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RUI CHAFES A coerência da obra de um raro escultor

Ensaio de Alexandre Melo PÁGINAS 20 E 21

O centenário de Saramago
Por Carlos Reis e Pilar del Rio PÁGINAS 5 E 6

A prosa de Sophia
Por Carlos Mendes de Sousa PÁGINA 4
JORNAL
DE LETRAS, Cinema: o outono
ARTES E de todos os festivais
IDEIAS Por Manuel Halpern PÁGINAS 16 A 18

Ano XLI * Número 1333 * De 3 a 16 de novembro de 2021


* Quinzenário * Diretor José Carlos de Vasconcelos

Paulina Chiziane
Uma voz
de mulher
de Moçambique
O Prémio Camões foi para a primeira
escritora do seu país, fora de modas
e de ‘circuitos, e que disse ao JL
ser “uma caçadora de histórias”.
Entrevista de Luís Ricardo Duarte
e texto de Agripina C. Vieira PÁGINAS 8 A 10

* Agenda Cultural
* JL/Educação
* Camões: uma
exposição sobre a
herança colonial

Sara Barros Leitão


fala da sua nova peça
LUCÍLIA MONTEIRO

PÁGINA 19
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ARTES / ENTREVISTA, CRÍTICA

DUAS OPÇÕES João Salaviza e


Renée Nader
DE LEITURA DO JORNAL Messora
Pode escolher Wýhwy e Patrpro
fazem cinema
como prefere ler Mudou de cidade, de país, de
a edição quinzenal: continente, de cinema e de vida.
Ele, o '"menino prodígio" do
cinema português, vencedor de
em formato pdf, uma Palma de Ouro e de um Urso
de Ouro pelas suas
com primazia curtas-metragens, atravessou
oceanos para chegar a
Kraholândia, a terra dos índios
para o grafismo, ou krahó, no estado de Tocantins, no
interior norte do Brasil, na
em formato de texto, companhia dela, brasileira, sua
mulher e correalizadora do filme
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Especial do Júri
úr da secção Un
confortável dos artigos Certain Regard,
ard,
rd em Cannes e que
amanhã, quinta-feira,
uinta-f
ta 14, se
estreia em Portugal.
rt Falamos com
ou caixas completos, os dois, sobree o filme e não só
MANUEL HALPERN
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basta carregar. Pode Esta é a história de Wýhwy
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realizadores de cinema, a, ele português, ela
escolher o corpo de letra brasileira, que casaram
terra dos índios Krahô,
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ô, na Aldeia de Pedra
Branca, para serem felizes
iz para sempre.
mais adaptável Conheceram-se anoss antes,
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Aires, onde ambos frequentaram a escola

ao seu gosto de cinema. João Salaviza, o nomee b


de Wýhwy, tornou-se
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Fes de Cannes, com
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ta Arena.
A que se seguiui um Urso de Ouro em

NAVEGAÇÃO INTUITIVA
Berlim, por Rafa. Renée Nader Messora,
nome branco de Patpro, habituou-se
trabalhar, como diretora de fotografia e
► Deslize para navegar assistente de realização, nos filmes dos
outros, incluindo a primeira longa de
entre páginas J ã M t h
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21 / 41
2015 R é
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DESTAQUE 3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

›BREVE ENCONTRO‹

Tito Couto
Bienal de Poesia de Oeiras
Cem convidados de três continentes animam o programa da 1.ª
edição da Bienal Internacional de Poesia de Oeiras, que decorre no
Templo da Poesia e no Parque dos Poetas daquela cidade, entre os
dias 16 e 21 novembro. É uma iniciativa integrada na candidatura de
Oeiras a Capital Europeia da Cultura 2027 e que procura apresen-
tar uma visão muito abrangente da poesia, quer nos seus registos,
popular e erudito, quer na relação com as outras artes, do vídeo ao
palco, quer até na presença nos lugares mais inesperados, como
um processo de independência. O JL entrevista o programador da
Bienal, Tito Couto, estando o programa completo disponível no site
da iniciativa (https://bienaldepoesiadeoeiras.pt).

Jornal de Letras: Qual a filosofia desta Bienal de Poesia de


Oeiras?
Tito Couto: Há muito tempo que Oeiras tem dado uma atenção
especial à poesia, de várias formas, sendo a mais evidente a cons-
trução do Parque dos Poetas e do Templo da Poesia. Nesse contexto,
faltava um espaço que, mais do que ser um festival, fosse uma for-
ma de mostrar como a poesia se espraia Ana Aragão no Museu do Oriente O Japão, pelo traço de
por registos e plásticas muito diferentes. Ana Aragão, ficcionado e imaginado mais do que vivido, na
A ideia surgiu exatamente da vontade de
criar um evento com essas características, impossibilidade de viagens, na suspensão de planos e projetos
com periodicidade bienal para permitir cancelados, dos tempos que vivemos. No
uma respiração e maturação na conceção
e seleção dos projetos que traremos a Plan for Japan inaugura-se a 5, no Museu
Oeiras. do Oriente, em Lisboa. A arquiteta do
A sessão de abertura aponta para uma
Porto, que atualmente se dedica sobretudo
capital da poesia. Em que medida esta ao desenho, apresenta na exposição seis
bienal responde a essa ideia?
A Bienal abre precisamente essa discussão. A ideia de Capital da
coleções de ilustrações e desenhos: Blind Dates, Forever Lost,
Poesia é um dos eixos da candidatura de Oeiras a Capital Europeia Fictions, Kanji, The Metabolic Ones e Obi. Para ver até 13 de
da Cultura 2027, pelo que esta primeira edição fará esse trabalho fevereiro.
exploratório. Além disso, a Bienal não será um evento que aconte-
cerá apenas de dois em dois anos em data definida. Pelo meio, de-
senvolverá trabalho dentro dos vários universos apresentados este
ano, como na relação da poesia com as novas tecnologias, a relação
da poesia com a música, os registos de poesia mais de margem e
franja e, por isso mesmo, menos conhecidos e subterrâneos. VERÃO AZUL táculo Válvula, com o músico A. GURNAH A METAMORFOSE...
NO ALGARVE de hiphop e dá masterclasses TRADUZIDO INDICA PARA OSCARS
A resposta estará nesta noção, também avançada pelo programa, sobre “desenhar no escuro” e
de que “tudo é poesia”? A fotógrafa Pauliana o “desenho como performan- A obra de Abdulrazak Gurnah, A Metamorfose dos Pássaros,
Sim. Não podemos ser excludentes. Temos de olhar para as várias Pimentel é a artista em des- ce”. Miguel Bonneville, por distinguido este ano com o de Catarina Vasconcelos,
formas como ela é interpretada. Há uma forte tradição de poesia taque no Festival multidisci- seu lado, leva a performance Prémio Nobel de Literatura, é o título indicado pela
popular, a que não podemos fechar os olhos, há também uma plinar Verão Azul, que celebra A Importância de Ser Alan vai ser publicado em Portugal Academia Portuguesa de
poesia de carácter mais erudito, ligada à edição e ao formato livro. dez anos, numa edição que Turing, ao Teatro das Figuras, pela Cavalo de Ferro, uma Cinema para a nomeação
Mas há ainda outras formas de poesia, relacionadas com o teatro, se estende por Lagos, Loulé de Faro, dia 19, além de dar o chancela da Penguin Random dos Oscars para o melhor fil-
a dança ou a música. Procuraremos assim que a bienal tanto possa e Faro, de 4 a 20 deste mês. concerto de encerramento do House Grupo Editorial me estrangeiro. Recorde-se
trazer um autor muito popular, como o Nando Reis, ex-membro A obra da fotógrafa está festival, dia 20, na Associação Portugal. Afterlives, o último que a obra, num formato hí-
dos Titãs, que levaram a poesia concreta para o pop rock, quanto ir patente no Museu Municipal Recreativa e Cultural de romance publicado pelo escri- brido entre o documentário
buscar o Fernando Ribeiro para uma curadoria de espetáculos que de Faro, até 19 de dezembro, Músicos, sob o pseudónimo tor nascido em Zanzibar, em e a ficção, ainda em exibição
juntam várias artes e que podem ser considerados de nicho. Ou com uma série de fotografias Black Bambi. E Flávio Martins 1948, e há muito radicado no nos cinemas portugueses,
seja, grandes nomes e projetos alternativos. Há poesia para todos os de famílias ciganas algarvias, e José Jesus apresentam Reino Unido, será publicado já havia ganho importantes
gostos e tudo será pensado sem preconceitos. sobretudo na zona de Castro Orelhas de Burro, projeto sele- em fevereiro/março de 2022. prémios em festivais como
Marim e Vila Real de Santo cionado de uma residência de Já agendada está a publicação Berlim, IndieLisboa, San
“Poder e Democracia”: o tema desta 1.ª edição é bem atual... António. Sérgio Pelágio artistas locais promovida pelo de Paradise, em maio, By the Sebastian, Taipei, Vilnius,
Quando começámos a desenhar esta bienal, uma das preocupações estará em duplo destaque, festival, juntamente como sea, em setembro, e Desertion, entre outros. Na luta pelas
foi fugir dos temas estéreis ou metaliterários, com a poesia a falar com várias das suas histórias Chama-se Amor, Amor, de em 2023. Obras que, segundo nomeações dos Oscars o
sobre si própria. Queremos, pelo contrário, ter uma poesia a falar magnéticas a circularem António Guerreiro e Carolina a Academia Sueca, destacam- filme encontrá concorren-
do mundo. Nestes tempos que vivemos em Portugal e um pouco por espaços do festival e um Cantinho. Há ainda espaço -se “pela sua penetração des- tes de peso como Titane
por todo o mundo, nada mais apropriado do que pensar o poder e concerto, dias 6, Laboratório para os Cantos de Trabalho comprometida e compassiva (França), Um Herói (Irão),
a democracia. Vamos olhar para estes temas e perceber qual o con- de Actividades Criativas, em Impossíveis, concerto de dos efeitos do colonialismo Má Sorte no Sexo ou Porno
tributo que a poesia pode dar. Além disso, com a presença de José Lagos. Também em Lagos Eduard Pou e Pau Rodríguez; e do destino dos refugiados Acidental (Roménia), Deserto
Ramos-Horta, por exemplo, também se sugerirá que no processo o ilustrador António Jorge ou o poema visual Questo è il no espaço entre culturas e Particular (Brasil) ou Drive my
de Independência de Timor houve uma centelha de poesia. J Gonçalves apresenta o espe- piano, de Luciana Fina . continentes". Car (Japão).
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT DESTAQUE 3 ↗

Outono em palco Clima, COP26


Nem Come, nem Deixa Comer, o
novo espetáculo da Companhia de
e Gulbenkian
Teatro de Almada (CTA), estreia

COMENTÁRIO
a 5, no Teatro Municipal Joaquim
Benite (TMJB). Criado a partir de
O Cão do Hortelão, do dramaturgo
espanhol Lope de Vega (1562-1635), José Carlos de Vasconcelos
numa tradução de Nuno Júdice, com

J
versão dramatúrgica de José Gabriel
Antuñano, a comédia é encenada por
Ignacio García, diretor do Festival á está a decorrer na Escócia, em Glasgow, desde
Internacional de Teatro Clássico domingo, 31 de outubro, a COP26, a Conferência das
de Almagro e programador do Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, que se
Dramafest, na Cidade do México, que prolonga até ao próximo dia 12. O 26 significa o número
volta a dirigir a CTA. A interpretação de edições de iniciativas internacionais com objetivos
é de Margarida Vila-Nova, Ana Cris, semelhantes – a 1ª foi em Berlim, em 1995 –, e que
David Pereira Bastos, Teresa Gafeira, ganharam dimensão ou repercussão especialmente relevante a partir

JOÃO TUNA
Leonor Alecrim, entre outros. A da Cimeira da Terra, em 1992, no Rio de Janeiro.
cenografia tem a assinatura de José Recorde-se que nesta cimeira, a ECO 92, participaram 117
Manuel Castanheira, a interpretação Chefes de Estado, a maior reunião de sempre de líderes mundiais, e
musical de Marco Oliveira. Rei Lear Na encenação de Nuno Cardoso dela resultou um certo avanço no sentido de proteger o ambiente e
Integrado na Mostra Espanha o clima, sem prejuízo do desenvolvimento económico. Ficando-se,
2021, Não Come, nem Deixa Comer, porém, longe do desejável, do defendido não só pelos ecologistas
que se insere na programação dos 50 existência da sala portuense, que ce- Meireles e Nuno Gonçalo Rodrigues. como pelos principais especialistas na matéria.
anos da CTA, vai ficar em cena na sala lebra o seu centenário. Testemunhos, Em parceria com a Fundação D. Já em outra cimeira fundamental, a COP21, em 2015, em Paris,
principal do TNJB até 5 de dezembro e fotografias de cena, cartazes, figurinos Luís e a Câmara Municipal de Cascais, estando representados 195 países, foi assinado um Acordo - refor-
aos sábados, ao fim da tarde, no foyer e outros documentos são apresenta- os AU retomaram as leituras Em Voz mulando o Protocolo de Quioto, de 1997 – para diminuir a emissão
do teatro, haverá o habitual ciclo de dos na mostra de encerramento das Alta de poesia portuguesa, disponi- de gases de efeito estufa e o aquecimento global, limitando em 2º C
conversas com o público, coordenado comemorações, que pode ser vista até bilizadas online, nas redes daquelas o aumento da temperatura planetária até 2100. Só que… Só que…
por Maria João Brilhante. 27 de março de 2022. entidades. Manuel António Pina foi o muitas coisas aconteceram, a pior ou mais (até simbolicamente)
O novo palco do Teatro Nacional S. Os Artistas Unidos (AU), por seu poeta escolhido para recomeçar este negativa de todas os EUA, sob a ‘execrável batuta’ do Presidente
João (TNSJ), que reabriu no passado lado, estreiam Lua Amarela, de David programa de recitais, que conta com Donald Trump, desonrar o compromisso assumido nesse Acordo
dia 22, após quase um ano encerrado Greig, a 10, no Teatro da Politécnica, a participação dos atores Catarina de Paris, riscando-se dele.
para obras de reabilitação e renovação em Lisboa. Encenado por Pedro Wallenstein, Luís Lucas, Lia Gama, Posição que o seu sucessor, Joe Biden, de imediato reverteu – e
da mecânica e arquitetura de cena, vai Carraca, é interpretado por Gonçalo Manuel Wiborg ou Maria João Luís. o Presidente dos EUA, o segundo maior poluidor mundial, estará
receber Lear, de William Shakespeare, Norton, Rita Rocha Silva, Paulo Pinto Na linha fronteiriça entre teatro e (está ou já esteve…) em Glasgow. Não se sabendo ainda, no en-
com estreia a 6. A encenação é de Nuno e Inês Pereira. A cenografia é de Rita cinema, Maridos, o novo espetácu- tanto, quando escrevo estas linhas, se o mesmo acontecerá com o
Cardoso, diretor artístico do TNSJ, a par- Lopes Alves, a música de Rui Rebelo. lo do Teatromosca, toma por base o Presidente do país mais poluidor de todos, a China...
tir de uma tradução de António M. Feijó. Em digressão, os AU levam A filme homónimo de John Cassavetes. Não cabe aqui, porém, sequer enumerar as muito candentes
Do elenco da nova produção própria do Coragem da Minha Mãe, de George Vai estrear a 11, no AMAS, Auditório questões em debate nesta COP26 – sendo certo que a já hoje sua
TNSJ fazem parte atores convidados e a Tabori, a sul do Tejo, com apresenta- Municipal António Silva, no Cacém, extrema gravidade, mormente em tudo que relaciona com as
‘companhia quase residente’. Entre eles, ções em Sines, a 11, Vila Nova de Santo e tem encenação de Pedro Alves, alterações climáticas, põe em risco o próprio futuro da humanida-
Afonso Santos, António Durães, Joana André, a 12, Santiago do Cacém, a 13, diretor da companhia, que desenvol- de. O que há mais de duas décadas é nas nossas colunas analisado,
Carvalho e Margarida Carvalho, João e a 20, no Festival de Teatro do Seixal. veu o texto original, na continuidade sublinhado e denunciado por Viriato Soromenho-Marques, o nosso
Melo. A cenografia é de F. Ribeiro. A encenação é de Jorge Silva Melo, da experimentação das linguagens colunista, prof. catedrático de Filosofia, ensaísta e muito mais,
No Salão Nobre do S. João está diretor dos AU e a interpretação de entre o cinema e o teatro, a ficção e a também especializado nesse domínio, tendo sido designadamente
entretanto patente uma exposição, António Terrinha, Helder Brás e Pedro realidade, e em diálogo com as atrizes presidente da Quercus e fundador da Zero.
10 atos, 100 anos, que assinala uma Carraca, com vozes de, entre outros, Leonor Cabral, Joana Cotrim e Carolina
dezena de momentos marcantes na Carla Bolito, Américo Silva, João Figueiredo.J O QUE MAIS AQUI QUERO DESTACAR, porém, é que na COP26 será
entregue, no próximo dia 9, o Prémio Gulbenkian para a Humanidade
- Alterações Climáticas, há dias atribuído ao Global Covenant of
Mayors for Climate & Energy, uma aliança constituída por mais de
Ecologia, teatro pela companhia Lama Teatro, com direção de João
de Brito. O arranque será com o Teatro Praga, com a
10.600 cidades e governos locais de 140 países. Creio que o prémio
honra a Fundação que o instituiu e paga, e também o nosso país;
e ópera na mochila versão de Cláudia Jardim e Diogo Bento do clássico de
Shakespeare Romeu e Julieta, no Teatro das Figuras.
como o valoriza ainda o facto de nesta sua 2ª edição a sua entrega se
fazer nesse acontecimento de tamanha relevância mundial.
Haverá uma dezena de espetáculos e atividades em Lembro e sublinho que o montante do prémio é, este ano, de um mi-
vários espaços da cidade, nomeadamente A Grande lhão de euros, ou seja: o mesmo, ou até um pouco mais do que o Prémio
A questão ecológica, os impactos ambientais dos Viagem do Pequeno Mi, de Madalena Victorino, a partir Nobel. E que quem o vai receber destina-o ao financiamento de projetos
nossos gestos quotidianos, estão no centro do projeto O de Sandro William Junqueira.J de fornecimento de água potável a famílias pobres e de desenvolvimento
Estado do Mundo, da Companhia Formiga Atómica, que de soluções de eficiência energética na iluminação pública, projetos em
arranca com um espetáculo para os mais jovens e fa- seis cidades africanas, cinco do Senegal e uma dos Camarões.
mílias. Com encenação de Miguel Fragata, que também Ao anunciar quem ganhou o prémio, a presidente da
assina o texto com Inês Barahona, O Estado do Mundo Gulbenkian, Isabel Mota, acentuou que, como se sabe, "África é
(Quando Acordas) irá estrear a 11, no Lu.Ca, Teatro Luís Quem é esta gente? das regiões mais atingidas pelos efeitos das alterações climáticas”,
de Camões, em Lisboa, onde permanecerá até 28. e para lutar contra isso é necessário "promover o acesso à energia
Ao Lu.Ca chegará, mais tarde, em dezembro, de 3 limpa e segura”; quanto ao abastecimento de água potável, disse,
a 19, O Anel do Unicórnio - uma Ópera em Miniatura, Um enigma que já fez correr muita tinta e sobre o também contribui para “libertar do trabalho doméstico as mulhe-
a nova produção do Teatro do Eléctrico que estreia qual Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada também res, as maiores sacrificadas", porque muitas vezes têm de percorrer
já a19, no Cineteatro Louletano, em Loulé. É uma se aventuraram, tendo publicado um livro, Quem é quilómetros para arranjar água para a família.
criação de Martim Sousa Tavares, composição, Ana Esta Gente nos Painéis de S. Vicente?, uma edição da Enfim, também me parece curial recordar que a Fundação a que
Lacerda, libreto, e Ricardo Neves-Neves, encenação, INCM, com coordenação da editora Pato Lógico. A Portugal tanto deve, numa atitude pioneira e corajosa, que aliás
com os cantores André Henriques, Cátia Moreso e obra é agora transposta para o palco, com encenação suscitou alguma controvérsia, para ser fiel ao que defende em ques-
Sílvia Filipe, o ator André Magalhães, e um ensem- de Vasco Letria, num espetáculo que estreia a 7, no tões ambientais e energias limpas, decidiu deixar completamente o
ble formado por David Silva, Ana Aroso, Francisco auditório do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), sector dos petróleos, principal fonte de receitas do seu instituidor,
Cipriano, Helena Silva, Mrika Sefa, Vasco Sousa e em Lisboa. E não por acaso. É que essa é a casa dos Calouste Gulbenkian. Assim vendeu todas as suas participações
Miguel Menezes. Painéis de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, atualmente nessa área, transferindo os respetivos investimentos para o digital.
A sul, de 4 a 14, em Faro, irá decorrer a 1ª edição do objeto de conservação e restauro, que é, de resto, uma E, tanto quanto sei, só ficou a ganhar com a troca - não operada para
festival Mochila, para crianças e jovens, promovido das obras emblemáticas patentes no MNAC. J ser um “negócio. Logo, a boa ação, felizmente, até compensou... J
4 DESTAQUE

3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

›BREVES‹

MIA COUTO lança O Caçador de


Sophia de Mello Breyner Andresen
Elefantes Invisíveis, colectânea de contos
e crónicas publicadas na revista Visão,
amanhã, 4, às 18, na Biblioteca Palácio
Galveias, em Lisboa.
A prosa completa
Uma edição inédita: contos, ensaios e outros textos reunidos num único volume. Precedendo o
A MORTE DO ARTISTA, revista lite- seu lançamento pela Porto Editora, nos próximos dias, o JL antecipa o início do prefácio de Carlos
rária, com o tema “Terra de Ninguém” e
uma homenagem a Adriana Calcanhotto,
Mendes de Sousa (CMS), responsável pela edição juntamente com Maria Andresen Sousa Tavares.
é apresentada no Palácio Galveias, dia 13, Recorde-se que o prof. de Literatura da Universidade do Minho e ensaísta, e a também profª
às 16. Textos inéditos de Sandro William
Junqueira, Jorge Carlos Fonseca, Susana
universitária, poeta e filha da escritora, foram já os responsáveis pela edição, e prefaciadores,
Moreira Marques, Calane da Silva, Manuel da poesia completa, Obra Poética (Assírio&Alvim) de Sophia
Halpern, João Eduardo Ferreira, Fernanda
Cunha, entre outros.
CARLOS MENDES DE SOUSA
SPANISH ROCK PARTY, festival
de rock espanhol, com La Perra Blanco, Num fabuloso relato, Sophia de vida está no centro dessa demanda,
Cápsula, Pauline en la playa, Rayo, Terrier Mello Breyner Andresen falou da a busca é um caminho obsessivo e
e The Bo Derek’s, dias 13 e 20, na Fábrica primeira visita que fez a Teixeira de verdadeiro. Em “O Jardim e a Casa”,
do Braço de Prata. Entrada gratuita. Pascoaes, doze anos antes da morte que integra o primeiro livro, Poesia,
deste. Conta que foi de Amarante até já líamos: “Trago o terror e trago a
'OFÍCIO POESIA: 2000-2020', ao solar de São João de Gatão, sozi- claridade, / E através de todas as
lançamento da antologia de de João nha a cavalo, e que se perdeu entre presenças / Caminho para a única
Rasteiro, com apresentação de António nevoeiros nos “campos, caminhos e unidade.” Num dos últimos poemas
Carlos Cortez, na Livraria Snob, Travessa
atalhos”. Finalmente a casa apare- escreveu: “Quem me roubou o tempo
ceu-lhe “grande, antiga, maravilhosa que era um / quem me roubou o
de Santa Quitéria, Lisboa, pelas 16.
e branca”. Chegou ali pelo “lado de tempo que era meu / o tempo todo
trás da casa” e recorda-se do que o inteiro que sorria / onde o meu Eu
NUNO CÔRTE-REAL apresenta poeta lhe disse: “Por este caminho foi mais limpo e verdadeiro / e onde
álbum Tremor, com Bárbara Barradas, nunca tinha chegado ninguém” por si mesmo o poema se escrevia.”
Ensemble Darcos, a partir da poesia de (Espólio SMBA, BNP). A casa é uma E como acontece com os poemas,
Pedro Mexia, dia 18 de novembro, às 21, aparição como a chegada de Sophia também nos textos em prosa encon-
no Grande Auditório da Culturgest, em também o é. Paisagem e poema tramos a explicitação desse sentido,
tornam-se indistintos: “tudo naquele como por exemplo em “Vila d’Arcos”

