Crítica | Juventude Transviada (1955)

Na fronteira entre o clássico e o moderno: Qual o parentesco de Charles Kane com James Dean?


A autoria de Nicholas Ray se sobressai a partir do exagero, subvertendo a espetacularização do real por meio de um teor trágico e épico sobre o mundano

A linha que fraciona a concepção de um filme clássico e um filme moderno é tênue, a olho nu, é praticamente imperceptível, dado que, mesmo que um filme esteja alinhado a uma ideia clássica ou moderna, sua abordagem pode ser de tal forma redefinidora ao ponto de quebrar completamente estes dois paradigmas. Autores como Alfred Hitchcock e Howard Hawks eram tão inventivos estética e narrativamente ao ponto de se aproximarem de uma certa tendência contemporânea, pelo menos no rastreio genético. Esta fronteira estabelecida é palpável somente sob perspectivas temporais, quando se fragmenta e localiza em anos ou décadas, e espaciais, quando se classifica interno a um movimento e tendência ou quando se reconhece na narrativa um espaço propenso a encontrar certa fórmula narrativa – um western naturalista ou um noir possivelmente se enquadrarão em uma noção clássica mais do que em uma ideia de renovação moderna, ainda que usem de elementos contemporâneos. A questão levantada é: “Rebeld without a cause”, prestigiado filme do cineasta norte-americano Nicholas Ray, seria um clássico com elementos modernos, ou um moderno de virtudes clássicas?

Analogia einsteiniana: a imagem depende da posição do espectador. Se encararmos sobre a perspectiva moderna, retornaremos a uma celebração do passado sobre a figura do diretor Nicholas Ray e sua autoria lírica no meio comercial hollywoodiano. Dotado de um rigor formal de amplitudes trágicas e violentas, expresso mediante a uma linguagem tão visceral quanto sua temática, um aspecto destrutivo que seria base pela austera Nova Hollywood no futuro. Contudo, se olharmos sobre a perspectiva clássica, ele se distanciava de um naturalismo tradicional, de um modelo de representação espetacular ou uma moral coletiva bem definida: não há atuações contidas, não há cenários simplórios, não há limpidez visual e não há uma narrativa de gênero como há em Ford, Losey, ou Lang.

A definição de cinema clássico para o crítico e teórico francês, André Bazin, define-se através de dois componentes: o conteúdo, “grandes gêneros com regras bem definidas, capazes de agradar a um público internacional, assim como a uma elite culta” e a forma, “estilos de fotografia e de montagem bem definidos e perfeitamente adaptados ao assunto; uma completa harmonia de imagem e som”. Este equilíbrio que demarca o cinema clássico é rompido no cinema moderno pelo exagero do autor, paralelamente semelhante ao trabalho do diretor aqui, criando uma espetacularização da realidade mundana que até pode soar épico em sua completude, mas não tenciona esse fascínio pelo belo, e sim pelo trágico.

Há unicamente em Ray um ímpeto contingente, uma rebeldia intrínseca que adiciona algo inédito a imagem quando capturada, uma moral fílmica que a estiliza de maneira intuitiva até redesenhar por completo o referencial externo, deixando para imagem apenas uma consciência viva e efervescente dentro do cosmos do cinema. Já existiam homens violentos por natureza e perturbados pelas suas ações, tanto dentro quanto fora da grande tela. Os épicos poemas gregos já descreviam uma história assinada pelo destino cruel, que aspira à felicidade euforicamente antes de desabar por completo em tragédia. As mulheres cruéis e viciantes que sodomizam o âmago passional masculino são reencarnadas em belíssimos demônios na literatura Pulp nos filmes noir de John Huston e Tourneur.  Tudo isso não só existia, como já tinha sido deglutido pelo espectador no estômago do autor nos antigos versos de “In a Lonely Place”, “Johnny Guitar” e “The Lusty Men”.  A diferença é que sua redescoberta da possibilidade artística e redefini concebe uma nova noção visual internamente, assumindo esse aspecto “inédito”, tal como uma vez na história o rebelde Orson Welles, alinhado a novidade tecnológica, revolucionou a imagem e a narrativa em “Citizen Kane”. Mas aqui, através do formato de tela cinemascope e o tecnicolor, adicionam-se novas camadas expressivas a si mesmo, elevando a sutileza dramática de Nicholas Ray a um épico sentimental.

