Rio Bairros Barra da Tijuca

Exposições deixam em evidência a obra de Bispo do Rosário

Artista é celebrado ainda com catálogo raisonné e desfile carnavalesco
Escritas do Bispo incluem datas, nomes e poesias, a fim de “registrar todas as coisas do mundo” Foto: Brenno Carvalho
Escritas do Bispo incluem datas, nomes e poesias, a fim de “registrar todas as coisas do mundo” Foto: Brenno Carvalho

RIO — Panos, colheres, copos, botões, palavras, manifestos, o ser humano e Deus se misturam nas obras que Arthur Bispo do Rosário criou ao longo da vida. Enquanto se preparava para subir aos céus, conforme acreditava, ele seguia o que dizia ser a sua missão, "colecionar tudo do mundo". Seu legado jamais ficou esquecido, mas, neste momento, está em maior evidência, graças a uma série de eventos postos em marcha simultaneamente. Enquanto a Acadêmicos do Cubango prepara seu carnaval 2018 inspirada pelo Bispo, um catálogo raisonné sobre sua obra está para ser lançado, e exposições no Museu Bispo do Rosário, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, e na Casa Museu Eva Klabin, na Lagoa, celebram seu legado.

Após receber diagnóstico de esquizofrenia, Arthur Bispo do Rosário foi internado na Juliano Moreira, onde permaneceu de 1964 até sua morte, em 1989, e desenvolveu sua arte. O museu do local foi fundado em 1982, batizado com o nome da psiquiatra Nise da Silveira e exibindo então trabalhos de arteterapia, mas adotou o nome do Bispo em 2000. Para celebrar seus 35 anos, a instituição tem realizado ao longo de 2017 uma série de atividades especiais, dentro do projeto Inventário do Mundo, conta sua diretora, Raquel Fernandez. Em cartaz atualmente, a mostra "Arqueologia Arthur Bispo do Rosário" exibe, na galeria principal, uma câmara de desinfestação onde estão acondicionadas obras do artista, o que permite ao público acompanhar parte do trabalho dos pesquisadores responsáveis pelo processo de restauração e catalogação do acervo que integrará o catálogo raisonné a ser lançado em 2018.

A publicação terá informações sobre todas as obras do Bispo que resistiram ao tempo, cerca de 800, incluindo que materiais foram usados em cada uma e que medidas elas têm. Frederico de Morais, primeiro crítico de arte a ter contato com o artista na Juliano Moreira, será responsável por reunir especialistas para fazer comentários sobre o acervo.

— Com "Arqueologia", tentamos evidenciar tanto o aspecto do cuidado com a obra quanto o que está sendo feito com ela. Queremos convocar o público para ver o que está acontecendo, porque acreditamos que dar essa transparência é um retorno do trabalho do museu para a sociedade e também um presente que damos ao Bispo — diz Raquel.

Paralelamente, estão em cartaz no museu as mostras "Sobrevivência: sobre vivências", da qual fazem parte obras de pacientes do Atelier Gaia, e "Pinacoteca inventada", com quadros dos anos 1950 e 1960 que resgatam a memória de artistas contemporâneos do Bispo, com trabalhos produzidos em sessões de arteterapia.

Na mostra "Arqueologia Arthur Bispo do Rosário", o processo de catalogação e restauração do acervo pode ser visto pelo público Foto: Brenno Carvalho
Na mostra "Arqueologia Arthur Bispo do Rosário", o processo de catalogação e restauração do acervo pode ser visto pelo público Foto: Brenno Carvalho

Arthur Bispo do Rosário nasceu em 1909 e esteve na Marinha entre 1926 e 1933, já no Rio de Janeiro, onde também atuou como pugilista. Teve seus primeiros delírios em 1938, quando saiu de casa subitamente para visitar a Igreja da Candelária, o que levou à sua internação no Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha. Diagnosticado como esquizofrênico, em 1939 foi transferido para a Juliano Moreira pela primeira vez, alojando-se no pavilhão 10 do Núcleo Ulisses Viana, numa solitária reservada a pacientes tidos como agressivos.