MANUEL MOURA
Lisboa.
lugar era igual à poesia de Pascoaes”; (Histórias da Terra e do Mar), onde
FESTIVAL INTERNACIONAL “era como se eu avançasse através de alegoricamente se tematiza a questão
DE GUITARRA DE FARO, com o um poema de Pascoaes”. Sophia de Mello Breyner Andresen da unidade.
Concierto Andaluz pelo Quarteto de São muito próximos os termos No seu nítido recorte clássico,
Guitarras "Concordis" e a Orquestra
usados por Sophia, noutro relato, na poesia como na prosa, a obra de
para rememorar o primeiro encontro, Sophia deixa entrever, do princípio
Clássica do Sul, dia 5; e António Zambujo,
na sua juventude, com Ruy Cinatti, da sua participação em campanhas mente. A reunião da poesia num só ao fim, um trajeto pessoal, a par de
Voz e Violão, dia 6, no teatro de Figuras.
por ela entrevisto como um “guru”, eleitorais, no pós-25 de Abril, recor- volume permitiu captar com nitidez uma contínua ultrapassagem das
“arauto de todas as modernidades”. dou que, em pequenas vilas e aldeias, a alentada dimensão de completude marcas do circunstancialismo. As
QUINTAS DE LEITURA, amanhã, Do poeta fixou um retrato para em vez de falar da democracia e da desta obra, uma evidência que se dá datas, as dedicatórias, os nomes (o
4, no Teatro do Campo Alegre, no Porto, sempre associado aos fins de tarde de liberdade (incumbência que deixava a ver, em clareza, a partir da leitura caminho do vivido), mapeando um
às 22. uma primavera antiga, quando o viu, para os políticos da comitiva), lia sequencial dos livros, na linha do reconhecível percurso biográfico,
“caminhando em equilíbrio sobre a um poema. E justificou: “porque tempo da sua publicação. O presente como que condensam pontos de
SAL apresentam o disco Passo Forte, beira do tanque”, a proclamar “ao para mim a poesia é a liberdade” volume da prosa reunida também incandescência de uma trajetória
dia 16, às 21, no Teatro Maria Matos, em sol e à brisa poemas de Ezra Pound” (“O Elogio da Leitura”, RTP). Sophia vem ajudar a mostrar essa unidade, que revela a direção de um tempo
Lisboa. (Espólio SMBA, BNP). A presença do acrescentou ainda que, da parte desse quando colocado ao lado da Obra todo inteiro. Os lugares e os ciclos
real reforça continuamente a relação público, constituído por pessoas Poética. Os diálogos, as inter-re- delineiam o mesmo trânsito. Lemos
JOSÉ EDUARDO AGUALUSA da pessoa com a obra e da obra com o simples do campo, “havia sempre lações revelam novas visões de Sophia com eles: a praia atlântica, os
lança o seu novo livro, O Mais Belo Fim mundo. É esta a ideia central contida um silêncio especial, mais profundo conjunto. jardins do Porto, o Algarve, Lisboa e a
na memória dos encontros. Os textos e mais atento para ouvir poesia”. A unidade não é apenas uma Graça, e sempre a Grécia. Impõem-se
do Mundo, uma edição da Quetzal, dia
de Sophia sobre os poetas e a poesia Indistintamente, também a prosa armadura, um quadro extrínseco e momentos precisos e identificáveis,
6, às 17 e 30, na Livraria Travessa, em
estão muito próximos dos contos que de Sophia faz parte desse seu modo formal que percecionamos no sentido permanentemente reconduzíveis à
Lisboa.
escreveu, concretamente pelo efeito poético de ser concreta. É um erro da coesão vislumbrada. Do primeiro “pura manhã da imanência”.
de surpresa e pela força das imagens, separar a prosa da poesia. E se aquela ao último livro (seja poesia, ficção ou
MARIA JUDITE CARVALHO E como a espantosa chegada a cavalo não é propriamente uma extensão ensaio), impõe-se o extremo sentido NOS CONTOS, DESCOBRIMOS
CARLOS DE OLIVEIRA evocados pela à casa de Pascoaes, por um caminho desta, a obra revela-se em sua plena coesivo em todos os planos. Porque a alguns marcos referenciais precisos
Associação Portuguesa de Escritores, inesperado, ou a visão do poeta a integridade, na articulação entre como, por exemplo, em “Praia”,
que assim assinala os seus centenários dizer versos em equilíbrio sobre a poesia e prosa, no modo de se viver o quando a certa altura se explicita um
de nascimento, numa iniciativa coorde- beira do tanque. real na aceção apresentada no ensaio concreto dado histórico, reportado
nada por Luís Machado. Dia 8, às 18 e 30, Toda a obra em prosa de Sophia “Poesia e realidade”, publicado na ao momento em que decorre a acção:
na Biblioteca Palácio Galveias, Inês Fraga está profundamente impregnada por revista Colóquio, em 1960, quando “Rommel no deserto recuava.” Em
e Isabel Cristina Mateu evocam a autora uma essencial matriz poética. Para Sophia afirma que “a Poesia é a pró- relação ao tempo histórico português,
de As Palavras Poupadas, enquanto que ela, contar histórias sempre foi in- pria existência das coisas em si, como Toda a obra em prosa de de que encontramos marcas claras
a 15, no mesmo local e à mesma hora,
dissociável do modo poético de ver o realidade inteira”. Sophia está impregnada na obra poética, também nas prosas
mundo, isto é, de o viver. E é por isso emergem referências, em sua ampli-
Osvaldo Manuel Silvestre falará sobre o
que as suas narrativas contêm uma É FREQUENTE ENCONTRAR- por uma essencial ficação interventiva, desde os modos
autor de Uma Abelha na Chuva.
verdade que elegeu como máxima: o MOS PÚBLICOS leitores da obra de matriz poética. Para ela, de denúncia ao cerco e à asfixia do
reconhecimento da absoluta “unida- Sophia muito distintos: de um lado, Estado Novo (como em “O Jantar do
MUSEU DA REVOLUÇÃO, novo de entre a poesia e a vida”. Agustina os leitores da poesia; do outro, os
contar histórias sempre Bispo” e “Retrato de Mónica”), até
romance de João Paulo Borges Coelho, disse lapidarmente que “a poesia era das narrativas, em particular os das foi indissociável do à denúncia da demagogia e da cor-
lançado hoje, 3, às 18 e 15, na UNICEPE, a sua forma de ser concreta”. histórias para crianças. O mesmo se rupção instaladas no pós-25 de Abril
no Porto, com apresentação de Sérgio Em 1989, numa entrevista con- pode dizer da crítica que, em geral,
modo poético de ver o (por exemplo em “Era Uma Vez Uma
Almeida. cedida a Isabel Bahia, a propósito se centra em cada género separada- mundo, isto é, de o viver Praia Atlântica”). J
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT DESTAQUE 5 ↗

José Saramago Carlos Reis: Concebemos um


programa que contempla quatro
eixos de atuação, todos eles muito
significativos para valorizarmos

Comemorações do centenário o legado de José Saramago: 1) o


da biografia, porque continua a
ser importante lembrar o trajeto
pessoal, cultural e cívico do es-

em todas as frentes
critor; 2) o da leitura, em diversos
níveis e visando diferentes público,
porque a leitura não pode deixar
de ser central, na celebração de um
O Nobel da Literatura português nasceu a 16 de novembro de 1922 – e exatamente um ano antes, grande escritor, ao mesmo tempo
que procuramos conquistar novos
e durante (pelo menos) um ano inteiro, o seu centenário será assinalado com um programa leitores, sobretudo jovens; 3) o das
vastíssimo, diversificado e em vários países, com natural destaque para Portugal, Espanha e Brasil. publicações, contemplando a ree-
dição da obra saramaguiana, pelas
A organização dessas comemorações tem no centro, como é natural, a Fundação José Saramago, suas editoras, em Portugal e no
estrangeiro, bem como livros e nú-
e tem como comissário Carlos Reis, especialista na sua obra. Sobre elas o ouvimos, e publicamos meros de revistas sobre Saramago;
ainda um texto escrito para o JL pela presidente daquela fundação, e viúva do escritor, Pilar del Rio 4) o das reuniões académicas, em
Portugal e noutros (muitos) países,
reforçando a presença do escritor
em contexto universitário.
CARLOS REIS
O que quer dizer com leitura, ou
Tópicos para uma entrevista leituras, a diversos níveis?
É já no próximo dia 16 que se co- Quando falo de leituras de
meçará a comemorar o centenário Saramago, refiro-me a diferentes
do nascimento de José Saramago, planos de concretização. Para dar
com (em parceria com a Rede de dois exemplos, entre outros pos-
Bibliotecas Escolares e com o PNL) síveis: as chamadas Conferências
a leitura em simultâneo em 100 do Nobel, coordenadas por Alberto
escolas portuguesas de obras suas Manguel, trarão a Portugal grandes
– nas do Ensino Básico o seu livro A figuras da literatura mundial, que
Maior Flor do Mundo, nas do Ensino proporão reflexões sobre temas
Secundário páginas do Memorial saramaguianos, numa aceção
do Convento e d’O Ano da Morte de ampla da expressão; noutro plano,
Ricardo Reis. Só uma pequeníssima as Leituras Centenárias darão voz,
amostra de um programa extraor- em centenas de escolas, a jovens
dinário, que já de 16 a 18 integra o II que hão de ler, em simultâneo,
Colóquio de Estudos Saramaguianos, textos de Saramago. E haverá
pelas Universidades Federais do Rio também Saramago na biblioteca:
Grande do Norte e Fluminense, e de nas bibliotecas da Rede Nacional
10 a 13 de dezembro a VI Conferência de Bibliotecas Públicas (destaco
Internacional José Saramago da aqui, naturalmente, as da Rede
Universidade de Vigo. José Saramago) e também nas
As comemorações têm como co- José Saramago Com Pilar del Río (foto à dir.ª) bibliotecas municipais de Lisboa
missário Carlos Reis, o catedrático da (a chamada rede BLX), que terão
Faculdade de Letras da Universidade um programa próprio, em parceria
de Coimbra, especialista de
Literatura Portuguesa, em particular
em (Eça e ) José Saramago, colabo-
O centenário de um contemporâneo com a Fundação José Saramago.

Há várias parcerias e contam com


rador do JL desde o início, e que foi diversos apoios.
designadamente diretor da Biblioteca PILAR DEL RÍO Sim, como consta do programa (em
Nacional e reitor da Universidade https://www.josesaramago. org/
Aberta. Que nos fala sobre as linhas Pois bem, quando falamos do centenário de José Saramago, a imagem que vemos é a de um senhor programacao/programa-do-cente-
essenciais do programa. com quem nos cruzamos na rua ou que nos escreveu uma dedicatória num livro ou com quem tomámos narios-linhas-gerais/), o centenário
um café, num qualquer lugar de Portugal, ou seja, um contemporâneo que faz parte da nossa memória. é celebrado com o apoio de diver-
Jornal de Letras: Qual a ‘ideia’ Não é uma estátua, nem uma gravura marcada pelo tempo, que contemplamos com respeito; o escritor sas entidades públicas e privadas,
essencial das comemorações do que celebramos está nas nossas casas, nas bibliotecas maiores ou nas mais pequenas, de quem recor- em parceria com a Fundação José
centenário de José Saramago, damos uma história, uma entrevista, o que estávamos a fazer quando soubemos que ganhou o Nobel ou Saramago. Destaco aqui o alto pa-
a estrutura e organização do quando anunciou que ia escrever um livro em que ninguém morreria e todos quisemos estar nesse livro
programa? e ser o músico que é salvo pela morte.
Os leitores conhecem a dimensão de José Saramago, ele habita no coração de cada um deles, por isso
poderíamos ficar-nos por esta afirmação e voltar às nossas vidas; e contudo, não será assim, vamos
comemorar os cem anos de José Saramago como se tivéssemos nascido para isso. Porquê? Por uma Viagem a Portugal
razão muito simples: precisamos de nos celebrar a nós próprios, leitoras e leitores, gente diferente que
confia na literatura e que entende que, perante tantos chamamentos diários que a sociedade lança, tam- Do livro, Viagem a Portugal,
bém devemos apostar no ato de escrever e de ler, essa possibilidade de crescermos, de sermos mais publicado originalmente há 40
Vivo em desassossego, íntimos e, ao mesmo tempo, cúmplices dos melhores. anos pelo Círculo de Leitores, e
Celebraremos o centenário de um contemporâneo chamado José Saramago fundados na certeza de que deu a José Saramago uma
escrevo para que os protagonistas somos nós, as pessoas que se alegram por terem compartilhado o seu tempo e base para passar a dedicar-se
desassossegar”, por terem lido as suas obras, que se sentem representadas por Blimunda ou pelo Sr. José que procura a em exclusivo à criação literária,
mulher desconhecida e lhe presta homenagem, porque manter a memória é um dever de quem usa a ra- estará disponível a partir de ama-
palavras de Saramago - zão e tem consciência. Inspirados na cultura, convidando, compartilhando, celebrando: assim queremos nhã, 4 de novembro, uma edição
é a atitude um escritor que seja este ano, no período que vai de 16 de novembro de 2021 a 16 de novembro de 2022. especial, que assinala o cente-
Depois dos confinamentos a que a pandemia nos submeteu, sabemos melhor o vale um livro, um con- nário. Agora com fotos de Duarte
que não se acomodou, certo, um poema; e aumenta o respeito que nos merecem os que nos consolaram e ajudaram a vencer Belo, de par com as do próprio
que viveu a literatura o desgosto ou o medo com a sua capacidade criativa. Seja este centenário de José Saramago uma ho- Saramago, e prefácio de Claudio
menagem aos criadores, a todos, e um reconhecimento das possibilidades humanas. Celebraremos um Magris, um bonito volume, de
como interpelação do contemporâneo porque nele nos sentimos refletidos e juntos queremos andar em frente. Sem perder a capa dura, com a chancela da
mundo e dos homens nossa identidade, deixando-nos iluminar, pondo luz no mundo. Porto Editora – 768 pp., 40 euros.
6 DESTAQUE

3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

Armanda Passos (1944-2021)


trocínio do Presidente da República
e o apoio da UNESCO, bem como a
participação, entre outros, de orga-
nismos dos ministérios da Cultura e

Saudades para sempre


da Educação, da Câmara Municipal
de Lisboa, do Camões. Instituto
da Cooperação e da Língua, da
Imprensa Nacional-Casa da Moeda
e do Turismo de Portugal. Outras
entidades prepararam ou estão a
preparar programas autónomos,
cabendo destacar o Cabildo de RAQUEL HENRIQUES DA SILVA
Lanzarote e o governo das Canárias,
sendo bem sabido o lugar que a ilha -se suspensas e distraídas, outras
e o arquipélago ocuparam na vida e parece que palram umas com as
na geografia afetiva de Saramago. E outras ou com os bichos, mas o que
ainda Azinhaga do Ribatejo, onde o predomina é um silêncio sumptuo-
escritor nasceu. A tudo isto junta-se so. Ele vibra sobre nós através da
o generoso apoio mecenático da energia luminosa das cores claras,
Fundação La Caixa/BPI. da distribuição subtil das sombras,
dos olhares que veem outras coisas.
Quer ou pode destacar algumas Num mundo tão cheio de ruído e
das iniciativas que constam do de palavras gastas, esse silêncio é
programa? um repto provocatório.
Com respeito por todas, porque Se pararmos, sem pressa de
todas, à sua maneira, contribuem entender e de explicar, se nos
para esta celebração, realço o sig- deixarmos envolver pelo ritmo das
nificado das Leituras Centenárias, cores e pela inventividade de cada
porque é nos leitores jovens e composição, se acompanharmos
na Escola que tudo começa, em a autonomia das formas e dos seus
regime de corrente de leitura; num entrosamentos, ouviremos esse
plano mais abrangente, sublinho silêncio como canto primordial,
a diversidade de manifestações melodioso, transbordando de com-
artísticas que darão conta da paixão que se oferece como parti-
riqueza e da complexidade da obra lha. Utilizando a sugestão de uma
de Saramago, nas artes visuais, no crónica de Paulo Varela Gomes, cito

LUCÍLIA MONTEIRO
cinema, na dança, na música, na o poeta americano Ralph Waldo
ópera, no teatro, etc. Emerson: ‘Que haja silêncio para
podermos ouvir o murmúrio dos
Se tivesse de criar um lema para as deuses’.
comemorações do centenário, qual Agora que Armanda Passos
seria? Armanda Passos “Uma personalidade marcada por absoluta particularidade” partiu, o silêncio adensa-se em
“Vivo em desassossego, escrevo saudade. Na belíssima casa que o
para desassossegar”, palavras de seu amigo Siza Vieira lhe cons-
Saramago. O que assim se afirma truiu, no atelier luminoso carrega-
é a atitude um escritor que não se “Não tem consciência de influências escritores brilhantemente escre- Este determinante sentido de do de pinturas dispostas pela filha
acomodou, que viveu a literatura (…) Simplesmente cria, obsessivamen- veram sobre o seu trabalho. Ou orientação (sem estradas nem Fabíola, as mulheres, as meninas
como interpelação do mundo e dos te, como se do nada viesse”. seja, há, nesta obra, uma pulsão sinais de proibição) sugere uma e os bichos falantes são uma sur-
homens. E que foi capaz de pro- Álvaro Siza Vieira, Armanda Passos. modernista de inventar as fontes estilística afim do surrealismo. preendente herança que mantém
vocar instituições e convenções. Bloco de desenhos, ESBAP, 2015 de inspiração muito longe no tem- Todavia tal hipotética filiação a artista viva. Infelizmente, não
Estes são desafios que continuam po e no espaço mas, sobretudo, trairia o essencial: a gente e os é fácil em Portugal ver a sua obra
vivos hoje e que assim devem con- em confronto consigo mesma. Não animais que povoam as telas e os a não ser no Museu do Douro, na
tinuar no futuro. J Armanda Passos é, na cena artís- com o pragmatismo monótono do desenhos de Armanda não vivem Régua, sua cidade natal onde fez
tica portuguesa, uma personalidade quotidiano, antes numa abertura dobrados sobre si nem descosi- um vasto depósito.
marcada por absoluta particula- radical, por vezes absoluta, ao dos do mundo. Pelo contrário, Mas convido os leitores a
ridade. No entanto, na sua fase devaneio como condição do sonho sugerem ativas comunidades em contemplarem, no ecrã dos vossos
• Viagem a Portugal: com de formação, seguiu um percurso e da criação. que os segredos e as novidades computadores, as pinturas do
base na obra homónima, canónico: fez o curso de pintura na perpassam, envolvendo gente e Centro de Arte Moderna (Fundação
reconstrução da viagem em Faculdade de Belas-Artes do Porto, bichos na contemplação de estra- Calouste Gulbenkian) e do Museu
formato digital interativo. discípula querida de Júlio Resende, nhos problemas. Nacional de Arte Contemporânea.
• Colóquio internacional: em e foi depois assistente na mesma Mas, se não há na sua pin- Com deliberado primitivismo e
Lisboa, pela Fundação Calouste Escola, ensinando, sob a direção tura a pulsão autoindagante, a plena autonomia, elas existem
Gulbenkian, em junho de 2022. de Ângelo de Sousa, tecnologias da socialização do imaginário é, na numa potente constelação que
• Fotobiografia de José gravura, área em que se manteve verdade, mais aparente que real. inclui as damas venezianas de
Saramago: por Ricardo Viel e exímia, especialmente na prática da Como se pode gerir o mundo em Carpaccio, as cenografias metafí-
Alejandro García, a publicar em serigrafia. que só existem humanos de sexo sicas de Menez ou a aliança entre
vários países. Mas, nessa época, parece que Dava mais feminino, mulheres e meninas, e as mulheres e os animais que Paula
• Exposição bibliográfica e não era ainda Armanda Passos. importância à poesia bichos que não parecem substitu- Rego prossegue desde os anos
documental, na Biblioteca Como foi sempre avessa às exigên- tos de homens mas bichos mesmo de 1970. Não se trata de nenhum
Nacional de Portugal: a “oficina cias narrativas da história, há, nos do que à pintura e que falam, sentem, perscrutem e roteiro de influências a que é com-
do escritor”, incluindo materiais seus numerosos catálogos, pouca será por isso que protegem? Adivinha-se um pode- pletamente alheia mas de pistas de
do espólio. informação sobre o trabalho nas roso mitograma que se repete com reflexão que, espero, convoquem
• Ensaio sobre a Cegueira. primeiras décadas de carreira. tantos escritores saborosas variantes de tela para artistas, historiadores e críticos
Adaptação dramatúrgica; Ela própria afirmou que foi lenta brilhantemente tela, de desenho para desenho, que não se conformem com o que
coprodução do Teatro Nacional e tardiamente que se despojou de numa produção extraordinária em julgamos saber.
São João e do Teatre Nacional todas as aprendizagens e de todas escreveram sobre o quantidade e qualidade. Basta olhar para estas misterio-
de Catalunya, a 10 de Junho de as solicitações do meio para se seu trabalho. Ou seja, As mulheres que propõem essa sas e tão fraternais pinturas para
2022. descobrir pintora. existência mítica são quase todas reafirmar uma das certezas de
• Ópera: Blimunda, de Azio Aliás, como me recordou a sua há, nesta obra, uma de carnalidade abundante mas Armanda Passos: a arte convoca
Corghi e José Saramago. Pela filha, também artista, Fabíola pulsão modernista de sem ponta de erotismo, embora sem resolução as reminiscências
companhia do Teatro Nacional Valença, Armanda dava mais não lhes falte beleza, adornos e a mais antigas e suporta a vida
de São Carlos, em outubro de importância à poesia do que à
inventar as fontes de diversidade pasmosa de trajes e através da energia dos nossos mais
2022. pintura e será por isso que tantos inspiração atitudes. Umas vezes apresentam- queridos mortos.J
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DIVINA
www.imprensanacional.pt
www.incm.pt

COMEDIA
Escrita nas duas décadas iniciais do século XIV, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, numa nova tradução assinada por Jorge Vaz de Carvalho,
é uma criação intemporal do génio humano e uma maravilhosa aventura a que raramente, ou talvez nunca, a poesia soube ascender. Dedicada
aos grandes autores clássicos e modernos da literatura italiana, a Coleção Itálica é uma edição da Imprensa Nacional.
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LETRAS 3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

Paulina Chiziane, Prémio Camões


O canto das pessoas comuns
Tem sido pioneira em tudo, desde ser a primeira mulher moçambicana a publicar um romance até ser a primeira africana
galardoada com o Prémio Camões. Reunido no passado dia 20 de outubro, o júri decidiu distinguir uma voz singular que
nas suas narrativas capta a vida das mulheres e dos homens do seu país, por vezes da sua cidade, frequentemente da sua
rua. Um prémio para uma caçadora de histórias, sempre empenhada politicamente. A autora de Niketche sucede assim
a Mia Couto e a José Craveirinha, outros dois autores moçambicanos já distinguidos com o maior galardão da língua
portuguesa, no valor de 100 mil euros, e a Germano Almeida, Chico Buarque e Vítor Aguiar e Silva, os três anteriores
vencedores. O JL entrevista a escritora, ainda tonta com a mudança que a sua vida levou, e publica a leitura dos seus
romances de Agripina Carriço Vieira

T
LUÍS RICARDO DUARTE
[risos]. Foi muito bonito. Não
esperava, nunca fez parte dos meus
planos. Mas aconteceu e foi o que
se viu [risos].

Como têm sido estes dias?


Uma roda-viva. São os amigos,
os vizinhos, as instituições, o
governo, a imprensa… [suspiro].
Mas agora já está um pouco mais
calmo.

