“Seaspiracy”, assim como “O dia depois de amanhã” e “Uma verdade inconveniente”, cumpriu bem o seu papel!

“Seaspiracy”, assim como “O dia depois de amanhã” e “Uma verdade inconveniente”, cumpriu bem o seu papel!

Seaspiracy é um pseudo documentário disponível na NETFLIX que tem gerado muitas manifestações sobre o tema da exploração dos recursos pesqueiros do oceano. Uma boa parte das manifestações é formada por críticas em relação à fonte, acurácia e abrangência dos dados que regem o roteiro.

 Aqui faço um paralelo com outro filme com viés científico bastante criticado em 2004, “O dia depois de amanhã”. Descontando o enredo totalmente fictício deste filme, o tema sobre aquecimento global e suas consequências para o planeta é tão científico, contemporâneo e preocupante quanto o tema abordado em Seaspiracy. As críticas ao conteúdo de O dia depois de amanhã também ocorreram de forma contundente na época, dentro e fora da comunidade científica, em especial, devido a escala espaço-temporal com que os eventos climáticos catastróficos mostrados no filme modificaram a paisagem do planeta. Do que me lembro na época, a maioria dos oceanógrafos e meteorologistas rotularam o filme como: - “uma aventura hollywoodiana para ser apreciada apenas como fonte de entretenimento.”

Outro pseudo documentário que segue na mesma linha é "Uma Verdade Inconveniente". Apesar de contar com o “lobby” do ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, também não fugiu às críticas de especialistas e não especialistas na época em que foi lançado em 2006. Ainda hoje algumas destas críticas ecoam - como por exemplo: “o CO2 corresponde a apenas 0,032% da composição dos gases na atmosfera e portanto não pode ser a causa do aquecimento global”; ou “o clima da Terra é dinâmico e já houve períodos mais quentes que o atual”; ou ainda, quando em alguma região da Antártica ou algum país do hemisfério norte registra recordes de temperaturas negativas, os negacionistas esbravejam: “Ué, mas a Terra não estava esquentando, como vocês profetas do apocalipse explicam esse frio?” - Acontece que clima é diferente de tempo! E os dados climáticos monitorados ao redor do mundo, os modelos climáticos cada vez mais robustos e as catástrofes decorrentes de eventos climáticos extremos, ocorridos desde que o filme foi lançado em 2006, refutaram todas estas críticas e enfraqueceram as bravatas negacionistas, de modo que o tema tem ganhado cada vez mais notoriedade e respeito na mídia e nas discussões políticas internacionais.     

Tal qual no passado, atualmente muitos especialistas e não especialistas estão criticando o conteúdo e enfraquecendo a narrativa do Seaspiracy. A principal linha de argumentação dos críticos ocorre devido ao filme abordar apenas os cenários negativos da pesca e de forma bastante sensacionalista. Li alguns comentários inclusive acusando o filme de ser uma propaganda vegana apoiada pela ONG Sea Shepherd. 

Sim, concordo que o Seaspiracy não aborda casos positivos de programas de manejo integrado de recursos pesqueiros. Programas onde foram definidos períodos e tamanhos proibidos de captura, a regulamentação e o controle de cotas, de licenças e apetrechos de pesca, o desenvolvimento da atividade pesqueira fiscalizada por câmeras e GPS lacrados a bordo, bem como, as alternativas de aquicultura orgânica de menor impacto na produção, só para citar alguns exemplos de atividades que estão ocorrendo, ainda que bastante insipientes e isoladas no mundo, e não foram abordadas no filme.  

Por outro lado, o Seaspiracy assim como os outros dois filmes citados neste artigo nunca tiveram a pretensão de ser um tratado científico analisado e aprovado por uma banca examinadora, comprometidos com soluções complexas para os problemas levantados. Nem mesmo os “documentários de verdade” (aqui deixo o link para um “documentário de verdade” produzido pela Deutsche Welle (DW) em 2015: https://www.youtube.com/watch?v=lQoVQRqQhlI&list=PLBPZWnsgTWSij0KuDUASHztXrZ5SSqyT0&index=2) conseguem esgotar o tema em pouco mais de 1 hora na tela. É para isso que existem os artigos publicados em revistas especializadas, os livros, os relatórios técnicos, tratados multidisciplinares derivados de conferências nacionais e internacionais, etc. 