Analogia wellesiana: “Citizen Kane” e “Rebel Without a Cause” são os dois maiores exemplos de filmes que influenciaram o cinema moderno norte-americano (com exceção a “Vertigo”, de Alfred Hitchcock) tanto por caráter temporal e rigor formal, como também em forma de admiração complacente, recebendo assim o augusto título de “clássicos”. Enquanto “Citizen Kane” possibilita a forma moderna ao transformar a profundidade de campo em plano-sequência em um modo de expressão tão sutil e integrado na composição plástica de um filme; “Rebel Without a Cause” dá continuidade ao uso expressivo da profundidade de campo enquanto demonstra tal forma, prevendo de maneira embrionária, a praxe da Nova Hollywood e do futuro Maneirismo, sua textura nímia que vai da estética das cores até a própria narrativa parece afligir-se da mesma sobrecarga do passado. No texto “De Certa Maneira” escrito por Alain Bergala a despeito do maneirismo, ele se refere ao estado do cinema atual como “grande reserva confusa de formas, de motivos e de mitos inertes da qual os cineastas podem beber com toda a “inocência” cultural, ao acaso de suas fantasias ou modas.” Esta desordem de formas, motivos e mitos que os modernos cineastas irão usufruir futuramente, ganha vida através da película de Nicholas Ray.  

“Citizen Kane” e “Rebel Without a Cause” também rima na prosa da película, a juventude desvirtuada e delinquente é filha renegada dos Estados Unidos de Welles, Charles Foster Kane sendo o pai ausente de James Dean que ao invés de deixar de herança seu sorriso presunçoso, dá ao seu filho apenas um emocional frágil e rebelde. A primeira cena do filme em que Jim, Judy e Platão tem seus destinos entrelaçados ao se encontrarem espiritualmente na delegacia, mesmo sem interagir uns com os outros, assinala o primeiro ato daquela tragédia. Em uma sala separada, enquanto o delegado conversa com a jovem, vemos ao fundo o bêbado Jim enquadrado pelas paredes e janelas, distante do futuro, assim como Charles Kane brincava com Rosebud na neve enquanto sua mãe e pai discutiam sobre a adoção. O desfecho da história antecede a visita a uma mansão abandonada e destruída, esquecida pelo tempo e pela sua própria arquitetura colossal. Mas não, aqueles jovens não brincam e imitam os adultos burgueses e egocêntricos no templo gótico de Xanadu.

Aquilo que conecta a biográfica transformação do poderoso filantropo em tirano solitário de uma arrebatadora história coming age que termina em tragédia não é uma questão de intensidade dramática, temática ou temporal, e sim mera escala simétrica: a luta de gládios clássica torna-se uma moderna luta de canivetes. Enquanto o poder em “Citizen Kane” é colérico, desvirtuado e ardilosamente manipulado pelos meios de comunicação, que aqui assume uma importância na história ao expor o fato que, no desfecho da vida de um homem, maior que seu próprio retrato ou herança, são suas palavras: aquilo que falam de si e aquilo que ele fala para ele próprio.

O poder em “Rebel Without a Cause” é dotado de uma violência mais íntima, substancialmente bruta e imatura, de caráter transitório, uma vez que seus personagens habitam nesse tortuoso limbo que é o início da vida adulta e o fim da adolescência. A jovial ilusão de imortalidade, unida a um clímax sentimental que deixa os nervos à flor da pele e transforma os sentimentos em paixões estridentes, dedica demasiado valor à aparência: diferente da afirmação verbal em “Citizen Kane”, a compreensão que estes personagens buscam em suas vidas não é só um afago sentimental, mas sim um convencimento imagético.  Quando Jim deseja que o pai se imponha contra as vontades da mãe, ele enxerga o pai afeminado usando o avental cor-de-rosa. Quando Platão desabafa sobre seu abandono paternal, ele enxerga seu pai como um figurão de Nova York ou um soldado heróico no mar da China. Quando o pai de Judy nega seu beijo afirmando que ela já não tem idade para isso, ela passa a enxergar sua própria infância. A mise-en-scène é centrada nessa atribuição das aparências, o retrato de uma geração que, não apenas não quer ser chamada de covarde, como não quer parecer como um. Esta relação aparente é personificada principalmente na encenação dos atores entre si e externo ao cenário.

“Eu acordei hoje de manhã, e o sol brilhava, e estava gostoso esse tipo de coisa. E, de cara, eu vi você e disse para mim: Hoje será um dia incrível, portanto é melhor você se animar porque amanhã você não será nada.”

A discussão entre Jim e seus pais é uma das cenas mais expressivas do filme, a sequência por si só desfruta de uma força dramática paralela ao discurso que é realçada a cada elemento estilístico: a atuação orgânica (com exceção do incandescente e descomedido James Dean) entre os personagens, o cenário mundano doméstico assumindo proporções épicas através do jogo de sombras da fotografia, a movimentação de cena alinhada ao ritmo dos cortes entre de enquadramentos que é tão hipnótico quanto um ballet russo. Mas, além de uma beleza exterior, o sentido semântico da cena intensifica essa atribuição aparente.