E que imagem lhe surgiu quando


soube da notícia?
Tinha ao lume uma m’boa, folhas Na verdade, nenhuma. Tive uma
de abóbora que depois de cozi- espécie de apagão. Como se a luz
das na panela, com leite de coco, tivesse acesa e alguém a tivesse
haveriam de dar um bom caril, a apagado. “E agora o que é que
refeição certa para partilhar com eu faço?”, pensei. “O que é isto?
a sua neta. Mas, entretanto, o tele- Que mundo é este?” Depois des-
fone tocou, a notícia foi conhecida pertei para a realidade e disse:
e o lume deixou de ser brando. A “Isto é sério demais”. Fiquei
alegria invadiu a casa, a panela assustada.
foi esquecida e o sorriso foi ainda
maior. Paulina Chiziane deixou Porquê?
queimar o jantar do passado dia Eu não sou uma pessoa séria, no
LUCÍLIA MONTEIRO

20 de outubro, mas ganhou o sentido formal, de dizer coisas


Prémio Camões 2021. Era essa a bonitas, diplomáticas. Sou uma
boa nova que o telefone lhe trazia. pessoa muito liberal e gosto de
Destacava assim o júri, composto caminhar descalça vestindo e
pelos brasileiros Jorge Alves de comendo o que quero. Mas, de
Lima e Raul Gouveia Fernandes, Paulina Chiziane Com este prémio, a minha vida mudou de um dia para o outro repente, a minha vida pare-
os portugueses Carlos Mendes ce que está a mudar, tenho de
de Sousa e Ana Maria Martinho, aprender a falar correto com
o guineense Tony Tcheka e a algumas pessoas, e isso cria
moçambicana Teresa Manjate, frenesi, recolhendo-se no seu temente, publicou O Canto dos alguma confusão.
“a sua vasta produção e receção mundo. Escravos, uma reflexão sobre o
crítica, bem como o reconheci- Nascida em Manjacaze, em seu país no qual também se revela As histórias daquelas Por exemplo?
mento académico e institucional 1955, Paulina Chiziane vive hoje o seu constante empenhamento Uma coisa que eu gosto muito é ir
da sua obra”, não esquecendo “a em Maotas, sempre nos arredo- político e cívico. mulheres, simples ao mercado, passear, conversar
importância que dedica nos seus res de Maputo. Depois de vários Depois de várias tentativas, o e comuns, embora com as pessoas. E foi uma festa.
livros aos problemas da mu- contos publicados em jornais nosso telefonema recebe finalmen- Voltei para casa com os cestos
lher moçambicana e africana.” e revistas e da militância na te a sua voz, para uma conversa inventadas, têm eco cheios de prendas, uma coisa que
Igualmente preponderante foi o FRELIMO, torna-se, em 1990, a cheia de emoção, memórias e nos corações humanos não contava. Pensei: “Deus, o que
seu “trabalho recente de aproxi- primeira mulher moçambicana a histórias da sua rua. se passa?” Tudo o que é couve, to-
mação aos jovens, nomeadamente publicar um romance, Balada de de todo o mundo. Isso mate, cebola ofereceram-me. Mas
na construção de pontes entre a Amor ao Vento. Mas nunca quis ser Jornal de Letras: Como recebeu é uma prova de que a alegria do meu povo foi qualquer
literatura e outras artes.” pioneira, garante, apenas trilhar este Prémio? coisa que me iluminou profunda-
Desde então, o telefone não o seu caminho. Foi o que fez Paulina Chiziane: Fiquei tonta… qualquer pessoa, no mente.
tem parado de tocar. Dos amigos depois em Ventos do Apocalipse, O Completamente tonta... E ago- planeta terra, está
aos representantes de vários go- Sétimo Juramente, Niketche, o seu ra estou furiosa com as pessoas Um prémio partilhado...
vernos, todos querem felicitá-la. romance mais lido, ou O Alegre que sabiam e que, estando perto
no centro do mundo. Absolutamente. E até por pessoas
Por vezes, tenta isolar-se desse Canto da Perdiz. Mais recen- de mim, não me disseram nada Somos todos humanos que nunca leram nada, que só ou-
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 9 PAULINA CHIZIANE

vem, só vêem e dizem: “É ela.” Foi ver e a comentar, mas fui a única
muito bonito. Foi, não. É [risos]. a escrevê-la. A história caçou-me,
mas eu também cacei a história.
Confessou muitas vezes que os seus
livros retratam histórias que viu Estreou-se, na década de 80, com
acontecer na sua rua, junto dos a publicação de contos. Como
seus. Essa celebração no mercado recorda esse impulso literário?
foi talvez a mais justa... O impulso, na verdade, é da in-
É verdade. As minhas histórias são fância. Estava na escola primária,
as histórias comuns. O mais belo na quarta classe. A professora que
é que essas histórias de gente co- tínhamos, uma freira católica,
mum fazem eco no mundo inteiro. mandou-nos fazer uma redação
Afinal, a Humanidade é a mesma, sobre a Páscoa. Rabisquei o que
não importa o lugar geográfico ou pude e entreguei-lhe para corrigir.
a condição social. Quando se trata Passado um tempo, chamou-me e
das condições existenciais, somos disse: “A sua redação está comple-
todos iguais. Isso também é uma tamente mal escrita em português,
grande prenda, um grande prémio. contudo as palavras que selecionou
têm alma.” Eu era uma criança de
Ao longo da sua vida foi pioneira 10 anos e fiquei a olhar para ela.
em muitas áreas, incluindo as Mais tarde, na missa da Páscoa a
literárias: primeira moçambicana que éramos obrigados a assistir, a
a publicar um romance, agora minha redação foi lida na igreja,
primeira moçambicana (e africana) depois de corrigida [risos]. Isso me
a ganhar o Prémio Camões... encantou e intrigou. Fiquei com a
Eu nem me apercebi dessa dimen- dúvida: o que significa as palavras
são. E ela teria tido importância terem alma? Foi a partir desse
se eu tivesse feito um plano, assim momento que comecei a prestar
como os desportistas têm de atenção ao texto escrito. Embora
programar o trabalho para cortar não tivesse percebido totalmente
a meta. Eu só fui, só andei, só a mensagem da professora, ela
caminhei… Depois descubro que A grande dança “Uma boa metáfora para justificar que a vida é o “este momento” semeou em mim a curiosidade,
fui pioneira e penso: que coisa qualquer coisa que me despertou. É
bela. Mas nada foi planificado e é como pensar numa vela. De repen-
isso que me espanta e me agrada. te, aparece um pavio que a acende
Também é isso que eu agradeço a Mas não reconhece que os seus para conseguirmos chegar a algum e ela ilumina-se.
todas as pessoas que confiaram no livros contribuíram para pôr lugar no mundo da escrita. E nada
meu trabalho. muitas das lutas feministas na disto diminuiu o meu gosto pela Ficou presa aos livros?
ordem do dia, como um efeito oralidade. Sim. E pouco depois, talvez com 12
O júri destacou o papel que secundário das histórias que Considero-me uma anos, descobri, também na escola,
tem dado às mulheres nos seus conta? continuadora de Há uma responsabilidade acrescida a poesia da Florbela Espanca.
romances e como retrata as suas Reconheço, sim. As pessoas fica- para aqueles que, nesse contexto, Num verso, de cujo poema já não
lutas. Esse olhar também foi fruto vam espantadas. É claro que há grandes escritores se dedicam à escrita? me recordo, ela falava do coração
desse caminhar? aqueles livros em que as mulhe- moçambicanos, como É uma aventura, como dizia, por- das pedras a bater. Então, entre
Bem… Quando era muito joven- res lamentam e falam dos seus que nem sempre é compreendida. a alma das palavras e o coração
zinha, talvez nos 12 e 13 anos, eu desencantos, mas há outros em o José Craveirinha, Nasci no campo, depois vim cres- das pedras, a minha curiosidade
ia de vez em quando ao cinema que elas falam com muita auto- Noémia de Sousa ou cer para um subúrbio da cidade, aumentou ainda mais. Li a Florbela
que havia lá no subúrbio onde a ridade e ousadia sobre o seu ser e hoje vivo noutro subúrbio da cida- com outro olhar, a fundo, muita
gente morava. Se fosse um filme de as trapaças que os homens fazem.
Albino Magaia, que nos de, e existe um mundo chamado literatura brasileira, que na minha
Kung Fu, de guerra ou cowboys, os Houve, através dos meus livros, trouxeram essa voz que “moderno" ou “globalizado” que infância era bem divulgada entre
rapazes ficavam na porta e diziam: uma curiosidade em conhecer o às vezes olha para esse ser humano nós, as aventuras dos cowboys
“Aqui as meninas não entram.” E feminino, gerando vários e vários
nos despertou para a que vive no campo ou no subúr- americanos, da coleção 6 balas,
se por acaso conseguíssemos furar debates, que ainda continuam. Liberdade bio como um ser menor. É um que se dizia ser para rapazes, e
essa barreira sofríamos represálias Fica claro que a mulher é esse ser preconceito que a sociedade tem. todas as histórias de amor que
por estarmos a ver um filme que tão completo como o homem, com Sair desse estereótipo para estar acabavam com um beijo da colec-
os rapazes do bairro achavam que direito à sexualidade, ao emprego, num lugar onde todos podem ouvir ção Pimpinela. Todos essas obras
era só para rapazes. Para mim ficou a um sem número de coisas que a história da mulher pobre e negra e muitas mais me despertaram. E
muito claro que há uma divisão do por vezes a sociedade lhe veda ou é qualquer coisa de fantástico. O tenho de confessar: nas livrarias…
mundo entre homens e mulheres. exclui. Fiz as coisas brincando e meu livro que é mais lido, Niketche, roubei muitos livros… [risos].
Um estádio de futebol, por exem- deu no que deu. escrever é nova no nosso país. é uma prova disso. Fala-se do pri-
plo, é um altar masculino. O povo moçambicano de norte meiro, segundo e terceiro mundos, É bem conhecido o seu empenha-
O seu romance mais famoso, a sul ainda é virgem em termos fala-se, no fundo, do centro do mento político na construção do
Essa realidade não está a mudar? Niketche, vai buscar o título a uma de escrita. Nós, os poucos que mundo. As histórias daquelas mu- seu país. A literatura também foi
Felizmente, sim. As mulheres vão dança. Escrever tem sido esse baile escrevemos, somos os primeiros lheres, simples e comuns, embora convocada para essa luta?
conquistando direitos, mas ainda com as palavras, o seu povo, a sua aventureiros. Por isso, digo sem- inventadas, têm eco nos corações Absolutamente. Considero-me
há muitos desses altares. O que eu cultura? pre: a Literatura moçambicana humanos de todo o mundo. Isso é uma continuadora de grandes
quero dizer com isto? Sempre vivi Sem dúvida, porque a vida, com eu ainda está para nascer. É bom não uma prova de que qualquer pessoa, escritores moçambicanos, como o
com as mulheres da minha família, digo mesmo no livro, é uma grande ter ilusões e pensar que a nossa no planeta terra, está no centro do José Craveirinha, Noémia de Sousa
a minha avó e a minha a mãe. O dança. Então, se o tambor toca literatura é grandiosa. Será um mundo. Somos todos humanos. ou Albino Magaia, que nos trou-
meu pai era imigrante, trabalhava tens de dançar. A grande dança é dia, mas agora nós estamos na xeram essa voz que nos despertou
na África do Sul. O meu mundo foi uma boa metáfora para justificar pré-infância, isto é, a aprender a Referi-me ao escritor enquanto para a Liberdade.
o das mulheres, um mundo onde que a vida é o “este momento”, importância de escrever os nossos caçador lembrando a sua
muitos lugares estavam barrados. que por vezes é alto, outras vezes mitos e os nossos ritmos. Por que intervenção nas Correntes E agora, o que pensa fazer, depois
Então, se vou escrever alguma é baixo. Temos de ser capazes de razão só acontece agora? d’Escritas, em 2009. Dizia que as deste prémio?
coisa, eu vou escrever o mundo que viver o momento e de celebrar a balas lançadas pelo seu olhar iam Sinceramente, ainda estou confusa.
conheço. Às vezes, os leitores pen- existência, porque afinal a vida Que resposta dá a essa pergunta? cair na página onde o texto nascia. Ainda preciso de dormir para so-
sam que quando se escreve sobre a também acaba. Porque o direito e o acesso gene- Ainda vê os livros assim? nhar e acordar. A verdade é uma: a
vida das mulheres é uma questão ralizado à educação não nos foi Vejo, sim. A história do Niketche, minha vida mudou de um dia para
de feminismo ou de militância. Chegou a defender que um escritor atribuído. Foi conquistado depois por exemplo, é uma história que o outro. Talvez nos próximos dias
Não, estou apenas a escrever o é um bom caçador. Tem de estar de muitas lutas. Ainda são muito aconteceu, todo o mundo a viu. seja capaz de dizer alguma com al-
mundo em que nasci e cresci. Mas sempre atento? poucas as pessoas no meu país Houve um dia em que três mulhe- guma coerência, porque tudo o que
sem dúvida que, com isso, falo dos Eu nunca estive atenta a nada, que escrevem, poucas também as res se espancaram por causa de um digo agora sobre o prémio é sob o
nossos sonhos. pode crer [risos]. A tradição de que leem. É uma luta permanente homem. Foram muitas pessoas a efeito de uma grande emoção. J
10 LETRAS

PAULINA CHIZIANE
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

A contadora de histórias
estatuto sociocultural da mulher
moçambicana”.
Ancorando-se na realidade de
um país, os textos de PC retratam
um país em constante mutação,
cuja mundividência está marcada
pelo complexo e traumático pro-
cesso de colonização e de descolo-
nização. Os textos encenam os di-
lemas da existência daqueles que
vivem in-between, retomando o
NAS MARGENS DO TEXTO conceito apresentado por Bhabha
(2007), ou seja, aqueles que vivem
Agripina Carriço Vieira divididos entre as tradições que os
ligam ao passado e uma particular
modernidade herdada do sistema
colonial, dando origem a uma so-
Ao ser-lhe atribuído, nes- ideários que defende, acrescido da ciedade eminentemente compó-
ta sua 33.ª edição, o Prémio questão do género. sita e miscigenada, culturalmente
Camões, Paulina Chiziane (PC), Centrando-se na vida de híbrida.
uma voz maior da literatura de mulheres, Chiziane propõe Da galeria de personagens
Moçambique, que vê justamente aos seus leitores a discussão de complexas e intrigantes que desfi-
reconhecida a carreira inicia- questões ousadas e inquietan- lam nas narrativas, David, o pro-
da em 1984 com a publicação de tes que percorrem a sociedade, tagonista de O Sétimo Juramento,
contos em jornais e revistas do seu numa revisitação de temas como apresenta-se como exemplo para-
país. Mas é com Balada de Amor ao a poligamia, as tradições an- digmático dos que vivem de modo
Vento (1990), o seu primeiro ro- cestrais, o racismo, a feitiçaria. mais completo e intenso uma
mance, que se dá a conhecer a um As narrativas, alicerçando-se dilaceração identitária resultante
público internacional. Seguiram- na releitura do papel central da do cotejo conflituoso das heranças
se, publicados todos pela portu- mulher na sociedade moçambi- ancestrais e das práticas euro-
guesa Editorial Caminho, Ventos cana, trazem vozes tantas vezes peias, representadas metonimi-
do Apocalipse (1993), O Sétimo silenciadas. Sobre esta questão camente pelas memórias de dois
Juramento (2000), Niketche. Uma António Manuel Ferreira, num modos diversos de contar: “David
História de Poligamia (2002) e O artigo paradigmaticamente pensa na moral. Nos contos ao luar
Alegre Canto da Perdiz (2008); e, intitulado “Adão e Eva na obra ou à volta da fogueira, contados
com a chancela de editoras mo- de Paulina Chiziane” (2012) pelo avô, falecido nos tempos que
çambicanas, um livro de contos considera que, “desde Balada já lá vão. Recorda os fundamentos
intitulado As Andorinhas (2009) de Amor ao Vento até a O Alegre da doutrina cristã. As lições da
e um conjunto de obras de difícil Canto da Perdiz, toda a narrativa cartilha maternal de João de Deus.
classificação, Por quem vibram os de Chiziane vem trabalhando, As fábulas de La Fontaine”.
tambores do além? (2013); Na Mão de forma obsidiante, um núcleo O outrora jovem revolucionário
de Deus (2013); Ngoma Yethu – O coeso de questões que têm sem- é agora quadro superior de uma
curandeiro e o Novo Testamento pre, como motivo dinamizador, o empresa, traindo pelo caminho
(2015), escritas a várias mãos, os ideais que o levaram à luta pela
que relatam experiências so- independência. A ânsia de poder
brenaturais protagonizadas por leva-o a procurar ajuda de um
curandeiros e espíritas. Para além feiticeiro diante de quem fará o
das edições em língua portugue- seu sétimo juramento, tornando-
sa (com uma forte presença no -se desse modo outro, porque nele
Brasil), a sua produção romanesca coabitam duas realidades.
encontra-se traduzida em francês, Com relevância diegética
italiano, alemão, sérvio, espanhol Uma obra percorrida por diversa, o tema da espirituali-
e inglês. dade tradicional moçambicana
Da autora, é comum apontar- uma mesma temática, percorre as obras da autora, nas
-se o facto de ter sido a primeira a da representação suas várias concretizações, a
romancista moçambicana, desig- romanesca, a ensaística e a que
nação que contesta, explicando: Paulina Chiziane “O tema da espiritualidade tradicional nas suas várias da identidade poderíamos identificar como
“Dizem que sou romancista e que concretizações, a romanesca, a ensaística e a testemunhal” moçambicana, testemunhal, aqui englobando as
fui a primeira mulher moçam- últimas, escritas em coautoria,
bicana a escrever um romance
onde encontramos nas quais essa problemática é
(Balada de Amor ao Vento), mas eu outras histórias, central. As personagens oscilam
afirmo: sou contadora de estórias que afirmam o diálogo entre a desvenda-nos uma obra percor- entre a ocidentalização de práticas
e não romancista. Escrevo livros historiografia e a literatura e o rida por uma mesma temática, a
observadas e contadas e de costumes e o reatar com as
com muitas estórias, estórias contributo fundamental do texto da representação da identidade a partir de um ponto tradições ancestrais consubstan-
grandes e pequenas. Inspiro-me literário enquanto meio privile- moçambicana, uma obra onde ciado no recurso a curandeiros
nos contos à volta da fogueira, giado de construção da identidade encontramos as outras histórias
de vista triplamente e feiticeiros para a resolução de
minha primeira escola de arte”. dos povos, questão particular- de que fala Mia Couto, com a par- diferenciado: o de uma conflitos ou de mediação para o
Pode-se agora acrescentar a esse mente premente em contexto ticularidade de serem observadas mulher, africana e negra mundo dos espíritos.
feito este não menos notável de pós-colonial. e contadas a partir de um ponto de Em Niketche, as personagens
ser a primeira mulher africana a Num texto de 2016, Mia Couto vista triplamente diferenciado, o femininas recorrem às práticas
receber o maior galardão da lite- (Prémio Camões em 2013) es- de uma mulher africana negra. Exímia contadora de sobrenaturais de curandeiros
ratura em língua portuguesa. crevia: “A literatura pode ajudar Com efeito, no conjunto de e feiticeiras para contrariar a
É, hoje, consensual afirmar que este processo de construção de autores que elegem como tema histórias, pela sua mão e poligamia. Disso nos dá conta
a literatura ocupa um lugar sin- uma nação moderna no tempo de central da sua escrita a demanda voz somos levados numa Rami que, quando confrontada
gular na construção da identidade hoje. A literatura pode dar acesso da representação identitária da com esse drama, é instigada a
das nações, trazendo para a ficção a esta pluralidade de identidades nação, a obra de PC ocupa um viagem entre culturas e recorrer a feitiços, “a correntes
a representação de um tempo dizendo: olha, elas podem falar lugar singular, trazendo para os tradições que inquieta espirituais, com batuques, velas e
experienciado, na qual se inscre- umas com as outras contando entrechos uma visão feminina e rezas”, enquanto a vizinha insiste
ve a identidade cultural de uma histórias e dando espaço a que confessional dos acontecimentos, e desassossega, porque em levá-la ao seu curandeiro.
nação. São vários os estudos (com essa grande história possa contar vistos e narrados a partir de um nos desafia a caminhar Em Balada de Amor ao Vento, a
destaque para as teorias de Paul essas versões”. Uma viagem pelos lugar marcado por modalizações alma do defunto é encomendada
Ricoeur, Hayden White, Walter romances de PC (centrar-nos-e- inerentes à nacionalidade, aos
ao encontro do Outro e à vez por um padre católico e um
Benjamin ou Walter Mignolo) mos nos editados em Portugal) posicionamentos políticos, aos nele nos reencontramos feiticeiro angolano, e em Ventos
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 11 LIVROS