Bordada, peça remete ao folclore da terra natal do artista Foto: Brenno Carvalho
Bordada, peça remete ao folclore da terra natal do artista Foto: Brenno Carvalho

Até se instalar definitivamente na Colônia Juliano Moreira, o Bispo foi internado e fugiu algumas vezes. Segundo Raquel, foi quando se estabeleceu no local que o artista disse ter escutado uma voz que lhe ordenava representar "os materiais existentes na Terra para uso do homem", e seu ritmo de produção aumentou consideravelmente. Nos anos 1980, quando as celas solitárias foram proibidas nos manicômios do país, o Bispo, gradativamente, passou a tomar conta das dez unidades deste tipo que havia em seu pavilhão, e passou a produzir ali as suas obras. Tinha as chaves da cela que ocupava e, para permitir que alguém entrasse, perguntava ao visitante: "Qual a cor da minha aura?".

— O manicômio sempre criava estratégias de sobrevivência, e em cada pavilhão havia xerifes com os quais os guardas se relacionavam para manter a ordem. Além dos atributos físicos resultantes da época em que foi marinheiro e pugilista, a revelação espiritual que ele dizia ter recebido fazia com que se tornasse uma figura enigmática, que causava certo fascínio — explica a diretora.

O artista reuniu objetos cotidianos para compor suas obras Foto: Brenno Carvalho
O artista reuniu objetos cotidianos para compor suas obras Foto: Brenno Carvalho

Ainda reconhecido em vida — chegou a ter o vídeo para televisão "O Bispo" produzido por Fernando Gabeira, em 1985 —, Bispo sempre rejeitou que o classificassem como artista, o que fez com que algumas de suas obras fossem expostas pela primeira vez apenas em 1982, como parte da mostra coletiva “À margem da vida”, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio. Somente em 1989, após sua morte, teve sua primeira exposição individual, no Parque Lage. Desde então, suas peças já foram expostas nas bienais de Veneza, São Paulo e Lyon, e no Victoria and Albert Museum, em Londres, bem como em muitas outras mostras. Uma de suas peças mais conhecidas, o Manto da Apresentação, esteve exposto até setembro deste ano na fundação La Maison Rouge, em Paris.

O artista encontra Eva e Deus

A produção do Bispo, atualmente, também pode ser vista na Zona Sul. Distribuídas pelos cômodos da Casa Museu Eva Kablin, na Lagoa, onde se misturam artefatos que vão de peças do Egito Antigo a pinturas impressionistas, 12 de suas peças poderão ser contempladas até 14 janeiro de 2018, na exposição "Flutuações". A mostra é parte da 22ª edição do Projeto Respiração, cuja proposta é levar artistas a fazerem intervenções na casa e dialogarem com seu acervo.

Os trabalhos do Bispo foram selecionados por Marcio Doctors. O conceito, explica o curador, foi fazer com que as obras do Bispo encostassem em objetos da casa, mas ficassem flutuando sobre eles, presas por cabos no teto:

— Para preservar a singularidade do Bispo e da Eva (apreciadora de arte que colecionava peças adquiridas em suas viagens pelo mundo afora), decidi não misturá-los, mas fazer com que ocupassem o mesmo espaço ao mesmo tempo. Ao sobrepor um ao outro, você cria uma possibilidade de ver integralmente cada um, e estabelecer tanto relações de semelhanças quanto diferenças.

Na sala principal da casa, entre os sofás onde Eva recebia os amigos, o visitante se depara com a Cama de Romeu e Julieta, que pertencia ao Bispo e onde ele dizia que deveria estar quando subisse aos céus vestido com o Manto da Apresentação, sua obra mais famosa. Na sala de jantar, estão trabalhos do artista confeccionados com utensílios como talheres. Doctors explica que, se por um lado Eva queria trazer a experiência do universo luxuoso europeu para os trópicos, a vida do Bispo representa a marginalidade da sociedade brasileira, produzindo, assim, um paradoxo ao olhar do público.