 A cena inicia com uma quebra estilística completamente estonteante, a imagem invertida de cabeça para baixo sobre a perspectiva do jovem enquanto roda. No começo da discussão, a disposição dos personagens sobre o cenário localiza os pais de Jim de costas para câmera enquanto ele confessa o acontecimento novamente para o espectador, mas pela primeira vez para seus pais. Seus pais se levantam e a câmera vai e um travelling zoom in, se aproximando cada vez mais do jovem que se senta, saindo do centro da cena para ser escanteado na imagem. Enclausurado por um close-up quase subjetivo por espírito, Jim enerva-se e também se levanta, abandonando seu desejo de compreensão. Seu recuo soa como imposição ao se elevar no degrau da escada, sendo que aquilo é apenas uma tentativa de fuga, Jim quer sair daquele espaço opressivo onde as linhas convergentes do corrimão lembram as grades, a madeira e o vidro da delegacia no início do filme. Ele começa a recuar, mas seu pai vem para o seu lado e tenta persuadir a não se entregar para protegê-lo, mas Jim, assim como sua geração não querem ser protegidos, eles querem enfrentar o mundo e suas consequências de maneira honrada e independente.  

Nesse ponto, Jim se encosta na janela de costas para o espectador, se escondendo ao desejar sumir daquele ambiente. Subitamente, assim como uma foto na parede entorta durante uma desavença familiar, a imagem quebra em dutch angle, um movimento que desencadeia outro movimento, a consciência do fazer cinema e da expressão fílmica, uma pincelada típica de um auteur rebelde que redesenha o ângulo, o plano, a história e a estória. Godard já tinha nos alertado que o cinema era Nicholas Ray, mas apenas fui entender sua filosófica expressão através desta cena. O desabamento trágico acontece após a explosão de Jim com seu pai, enxergando a si próprio naquela imagem calada e miserável, partindo para a agressão, gritando com sua mãe e quebrando o retrato de sua avó com um pontapé, desaparecendo na vegetação do fundo de sua casa como um selvagem sem lei. Jim astronomicamente corre e se choca em direção ao ideal correto que ele crê cercar a verdade, pois se a verdade cega, como afirma Godard em seu texto sobre “Amargo Triunfo” em 1958, a mentira faz-se enxergar ao enfrentar conscientemente, a si próprio.

Essa corrida abrupta, seja em direção à verdade ou ao abismo, ou simplesmente rumo ao desconhecido, parece acompanhar os personagens ao longo de todo o filme. Sobre a penumbra azul da noite, Jim questiona seu adversário antes da corrida, “Porque estamos fazendo isso?”, e ele responde honestamente “Nós precisamos fazer alguma coisa...não precisamos?”. A inércia existencial desperta no indivíduo uma inquietude física que o obriga a se dirigir a algo ou alguém, o despropósito existencial urge a necessidade de rebelar mesmo sem uma causa aparente, pois o próprio ato de rebelar já é capaz de fornecer uma identidade. Compreender “Rebel Without a Cause” não é questionar os sentimentos e atitudes daqueles jovens, mas compreender a natureza interna que dialoga com esse retrato de uma geração abandonada pelo núcleo familiar, incompreendida sistema educacional e delinquente pela solidão passional. A fotografia identifica essa aparência das dores através da composição sugestiva, as cores vivas saltam do cena e a profundidade de campo que alarga a imagem, amplificando ainda mais esse cenário de incompreensão da juventude que, por questão de rima poética, torna-se opressão.

Após retomar a questão inicial, é impossível não constatar uma ambiguidade entre o clássico e o moderno de “Rebel Without a Cause”, que mesmo possuindo de característica formais modernas, a ideia de subversão do ideal naturalista da imagem não parece motivar-se pelo rompimento autoconsciente, e sim pela simples poesia clássica do próprio diretor, que ao longo de toda sua filmografia dialoga de maneira visual com indivíduos e narrativas a margem da lei e da moral. Tal como o final do filme, deixarei aberto a discussão, finalizando com suas próprias palavras: O rádio informa a próxima música e o locutor anuncia “Um novo arranjo de um velho blues”, desta vez dedicada de Nicholas Ray para nós, espectadores.

“E, enquanto a luz do nosso início ainda não viajou à distância em anos-luz, não foi vista em outros planetas, dentro de outras galáxias, nós vamos desaparecer na escuridão de onde viemos, destruídos da forma que começamos, uma explosão de gás e fogo.”

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