António Franco Alexandre


do Apocalipse os feitiços que se
abatem sobre os habitantes são
atribuídos ao chefe da aldeia.
A coabitação, por vezes di-
lacerantes, entre ensinamentos
europeus e tradições africanas
está ainda presente na discussão
de uma temática indelevelmente
associada à literatura pós-colonial
Metamorfose, mutação,
e que PC aborda sem assombros
nem rodeios nos seus textos.
Referimo-nos às diferentes mani-
festações do racismo, não apenas
ardência
as circunscritas ao período colo-
nial e às relações entre coloniza-
dor e colonizado, mas sobretudo
às que perduraram na nação PALAVRA DE POESIA
independente, constituindo-se António Carlos Cortez
como reprodução das vividas em
contexto de domínio colonial.
O tema inscreve-se em toda a
sua obra, trazendo para as efabu-
lações a denúncia dessa forma de Foi longa a ausência e funda a espe- referência ou ocultação) de dados processos de montagem-desmonta- SE O VERSILIBRISMO DE AFA é
descriminação. Pela voz do nar- ra. António Franco Alexandre (AFA) do mundo da vida e do mundo da gem que caracterizam o textualismo longo nos anos 1975, 76, 77, se há
rador de Balada de Amor ao Vento regressa com um inédito, Carrossel, cultura [...] A par de uma densidade de Poesia 61, nem sequer fazendo a linguagem ou a palavra como
surge a crítica aos que assumem, e com a reunião da sua obra poética. referencial ritmicamente integra- eco das herbertianas vertigens de obsessivas fontes de inquirições
reproduzindo-as, as atitudes Numa entrevista confessou que, du- da por uma montagem dos vários uma linguagem alquímica, nem epistémico-ontológicas (“a série das
de domínio e opressão outrora rante anos, quis estar longe de tudo materiais” linguísticos, corpori- tão-pouco da musicalidade em palavras (seja qual for a intensi-
sofridas: “Os pretos gritavam para quanto fosse mundo cultural, livros, zando, tematicamente, a paixão, o expansão de sibilantes e assonâncias dade/ dos seus nomes, como as
outros pretos como se pretos não poesia. Relê-lo agora significa tam- sofrimento e a mágoa como eixos de que determinam muita da poesia razões que nos vestem/ de grandes
fossem. O escravo liberto torna-se bém regressar a uma geração – a de sentido. de Ruy Belo. O caminho de Franco corolas) não esgota nunca os seus
tirano”. 70. Poemas, assim se intitula este be- Alucinada linguagem, verbali- Alexandre é outro e tem que ver com objetos”), ou mesmo investiga-
Nesta sociedade fortemente líssimo livro (é um objeto principal, zação, na primeira pessoa, de um esse “ritmo onírico e flutuante” que ções poetológicas (o fascínio por
hierarquizada, são muitos aqueles capa azul, letras em relevo, douradas, mundo pressentido ou vivido como conduz, como bem viu Magalhães, Wittgenstein é claro), julgo que há,
que vivem espartilhados entre que flamejam), pode ser a porta que ruína, é possível que as técnicas de a um discurso onde visionarismo e à medida que avançamos nos livros
dois mundos e que procuram se abre não só para relermos AFA, justaposição, de corte e de monta- construção de enredos se aliam. de AFA a consciência de que é na
ascender na escala social pelo viés mas outros dessa década de sortilé- gem, bem como a acentuada dimen- Se podemos dar conta de textualidade ritmicamente mutável
da raça. Essa aspiração é verba- gios. Para nesse tempo entrarmos é são fílmica que lemos nesta poesia Pound, de Herman Melville, de que tudo acontece. Esse tudo é, por
lizada, no seguinte excerto, pelos ainda a Joaquim Manuel Magalhães em constante morfose e metamor- Gide, enfim, de ecos da poesia um lado, da ordem do estiramento
dois filhos de Delfina, uma das que convém regressar. De regressos – fose, possam ter hoje outra receção. culta em diversos momentos da dos sentidos – a busca incessante
protagonistas de O Alegre Canto e vários – se trata aqui. por um novo dizer: “em silêncio me
da Perdiz: “- Mãe, por que me fez Em Os Dois Crepúsculos – Sobre muro e me demoro/ no cálculo de
preto? ‒ pergunta o Zezinho ‒, eu poesia portuguesa atual e outras rotas inexatas// um duro arbítrio
também quero ter uma pele clara crónicas (A Regra do Jogo, 1981), quer que me desprenda/ dos cinco
como a Jacinta ou meu pai branco. delineavam-se as grandes linhas ou mais sentidos/ vou ser livre na
/ ‒Ah, Zezinho, se eu pudesse adi- de força do autor de Sem Palavras terra desnudada/ vou dizer o que sei
vinhar o futuro, não teria casado Nem Coisas. Era Magalhães quem o como quem mente” (p.155), ao mes-
com o vosso pai, esse preto, esse dizia: partindo de uma convocação a mo tempo que é recusa de realismos
pobre! / ‒Pai, por que me fez com Charles Olson, presente nesse volu- imediatos. Franco Alexandre esteve
uma preta? ‒ pergunta Jacinta. ‒ me de 1974, referindo poetas como sempre longe desse “ouvidinho
Eu queria também ter uma mãe Robert Creeley e Robert Duncan, musical” que Magalhães desdenhou,
branca, para ser igual à sua outra chamando a atenção, nesses poetas, mas não esteve longe desse projeto
esposa”. para a singular prosódia e para as po- comum a certa poesia dos anos 60
Enquanto Zezinho, filho de tencialidades do verso livre “domi- (Belo, o 2º Carlos de Oliveira, a partir
mãe e pai negros, lamenta não nado por ritmos internos precisos, na de Cantata,) que igualmente passava
ser mestiço, a irmã, filha de mãe linha das alterações introduzidas por pela experiência da gramática. Em
negra e pai branco lastima-se William Carlos Williams ao dessora- A Pequena Face (1983), figurando a
por ser mestiça. Se por um lado a mento do versi-librismo” (referiam- voz mesmo em heterodoxos sonetos
existência do mestiço surge como -se também Carl Sandburg e Vachel (“caminha pelo sangue na pele”, por
símbolo da possibilidade, em de- Lindsay), o que o crítico sublinhava exemplo), escreverá: “a experiência
vir, de união entre dois mundos, era, em AFA, não exatamente a even- da gramática/ trouxe consigo silen-
podendo-se constituir como pon- tual influência desse quadro textual António Franco Alexandre ciosos prazeres, estreitos/ de mar
te cultural e afetiva, essa dimen- sobre o poeta, mas o modo como junto ao sensível estuário, // o mais
são é praticamente inexistente nas ele propunha, absorvendo outras exacto modo/ de servir nuvens, len-
obras de PC, surgindo antes como tradições literárias (a anglo-america- ços escarlates,/ o sonho de muitos
a representação de sentimentos de na, desde logo) e textualidades, uma É que se se vislumbra o impacto da obra alexandrina, se podemos dias absortos [...]// de caminhos
não-pertença e exclusão social. modificação de processos de escrita. sumptuosidade imaginística dum até reconhecer certa “ferocidade no som, aonde/ não chegámos às
A propósito da descrição de Herberto Helder no primeiro Franco verbal” nos seus versos e mes- primeiras horas” (p.188).
uma velha contadora de histórias, FALAVA-SE DE NOMADISMO, isto Alexandre, e sendo verdade que nos mo certa “hostilidade do real”, Experiência gramatical, silencio-
o narrador de O Alegre Canto da é, de uma escrita em que o inespe- primeiros poemas (de 1969 a 74) é uma hostilidade vinda da dúvida, so prazer – da escrita – demanda dos
Perdiz sentencia: “Contar uma rado sintático-semântico obrigava a ainda o encavalgamento, o jogo grá- esse método maior para leituras caminhos do som, AFA é igualmente
história significa levar as mentes vermos e a ouvirmos esse “requiem fico, uma certa mobilidade textual o heterodoxas, igualmente podemos responsável por trabalhar, como
no voo da imaginação e trazê-las urbano”, o desalento dos corpos, que se pode ler – com comunicação situar outros momentos da sua só talvez Herberto, entre nós, o
de volta ao mundo da reflexão”. o “erotismo fatigado e infeliz”. direta a poetas de Poesia 61 (não há criação em lugares infrequenta- poema ao ponto de, sem ceder a
Este comentário aplica-se na Variações sobre temas sobrepostos aquela inovação da agramaticalida- dos do nosso novecentismo. Do ornamentos dispensáveis (há os
perfeição aos romances de Paulina ou de um tema único, domínio de de? A procura de certo associativis- “Tríptico Nómada” ou de “Veneza, indispensáveis), o “trabalho das
Chiziane, a exímia contadora de uma “técnica pedida emprestada mo que lembra a grande máquina Travessia” a “Relatório 1”, cuja vagas” linguísticas exigir constantes
histórias. Pela mão e voz da autora à sextina ou ao vilanelle, mas onde lexical duma Fiama ou certo des- centralidade na história do cami- metamorfoses gráficas. Essas muta-
somos levados numa viagem entre cada estrofe se visse explodida até lumbramento metafórico vindo de nho poético de AFA é inescapável, ções são, no fundo, modos de figurar
culturas e tradições que inquieta e um núcleo mais vasto de versos” Gastão Cruz?) -, AFA parece, desde até a um poema fundacional como as ondas verbais que rebentam na
desassossega, porque nos desafia a (Magalhães, 1981:249), na poética o início, fiel a uma ideia de poesia “Os Objectos Principais”, mor- página. Rebentação que obedece a
caminhar ao encontro do Outro e de AFA apontavam-se dois grandes que, justamente, pudesse dizer fose e metamorfose são conceitos íntimas energias sonoras, a ritmos
nele nos reencontramos. J modelos textuais: “a integração (por a realidade não através daqueles fundacionais. cada vez mais clássicos, reconhe-
12 LETRAS

LIVROS
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

Sérgio Almeida
cíveis e vindos da tradição lírica – o
decassílabo e de que “Duende” é a
prova mais bela: “Se nas palavras
vou um pouco sempre/ adiantado,

A carnavalização da literatura
como uma quimera/ daquelas bem
reais que têm bico/ e corpo de lagar-
to? E rosto humano?/ é que também
não vivo neste instante/ mas noutro,
inteiramente coincidente” (p. 493).

SEM ESQUECER A SEQUÊNCIA


LONGA de “Duplo”, secção de “Uma
Fábula” onde decassilabicamente o

OS DIAS DA PROSA
trabalho de imagens faz respirar em
cadência inatacável a memória dos
homens, dos corpos, das casas, dos
Miguel Real

A
tempos dentro do tempo. Isso para
além de na primeira sequência lermos
outra metamorfose, o arranjo rítmico
de rimance, em clave hexassilábi-
ca. É uma fala que, confessional e Arte do Nada. O Lastimoso todo da “Besugolândia”, uma sociedade existente entre o Nada e
efabulatoriamente, se despede de nós: Destino dos Besugos, romance de o Nenhures, em três momentos: o primeiro, caracterizando-lhe
“Assim como o tempo passa/ já posso Sérgio Almeida, autor de Análise os traços gerais como coletivo, o segundo, intitulada “Caderneta
ser o que sou/ breve chuvisco da tar- Epistemológica da Treta (contos) e dos besugos”, uma espécie de “caderneta de cromos” infantil,
de/ nublado pela manhã/ sol em neve Armai-vos uns aos outros (novelas), destacando as suas personagens principais, a começar por La
declinado/ seco mar fresca aridez”. parece-nos ser a aplicação perfeita Fava, o chefe dos chefes; o terceiro, um longo Dicionário prático
Para quem lê esta poesia há do conceito “carnavalização da do Besuguês, pelo qual aconselharíamos começar a leitura.
sempre o risco de experimentar um literatura” de Mikhail Bakhtin. Nas três partes detetamos figuras familiares da sociedade
estremecimento da imaginação. Esse Conceito que exprime a subversão de portuguesa ou uma espécie de paralelismo entre a vivência
estremecimento tem de vir de uma figuras do quotidiano da lógica do senso comum, transformando habitual do português e os seus correspondentes na
leitura em voz alta, de uma quase as suas imagens numa narrativa paródica, uma espécie de “Besugolândia”. Por exemplo, La Fava é caraterizado como
performatividade do escrito. Leia-se “carnaval literário”, uma autêntica sátira contínua, numa “o ‘mais grande’ Líder. O Dono Disto Tudo. O Estadista. Ou,
a poesia de Dos Jogos de Inverno (1993) comicidade permanente, cujo objetivo último consiste no diremos antes: o burlão, o caloteiro-mor. O arrivista sem
e ver-se-á que a hostilidade do real é apresentação de um texto que zomba das classes possidentes que escrúpulos” (p. 58). As qualidades de La Fava e das restantes
compensada pela beleza quase frágil comandam a sociedade (exemplo: o modo caricatural e grotesco personagens dirigentes da “Besugolândia” são denominadas
de um cântico transformado em como José Saramago apresenta a “besuguices”, e todas se nobilitam
“Cristal azul, chamado/ pela canção figura do rei D. João V em Memorial por passar a perna ao parceiro e
das asas” que não pode subtrair-se de do Convento). ganhar o indevido, tirando proveito
uma leitura atenta ao poder transfi- Porém, no que diz respeito ou lucro da mentira: “Desde o berço
gurador de inúmeros versos. menos à literatura e mais à cultura que os pais besugos procuravam
Em As Moradas 1 & 2 (1987), o portuguesa, a este conceito de transmitir os mais sólidos valores
poema torrencial de um grupo de Bakhtin acresce, em A Arte do Nada, imorais para que as suas chances de
textos anterior refreia o seu movi- , o tratamento dado ao cidadão da singrar na vida aumentassem em
mento vertiginoso para dar lugar a “Besugolândia” e a sua aproximação flecha” (p. 10),
um misticismo que não dispensa a ao “Zé Povinho”, caricatura criada As imagens que ilustram o
observação da virulência dos dias por Rafael Bordalo Pinheiro que romance, da autoria da editora,
(“leva-me ao campo aberto onde satiriza a imagem do povo português, são explícitas e claras sobre o
começa o escuro/ passado dos senti- “uma figura rude e grotesca , uma povo besugo. Por exemplo, ver pp.
dos, [...]// detesto estes empregos, as parábola viva do modo de ser 19 - 21, uma corrida dos besugos
mãos dos arquitetos/ o plano quin- português (…), alheio a qualquer “no seu estado natural, ou seja,
quenal de mais progresso”) (p.247). faina cogitativa” (João Medina, “O ébrios” (p. 19), néscios, quase sem
Aracne (2004), no seu labor oficinal Zé Povinho, Caricatura do «Homo testa (que aloja o córtex cerebral,
(no poema de abertura a representa- Lusitanus», in AA. VV. Estudos a inteligência), lábio inferior
ção do poeta como aranhiço, o poeta de Homenagem a Jorge Borges de destacado, olhar apatetado pelo
como fazedor da trama-teia-tecido Macedo, s/d., p. 447). vinho, saliência de grande barriga de
do poema) oferece-se como síntese É justamente como é parodiado grandes comezainas.
de toda a arte da poesia do autor o “besugo”, isto é, o habitante Como se constata, a
de Oásis. Paródica lembrança de da “Besugolândia”: “Expressão “Besugolândia” é um retrato
Gregor Samsa, de Kafka, ao mesmo apalermada, em que sobressaem caricaturizado de Portugal,
tempo que inscreve esta escrita os enormes e mortiços olhos ou sobretudo do antigo Portugal,
Sérgio Almeida
num veio raríssimo da nossa poesia os avantajados lábios inferiores representado tradicionalmente pelo
onde demiurgia e adivinhação são que, no conjunto, davam a ideia “Zé Povinho”. Um retrato literário
moradas sígnicas, António Franco de estarmos diante de assente no humor, não no humor fino
Alexandre erige em Poemas um dos alguém espantosamente e irónico de Eça de Queirós, mas no
mais fascinantes tratados sobre as alienado” (p. 5). escárnio, no sarcasmo, numa mordacidade cáustica, corrosiva,
figuras - “Deixa lá o terror, da me- Curiosamente, o autor atingindo por vezes o grotesco, que subverte totalmente a
lodia./ Sejamos mais subtis:/ dás-me classifica o povo Besugo visão institucional da sociedade. A “Besugolândia” é um todo,
a catacrese/ dou-te a parataxe”, como “um poVinho” e o romance tanto ridiculariza o povo, néscio e obtuso, como
escreve-se no inédito Carrossel – que porque o seu passatempo os dirigentes e as classes sociais superiores, evidenciando às
sempre são retiradas dum real pres- favorito consistia em avessas a profunda incultura que perpassa pela nossa sociedade,
tes a aluir; figuras que declaram: “Há emborcar litradas de perdão, pela “Besugolândia”.
um incêndio no papel, na alma”, na vinho, “líquido sagrado No entanto, como o português, o besugo aparenta viver feliz:
“folha do corpo” que fica a arder.J para o besuguês” (p. 177), tem “um teto (ainda que de contraplacado e cheio de buracos),
deixando-o continuamente todo o vinho que quisesse beber (…), uma mulher atraente (ao
embebedado, animado de fim de um garrafão já lhe parecia como tal, pelo menos) e uma
um torpor que a liquidez mão cheia de filhos (com quem o seu chicote mantinha uma
e a cristalização do boa relação)” (p. 47). E prossegue a narrativa: “O besugo apenas
› António olhar denunciavam, e de
› Sérgio Almeida
tinha dois estados de alma: ou estava bem ou estava mal. E
Franco “ter hábitos de higiene ambos os estados eram apenas um pretexto para afogar-se na
Alexandre semelhantes aos de um A ARTE DO NADA. O bebida” (p. 48), isto é, analogicamente para o português, afogar-
POEMAS homem das cavernas” LASTIMOSO DESTINO se em cerveja, em futebol, em telenovelas, em reality shows.
Assírio & Alvim, (p. 7). DOS BESUGOS, Ainda que nunca referindo Portugal, é um dos romances mais
616 pp., 33 euros A Arte do Nada espelha o Seda Publicações, 186 pp., 15 euros. críticos do estado atual da sociedade portuguesa.J
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13
14 LETRAS↗

ESTANTE
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As Bucólicas de Vergílio riqueza tão multifacetada de interpretações


que quase poderíamos dizer dele o que um me-
lómano dirá de Beethoven: não é porque ouviu
em disco a interpretação da Sinfonia Pastoral
gravada por Wilhelm Furtwangler que já não
O paradoxo é evidenciado pelo próprio tradutor. edição única no contexto editorial português. Até lhe interessará ouvir a de Arturo Toscanini”,
Sendo um dos textos mais intraduzíveis da língua à data estavam disponíveis nas livrarias as versões escreve no prefácio Frederico Lourenço. “ O
latina, as Bucólicas de Vergílio são também um de Agostinho da Silva, mais antiga, e a de Gabriel estudo de Vergílio – e o aprofundamento das
dos textos da antiguidade romana que mais Silva, publicada na Cotovia, em 2019. Esta nova questões interpretativas suscitadas pela genia-
versões conhece em diversas línguas do mundo. versão das Bucólicas, obra que marca o início da lidade inesgotável do seu texto – é um caminho
Será certamente o desafio que coloca a quem se maturidade de Vergílio, distingue-se, assim, pela apaixonante que, felizmente, nunca terá fim”.
lança em tal missão, bem como a possibilidade sua edição bilingue e pelos comentários detalha- Esta nova edição das Bucólicas de Vergílio é,
de um confronto com a beleza e musicalidade dos que orientam os leitores para a “experiência ainda, um novo contributo que o professor da
do latim num dos seus momentos mais altos. insubstituível da fruição” do texto latino. Universidade de Coimbra e ensaísta tem dado
Frederico Lourenço, que se aventurou nessa “Para lá, todavia, da tradução e dos seus pro- › Vergílio para a defesa das Humanidades e dos estudos
empreitada, chega a comparar estes versos de blemas, outra coisa me moveu na conceção deste BUCÓLICAS das línguas clássicas, que tem estudado e tra-
Vergílio à música de Mozart. E consciente de todas livro: a certeza de que Vergílio permite, enquan- Tradução de Frederico Lourenço, duzido, numa dedicação já distinguida com os
as dificuldades aqui sintetizadas, preparou uma to génio supremo da poesia greco-latina, uma Quetzal, 352 pp, 19,90 euros mais importantes prémios nacionais. J

FICÇÃO dos estudos america-


nos, numa nota final.
algumas das inúme-
ras questões que ao John Le Carré tro com John de Carré, falecido em
dezembro de 2020, que tem como
Cláudia Araújo “Os lugares existem, os
produtos, certos nomes
longo dos séculos têm
constituído as preocu-
O pai pediu, o filho
cumpriu. Se houves-
protagonista um livreiro em busca
de uma nova vida.
Teixeira famosos, as pessoas não:
todas as personagens são
pações centrais do ser
humano: a obediência
se algum romance
quase acabado na sua › John le Carré
“O nome era já um criação minha. Poderão política, a submissão secretaria, assumiria SILVERVIEW
presságio do que estava ou não reconhecer os religiosa, o direito à a missão de o fazer Tradução de Maria de Fátima Carmo,
para vir. Chamaram-lhe primeiros, tão alterados estarão felicidade e à revolta, a consciência chegar aos leitores. D. Quixote, 264 pp, 16,90 euros
Cristina Maria, o que, pelo prisma do tempo, da distância, da finitude da vida ou a reflexão De quem falamos?
olhando a onomástica do meu desconhecimento, mas se sobre o absurdo da sua existência”, De John Le Carré, autor de alguns
do Bairro, foi um golpe
de sorte, podia ter sido
lhes parecer que identificam este ou
aquele amigo, estão enganados: eles
como se lê na apresentação da
obra. Para Carlos Bueno Guedes,
dos policiais, thrillers e roman-
ces de espionagem mais famosos Avni Doshi
castigada com o nome não existem, nunca existiram.” Uma que assina o prefácio, “Afonso das últimas décadas, fruto da Pode a infelicida-
de Gisela, Eloísa ou Sandra. Ter dois saga familiar feita por memórias que Valente Batista vai explorando sua experiência no Serviço de de de uma mãe dar
nomes próprios era a ambição pos- persistem, pela conjugação de muitos todas as nuances da solidão física e Informações britânico. O que Nick prazer a uma filha?
sível de quem não tinha apelidos de “alguéns” e pelo que a imaginação espiritual, um mundo em que não Cornwell, também ele escritor, Pode. Ou, pelo me-
família que constassem do portal de sugere. conseguimos ser a conformidade encontro não foi um romance a nos, Antara pensava
genealogia.” Assim começa Uma Vida existencial, paridos na dor de ser a meio, ou com os últimos capítulos que sim. Mas o início
Assim-Assim, a estreia na literatura › Carla M. Soares brevidade do esquecimento, o iso- por concluir. Mas um romance da perda de memó-
de Cláudia Araújo Teixeira, depois de GENTE FEITA DE TERRA lamento persistente. Sua obra vai visto e revisto, bem burilado, ria da mãe fará com
um longo percurso no meio editorial. Cultura, 312 pp, 17,50 euros expondo e descarnando a necessi- excelente. Então por que razão foi que a sua mágoa seja posta de
E é a vida desta Cristina Maria que dade crua de nossa destemperança, retido? “Serverview faz uma coisa lado. Da infância guarda vários
o romance acompanha, ao mesmo a redenção humana é situada no que nenhum outro livro de John sofrimentos e eles vão aparecer
tempo que faz o retrato de uma época,
os anos 70 e 80. Tanto a protagonista, Afonso Valente plano de uma difícil essencialida-
de, um poder demiúrgico, em que
le Carré fez: mostra um serviço
[de informações] fragmentado,
ao longo desta narrativa, Açucar
queimado, que marcou a estreia
quanto o bairro que habita têm a sua
forte personalidade. Entre os dois, o
Batista se faz criador de novas realidades
pela consciência revelada nos
repleto das suas próprias facções
políticas, nem sempre amável
literário no romance de Avni
Doshi, nascida em Nova Jérsia,
leitor encontrará também uma luta A Galeria dos Notáveis Invisíveis charcos das palavras.” para quem devia acarinhar, nem nos EUA, a viver no Dubai e com
surda, a mulher a querer ser “rainha marca o regresso de Afonso Valente sempre muito eficaz e alerta, ascendência indiana. De uma
do universo”, o pedaço de cidade Batista ao conto, depois dos › Afonso Valente Batista e, em última instância, já não situação de fragilidade do pre-
a querer cativá-la dentro dos seus recentes romances O Fadário das A GALERIA DOS NOTÁVEIS seguro de poder justificar-se a si sente recordam-se episódios de
limites. Um romance que vai buscar Mulheres Insolentes e A Rebelião. INVISÍVEIS mesmo.” Eis argumentos mais do uma vida caótica, marcada pelos
aos ditados populares (um para cada São 35 contos que “abordam Parsifal, 176 pp, 15 euros que suficientes para este reencon- impulsos de Tara, que arrasta-
capítulo”) a sabedoria para descrever
uma personagem que procura a di-
ferença, num mundo já em busca da
repetição de modelos importados.
graças para as quais contribuem todos os › António Pinto Pires, Emergência do Museu
› Cláudia Araújo Teixeira
UMA VIDA ASSIM-ASSIM Registo perfumes da Arábia” (Guerra & Paz, 78 pp., 12
euros)
Nacional Ferroviário O autor, licenciado em
História e com mestrado em Museologia, foi o
ASA, 160 pp, 15 euros primeiro presidente da comissão executiva do
› Teolinda Gersão, O silêncio A 7ª edição do museu referido em título, no Entroncamento, e
› Carlos de Oliveira, Casa na Duna e Finisterra romance de estreia da escritora. Publicado em neste volume, muito ilustrado, dá conta de como