— Por uma sincronia do destino, as pessoas percebem como as cores do trabalho no Bispo se adaptam perfeitamente aos ambientes. As decisões foram muito fluidas e orgânicas. Ambos são colecionadores: ela, do que há de mais precioso na sociedade; ele, daquilo mais relegado ao segundo plano. Ambos precisaram criar ambientes para si mesmos. Para lidar com a própria solidão, Eva precisou construir essa casa onde vivia. O Bispo do Rosário precisou construir um mundo para ele, que foi a sua cela na Juliano Moreira — reflete o curador.

Na Eva Klabin, peças do Bispo como a Cama de Romeu e Julieta ficam suspensas, dialogando com os objetos do acervo da casa Foto: Analice Paron
Na Eva Klabin, peças do Bispo como a Cama de Romeu e Julieta ficam suspensas, dialogando com os objetos do acervo da casa Foto: Analice Paron

Para Doctors, o Bispo se equipara a grandes artistas de sua geração, como os responsáveis pela pop art americana ou do movimento francês assemblage, que incorporaram objetos cotidianos às suas obras. O curador considera que o preconceito devido à sua condição psiquiátrica interfere no reconhecimento do seu legado:

— Tem muitos movimentos da arte dos anos 1960 a 1990 que são próximos ao que o Bispo fazia. Ele é um dos artistas que vão plantar a semente do que a gente tem hoje. No fundo, quando ele era artista, era completamente lúcido.

A atual onda de homenagens ao Bispo vai culminar no carnaval 2018. O enredo desenvolvido para a Acadêmicos da Cubango, de Niterói, pelos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora vai contar sua vida em quatro momentos. Na abertura, uma imponente nau dos insensatos representará tanto o estado psicológico do Bispo quanto sua relação com o mar. Em um segundo momento, sete anjos representarão lugares pelos quais ele passou. Na terceira parte estarão símbolos que representam fragmentos de sua vida, como a fase de pugilista, seu período na Marinha e a habilidade como jogador de xadrez. Ao fim, ganharão destaque as memórias ligadas sobretudo à Japaratuba, cidade de Sergipe onde nasceu. Para Haddad, embora o Bispo seja classificado como pós-moderno, sua produção tem apelo popular:

— Sua arte dialoga diretamente com o catolicismo, traz elementos da narrativa de matriz oral. O que pretendemos é que essa alma perpasse todo o desfile. É um jogo de equilíbrio permanente, de respeitar e tratar com muita sensibilidade a obra do Bispo, procurando entender sua profundidade. É uma arte contemporânea, popular, sacra. Acho até que o Bispo seria um grande carnavalesco, pelas peças que produziu.

Para o carnavalesco Leonardo Bora, o artista tem apelo popular Foto: Brenno Carvalho
Para o carnavalesco Leonardo Bora, o artista tem apelo popular Foto: Brenno Carvalho

Segundo Bora, a proposta da Cubango é sair do lugar-comum e abordar a vida do Bispo não apenas pelo viés da arte e loucura, mas resgatando aspectos pouco conhecidos do público. Intitulado "O rei que bordou o mundo", o samba é em primeira pessoa:

— Ele é mais um dos personagens afro-brasileiros que ainda não receberam o devido reconhecimento, e tudo o que não queremos é apresentá-lo como caricatura, estereótipo. A ideia é contar a peregrinação que o tornou um grande poeta. Lá fora ele tem um reconhecimento incrível, e falta mais aproximação desse artista com o público do seu próprio país. Vamos levar isso ao desfile, que será como se ele se apresentasse a Deus. Será um manifesto desse personagem.

SIGA O GLOBO-BAIRROS NO TWITTER ( OGlobo_Bairros )