Nem por isso, o conteúdo veiculado nestes filmes é demérito de seus autores, pelo contrário, acho que eles contribuem de forma tão significativa quanto os mais respeitados autores de trabalhos científicos, publicados nas melhores revistas especializadas, uma vez que a abordagem cinematográfica veiculada em Seaspiracy, em O dia depois de amanhã e em Uma Verdade Inconveniente, leva as respectivas problemáticas para milhões, talvez bilhões de pessoas quase que instantaneamente; enquanto que a informação veiculada em periódicos especializados, geralmente é muito técnica e complexa, o que leva um tempo maior para ser interpretada, deixando de ser acessível ao público em geral, bem como, para a maioria dos tomadores de decisão; ainda que a relevância do conteúdo veiculado nestes artigos científicos seja de incalculável valor comparada ao conteúdo dos filmes. 

O que eu gostaria de deixar claro neste artigo, é que o alcance de massa destes filmes tem a capacidade de modelar a opinião pública, levando seu conteúdo às pautas políticas, conteúdo outrora negligenciado nas esferas do poder, mas é óbvio que as políticas públicas em âmbito global não devem ser tomadas com base em informações veiculadas em um filme de 1h30min. No entanto, se o filme tem a capacidade de alertar a população para uma mudança coletiva de hábitos, inclusive para que a população mais sensibilizada possa cobrar seus representantes políticos sobre a gravidade do problema, ainda que de forma apelativa e longe da ideal, eu penso que esses filmes cumpriram seu papel! 

Além do mais, desculpem meu ceticismo, mas acho que se fosse realmente possível educar a maioria da população mundial em torno de soluções complexas - em especial das comunidades que dependem diretamente da atividade pesqueira (as quais infelizmente, pelo menos na maioria das minhas experiências, tomam os cientistas como inimigos interferindo no seu trabalho), em um tempo hábil para recuperar os estoques pesqueiros antes de um colapso, bem como, a tempo de reverter a acidificação dos oceanos, responsável pelo branqueamento dos recifes de coral, os principais concentradores de biomassa marinha - acho que já teríamos feito e estaríamos vendo algum progresso nesse sentido.

É fato que não existe progresso ambiental e muito menos fiscalização das políticas marinhas no mundo! Eu acredito veementemente que enquanto considerarmos “normal” buscar por um crescimento econômico infinito dentro de fronteiras políticas criadas artificialmente no planeta, tentando adaptar o meio ambiente resultante de 4,6 Bilhões de anos a uma lógica de mercado que se mostrou predatória e insustentável, em apenas poucos séculos de existência, estaremos fadados a extinção em massa!

Tomara que eu esteja enganado sobre o “timming”, mas acredito que o tempo para medidas comedidas e ideais complexos infelizmente já passou; e isso para mim é um dilema, pois não concordo com os fins justificando os meios! No entanto, é impossível negar que para os tomadores de decisão tudo se resume ao poder, às oportunidades de mercado, a mais poder e mais mercado. 

Enquanto o “homem” achar que tem que estar sempre acima de tudo na escala do Universo, como se tudo tivesse sido criado para nós, o que para muitos é uma verdade a partir da visão deturpada das religiões antropocentristas, estaremos colocando em risco a perpetuação de toda a vida baseada em carbono no Universo que conhecemos, e isso é muita ignorância e irresponsabilidade, até mesmo para com Deus. 

Neste ponto a mensagem do filme Seaspiracy é clara, ela escancara a noção de que as espécies marinhas NÃO são recursos pesqueiros pertencentes ao “homen”, mas sim são espécies contemporâneas resultantes do mesmo processo evolutivo compartilhado por todas os indivíduos que habitam a Terra, e portanto, indispensáveis ao equilíbrio ecológico e a perpetuação da VIDA no planeta!

Samara Goya

Geologist na Instituto Oceanográfico da USP

3 a

Assino embaixo......

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