Carla M. Soares - paisagem e povoamento Na (re)edição da


obra do grande escritor, cujo centenário do
1981, foi aqui no JL que uma crítica de página
inteira (então de formato maior que o atual) de
nasceu e ‘cresceu’, dos seus objetivos e das
suas dificuldades, defendendo-o como “projeto
Gente Feita de Terra é o sexto ro- nascimento ocorreu em (ver nº do JL, de ) Eduardo Prado Coelho, lançou logo a escritora de âmbito nacional” – projeto que, aliás, terá
mance de Carla M. Soares, que se es- saem dois seus romances de referência: Casa que o tempo confirmaria ( Porto Editora, 96 pp, apresentado publicamente no último fim de
treou, em 2012, com Alma Rebelde, a na duna, o 2º, de 1943 (mas que o autor foi 11,10 euros) semana, naquela cidade. Prefácio de José Manuel
que se seguiram A Chama ao Vento, O reescrevendo, ao longo dos anos) e Finisterra, o Lopes Cordeiro (Edição do autor, 166 pp., 16 euros)
Cavaleiro Inglês, O Ano da Dançarina último, de 1978. A não perder, por quem nunca os › Mark Twain, O Solilóquio do Rei Leopoldo
e Limões na Madrugada. Esta nova tenha lido (Assírio & Alvim, respetivamente 120 Um clássico do famoso escritor norte-americano › Rui Verde, Há mais democracias… além
ficção tem como protagonistas duas pp., 13,30 euros, e 128 pp., 13 e 30 euros) (1835/1910) na coleção Livros Negros: na das eleições, a que ainda se acrescenta
mulheres, mãe e filha. As suas vidas chancela há também as coleções Livros & outros escritos. O autor é doutorado em
percorrem as últimas seis décadas da › Salomão, Cântico dos Cânticos Versão Amarelos, Brancos e Vermelhos, com a sua Direito e investigador, tem ensinado em várias
História de Portugal, desde o passado de Eugénia Vasconcelos. tradução do identidade gráfica e a marca do editor Manuel universidade, e entre os títulos dos sete capítulos
colonial aos desafios do século XXI. padre António Pereira de Figueiredo, nota S. Fonseca. Que neste livro também assina um da obra sinalizam bem o seu conteúdo, desde
“Parte da ação deste livro decorre introdutória do editor, Manuel S. Fonseca, e o esclarecedor prefácio sobre a “arrogância e “Sorteio: as eleições não são a democracia” e
na terra onde nasci, Moçâmedes”, texto de Agustina “Um tijolo quente na cama”: crueldade” daquele monarca belga como “senhor “Liberdade”, até “Educação, cultura e ciência:
explica a autora, professora do ensino “A beleza do amor iluminado pela inteligência absoluto” do ironicamente chamado “Estado caminhos desencontrados”, “Deus, indivíduo e
secundário e investigadora na área vinda do alto”, “... os seus mistérios e as suas Livre do Congo”. (Guerra & Paz, 102 pp. 12 euros) redes sociais” (RDP Edições, 132 pp., 14,80 euros)´.
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT LETRAS 15
ESTANTE

ram sempre a pequena Antara. referidos na inicial


O casamento infeliz, a passagem “nota sobre a
por uma comunidade espiritual, narrativa”, forma
a vida na rua a mendigar, os que parece eficaz:
amores intensos mas fugazes. através de (título do
Entre as contas com o passado volume) Diálogos
pinta-se o retrato da relação de improváveis. Como
uma mãe e de uma filha, dos se fosse uma “peça”,
limites do amor e da obsessão. os dialogantes sempre em cena
“A minha mãe está a perder a são (subtítulo) o Populista,
memória e eu nada posso contra a Democracia, o Radical e a
isso”, desabafa Antara. “Não há Opinião Pública. Os 12 temas
maneira de a obrigar a lembrar- tratados vão de “Mudanças e
-se das coisas que fez no passa- mitos, crises e divisões na esfera
do, não há maneira de a cobrir social” até à pandemia da Covid
de culpa.” 19. Mas, a abrir, “as personagens
apresentam-se dialogando” e a
› Avni Doshi fechar há “conclusões ou mais
AÇUCAR QUEIMADO dúvidas e opiniões”. De Manuel
Tradução de Tânia Ganho, Pedroso Marques, o autor deste
D. Quixote, 288 pp, 16,60 euros (e anteriores) livros de caráter
ensaístico, nosso colaborador,
oficial do Exército que combateu
Simone de a ditadura, sofreu longos anos
de exílio, regressou após o 25
Beauvoir de Abril, foi designadamente
presidente da RTP e da Lusa, e
Tradução portu- assessor militar de Mário Soares
guesa do romance como Presidente da República.
As Inseparáveis, que Índices de bibliografia, de
Simone de Beauvoir autores e assuntos, com notas
publicou em 1954. complementares, encerram
Nele, a escritora o volume com estes diálogos
francesa recorda, que “acontecem na diferença”,
pelos caminhos “identificam divergências e,
da ficção, a sua amizade com também, algumas semelhanças
Élisabeth Lacoin. Desde os nove inesperadas”, a ninguém
anos, quando se conheceram, até roubando “a condição humana”.
aos 21, quando Zaza, como era
conhecida, morreu precocemen- › Manuel Pedroso Marques
te, viveram uma intensa ami- DIÁLOGOS IMPROVÁVEIS
zade, partilhando a descoberta Âncora Editora, 230 pp., 16 euros
do mundo e confidências. É esse
percurso que o livro recupera,
numa fidelidade aos factos, mas POESIA
sobretudo à força da amizade
que as unia. A edição é comple-
tada com fotografias da época, Fernando Tordo
de Beauvoir e Lacoin, de cartas É, Fernando
que trocaram e de um posfácio Tordo, um dos
da filha adotiva da autora de O mais conhecidos
Segundo Sexo. “Pese embora o e talentosos e
olhar crítico que mereceu da intérpretes da
autora, esta novela que Simone música popular
de Beauvoir terminou e conser- portuguesa, coautor,
vou não deixa de ser de grande com Ary dos Santos,
valor”, garante Sylvie Le Bom de de alguns dos seus grandes
Beauvoir. “Face a um mistério, êxitos, a dar a lume um livro de
as interrogações tornam-se mais poemas com um longo título:
insistentes, multiplicam-se as Não me tapes o caminho em
abordagens, as perspetivas, os frente, mesmo que não vá dar ao
pontos de vista. E a morte de futuro.
Zaza permanece em parte um Um livro com muito das viagens
mistério.” pelo mundo que o autor fez, mas
também de viagens interiores.
› Simone de Beauvoir “Composições” em que o
AS INSEPARÁVEIS musical está muito presente,
Tradução de Sandra Silva, nas mais longas, e que talvez
Quetzal, 160 pp, 16,60 euros tenha a sua melhor expressão
nas mais curtas, como: “Último
– Queria ser professor, mas não
ENSAIO posso, porque já me esqueci de
quando era menino.”; “Chuva
Temas atuais – …, mas da falta de chuva só
surgiam dias belos,/ cada vez
em diálogo(s) mais belos;/ até que um belo dia
choveu.” Prefácio de José Jorge
Um livro em que se debatem Letria.
questões políticas e sociais
importantes da atualidade, › Fernando Tordo
mostrando diversas perspetivas NÃO ME TAPES
a seu respeito, de uma forma O CAMINHO (...)
com os antecedentes históricos Guerra & Paz, 104 pp., 12 euros
16 ↗
ARTES 3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

Leffest, Cinanima, Caminhos & C.ª


O outono de todos os festivais
Do Leffest, que conta com a presença do Nobel JM Coetzee, ao Cinanima, agora com a direção de Pedro Serrazina, passando
pela Festa do Cinema Italiano e os Caminhos do Cinema Português. Durante o mês de novembro os festivais de cinema
espalham-se por todo o país. O JL percorre as programações e destaca o que de melhor se pode ver

E
MANUEL HALPERN
destaques do festival e de conver-
gência do cinema com outras artes.
O programa integra um concerto
duplo de flamenco, com o trio de
Josémi Carmona a convidar Pepe
Habichuela e Farruquito, dia 12,
no Tivoli; o flamenco também de
Areno e Diego el Galvi, dia 19, no
CCOC, Taraf de Haidouks, um dos
grandes nomes da música cigana
romena, a 12, no Tivoli; o fadis-
ta Ricardo Ribeiro e a húngara
Mónika Lakatos, a 14, no CCOC.
O ciclo de cultura rom comple-
Estranho fenómeno de conden- ta-se ainda com uma exposição
sação, certamente provocado dos trabalhos da pintora e escritora
pelos meses de confinamento, em rom austríaca Ceija Stojkaom no
novembro ‘chovem’ festivais de MU.SA, em Sintra. E um ciclo de
cinema. Ainda estamos na ressaca debates, que percorre a cultura
do DocLisboa, que regressou em Rom ao longo da história, com os
força, com um programa intenso títulos 1) do Al-Andaluz à “Gran
e concentrado, e já se preparam as Redada” em 1749; 2) a perseguição
salas para meia dúzia de festivais e genocídio dos rom pelos nazis
que decorrem (quase) em simultâ- e durante a II Guerra Mundial; 3)
neo, de modo que seria necessário a situação atual da comunidade
um espectador desmultiplicar-se cigana em Portugal; 4) Flamenco:
para desfrutar de todos. O maior, Herança e perseguição; e, por fim,
com início marcado para dia 12 , 5) ser artista, mulher e rom.
é o LEFFEST, dirigido por Paulo Isto além de mais de 20 filmes
Branco, que agora decorre em sobre o tema, incluindo a proje-
Lisboa e Sintra, que já nos habituou ção d’O Garoto de Charlot, com a
a uma programação exigente, com Destaque do Leffest (Da esq.ª para dt.ª e de cima para baixo) Emir Kusturica e a No Smoking Orchestra (em concerto); Benedetta, presença de Michael, Carmen e
muitos convidados internacionais. de Paul Verhoeven; Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun, de Wes Anderson; e Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar Dolores Chaplin, que nesta altura
Este ano não será exceção, embora preparam um filme sobre as ori-
os nomes até agora confirmados gens do, respetivaments, pai e avô,
sejam em menor número do que Charlie Chaplin.
em edições anteriores. para o Entre Olhares, uma mostra Laurie Anderson, Paul Auster, Don
O mais antigo em Portugal é de cinema português, de 6 a 21 no Delillo. Como sempre, a confir- DE JANE CAMPION A ROMEO
o Cinanima, que com 45 anos de Barreiro. E, lá mais mais para o mação das estrelas que passam por CASTELUCCI
existência é o terceiro festival de final do mês, de 20 a 30, decorre Lisboa e Sintra é sempre tardia e Uma das homenageadas do festival
animação mais antigo do mun- ainda o Porto Post/Doc, festival de o festival caracteriza-se por essa é a neozelandesa Jane Campion.
do. O festival de Espinho procura crescente projeção. volatilidade, em que se esperam Com ou sem a sua presença, vão
reinventar-se e reposicionar-se confirmações e presenças de última passar dez filmes seus, incluindo o
sob a batuta do novo diretor artís- AS ESTRELAS DO LEFFEST hora. Assim como está, parece clássico O Piano e o mais recen-
tico, o realizador Pedro Serrazina. Será a terceira vez que J. M. Coetzee haver menos nomes sonantes do te The Power of the Dog que lhe
Decorre de 6 a 14. passará pelo Leffest. O escritor que é costume. Mas, a avaliar por o valeu o Leão de Prata para Melhor
Ao centro, todas as indicações já tinha integrado o júri em 2008 A cultura romani é que aconteceu em anos anteriores, Realização no Festival de Veneza.
vão dar aos Caminhos do Cinema e 2011. Assim como o austríaco celebrada no Leffest, haverá provavelmente nomes im- Por confirmar também está a
Português. De 6 a 20, o festival Peter Handke, presença recorrente portantes cuja presença será confir- presença de Cristi Puiu, um dos
de Coimbra, já com 33 anos de no festival, também passou pelo com um conjunto de mada pouco antes da abertura. maiores nomes do novo cine-
existência, que serve também de festival antes e depois de ganhar o concertos (incluindo J. M. Coetzee será um dos ma romeno, que acompanhará a
balanço e síntese da produção Nobel da Literatura. Mas a presença elementos do júri, com a respon- retrospetiva que inclui filmes como
cinematográfica nacional mais do autor sul-africano, atualmente a Emir Kustrurica sabilidade de escolher um entre A Morte do Sr. Lazarescu e o mais
recente. a viver em Espanha, é só mais um No Smoking Band), 12 obras a concurso. Seu colega recente Mamkrog.
Por todo o país, espalha-se, de exemplo da capacidade do Leffest será Emir Kusturica. O excêntrico Também em Lisboa estará o ja-
2 a 26, a Festa do Cinema Italiano, de atrair grandes figuras da cultura um colóquio, uma realizador e músico sérvio vem a ponês Ryûsuke Hamaguchi, reali-
com vários convidados e impor- mundial, tendo como filosofia não exposição e um ciclo Lisboa nessa dupla qualidade, já zador Asako I e II, e um dos grandes
tantes antestreias, incluindo a de se restringir ao universo cinema. que a sua banda, a No Smoking nomes do cinema japonês contem-
Três Pisos, de Nanni Moretti. E há No passado, já por lá passaram
de filmes, de que faz Orchestra vai atuar no Centro porâneo. O Leffest vai antestrear os
ainda espaço para o Ymotion, festi- nomes como David Lynch, Francis parte um programa Cultural Olga Cadaval (CCOC), seus dois últimos filmes: Wheel of
val de cinema jovem, com cura- Ford Coppola, Pedro Almodóvar, dia 20. Kustrika também integra o Fortune and Fantasy, que venceu o
doria de Rui Pedro Tendinha, que Bernardo Bertolucci, Abbas
dedicado a Charlie programa especial de homenagem Grande Prémio do Júri, no Festival
decorre em Famalicão, de 8 a 13. E Kiarostami, Lou Reed, David Byrne, Chaplin à cultura rom, um dos grandes de Berlim; e Drive My Car, galar-
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT ARTES 17 FESTIVAIS

doado com o Prémio de Melhor forço para chegar à população local,


Argumento e ainda o FIPRESCI, no querendo sempre conciliar a estru-
Festival de Cannes. tura global, de sítio de referência na
Outra das convidadas é a alemã animação europeia e mundial, com
Maria Spethm, um dos nomes da a localizada, uma casa que as pes-
chamada Escola de Berlim. Na soas de Espinho sintam delas. Da
retrospetiva da sua obra o grande segunda ideia fazem parte não só os
destaque vai naturalmente para a programas para as escoas e famílias,
ante-estreia de O Sr. Bachmann e a mas também a vontade de fazer
sua Turma, vencedor do prémio do sair o cinema da tela, com o cinema
júri do Festival de Berlim. expandido, que Serrazina gostaria
O argelino Tony Galif vem a de explorar mais profundamente
Portugal apresentar a sua obra, em próxima edições.
pouco conhecida entre nós. Assim
como o documentarista britânico CINEMA PARA ALÉM DO
Mike Dibb, com todo um programa CINEMA
com um forte componente artística Pedro Serrazina quer fazer do
e cultural, incluindo filmes dedi- Cinanima um espaço de refle-
cados a Miles Davis, Keith Jarrett e xão. E, para tal, uma das apostas
García Lorca. é AnimaScapes, a ter lugar nos
Dentro das retrospetivas, desta- primeiros dois dias do festival,
que-se ainda o programa de home- um espaço para pensar a imagem
nagem à Cinemateca Francesa, com animada, com um engajamento
três grandes filmes escolhidos pelo sociopolítico e grandes especialis-
seu diretor, Frédéric Bonnaud: A tas internacionais. O simpósio está
Regra do Jogo, de Jean Rennoir; F for dividido em quatro painéis dedi-
Fake, de Orson Wells; e Le Sang des cados aos temas “Sexo, censura e
Bêtes, de Georges Fanju. E também género”; “O documentário como
“A Morte de Deus”, ciclo temático terapia”; “Arquitetura e animação
que inclui obras como A Comédia de expandida” e “Aspetos sobre os
Deus, de João César Monteiro; Deus limites e as fronteiras da ética”.
e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Presenças no Leffest (da esq.ª para a dt.ª) o encenador Romeo Castelucci, o escritor J.M. Coetzee e a atriz Dolores Chaplin Outro espaço será o debate
Rocha; Três Canções dobre Lenine, de sobre a animação nacional. Nesta
Dziga Vertov; ou Maria Madalena, de primeira edição, estará em aná-
Abel Ferrara. lise o trabalho da multipremiada
A ligação entre o cinema e o aos editores e jornalistas destemi- filme ter ganho o Leão de Ouro, em dupla de realizadores Vasco Sá e
teatro é explorada no ciclo dedicado dos e aventurosos do início do séc. Veneza. E o norueguês Eskil Vogt David Doutel. Como explica Pedro
a Romeo Castellucci, um dos gran- XX. Benedetta, de Paul Verhoeven, apresenta Os Inocentes, depois de Serrazina: “Não se trata de um sim-
des nomes do teatro de vanguarda a partir do livro Immodest Acts: The ter passado pela secção Un Certain ples debate, convidamos especia-
italiano. Três partes do programa Life of a Lesbian Nun in Renaissance Regard, em Cannes. O Festival dirigido por listas com diferentes perspectivas
serão apresentadas no TN D. Maria Italy, da historiadora americana À data do fecho da nossa edição Paulo Branco costuma a olhar para as obras e produzir
II, culminando com um conversa Judith C. Brown. A Hero, marca o 6ª feira, 29 de outubro (dado o textos escritos, para aquilo que no
entre Castellucci e o novo diretor do regresso do aclamado realizador feriado de 1 de novembro), os des- trazer a Portugal nomes futuro poderão ser os cadernos do
D. Maria, Pedro Penim. iraniano Asghar Farhadi. Mathieu taques da programação eram estes. sonantes do cinema Cinanima”. Para este primeiro pai-
Almaric, ator e realizador que mais Mas é provável que ainda se acres- nel foram convidados os investiga-
DE ALMODÓVAR A WES uma vez estará presente no festival, centem filmes e convidados que e da cultura. Este ano dores Paulo Viveiros; Luísa Veloso;
ANDERSON apresenta Abraça-me com Força, iluminem a passadeira vermelha. já estão confirmados, Magda Cordas e Mihaela Mihailova.
Um dos calcanhares de Aquiles do adaptação da peça de teatroJe Além disso, fora da tela, a artis-
Leffest costuma ser o cinema por- Reviens de loin, de Claudine Galea.
entre outros, Emir ta Sérvia Lea Vidakovic vai apre-
tuguês. Mas, desta feita, apesar de Também de França Vai Correr tudo Kusturica, J.M. Coetzee, sentar duas instalações, ligadas
não haver nenhum filme português
em competição, há mais filmes e
Bem, drama de François Ozon, com
Sophie Marceau; e Paris 13, novo
CINANIMA Mathieu Almaric, ao mundo da animação: Sisters,
na Galeria da Junta de Espinho, e
ciclos programados. Destaca-se, retrato da juventude de Jacques RENASCIDO Dolores Chaplin, Romeo Splendid Isolation, na Galeria/Casa
desde já, a ante-estreia nacional Audiard. O famoso argumentista Renascer, reinventar, reposicionar. Sophia de Mello Breyner Andresen,
da trilogia Pahtos, Ethos, Logos, de de Taxi Driver, Paul Schrader está Em Espinho todas as palavras de or-
Castelucci, Maria Speth… Jardim Botânico do Porto.
Joaquim Pinto e Nuno Leonel, um de volta à realização com The Card dem têm o prefixo “re” e o objetivo Mas é provável que Não menos importante, onze
dos grandes filmes do ano, que se Counter. E Maggie Ginnehall traz é não deixar morrer de velho o mais outros nomes se juntem dos melhores ilustradores na-
estreou no Festival de Locarno. a sua adaptação de Uma Rapariga antigo dos festivais portugueses e cionais vão ter os seus trabalhos
Rodrigo Areias, realizador e Perdida, de Elena Ferrante. Ainda o terceiro mais antigo festival de à lista de convidados expostos, para assinalar os 30 anos
produtor da Bando à Parte, mostra há espaço para The Worst Person in animação mundial. E o primeiro da Animamostra. Nomes como
trabalhos recentes, incluindo the World, do norueguês Joachim e principal passo já foi dado. A Sol Pedro Brito, João Fazenda, Filipe
Os Vencidos da Vida, a obra que Trier, Compartimento n.º 6, do Nascente, que organiza o festival Abranches, André Ruivo, Catarina
compila e liga as suas curtas- finlandês Juho Kuosmanen, entre quase desde o seu início, convi- para os Oscars -, mas em termos Sobral ou Fernando Relvas. A expo-
-metragens. E há uma aposta em outros. dou para diretor artístico Pedro nacionais tem perdido protago- sição vai contar com um momento
Henrique Pina, jovem cineasta, A sessão competitiva procura Serrazina, um dos mais conceitua- nismo, também pela avalanche especial, no dia 11, em que a visita
com uma vertente experimental, criar algum equilíbrio entre jovens dos realizadores e professores de de festivais que entretanto surgiu, dos ilustradores serve de pretexto
de que se mostram três obras. Isto realizadores e alguns mais consa- cinema de animação portugueses, incluindo o Monstra, em Lisboa, para um cine-concerto, em parceria
além de Leonor Telles, inserida no grados. Um dos grande destaques é, para a direção artística. E os (bons) que tem crescido muito. com a Academia de Música de
program dedicado à cultura rom, sem dúvida, é Red Rocket, o regres- resultados veem-se logo na progra- O desafio de Pedro Serrazina e da Espinho. Este é, de resto, um primei-
entre outras exibições. so do americano Sean Baker, quatro mação, com grande exigência em direção do festival tem sido o de fa- ro passo para o conceito de cinema
O LEFFEST também é co- anos depois de The Florida Project. termos de qualidade, mas também zer omeletes sem ovos. Ou de tapar expandido, que Serrazina gostaria de
nhecido pelo seu rico programa O escritor francês Emmanuel com abertura a novos formatos, o seu imenso corpo com uma manta aplicar a vários espaços da cidade de
de ante-estreias e sessões não Carrère volta a realização depois da como o cinema expandido, exposi- curta. E é impressionante como os Espinho, em próximas edições.
competitivas. Este ano não foge à adaptação do seu próprio romance ções, simpósios, filmes-concerto. apoios da autarquia demoram a che-
regra. Passam ali pela primeira vez La Moustache, com Ouistreham, um O Cinanima já vai para a 45.ª gar. Espinho foi em tempos conheci- DE ARI FORMAN A GEORGES
em Portugal filmes sobre os quais filme em que assume uma postura edição. Não é coisa pouca. Mas da como a capital da animação, com SCHWIZGEBEL
cai uma grande expectativa. É o observacional, com Juliette Binoche facto é que, ao longo dos últimos repercussões a nível internacional. “Um cinema de animação que refli-
caso de Madres Paralelas, o novo no principal papel. O italiano Jonas anos, se tem assistido a uma certa Não tirar partido desse potencial não ta os tempos em que vivemos”, as-
Almodóvar, com Penélope Cruz, Carpignano apresenta Chiara, uma decadência. No panorama interna- revela apenas falta de interesse pela sim define Serrazina a programação
entre outros. Crónicas de França história familiar do ponto de vista cional continua a ser um festival de cultura, mas um vistas curtas em do festival e, especificamente, as
do Liberty, Kansas Evening Sun, de de uma adolescente. O venezuelano referência – aliás, é um dos poucos termos económicos. secções competitivas. E acrescenta:
Wes Anderson, é o filme de aber- Lorenzo Vigas está de volta com cujos filmes premiados ficam O festival, de resto, como explica “Queremos afastar a ideia de que a
tura do festival, numa homenagem La Caja, depois do seu primeiro automaticamente pré-nomeados o diretor ao JL, está a fazer um es- animação tem que ser algo muito
18 ARTES ↗

