior exportador de energia da África. E, assim como no Egito, o Nilo é central para o senso de identidade do país.

Durante uma entrevista ao New York Times na barragem em 2018, Semegnew Bekele, gerente de projetos, disse que o empreendimento "erradicaria nosso inimigo comum, a pobreza".

Logo depois, ele foi encontrado caído ao volante do seu Toyota Land Cruiser, um tiro na cabeça. A polícia considerou um suicídio. Algumas semanas depois, Abiy demitiu o principal contratado da barragem por acusações de corrupção generalizada.

Apesar dos contratempos, os etíopes disseram que estão perto de terminar a represa. Eles começaram a construí-la em 2011, no auge da Primavera Árabe, quando o Cairo ainda estava em ebulição, e as hostilidades perseguiram o projeto desde o início.

Sisi insiste que quer uma solução pacífica, embarcando em uma ofensiva diplomática para obter apoio dos vizinhos da Etiópia. O Museu do Nilo, inaugurado em Assuã, no Sul do Egito, em 2016, enfatiza os laços do país com seus "irmãos africanos". No interior, uma cachoeira de três andares simboliza o Nilo atravessando 10 países africanos antes de chegar ao Egito.

No entanto, Sisi também enviou uma mensagem que está pronto para resistir de outras maneiras. O Egito fomentou laços com os adversários da Etiópia, enviando armas para o governo do Sudão do Sul, de acordo com investigadores da ONU. Na Etiópia, autoridades acusaram o Egito de patrocinar protestos contra o governo e rebeliões armadas — acusações que o Cairo nega.

Nas negociações, Sisi está em grande desvantagem; quanto mais longas as negociações, mais a Etiópia se aproxima da conclusão da barragem.