FESTIVAIS
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

Grandes antestreias Where is Anne Frank, de Ari Forman, no Cinanima (à esq.ª); Ethos Pathos Logos, magnífica trilogia de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, nos Caminhos do Cinema Português e Leffest (em cima);
e Três Pisos, de Nanni Moretti, na Festa do Cinema Italiano

leve a pensar no público infantil”. de mostrar filmes de animação que Castellitto, a partir de um argu- Gascon. E curtas como A Luz de
Isto apesar, frise-se, de se manter absorvam o espírito rebelde e punk. mento não filmado de Ettore Scola. Presença, de Diogo Costa Amarante;
todo um programa a pensar em Em Americas Latinas, com curadoria Ou Volevo nascondermi, de Giorgio Lobo Solitário, de Filipe Melo; Hotel
crianças, quer no contexto familiar de Lucia Cavalchini, directora do Diritt, à volta do pintor Antonio Royal, de Salomé Lamas; ou Noite
quer nas escolas. Festival Animasivo (México), um Pedro Serrazina é o Laccabue. Turva, de Diogo Salgado.
Em termos de programação de olhar sobre uma animação; e ARS novo diretor artístico do Em parceria com a Cinemateca, Dentro das sessões especiais
cinema, o grande destaque é a sessão ELECTRONICA, com a curadoria a secção Amacord é este ano de- passa Ethos Pathos Logos, magnífi-
de abertura, com Where is Anne de Juergen Hagler, dos programas
Cinanima e espera-se dicada às grandes divas do cinema ca trilogia de Joaquim Pinto e Nuno
Frank, do israelita Ari Forman. O virados para um futuro que abordam que, com o novo italiano. Uma oportunidade para Leonel, Mar Infinito, de Carlos
autor de filmes como O Congresso e a animação do lado da tecnologia. rever grandes filmes que têm Amaral, entre outros.
A Valsa com Bashir, mergulha desta Destaca-se ainda o programa
conceito imposto na como protagonista Ana Magnani, Na secção ensaios, passos mais
vez no universo de Anne Frank e o comemorativo dos 50 anos da programação, o festival, Sophia Lauren, Claudia Cardinale, arriscados e, em Filmes do Mundo,
do seu diário propondo uma reflexão National Film School Televisiona, Giulietta Massina, entre outras. um espaço para o olhar sobre a
sobre a condição humana e também do Reino Unido Isto além dos habi-
com 45 anos de vida, Da festa também faz parte a produção estrangeira, com uma
sobre a própria imaginação. tuais workshops e das masterclas- ganhe um novo impulso sessão competitiva, com cinco bela seleção de filmes de ficção e
A sessão competitiva con- ses, sessões para famílias e escolas e recupere um lugar de filmes de jovens realizadores, cur- documentário de curtas e longas-
ta este ano com quatro longas: e diversos panoramas. tas-metragens, sessões especiais e -metragens.
Archipelago, de Felix Dufour- destaque no panorama um programa para os mais novos. Na secção Lusofonias, encon-
Laperrière; Bob Cuspe – Nós Não nacional e internacional tram-se várias obras faladas em
Gostamos De Gente, do brasileiro português de produção recente.
Cesar Cabral; Chien Pourri, la vie FESTA DO CINEMA Entre outros, o destaque vai a para
à Paris, de Davy Durand, Vincent
Patar e Stéphane Aubier; e Elulu, ITALIANO CAMINHOS a adaptação de AvóDezanove e o
Segredo do Soviético, de Ondjaki,
do chileno Gabriel Verdugo Soto. Em crescimento continua a Festa Máfia, de Franco Maresco. O realiza- DO CINEMA por João Ribeiro. Mas também
Nas curtas, encontramos do Cinema Italiano, com uma pro- dor, habituado a trabalhar em dupla PORTUGUÊS passam obras como Três Verões,
uma seleção diversificada a nível gramação que se espalha por todo o com Daniele Cipri, sempre com um da brasileira Sandra Kogut; ou As
geográfico, em que tanto surgem país, com várias antestreias, ciclos humor corrosivo, desta vez faz um Em Coimbra, como é hábito, o cine- Filhas do Fogo, de Albertina Carri.
grandes nomes da animação mun- temáticos, um programa dedicada retrato do insólito a propósito das ma português celebra-se num festi- O cinema português é também
dial, como Georges Schwizgebel, a grandes divas do cinema italiano celebrações dos 25 anos do assas- val que serve também de balanço da o prato único do Entre Olhares,
Joanna Quinn, Paul Bush, como entre outros destaques. sinato de Giovanni Falcone e Paolo produção recente de cinema nacio- no Barreiro, que decorre durante
outros menos conhecidos, e ainda O principal é mesmo a antestreia Borsellino, juízes que combateram nal. O Caminhos não é um festival três fins de semana de novembro,
alguns portugueses, como José de Três Pisos, filme maior de Nanni a Máfia. Num estilo híbrido, entre de grandes antestreias, mas antes com filmes como Visões do Império,
Xavier e Luís Soares. Estes últimos, Moretti, com um argumento perfeito o documentário e a ficção, cheio de um ponto de encontro e reflexão da- de Joana Pontes; Eunice, Carta a
de resto, também concorrem ao e interpretações de alto nível. O rea- personagens insólitas, o realizador quilo que se fez em Portugal ao longo uma Jovem Atriz, de Tiago Durão;
Prémio António Gaio, juntamente lizador conhecido por filmes como mostra um povo que ainda vive com do ano, passando filmes, na sua A Nossa Terra, O Nosso Altar, de
com outros nomes, como Joana Querido Diário volta a explorar o medo da Cosa Nostra, apesar desta já esmagadora maioria, já estreados André Guiomar; Pequena Desordem
Toste, Bruno Simões, Paulo Patrício drama, como havia feito em A Minha não ser o que era. em sala ou com passagens por outros Silenciosa, de Pedro Sena Nunes; ou
e Nuno Fragata. Dentro das sessões Mãe e O quarto do Filho. Pela primeira No festival vai estar presente festivais. De certa forma, já fazia o Casa Velha, de César Pedro.
competitivas ainda estão os prémios vez Moretti adapta um romance, no Alessandro Rossellini, neto de trabalho da Academia Portuguesa Em Famalicão, decorre o
para jovens cineastas nas categorias caso do israelita Eshkol Nevo, para Roberto, o ícone do neorrealis- de Cinema, com os prémios Sophia, Ymotion, dedicado ao cinema
para mais e para menos de 18 anos. fazer um retrato de os habitantes de mo italiano, para apresentar Os antes desta ser fundada. jovem, que esta ano conta com uma
Fora de competição, são muitos um prédio em Roma. Rosselinis. Uma estreia tardia na Assim, na secção Caminhos, homenagem a Maria João Abreu e
os destaques. Há quatro progra- Apesar de tal poder parecer pito- realização com um exercício de a mais importante do festival, um concerto dos Capitão Fausto.
mas ousados. Animanarchy, com a resco, não poderia estar mais distante busca de si próprio ao mesmo tem- encontramos longas como No Em competição estão cerca de
curadoria de Daniel Suljic, diretor do estilo de crónica de costumes a po que vai cosendo os laços fami- Táxi com Jack, de Susana Nobre; 25 curtas-metragens, de ficção e
do Animafest Zagreb, mostra filmes que nos habituaram as comédias liares e revelando as suas histórias. Diário de Otsoga, de Miguel Gomes documentário. Obras como Noite
de caráter político do centro e leste italianas clássicas. Três pisos é uma Obra de grande interesse. e Maureen Fazendeiro; A Arte de Perpétua” de Pedro Peralta, ou A
da Europa. Rebellious Animation, sucessão de dramas familiares entre- Há muitos outros filmes em des- Morrer Longe, de Júlio Gomes; rapariga de Saturno, de Gonçalo
com curadoria de Olga e Michal laçados que questionam a fragilidade taque, como As Irmãs Macaluso, de A Metamorfose dos Pássaros, de Almeida. Também há uma secção
Bobwroski, diretores do festival da condição humana. Emma Dante, que esteve em Veneza. Catarina Vasconcelos; Paraíso, de especial de filmes de escolas, entre
StopTrik, da Eslovénia, tem a ideia Outro destaque é Era uma vez a Uma Livraria em Paris, de Sergio Sérgio Tréfaut; ou Sombra, de Bruno outros eventos.J
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT ARTES 19 ENTREVISTA

Sara Barros Leitão


O palco às mulheres invisíveis
Monólogo de Uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa, a nova criação de Sara Barros Leitão estreia amanhã, 4, no Centro
Cultural de Belém. Fará depois uma digressão por 14 cidades, até abril de 2022. Um espetáculo para refletir sobre as vidas
gastas a “limpar o mundo” que a História não conta, como adianta ao JL a atriz, encenadora e dramaturga

MARIA LEONOR NUNES


Uma “esfregona numas escadas”, militar, para o seminário para fugir nada pela socióloga Mafalda Araújo e
um “bocado de passeio molhado com à pobreza extrema que havia no cruzamos os relatos, com artigos de
lixívia”, umas “mãos despigmenta- interior do país, durante a ditadu- investigadores nacionais e interna-
das, por causa dos detergentes, na ra salazarista e mesmo durante o cionais. Falámos, por exemplo, com
fila das finanças”, são sinais, por toda período da República. Mas não sobre os sociólogos Inês Brazão, Manuel
a parte, das mulheres “invisíveis” a vida de milhares de mulheres que Abrantes, Nuno dias, e com a jurista
que limpam o mundo. Foi para “dar vinham servir para Lisboa, retira- Cláudia Campos. Se tivéssemos ficado
visibilidade” ao que não se quer ver das das famílias ainda crianças, por pelas histórias, podíamos correr o
que Sara Barros Leitão criou Monólogo uma questão de sobrevivência, e que risco de criar uma comoção pelo caso
de Uma Mulher Chamada Maria com viviam uma vida de solidão e de abu- individual em detrimento de uma
a sua Patroa. “A minha vivência so. Havia a Obra de Santa Zita, uma narrativa de mobilização coletiva
enquanto mulher e feminista, o meu espécie de obra de caridade da Igreja, que existiu e que é sempre muito
olhar sobre o mundo, levaram-me a apoiada pelas patroas cristãs, que importante.
questionar o papel que é esperado das recebia essas raparigas que vinham
mulheres, o cuidar, o limpar, todo o das aldeias e dava-lhes formação. Qual a sua preocupação ao escrever?
trabalho doméstico, seja remunerado Primeiro, como escrever a história
ou não”, diz ao JL a encenadora, que Em que sentido? dessas mulheres, sendo-lhes fiel.
também escreve o texto e interpreta. Ensinava-as a servir, a limpar, a Depois, como não me confundir com
Sara Barros Leitão, 31 anos, Prémio cozinhar, acolhia-as, o que era a sua voz, porque sou artista, não de-
DIANA TINOCO

Revelação Teatro Nacional D. Maria muito importante, mas por outro lado legada sindical. Evidentemente, tive
II 2020, nasceu no Porto e estudou perpetuava a ideia, muito burguesa, preocupações artísticas. E também
na Academia Contemporânea do de haver criadas. No movimento de não ser moralista. Procuro instigar
Espetáculo. Estreou-se como atriz em encabeçado pela Conceição Ramos, perguntas e não dar respostas. Não
Morangos com Açúcar e fez várias tele- Sara Barros Leitão “A mudança das mentalidades leva mesmo muito tempo, que seria a fundadora do Sindicato do quero dar uma aula ou fazer uma Ted
novelas e séries televisivas, participou mas estamos na luta” Serviço Doméstico, em 1976, havia Talk, mas criar um espetáculo.
em curtas e longas-metragens. Tem uma ideia de libertação, de acabar
trabalhado com encenadores, como com a profissão, nos moldes em que Por que usa um título tirado das
Eduardo Alonso, em Romeu e Julieta, Então quem é que lavava as roupas, fazemos nas nossas casas, e o serviço se fazia. Isso foi muito revolucionário Novas Cartas Portuguesas?
na sua estreia em palco, no Teatro do limpava os rabos das crianças, fazia doméstico, aquele que pagamos a na época. E conseguiriam nove mil Preciso sempre de um título para
Bulhão, Natália Luiza, Joana Craveiro, a comida, esfregava o chão… Elas só alguém para fazer. sindicalizadas, fizeram um congresso começar e tenho essa tradição de me
Nuno M. Cardoso ou Tiago Rodrigues. passaram a trabalhar fora de casa e a três anos depois. Mas tiveram muitas apoderar de versos, de frases de ou-
Foi codiretora da Carruagem, Tráfego ter um trabalho remunerado. No meu O que a levou à formação do primeiro resistências, por serem só mulheres tras mulheres quase como se elas em-
de Ideias e criou, em 2020, a sua percurso enquanto mulher e feminis- sindicato do serviço doméstico, já no sindicato. poderassem a minha própria escrita.
própria estrutura, Cassandra, para ta, assaltaram-me inevitavelmente depois do 25 de Abril? As Novas Cartas estão no espetáculo,
desenvolver projetos pessoais. as questões dos lugares de invisibi- Na verdade, ele começou a ser prepa- Recolheu muitos testemunhos? porque estão em mim, acompanham-
Como criadora teatral, apre- lidade das mulheres na sociedade. E rado antes, porque já havia movimen- Sim. E tivemos acesso aos arquivos -me há muitos anos. Mas não têm
sentou Teoria das Três Idades, em se são invisíveis em muitos setores, tações, reuniões clandestinas, muita da CGTP. A investigação foi coorde- nada a ver, a não ser pelo facto de ser
2018, a partir do arquivo do Teatro no serviço doméstico, ainda mais. No energia a circular, uma consciência um livro feminista, que fala da con-
Experimental do Porto, e Todos os entanto, as empregadas da limpe- de classe e uma mobilização que se dição das mulheres, escrito em 1971,
Dias me Sujo de Coisas Eternas, em za convivem connosco, nas nossas começaram a fazer sentir sobretudo e passados 50 anos, não estarmos
2019, com base numa investigação famílias, cruzamo-nos com elas, nos impulsionada pela JOC, a Juventude assim tão diferentes. A mudança das
sobre a toponímia da cidade, a que autocarros… Operária Católica. Em 1973, algumas mentalidades leva muito tempo, mas
agora acrescenta Monólogo de Uma mulheres foram mesmo a Paris, a estamos na luta.
Mulher Chamada Maria com a sua Quis torná-las mais visíveis? uma reunião internacional de em-
Patroa, de 4 até 7, Na Black Box do O Monólogo procura devolver outra pregadas domésticas, da Organização
Há um exército de Vai fazer uma longa digressão.
CCB. O espetáculo, com cenografia narrativa sobre a história dessas mu- Internacional do Trabalho. Depois mulheres que limpa o Porquê?
de Nuno Carinhas, depois passará por lheres. Quando parti para o projeto, dá-se o 25 de Abril e mesmo nesse dia mundo e que teimamos Sendo um espetáculo com finan-
Loulé, Viana do Castelo, Santarém, estávamos no início da pandemia e aí muitas delas não puderam sair à rua, ciamento público, quero levá-lo a
Coimbra, Viseu, Porto, Guimarães, foi muito notório que elas continua- porque era uma quinta-feira e a folga não ver, não valorizar todo lado onde haja contribuintes.
Póvoa de Varzim, Funchal, Cacém, ram a trabalhar, porque não podiam das internas era ao domingo. Imagino É um dever. Mas sobretudo, esta é
Almada, e outras cidades. ficar em casa como nos foi dito, o que o que terá sido saber das pessoas nas uma história tão transversal, sobre
se percebeu que era um privilégio de ruas, dos discursos daqueles senhores É uma história tantas mulheres portuguesas, que é
Jornal de Letras: Como surgiu o classe. As empregadas de limpeza não de bigode muito politizados, da transversal, sobre tantas minha vontade levá-la a diferentes
Monólogo de uma Mulher Chamada pararam, porque é preciso limpar o libertação dos presos políticos, mas sítios, discutir, refletir com diversos
Maria com a sua Patroa? mundo. Há um exército de mulheres continuar a limpar e esfregar, a fazer mulheres portuguesas públicos. Além disso, uma das pre-
Sara Barros Leitão: O espetáculo é que limpa o mundo e que teimamos as refeições, mesmo centros de mesa que foram ou são missas da Cassandra é trabalhar com
uma história do trabalho das mulhe- não ver, não valorizar. Por outro com cravos vermelhos. Como se o 25 o relógio noutro tempo, em relação ao
res. E essa história é muito vasta e lado, com o confinamento, as minhas de Abril tivesse chegado para toda empregadas domésticas, que se passa hoje, em que nos pedem
pouco contada. tarefas domésticas duplicaram, dava agente menos para elas. sendo minha vontade para sermos muito rápidos, eficazes
por mim a fazer todos os dias os e produtivos. Eu gostava de não estar
Desvalorizada? mesmos gestos, já não aguentava, VIDAS DE SOLIDÃO E ABUSOS
tirá-la da invisibilidade sempre a produzir, de não estrear um
É muito habitual lermos nos manuais, a cozinha oprimia-me. Isso aca- O seu monólogo traz essas ‘criadas de e levá-la a diferentes espetáculo e passados dois dias come-
por exemplo a propósito da Revolução bou também por me fazer pensar e servir’ à cena? çar outro. É preciso resistir à tentação
Industrial, que foi nessa altura que surgiu clara a distinção entre trabalho Em Portugal, conta-se muito sobre
sítios, discutir, refletir neoliberal e à ideia de um mundo
as mulheres começaram a trabalhar. doméstico, o não remunerado, que os homens que iam para o serviço com o público organizado para a novidade. J
20 ARTES ↗

EXPOSIÇÕES
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

Rui Chafes oposição à “horizontalidade”,


que considera característica da
escultura moderna (à exceção de
Giacometti, cuja evocação não é

O que existe
aqui um acaso) e, sobretudo, da
escultura americana da segunda
metade do século XX.
Estabelecendo a relação com
o título, podemos pensar que
Rui Chafes apresenta um conjunto de novas esculturas em Nada Existe, até ao próximo dia 20, estamos perante o que restou de
na Galeria Filomena Soares, em Lisboa. Uma exposição individual, a partir da qual o crítico, um violento incêndio. O que terá
ardido? Uma catedral da qual
ensaísta e prof. universitário Alexandre Melo reflete sobre o percurso e a obra do escultor só restaram algumas colunas
enegrecidas? Uma floresta de
que só sobraram alguns troncos
de árvores carbonizadas? Não
ALEXANDRE MELO podemos saber ao certo que tipo
de entidades terão ficado assim
Nada Existe (2021), Incêndio reduzidas aos seus esqueletos
(2017), Tranquila Ferida do Sim, estruturais. Não sabemos se
Faca do Não (2013): Poderiam ser percorremos a nave de uma
títulos de poemas ou livros de catedral, a alameda de um
poesia. Pertencem a três recentes bosque ou uma espécie de parada
exposições individuais realizadas militar. Ou apenas uma galeria
por Rui Chafes na Galeria de arte contemporânea pela qual
Filomena Soares em Lisboa. foram distribuídos, com o maior
Os títulos dizem ou querem rigor geométrico, uma série de
dizer alguma coisa que de outra variações escultóricas a partir
maneira ficaria por dizer? O que de esguios cilindros verticais.
digam diz respeito à obra? Ou Creio que não poderíamos
diz respeito ao autor e ao que ele estar mais longe de qualquer
sente e pensa? tipo de abstração geométrica
O artista na sua vida (minimalista ou não).
quotidiana faz muitas anotações As obras apresentavam-
em pequenos pedaços de se como um conjunto,
papel. É muito provável que com evidentes fatores de
tenha guardadas milhares de uniformidade, como é
páginas manuscritas com letras característico do autor que
pequenas e muito cerradas que habitualmente trabalha em séries
não sabemos se alguma vez concebidas a partir de um prévio
virão a ser públicas. O texto e exaustivo trabalho de desenho.
mais relevante que divulgou No que diz respeito ao processo
– para além dos que reuniu de trabalho convém referir que as
em O Silêncio de - foi o de uma esculturas são produzidas através
comunicação na Faculdade de de um trabalho artesanal de
Gelo (à esq.ª) e Nada Esculturas de Rui Chafes
Letras em Lisboa, A História da metalurgia que o artista realiza
Minha Vida, editado em livro com manualmente em colaboração
o título Entre o Céu e a Terra. com um reduzido número de
A relação entre o que um assistentes longe de qualquer tipo
artista plástico faz e aquilo “nada mais existe, nada mais tem de produção industrial.
que escreve ou diz é um tema importância / para quem viu a Observando mais de perto
antigo. Há dois modos extremos treva nos intervalos das coisas’. cada uma das catorze esculturas,
e opostos de o tratar. Há Uma atenta visão da obra de constatávamos que, apesar do
quem procure nos textos uma Bresson mostrará que, sobretudo Para quem acompanha efeito de conjunto (resultante
explicação da razão de ser das depois de Au Hasard, Balthazar, o trabalho de Rui Chafes da quase total simetria da
obras ou da maneira de ser do para Bresson, também, ‘nada instalação) elas comportavam
artista e há quem recuse prestar mais existe’“. há mais de 30 anos diferenças muito significativas.
atenção aos textos, pressupondo Depois de “ferida”, “faca” parece desnecessário Quatro delas evocavam
que, sendo os artistas o que e “incêndio” dizer que “nada claramente elementos do
são, artistas, o que dizem ou existe” poderá ou não querer sublinhar a coerência mundo vegetal (folhas, caules,
escrevem é irrelevante para a dizer que existe “nada”, que é e consistência formais Rui Chafes ramos) e parecem sugerir um
abordagem das obras. como quem diz que uma obra de infinito crescimento vertical,
Ambas as hipóteses estão arte é “nada” a não ser que se
da sua obra e essa sempre renovado, que vem
corretas. O que o artista diz considere que é o que é, porque unidade formal é das raízes adivinhadas e se
remete para o que pensa e sente “existe”. única parede. Esculpir a luz na poderia prolongar até ao céu.
porque é ele que o diz mas sem Para além dos títulos que
devedora de um escuridão sob a forma metálica Mas há três outras esculturas
ser uma explicação das obras. contam uma história que não princípio moral de ferida. A este respeito será que surgiam como estreitas
Pelo contrário, é uma tentativa é uma história (narrativa) e pertinente evocar a exposição jaulas de grades para conter
de delinear uma nuvem de permitem especulações infinitas, Família, com Pedro Costa, objetos de contornos variados
sentimentos e pensamentos é decisivo no trabalho de Chafes Para além dos títulos no Criptopórtico Romano de que podem parecer abstratos
que porque se não deixa dizer o – é de escultura que se trata – o que contam uma história Coimbra em 2015. mas se vêm a revelar, numa
obriga a fazer obras de arte, neste modo de instalação das obras Na exposição de 2017, ao visão mais aproximada, como
caso esculturas. As esculturas em função das características do que não é uma história e entrar na sala, víamos duas possíveis representações de
não falam, existem, são. Ou não espaço de exposição, neste caso a permitem especulações filas paralelas de esculturas ossos humanos. Estaríamos
são ? O quê ? Galeria Filomena Soares. verticais, aparentemente assim perante uma espécie
Em 1978, a concluir uma A exposição de 2013 foi talvez infinitas é decisivo no abstratas, em ferro pintado de contentores verticais de
das suas famosas Folhas no percurso do autor a que mais trabalho de Chafes o de preto - material e cor que cadáveres, o que permitiria
apresentando Le Diable, se aproximou da busca de um são uma imagem de marca do uma leitura alargada da escala
Probablement de Robert Bresson efeito visual de instalação através modo de instalação das artista. Outra marca evidente é antropomórfica presente nessa
(1977) – a quem Chafes dedicou do obscurecimento quase total obras em função a da “verticalidade”, que o autor exposição e aliás em todo o
uma exposição na Cinemateca do espaço, só rasgado pelo halo (em textos e conversas) gosta de trabalho do autor. Estaríamos
em 2009 – João Bénard da Costa luminoso das cinco esculturas das caraterísticas do relacionar com a arquitetura e a afinal perante uma parada de
escrevia, citando Jorge de Sena: suspensas em linha numa espaço de exposição escultura góticas europeias, por corpos calcinados?
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT ARTES 21 EXPOSIÇÕES

Duas esculturas que se a posição das suas próprias


aproximavam da forma mais esculturas em função de uma
simples de um poste podem proposta de “visão”, no sentido
fazer-nos pensar em martírios literal da palavra, das peças de
ou execuções. Havia ainda mais Habitualmente trabalha Giacometti. Foi talvez o melhor
quatro esculturas que sugerem em séries concebidas contexto em que alguma vez vi
próteses que prolongam ou esculturas de Giacometti.
sustêm membros, orgãos ou a partir de um prévio e Para quem acompanha o
fragmentos de corpos humanos exaustivo trabalho de trabalho de Rui Chafes há mais
cuja evocação é uma caraterística de 30 anos parece desnecessário
recorrente no trabalho do desenho sublinhar a coerência e
artista. Será que um escultor consistência formais da sua
pode produzir um corpo ? obra. Uma leitura mais simbólica
Na exposição atual, Nada As esculturas são e especulativa permitiria no
Existe, Rui Chafes “regressa” ao produzidas através de entanto sugerir que essa unidade
chão. É a mais “horizontal” das formal é devedora de um
suas instalações desde a primeira um trabalho artesanal de princípio moral.
metade dos anos 80 (Espaço metalurgia que o artista Ainda uma citação de Nuno
Poligrupo Renascença, Galeria Bragança no livro do já referido
Leo), o que há muito vinha Nada Existe Exposição de Rui Chafes, na Galeria Filomena Soares, em Lisboa
realiza manualmente Ciclo Bresson: “ Na cela onde
preterindo em favor de peças em em colaboração com prepara a sua evasão-recusa-
suspensão e da enfatização da de-morrer, o prisioneiro
verticalidade.
um reduzido número Fontaine lê ao da cela vizinha o
O modo de instalação tema das máscaras de rostos instalada em 2020, de modo de assistentes longe seguinte: ‘O vento sopra onde
favorece uma aproximação inexistentes. permanente, na Fondazione de qualquer tipo de quer, e ouves o seu ruído mas
específica a cada escultura – em A solicitação de uma Centro Giacometti, em Stampa ( não sabes donde vem nem para
detrimento de uma perceção deambulação menos pré- Suiça ), localizada no conjunto de produção industrial onde vai’ ” (Un Condamné à
em termos de “série” – que determinada e de um modo casas da família Giacometti onde Mort s’est Echapé).
nos obriga a baixar o olhar de inquirição mais aberto o artista passou grande parte da O artista considera a escultura
e fletir o corpo para melhor autoriza e sugere possibilidades sua vida. É a mais “horizontal” das como uma forma de pensar a
podermos circundar cada de conexões alargadas e A relação entre Chafes e suas instalações desde relação entre os objetos que um
escultura em busca do melhor diversificadas nos terrenos da Giacometti vem das primeiras ser humano (um artista) pode
ponto de vista a partir do qual história da escultura, da mais obras que dele vi – esculturas a primeira metade dos construir e a natureza orgânica
cada “corpo” escultórico nos “antiga” à mais “moderna”. em pedra de 1985 na Escola de anos 80, o que há muito dos seres vivos: seres dotados
poderia revelar os segredos das Deixo os exemplos à discrição de Belas Artes de Lisboa – e teve um de um tipo de vida que o artista
suas entranhas esvaziadas e as cada visitante. ponto culminante na exposição vinha preterindo em favor não poderá jamais conceder aos
sezuras das suas subsistentes A segunda sala da galeria “Gris, Vide, Cris”, em 2018, onde de peças em suspensão objetos escultóricos que concebe.
cascas e carapaças. As peças de reúne um conjunto de esculturas Chafes reconfigurou a totalidade Ou será que pode? Admitamos
menores dimensões podem ser que funcionaram como estudos do espaço da Fundação
e da enfatização da que a questão é metafísica e não
vistas como variações sobre o para a grande escultura Gulbenkian em Paris e definiu verticalidade cabe aqui abordá-la. J

© Blokhin Photography / IStock Images — design gráfico Change is good

Global Covenant of
Mayors for Climate & Energy
Vencedor do Prémio 2021
22 ARTES ↗

ESPETÁCULOS
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

Exorcismo de Maria Parda


TEATRO
Helena Simões

Em resposta ao convite de Tiago tada, numa das suas capelas. Maria ativistas nas áreas dos direitos hu-
Rodrigues para encenar Pranto Parda lamenta-se de não haver manos, antirracismo e pós-colonia-
de Maria Parda, Miguel Fragata vinho e dos padecimentos que leva lismo, sobretudo pela apropriação da
colocou-se na pele de Gil Vicente por essa falta ou carestia, mas a sede situação minoritariamente repre-
(1465 – 1536) e redesenhou a figura representa também a fome. sentativa de Maria Parda. O texto
que percorre as ruas de Lisboa, hoje, Na linha dos modelos formais da que acrescenta ao Pranto é perfeito

FILIPE FERREIRA
à procura de soluções para os males península ibérica e de adequação nas rimas e na construção semân-
que assolam a cidade. O espetáculo, ao calendário litúrgico, Maria Parda tica, de facto decifrando uma obra
que termina a carreira no próximo pode ser considerada, como afirma de difícil interpretação e dando a
sábado, 5, na Sala Estúdio do Teatro Maria José Palla, a alegoria da Qua- ver as imagens que o texto vicentino
Nacional D. Maria II, insere-se no resma, tempo entre a quarta-feira sugere. Pranto de Maria Parda, texto e encenação de Miguel Fragata a partir de Gil
projeto Próxima Cena, que “assenta de cinzas e o domingo de Páscoa, no E é nesta circunstância que atriz Vicente, no Teatro D. Maria II
na universalização do acesso à qual, contrariamente ao carnaval, Cirila Bossuet responde muito bem
cultura e no desenvolvimento se jejua e se substitui a carne pelo à proposta do encenador: não é
e valorização de públicos, em peixe. Mas parece evidente que, velha, nem exausta, nem doente,
territórios de baixa densidade veiculada pela sátira, a crítica e a pelo contrário, é uma representação e a permitirem a reconfiguração da › PRANTO DE MARIA PARDA
populacional”, dando a conhecer as denúncia da escassez que assola os viva e sólida de uma Maria Parda cidade, operada pela atriz. A cortina texto e encenação Miguel Fragata a partir de Gil
Vicente; com Cirila Bossuet; música Capicua (com
obras canónicas portuguesas. mais desprotegidos está presente nova, eficaz, satírica, expressiva, branca do fundo serve de ecrã
beat de Virtus), Xullaji; vídeo João Gambino; ceno-
Depois da peste de 1521, que viti- neste Pranto de Maria Parda, com- de vocabulário libertino, admirável onde o vídeo, com a música rapper grafia F. Ribeiro; figurinos José António Tenente;
mou, em dezembro, o rei D. Manuel posto por 369 versos em redondi- tanto no pranto, como nos diálogos, de Capicua e Xullaji, se projeta, a desenho de luz Rui Monteiro; desenho de som Nel-
I, para quem Gil Vicente também lha maior, dividido em pranto ou em que dá voz a todas as perso- integrar a nova cidade, mais justa, son Carvalho, captação de som (vídeo) João Bento;
assistência de encenação Rafael Gomes; consulto-
escreveu um lamento fúnebre, apresentação da figura, diálogos nagens, como no testamento, ou tolerante e inclusiva. ria José Camões, Mamadou Ba, Naki Gaglo, Marta
as representações na corte foram com aqueles a quem vai pedir vinho ainda nas mediações diretas com o Igualmente determinante é o Araújo, Sílvia Maeso, Joana Gorjão Henriques
suspensas, e é no contexto de fome e, sendo-lhe negado e a sentir-se público. Cenograficamente teatral figurino de José António Tenente que
e miséria do início de 1522 que o perto da morte, a execução do seu e portátil (F. Ribeiro), pela cons- à sarja crua da saia, corpete e capote Produção Teatro Nacional D. Maria II. Teatro
grande poeta dramático, com obser- testamento em forma rigorosamente trução de um pequeno palco com alia a elegância da blusa com manga Nacional D. Maria II, quarta a sábado às
vação fina, inteligência, imaginação notarial. dossel, ou pórtico, rodeado de leves tufada e a possibilidade de drapear o 19h30, domingo às 16h30. Até 5 de novembro.
e técnica dramática, cria a figura de Para a sua rescrita, Fragata cortinas brancas que se correm com traje segundo o discurso da persona- A peça será depois apresentada em Tondela
Maria Parda, uma personagem lite- conservou a escrita vicentina, mas significação dramática, assim como gem. O palco, que em 1522 seria o (9 e 10 novembro), Viana do Castelo (15 nov.),
rária que podia ser real das ruas de contextualizou-a e dotou-a de outro os edifícios das ruas que o texto altar sacrificial de Maria Parda, é Ponte de Lima (18 e 19 nov.), Vinhais (25 e 26
Lisboa, da Ribeira ou à volta da Sé, enquadramento político-ideológico, refere, na forma de miniaturas em agora o palanque onde afirma o seu nov.), Ourém (10 e 11 dez.), Ponta Delgada (21
onde provavelmente foi represen- com consultoria de especialistas e esferovite branca, bem iluminadas lugar na cidade. Assim seja. J e 22 janeiro 2022) e Funchal (23 julho 2022).

constantemente a sua própria estru-

Micro-comunidade tura, saltando fora dos limites estritos


das classificações, das etiquetas,
para se tornar uma opera (uma obra)
em que todos são coro e solistas. Os

DANÇA
nomes deles devem ser registados,
porque é de cada um deles – com
cada um deles - que a peça lida: a
Daniel Tércio Alegria, o Benedito, a Dúnia, o João, a
Leopoldina, o Luís, a Maria Augus-
ta, o Mavatiku, a Nérida, o Paulo, o
Ricardo, a Rolaisa, o Sidolfi, a Teresa,
Meio no Meio, de Victor Hugo (im)possibilidade de estar num o Valter e a Yana. Os movimentos
Pontes, reflete um processo de três presente permanente. Poder-se-ia incluem o simples caminhar, e outros
anos com um grupo intergeracional escrever que este trabalho começou gestos, mas também movimentos
em que intérpretes amadores antes da pandemia e foi atravessado de hip-hop organizados em battles.
selecionados pela arteemrede se por confinamentos e desconfina- Depois há as vozes, os balanços, as
juntaram a intérpretes profissionais. mentos irregulares. Seria possível confissões e as solidões. O microfone
E se nos dessem a oportunidade afirmar, como no título, que esta na direita baixa é preferencialmente
de levar um objeto íntimo para o proposta está “meio no meio”: lugar para a emissão do que se quer
centro do palco? E se nos disses- meio no tempo, meio no lugar, Meio no Meio, de Vítor Hugo Pontes dizer, que podem ser denúncias ou
sem para escolher uma memória e meio enquanto algo em direção a pequenas histórias, insurgências
fazer dela uma peça de dança? Foi alguma coisa. Poder-se-ia dizer de corpos colonizados, ao mesmo
mais ou menos assim que começou que aqui se propõe que os mais tempo que o ritmo, tantas vezes
este projeto, juntando em círculo novos sejam os mais velhos, que há Poder-se-ia dizer tudo isso, e petências, os abraços, os francos marcado pelo som da música intensa,
diferentes pessoas de quatro lugares linhas, por vezes dolorosas, outras muito mais: a beleza e diversidade abraços, colocam-nos realmente mas também intimista, guerreira e
diferentes: Moita, Barreiro, Almada vezes maravilhosas, que atravessam daqueles corpos, a potência dos face à construção de uma pequena libertadora dos Throes + the Shine,
e Lisboa. O resultado é um espec- cada uma daquelas pessoas e se sonhos, a disponibilidade física de comunidade de pessoas, formada a pontua as intensidades do grupo.
táculo empolgante e envolvente encontram algures, num ponto per- todos. Mas, sobretudo, há que dizer partir de um extraordinário exer- Se, por vezes, o espectáculo pode
que, depois de ser apresentado nos sistente entre diferentes gerações. que ali, em palco, ergue-se uma cício performativo em que Victor parecer demasiado esticado, e outras
territórios da arteemrede, seguirá Poder-se-ia também dizer que micro-comunidade, a partir de um Hugo Pontes surge simultaneamen- vezes repete enfaticamente o efeito
para outras paragens. assim se fazem sentir as falas tantas jogo de cumplicidades. As tensões te como facilitador, coreógrafo e emotivo, não há dúvida que resulta
Poder-se-ia dizer que este é um vezes silenciadas de afro-descen- e os encontros, os choques entre espectador privilegiado. sempre num exercício enérgico, en-
espectáculo sobre o tempo: sobre dentes, e de pessoas com diferentes corpos enérgicos, a entreajuda que Meio no Meio movimenta-se com volvente e absolutamente oportuno.
o modo como o passado se rebate opções sexuais, ou simplesmente por vezes se vislumbra à margem (e sobre) o texto assinado por Joana Assim, Meio no Meio fica no meio do
sobre o futuro, ou sobre a nossa de mulheres e homens vulgares. do guião, a diversidade de com- Craveiro, ao mesmo tempo que busca que importa, no meio de nós todos.J
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DISCOS
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CLÁSSICA CLÁSSICA perfeita para este renascer primaveril,


na música de tradição europeia.
Reencontro
com La Fenice O momento Mozart › Ensemble La Fenice, Jean Tubéry
NATURA AMOROSA
O nome tem Ligia Digital
origem na Fénix MARIA AUGUSTA GONÇALVES
que renasce das O anterior encontro entre o pianista norueguês
cinzas, e o ato de Leif Ove Andsnes e a Mahler Chamber Orches- POP
resgatar obras tra remonta a 2012, e estendeu-se por mais três
esquecidas dos anos, numa extraordinária “Beethoven Journey”, Sapatos
repertórios pré- dedicada à obra concertante do mestre alemão,
-românticos soma viagem que se manteve ativa até que a integral Vermelhos
já mais de 30 anos, na vida do Ensem- dos cinco concertos para piano e orquestra ficasse Não sabemos se
ble La Fenice e do seu diretor musical, completa, gravada e editada. este será o lado B
o regente e musicólogo Jean Tubéry. Agora, pianista e orquestra voltam a juntar- ou o novo lado A,
Desta vez, são duas dezenas de peças -se, desta vez para um novo projeto, dedicado a se é o lado bom ou
de 15 compositores que marcaram a um dos mais notáveis instantes do final do século o lado mau, mas
expressão musical dos séculos XVI e XVIII, a que chamam o “Mozart Momentum”, congratulamo-
XVII, e as suas transfigurações, desde a expresso na produção do compositor em Viena, -nos pelo esforço
plenitude da Renascença, com autores em 1785 e 1786, dois anos de grande liberdade e de Rita Resdshoes
como Clément Janequin (1485-1558), poder criativo, depois de se ter libertado do posto Leif Ove Andsnes de cantar em português, sem que para
Jacques Arcadelt (c.1504-1568), Jean de no arcebispado de Salzburgo e da tutela paterna. isso tenha mudado o seu nome para
Castro (c.1540-1611) e Giuseppe Caïmo São os anos em que Mozart se afirmou como Sapatos Vermelhos. Segue assim os
(1545-1584), à emergência e afirmação compositor e empresário de si mesmo, em que passos de outros, como David Fonseca,
do Barroco, com Claudio Monteverdi deu trabalho a músicos, negociou contratos, e em Concerto em Ré menor, com uma exploração das que tardou a descobrir o potencial
(1567-1643), Girolamo Frescobaldi que compôs obras tão visionárias no seu tempo, vozes intermédias, numa sugestão de Schubert, e da sua língua materna para a escrita
(1583-1643), Marco Uccellini (c.1603- como os concertos para piano e orquestra com que como se pode encontrar no notável e miraculosa- de canções. O movimento abrange
1680) e Biagio Marini (1594-1663). estabeleceu um novo nível de escrita concertan- mente perturbador andamento lento do Concerto sempre um risco, sobretudo de ex-
A estes juntam-se ainda outros te, peças para piano solo como a Fantasia K.475, em Dó Maior, com o piano simultaneamente lu- posição, para o seu público principal,
pequenos tesouros de Paolo Quagliati que deram novas perspetivas de liberdade, e para minoso e sereno, e na riqueza rítmica que subverte que é aquele que fala português. E a
(c.1555-1628), Giovanni Battista Riccio conjuntos de câmara como o Quarteto K.478, que o rigor clássico, no Concerto em Mi bemol maior, primeira impressão que temos ao ouvir
(1570-1630), Giovanni Kapsberger desafiaram os paradigmas de interpretação, sem obra a que o pianista não se coíbe de sublinhar a este Lado Bom é que a adaptação de
(1580-1651), Andrea Falconiero (1585- esquecer óperas como “As Bodas de Fígaro” (1786) dimensão sinfónica, bem patente na abertura. Rita Redshoes à língua portuguesa é
1656), Jan Jacob Van Eyck (1590-1656) e “Don Giovanni” (1787), entre muitas outras “Mozart não escrevia música fácil”, disse Leif um trabalho progressivo e, ao longo
e Martino Pesenti (1600-1647), além de manifestações absolutamente demonstrativas do Ove Andsnes, sobre a escolha das obras para o do disco, há momentos em que parece
um “rouxinol” intemporal de composi- seu génio. projeto, numa entrevista ao Financial Times, no claro que ainda não se sente suficiente-
tor anónimo, dos anos de 1600. Ao nível das obras está a interpretação, assim início do passado mês de maio. Muito menos mente à vontade com a ideia. De resto,
A escolha das peças é minuciosa, como todo o trabalho desenvolvido e maturado, quando, pela primeira vez, era dono de si mesmo, a cantora confirma e abre novas portas
muito precisa, numa sequência de nos dois últimos anos, por Andsnes e a Orquestra em plena cidade de Viena. para os dotes musicais que revela desde
obras vocais e instrumentais que toma Mahler. Estamos perante uma abordagem perfeita A interpretação de Andsnes com a Orquestra cedo, desde os tempos em que cantava
por inspiração o “canto dos pássaros” e – não é de mais dizê-lo - da obra de Mozart, numa Mahler, patenteia um domínio total dos contrastes com os Atomic Bees. O disco tem
a “primavera do amor”, conjugando-as leitura contextualizante, extremamente rica, que dinâmicos e do fraseado, e sublinha efetivamente momentos muito interessantes, como
numa permanente definição de pai- se estenderá até 2022, com obras do ano de 1786, a dimensão ‘pré-Beethoveniana’, das obras. No o dueto com Camané, em Contigo é
sagens. A primeira premissa toma por e que, já no próximo sábado, passará pelo Grande alinhamento deste duplo álbum, em que outras Sempre a Perder. Fica aqui claro que a
ponto de partida a “Canzon degli uc- Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em peças contextualizam o “Momento Mozart” de música portuguesa ganhou uma nova
celli”, uma das mais belas de Clément Lisboa, numa previsão do segundo álbum dedica- 1785, a Fantasia em Dó menor e o Quarteto para escritora de canções. E Rita, um cami-
Janequin, e deixa vislumbrar o futuro do ao projeto. Piano em Sol menor sucedem-se aos dois pri- nho a explorar.
que se desenha para lá do outono; a O primeiro, agora editado, reúne os concer- meiros concertos e abrem caminho ao Concerto
segunda assume a simbologia das flores tos para piano e orquestra n.º 20, em Ré menor em Mi bemol maior. Se, na Fantasia, Andsnes › Rita Redshoes
como expressão de amores delicados, K.466, n.º 21 em Dó maior K.467, e n.º 22 em Mi sublinha o poder dramático do discurso livre e a LADO BOM
com peças como “Soavissimi fiori”, de bemol maior K.482, todos concluídos em 1785, audácia harmónica, o ambiente sai reforçado no Sons em Trânsito
Quagliati, e “O Rosetta, che Roseta”, de assim como a Fantasia K.475, o 1.º Quarteto com Quinteto.
Monteverdi. Piano K.478 e o “Funeral Maçónico” K.477, para Nas ‘cadências’ dos concertos (o ‘espaço’ para
A simulação do canto das aves e orquestra. a sequência ou passagem virtuosa deixada à mercê We Sea
a sugestão de paisagens surgem na Seria difícil escolher melhor abertura do do intérprete pelo compositor), a opção demons- São dos Açores
clareza de um contraponto fascinante. projeto do que o Concerto n.º 20 em Ré menor. É tra igualmente a inscrição da abordagem inter- e o primeiro tema
O rouxinol é uma referência evidente, uma obra revolucionária, dramática, o primeiro pretativa de Andsnes. Aqui estão as ‘cadências’ de chama-se Pára o
com os seus melismas, em peças com concerto na história da música, garante Andsnes, Beethoven, no final do 1.º andamento do Concerto Tempo no Canal.
“Dolcissimo uscignolo”, de Montever- em que o instrumento solista não repete ‘apenas’ em Ré menor, e de Hummel, no seu termo; as Mas os We Sea serão
di, e “Engels nachtegael”, de Van Eyck, temas/frases já expostos pela orquestra, mas que, perspetivas de dois grandes pianistas do século mais influenciados
mas há também o canto do cisne de pelo contrário, fornece material completamente XX, Géza Anda (1.º andamento) e Dinu Lipatti pela história do
Arcadelt (“Il bianco e dolce cigno can- novo à composição. (final), cruzam-se nas ‘cadências’ do Concerto pop rock português
tando mais”) a que se opõe a pereni- Estes concertos são o expoente ‘pré-Beetho- em Dó maior. Para o Concerto K.482, Andsnes do que pela escrita de Vitorino Nemé-
dade da Fénix de Jean de Castro (“Une vaniano’, no entender do pianista. recorre de novo a Géza Anda, para sio. É uma nova banda a ter em conta
strania Fenice”), o cuco de Giuseppe Melodicamente ricos, engenho- o final, mas, para o termo do 1.º no panorama português. Começaram
Caimo (“Mentre il cuculo il suo cucu samente orquestrados, adqui- andamento, optou pela composi- numa garagem e trouxeram cá para fora,
cantava”) e a mais prosaica e genial rem uma qualidade ‘sinfónica’ e ção inédita do seu produtor, John destilado, um conjunto de influências.
galinha de Tarquinio Merula (“La Galli- patenteiam um equilíbrio inédito Fraser, também pianista. E apesar do pop-rock português ser
na”). Tudo se conjuga ainda, discreta- entre virtuosismo e conceção for- Numa entrevista à revista Gra- filho do anglossaxónico sente-se nestas
mente e na dose certa, com o canto real mal. Vários instrumentos, como o mophone, sobre este projeto, no canções uma filiação à história do nosso
das aves, que as notas da edição física clarinete, são chamados a primeira passado mês de maio, Leif Ove An- pop, nomes como Sétima Legião, Rádio
do álbum identificam, com saber e com linha, e a expressão melódica dsnes admitia, para os concertos Macau, Heróis do Mar ou, até mesmo,
humor, como “solistas vocais vindos presta-se ao diálogo e à interação, seguintes, a opção por ‘cadências’ Capitão Fausto. Há sugestões imersivas,
do exterior”, sempre a propósito, por com o desenvolvimento da tensão da época, originárias de manuscri- de suavidade tentadora e canções parti-
vezes e por instantes a criar mesmo (e subjacente, entre o solista e os tos guardados no Musikverein, em cularmente bem conseguidas, como Seja
propositadamente) dúvidas sobre a sua diferentes naipes da orquestra. Viena, a que teve acesso. Trata-se como For. Terminam com uma despudo-
origem (natural ou não). O ensemble São concertos cada vez mais › Mahler Chamber dos Concertos n.º 23, em Lá maior, rada homenagem a Zeca Afonso.
Orchestra, Leif Ove
e os seus “Favoritti”, com a violinista ricos em caráter, de algum modo Andsnes, piano e K.488, e n.º 24, em Dó menor,
Katharina Heutjier, o violoncelis- premonitórios do Romantismo, direção K.491, que serão interpretados em › We Sea
ta Keiko Gomi, as vozes de Nicholas com as ‘sementes’ de futuro ins- MOZART Lisboa, no próximo sábado. Toda a CISMA
Achten e Fanie Antonelou e a direção critas em si mesmos, como acon- MOMENTUM 1785 atenção é pouca.J MARIA AUGUSTA Ed. Autor
de Jean Tubéry constituem a formação tece de modo muito evidente no Sony Classics GONÇALVES MANUEL HALPERN
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IDEIAS 25 ↗

Victor de Sá, centenário


O historiador, o lutador
– livros e bibliotecas
Nasceu há cem anos, completados no passado dia 14 de outubro, e morreu no final de 2003. O essencial do seu rico e duro
(porque perseguido pela ditadura) percurso de vida e da sua obra aqui evocados pelo estudioso que, além do resto, foi
diretor da Biblioteca Pública de Braga, durante mais de 30 anos, dirigente da Bibliomedia, da secção Portuguesa do IBBY
e da Littera, docente convidado em Ciências Documentais e Leitura Pública em várias universidades

R
HENRIQUE BARRETO NUNES
para utilização por empréstimo função das bibliotecas bracarenses,
via postal em qualquer ponto do mas com uma análise que atingiu
país –, a célebre Biblioteca Móvel, dimensão nacional (2). Trabalho
que durante oito anos desenvolveu original e denunciador dá-nos um
meritória e utilíssima ação cultural, retrato cultural singular, único,
bem expressa nos seis catálogos que de uma época, sendo uma obra
publicou e numa “Bibliografia quei- essencial para a realização de
rosiana” que organizou (1945). qualquer estudo sobre o estado das
bibliotecas e a sociologia da leitura
AQUELES CATÁLOGOS ENCICLO- em Portugal. As suas propostas e os
PÉDICOS, que elencaram cerca seus desafios, que VS desenvolveu
de 1500 títulos disponíveis para em inúmeros escritos publica-
a leitura, mostram bem os seus dos em jornais e em revistas, só a
conhecimentos no campo da edição partir de 1986 tiveram resposta no
“Recordo-me de meu pai me ter menos comprometida com o regime nosso país, com a criação da Rede
metido nas mãos, desde que mal salazarista, dedicando uma especial Nacional de Bibliotecas Públicas.
tinha aprendido a ler, os livrinhos atenção ao que se publicava no Tendo antes, em 1942, ousado
encadernados de uma série de Lendas Brasil, neles figurando quase toda a publicar dois livros de temática
e narrativas destinadas à infância.” obra de Jorge Amado, que ainda não anteriana, VS tentou dedicar-se à
chegara às editoras portuguesas. A atividade editorial em 1952, mas de
Só comecei a conviver mais estrei- Biblioteca Móvel tanto incomodou tal foi logo proibido pela Censura.
tamente com o doutor Victor de Sá que se viu compelida a terminar a Por isso foi obrigado a recorrer às
(VS) quando, em 1980, o convidei, sua missão, devido às constantes edições de autor, abalançando-
em nome da Biblioteca Pública de investidas da PIDE. -se mesmo a criar uma coleção,
Braga, a proferir uma conferência Dentro da mesma ideia de com- denominada “Cultura e Acção”, na
sobre Manuel Monteiro, outra figura bater o imobilismo e o obscuran- qual publicou, até 1962, oito títulos
de referência do séc. XX bracaren- tismo cultural, VS publica em 1956 que obtiveram grande aceitação.
se - e foi depois desse encontro que uma obra intitulada As bibliotecas, Durante aqueles anos, além de
uma enorme amizade nos uniu até o público e a cultura, resultado de ter fundado a Livraria Victor, que
ao fim da sua vida. um inquérito inicialmente divul- rapidamente se transformou num
Porém já antes o conhecia, desde gado pelo Correio do Minho, no qual importante foco de ação cultural, a
os finais dos anos 60, como cidadão o nome do autor não pôde surgir, sua intervenção política é crescente,
corajoso e interveniente – uma Victor de Sá, em 1990 que teve como objetivo o livro, a o que acarreta diversas prisões pela
figura quase mítica para o jovem leitura e os leitores, sobretudo em PIDE (sete no total) e perseguições
e inquieto estudante de Coimbra arbitrárias.
que eu era: como historiador Victor de Sá licencia-se (1959)
pioneiro no estudo do Liberalismo São portanto múltiplas as facetas apenas 16 anos, e na tentativa de em Ciências Históricas e Filosóficas
em Portugal – período que nem através das quais poderia evocar o criação de uma biblioteca no Liceu, pela Fac. de Letras da Un. de
sequer se abordava no meu curso combatente pela liberdade, o cida- que o seu reitor logo boicotou. Coimbra, onde conquista a estima
de História na Faculdade de Letras dão ativo e indomável, o animador Concluídos os estudos secundá- do prof. Joaquim de Carvalho, mas
de Coimbra; e em Braga, proprietá- cultural nos anos de chumbo, o inte- rios, em 1942, empregou-se numa Foi bem um homem é proibido de ensinar, apesar de
rio de uma livraria onde sabia que lectual probo, o professor universi- livraria (a desaparecida Gualdino), nomeado para a Escola Comercial
podia encontrar, com mil cuidados, tário inovador e estimado ou o in- gastando quase todo o seu ordena- e a sua circunstância, de Braga. Candidato da Oposição
os livros proibidos que então tanto vestigador operoso e infatigável. Mas do na compra dos livros que tanto para quem a História Democrática nas eleições de 1961,
me atraíam. irei apenas recordar alguns aspetos apreciava e lhe eram necessários. é depois julgado em Tribunal
Aliás foi em Coimbra, em plena do carácter generoso e solidário de Porém não lhe agradava que e a Vida, a docência e Plenário. Em 1963 consegue uma
Crise Académica de 1969, que li pela VS, do seu amor à escrita, aos livros, esses livros, comprados com sacri- a intervenção cívica, bolsa de estudo da Fundação
primeira vez algo da sua autoria: às bibliotecas, enfim, à cultura. fício, “ficassem nas duas estantes, Gulbenkian, que lhe permitirá con-
uma entrevista à revista Via Latina Desde muito cedo vivendo em parados, adormecidos, depois da a investigação e o cretizar, em Paris, em 1969, o dou-
(cuja publicação viria a ser proi- Braga, ainda estudante no Liceu Sá minha leitura. Parecia-me egoísta trabalho sempre se toramento na Sorbonne, com uma
bida), divulgada numa coleção de de Miranda, de cuja Academia foi que eles ali ficassem… indiferentes tese intitulada A crise do liberalismo
Textos para discussão, editada pela presidente, em VS se manifestou, a à curiosidade que tantos jovens, articularam dura mas e as primeiras manifestações das
Associação Académica, impressa par da incomodidade, o gosto pela como eu no tempo de estudante, harmoniosamente, ideias socialistas em Portugal (1820-
a stencil, com o título de “Para leitura e pela escrita, expresso em teriam em os ler” (2). Por isso, 1852, nesse mesmo ano editada pela
a construção de uma verdadeira artigos no diário bracarensa Correio concebeu uma biblioteca origi-
constituindo um Seara Nova com uma tiragem total
cultura nacional” (1) do Minho, a partir de 1937, com nal – sistema de leituras facilitadas exemplo de 9000 exemplares (3).
26 IDEIAS ↗

COLUNA
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Porém, o doutoramento não


lhe é reconhecido em Portugal,
além de continuar impedido de
ser professor. Ainda em 1969 é
Documentalistas (Porto, 1985 e
Braga, 1992). De relevar ainda a
importância que continua a atribuir
aos instrumentos de pesquisa
Luz sobre a
“idade das trevas”
também proibido de integrar a lista bibliográfica, tendo publicado
da CDE de Braga às eleições para um Roteiro da imprensa operária e
a Assembleia Nacional. E quan- sindical (1991) e O Liberalismo por-
do se dá o 25 de Abril de 1974, já tuguês: recolha bibliográfica (1992),
editado pela D. Quixote, é apenas, este com a colaboração da profª
profissionalmente, livreiro – tendo Fernanda Ribeiro, atual directora da
criado, sempre em Braga, um novo Faculdade de Letras do Porto.
conceito de livraria , com uma
arrojada ação cultural. EM 1991 VS RETOMA A DOCÊNCIA
LONGEMIRA
e a investigação académica, na Un. Carlos Fiolhais
COM O 25 DE ABRIL O SEU Lusófona de Lisboa, e regressa à sua
DOUTORAMENTO é de imediato velha obsessão pelos livros e sua
reconhecido, e é convidado para fruição, empenhando-se na criação
prof. na Faculdade de Letras da Un. da biblioteca da instituição, cujo
do Porto – tendo-o sido também fundo inicial na área das Ciências WESTWYK FOI MATEMÁTICO,
na Un. do Minho, entre 1975 e 1979. Sociais é constituído pela doação de ASTRÓNOMO, instrumentista e,
Tem então, enfim, a possibilidades cerca de 3000 livros seus (“tenho embora a expedição tenha falha-
de se dedicar ao ensino e à investi- estado a encaixotar livros, mas sinto do, um cruzado. Apesar da falta
gação, publicando diversos ensaios que estou a amortalhar a alma com de documentação sobre o bio-
de caráter histórico, alguns dos o desligamento dessas companhias grafado, Falk conseguiu escrever
quais irão integrar a coleção Obras espirituais”). É aí que também um livro de 472 páginas, que se
de Victor de Sá, de que a editora pode retomar uma das suas grandes lê como um romance e que serve,
Livros Horizonte deu à estampa oito paixões, criando a coleção “Meia mais do que para apresentar o
títulos. Aliás a sua produção biblio- Hora de Leitura”, cujo primeiro personagem, para apresentar a
gráfica a seguir a 1974 é assinalável. título, da sua autoria, é dedicado a ciência medieval. Havia ciência
Concilia a docência, que incidiu Agostinho da Silva, grande mentor no século XIV? A palavra latina
sobre a História Contemporânea das suas primeiras tentativas literá- scientia significa conhecimento,
de Portugal, incentivando os seus rias. E a biblioteca da Un. Lusófona que obviamente existia.
alunos à investigação, com a inter- passou a chamar-se, a partir de O rei D. Dinis, com Scientiae
venção política – e em 1979, cabeça 1997, Biblioteca Universitária Victor Thesaurus Mirabilis (O maravilhoso
da lista do PCP por Braga, é o pri- de Sá. Aproveitando material do tesouro da ciência), o documento
meiro comunista da região Norte espólio reunido, a Un. do Minho, de 1290 que criou a Universidade
(Porto excluído) a ser eleito para a através do seu Conselho Cultural e de Coimbra (estabelecida em
Assembleia da República, o que se da Biblioteca Pública de Braga reúne Lisboa), pretendia reforçar o
repetiria no ano seguinte. textos dispersos e inéditos seus, Seb Falk conhecimento no nosso país. Não
Vítima de algumas incompreen- editando os livros Testemunho de um existia ainda o termo “cientista”
sões e injustiças (de que não se pode tempo de mudança (1999) e Legendas para designar aquele que pratica a
esquecer a inqualificável reprova- para uma memória (2001). ciência usando o método científi-
ção em provas académicas na sua Os últimos anos da sua vida As expressões “idade das trevas” co, pois esse termo só foi cunha-
faculdade, que considerou “uma são perturbados por um estado de ou “noite de dez séculos” são hoje do no século XIX.
bárbara agressão intelectual e mais saúde débil, morrendo em 31 de de- reconhecidamente desajustadas O monge inglês, não sendo
um ato de terrorismo” de que foi zembro de 2003, em Braga: “O que para designar a Idade Média. A A ciência ainda não um cientista no sentido atual,
vítima, mais por razões de ordem tinha a fazer está feito, fi-lo como primeira surgiu logo no início do procurava o conhecimento
política do que científicas), agudi- pude”. Victor de Sá foi bem um século XIV, quando Petrarca quis
dispunha do método com os meios à sua disposição,
zadas pelos primeiros problemas homem e a sua circunstância, para contrastar a Antiguidade Clássica que tanto poder lhe fazendo avançar a ciência da sua
de saúde, passa a viver em Sintra. E quem a História e a Vida, a docência com o tempo após a queda do época. A sua obra maior, escrita
interroga-se sobre o destino a dar a e a intervenção cívica, a investiga- Império Romano do Ocidente. No
deu, mas já era uma em inglês arcaico, intitula-se The
todo o espólio documental produ- ção e o trabalho sempre se articu- século XVI, o cardeal César Barónio, prática partilhada Equatorie of the Planetis. Descreve
zido e recolhido ao longo da vida laram dura mas harmoniosamente, historiador da Igreja Católica, usou o equatorial, um instrumento que
(“nem todos os papéis se rasgam ou constituindo um exemplo que é o termo saeculum obscurum para
baseada no contacto permite determinar as posições
se deitam fora”), nomeadamente necessário realçar nestes tempos designar os tempos da transição do estreito com a realidade dos astros sem fazer cálculos.
o resultante do seu trabalho de in- desencantados em que as figuras primeiro para o segundo milénio, O livro de Falk começa com a
vestigação ou da atividade política. morais são cada vez mais raras. J dos quais havia muito poucos do- fascinante história da descober-
Decide então entregar esse espólio cumentos. ta desse manuscrito, o MS-75.
à guarda da Biblioteca Pública de (1) – Esta entrevista foi novamente No Iluminismo, o uso dessas O físico e historiador de ciência
Braga, (“por ser aquela que eu publicada no livro Bracarenses na expressões e outras aparentadas Derek de Solla Price consultou,
frequentei desde os 14 anos de idade crise académica de 1969 (Braga: acentuou-se, na clara tentava Média que, através da intermedia- nos anos 1950, na biblioteca
e que, ao longo da minha juven- UMinho Editora, 2019), com um estudo de contrastar os tempos pós-re- ção árabe e dos monges copistas, medieval da Peterhouse, o co-
tude me amparou na formação do introdutório do prof. Luís Reis Torgal; nascentistas com aqueles que os que se transmitiram os preciosos légio mais antigo de Cambridge
autodidata que comecei por ser”), (2) - Reeditado, acompanhado do texto antecederam: a “Idade da Razão” saberes da Antiguidade. (a Universidade de Cambridge
entrega que se verifica em 1988. “O que foi a Biblioteca Móvel”, por devia contrastar com a “Idade da O historiador inglês Seb Falk, remonta a 1209), o MS-75, tendo
Pouco tempo depois de ter sido Livros Horizonte, em 1983. (3) - A tese de Fé”. O Romantismo veio, porém, jovem professor de História nele identificado o nome de
agraciado, com todo o merecimen- doutoramento acabou de ser publicada de várias maneiras reabilitar o da Ciência na Universidade de Chaucer. Julgou, com alvoroço,
to, pelo Presidente Mário Soares, em edição revista da responsabilidade tempo medieval, cultivando temas Cambridge, publicou na Penguin estar na presença de um segundo
com a Ordem da Liberdade, em da UMinho Editora, acompanhada de e enaltecendo pessoas dessa época. no ano passado um livro que no trabalho científico do escritor
1991 propõe à Un. do Minho, num estudos introdutórios de J. V. Capela, M. A historiografia evita hoje esse tipo original se intitula The Light Ages. inglês Geoffrey Chaucer (1343 –
ato inédito e de enorme genero- H. Pereira, G. M. Pereira e H. B. Nunes. de expressões uma vez que são mais A Medieval Journey of Discovery. 1400), considerado o maior antes
sidade, a criação de um prémio bem conhecidas as “luzes” da Idade O livro, a primeira obra do autor, de Shakespeare: é o autor dos
destinado a trabalhos de jovens Média. muito bem acolhido pela crítica e Canterbury Tales, que inaugura a
investigadores sobre história con- Essa atitude extravasou para o pelo público, acaba de sair entre nós literatura inglesa.
temporânea portuguesa, do qual foi dia-a-dia: há até polémicas recen- na Bertrand Editora, em tradução
o primeiro mecenas. A Un. aceita tes na política por causa do uso da de Elsa T. S. Vieira intitulada A Idade ORA, MOSTRANDO QUE CIÊN-
e tem garantido a sua continui- palavra “medieval” como sinónimo Média. A Verdadeira Idade das Luzes. CIA E LITERATURA não são
dade, estando em curso a sua 30ª de “bárbaro”. De facto, o tempo O autor apresenta a vida e a obra de incompatíveis, Chaucer é tam-
edição. (4) Sempre interessado medieval legou-nos uma extraor- um obscuro monge beneditino in- bém o autor do A Treatise on the
na problemática das bibliotecas dinária instituição que perdura: a glês, John Westwyk (1350 - 1400), Astrolabe, um manual de instru-
participa, com comunicações, universidade. E legou-nos tecno- que viveu na imponente Abadia de ções do astrolábio, instrumento
nos 1º e 4º Congressos Nacionais logias como os óculos e os relógios St. Albans, a uns 30 km a noroeste para medir a altura dos astros que
de Bibliotecários, Arquivistas e mecânicos. Além disso, foi na Idade de Londres. remonta aos antigos gregos, foi
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT IDEIAS 27 COLUNA

Povos e culturas peninsulares


melhorado pelos árabes, e que os
portugueses adaptaram no tempo
dos Descobrimentos para o uso
em alto mar. Chaucer descreveu,
em inglês e não em latim, o modo
de usar um astrolábio. Price,
que haveria de emigrar para os
Estados Unidos para ser professor
na Universidade de Yale, estava

A PAIXÃO DAS IDEIAS


equivocado.
Em 2014, a historiadora norue-
guesa Kari Anne Rand concluiu,
Guilherme d’Oliveira Martins

N
por comparação caligráfica, que
o MS-75 era afinal da autoria de
Westwyk. Seb Falk, que foi no-
meado pela BBC New Generation
Thinker, tem uma enorme domí- o célebre texto publicado nos primórdios da considerando as bases necessárias de uma cultura de equilíbrio entre
nio da matemática e a astronomia Revista Ocidental (1875), Oliveira Martins, potências continentais, no sentido de contrariar novas hegemonias, com
medievais, incluindo o uso de ao tratar do tema “Os Povos Peninsulares salvaguarda de sistemas de complementaridades e compensações – nos
astrolábios e equatoriais. Além e a Civilização Moderna”, afirmou: “O quais o primado da cultura, a investigação científica, a cooperação técni-
disso, é velejador e montanhista, heroísmo ativo gera o amor da liberdade; ca e energética, a partilha e o domínio da informação possam funcionar
sabendo orientar-se pelas estre- a liberdade anima os heróis; mas o herói como fatores positivos de desenvolvimento humano.
las. É ainda corredor de marato- não é o frio estoico, Bruto o desapiedado; Nada pode ser considerado como adquirido, e essa é uma qualida-
na. E sabe escrever, como mostra não é uma abstração como na Itália, é um de que o historiador aponta, ou seja, a capacidade de compreender as
este trecho do seu livro: indivíduo sensível que chora, sente e geme, fragilidades e as limitações. Não se trata de repetir a experiência histórica
“Na viagem de Westwyk pela quando as dores do suplício o torturam; que exulta, folga e ri, quando passada, nem de tentar explicações deterministas, mas de olhar o futuro,
ciência medieval, conhecere- chegam as horas do triunfo ou da festa; não é de pedra, é de carne; não considerando as condicionantes críticas e as lições do que já teve conse-
mos um elenco de personagens veste a toga, calça os borzeguins do guerrilheiro, deita a clavina ao om- quências positivas.
fascinantes, nenhum dos quais bro, e desde Riego ou Saldanha, sabe ao mesmo tempo amar e morrer”… Por que razão a experiência europeia após a adesão peninsular teve
é um nome famoso. O judeu A singularidade dos povos ibéricos corresponde, afinal, a esta capa- resultados positivos? Uma vez que houve uma cuidadosa preparação e
espanhol convertido ao cristia- cidade de combater com determinação em prol da defesa da terra e dos uma ponderação dos meios e dos fins. E, como disse Lorenzo Natali, o
nismo que ensinou tudo sobre povos. E assim o riso é livre e é caustico, não podendo esquecer-se três alargamento da Europa ao sul ibérico significou a abertura de horizon-
eclipses a um monge lotaríngio dimensões intimamente associadas – lírica, trágica e picaresca. Miguel tes para o mundo global – com tudo o que isso significaria de um mais
em Worcestershire; o abade relo- de Unamuno foi dos que melhor entendeu esta característica portuguesa, intenso diálogo intercultural e da possibilidade (ainda não plenamente
joeiro inglês com lepra; o artesão que ia ao encontro das raízes comuns ibéricas. Cervantes elege Quixote aproveitada) de ver a Europa como uma placa giratória e como um polo
francês transformado em espião; como símbolo crítico, capaz de destruir muitas de equilíbrio, em lugar de um centro fechado
o polímata persa que fundou o ilusões; Gil Vicente põe a nu todas as fraquezas, sobre si e sobre os seus egoísmos.
observatório mais avançado do obrigando à autocrítica. Na Arte, Velasquez e Gil A crise pandémica ensinou-nos que a
mundo. A ciência medieval era Vicente encontram-se, representando não um autossuficiência, o imediatismo e a desatenção
um empreendimento internacio- mundo ideal, mas as imperfeições naturais de à sustentabilidade apenas abrem caminho à frag-
nal, tal como a ciência de hoje (…). uma natureza humana complexa e diversa. mentação, à desigualdade e ao desequilíbrio de
As crenças religiosas estimularam Como Ulisses, não temos réstia de invencibi- influências. Atente-se nos resultados positivos da
a investigação cientifica, mas as lidade, tendo de assumir todos os riscos, como vacinação e do seu planeamento. Foi pela recusa
pessoas profundamente devotas no exemplo de D. João de Castro ao enviar os da facilidade que pôde funcionar. Eis por que
não tinham qualquer problema filhos para a “carniçaria” de Diu ou Gonçalo de razão esta reflexão sobre os Povos Peninsulares
em adotar teorias de outras fés.” Córdova, em Granada, essencial na consolidação merece atenção não à luz dos problemas do
Esta posição contrasta com do poder das instituições de Espanha. E assim o passado, mas entendendo o presente. A História
outra, baseada no julgamento de génio peninsular simbolizar-se-ia em Camões, não se repete, mas ensina-nos a considerar os
Galileu pela Inquisição e mais numa obra sublime em que a dimensão épica tempos, as circunstâncias, os contextos, a sua
corrente, segundo a qual o poder inspirada em Virgílio articula, com respeito da diversidade e complexidade.
da razão contraria o poder da fé. palavra, a ação, o conhecimento e a sensibilida-
De facto, o sábio pisano tinha de, sem descurar especificidade de qualquer um SE A NOSSA BASE É A PENÍNSULA IBÉRICA,
na sua cabeça a razão em bom desses termos. compreendamos as suas vantagens compa-
equilíbrio com a fé. Disse ele que É a necessidade da ação que marca a iden- rativas, que só obterão resultados positivos se
“o Espírito ensina como ir para o tidade peninsular e consequentemente a causa não forem consideradas em abstrato, mas se
Céu e não como é o céu”. original das Descobertas, que “reside no de- forem previstas e avaliadas, sujeitas à correção
Este livro colocará o leitor senvolvimento dado à física e à geografia de um Oliveira Martins, por Columbano da experiência. Qual o nosso valor próprio?
em plena Idade Média, a fazer lado, do outro nas tradições que as viagens dos Lembremo-nos de como o alargamento europeu
ciência com o monge beneditino. cruzados tinham espalhado por toda a Europa. à Península apresentou inequívocas vanta-
Aprenderá contar pelos dedos Assim, se explicaria o “papel colossal” de duplicar o mundo. “A política, gens – quer pelas capacidades próprias, quer pelas novas relações que se
até 9999 e a fazer horóscopos. De o direito, a economia têm como base objetiva a História: é ela quem revela abriram. Antero de Quental, ao ler o texto da Revista Ocidental, concor-
facto, a ciência ainda não dispu- as leis da transformação das ideias e das instituições, as idiossincrasias dou, mas salientou a exigência de evitar qualquer tentação hegemónica,
nha do método que tanto poder nacionais, e quem solidifica pela preferindo a compreensão social mútua, designadamente como referiu
lhe deu, mas já era uma prática análise, as conceções racionais na conferência do Casino Lisbonense sobre “As Causas da Decadência dos
partilhada baseada no contacto humanas, que não provêm dela, Povos Peninsulares”. Afinal, as causas eram comuns e necessitariam de
estreito com a realidade. J antes se encontram imanentes soluções articuladas.
no homem como substância Hoje, o tema não perdeu atualidade. E a ideia emancipadora da Europa
própria. A razão conclui, a A ideia emancipadora necessitará de capacidade de sermos audaciosos no que deve ser comum
História analisa”. e determinados em cada Estado no que deve ser próprio, reforçando a de-
da Europa necessitará fesa dos interesses vitais comuns. “A indústria não é somente a indústria,
E É O TEMA POLÍTICO ATUAL de capacidade de é também a determinação social do trabalho; a ciência não é somente o
DA RELEVÂNCIA europeia que empirismo, é a vivificação que lhe dá corpo, é a metafísica; a política não
deve aqui ser equacionado, sermos audaciosos no é somente uma doutrina, é também um amor, uma paixão ardente pela
tornando-se crucial quando que deve ser comum harmonia coletiva; o direito não é somente uma fria codificação de leis, é
falamos da evolução de uma um corpo animado pela alma da justiça; a vida não é somente um egoís-
realidade global geoestratégi- e determinados em mo, é também uma dedicação, um amor ardente, inextinguível!”
ca, na balança do mundo. Sem cada Estado no que Que pretende dizer o autor? Que as condições materiais carecem de
qualquer tentação anacrónica ou uma dimensão humana. Daí a importância da educação e da cultura, e a
› Seb Falk deve ser próprio,
de julgamento moral de atitudes compreensão de que a aprendizagem é o fator essencial do desenvolvi-
A IDADE MÉDIA: pretéritas, do que se trata é de reforçando a defesa mento humano. Informação, conhecimento, compreensão e sabedoria,
A VERDADEIRA IDADE conceber um projeto europeu nada poderemos esquecer ou menosprezar. “A alma de Cid e de Viriato é
DAS LUZES plural, humanista, pacífico num
dos interesses vitais e será sempre a nossa alma, de um Cid e de um Viriato como o fazem os
Bertrand Editora, 472 pp., 22,20 euros sistema de polaridades difusas, de todos elementos constitucionais da vida moderna”. J
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COLUNA
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Francisco Abreu
Uma viagem ao coração das ciências
ECOLOGIA
Viriato Soromenho-Marques

T
endo como base doutrinas, e ainda menos dos métodos de
uma aclamada tese trabalho. As ciências teriam sido reduzidas,
de doutoramen- pelo martelo da ignorância armada, a meras
to, Fazer ciência, palavras soltas, arrancadas à gramática
afinal é fascinan- que lhes poderia dar o sentido e restaurar a
te, de Francisco vitalidade.
Abreu, oferece aos Em 1981, a sugestão de MacIntyre preten-
leitores uma refle- dia chocar os seus leitores com uma possibi-
xão original sobre lidade de implosão catastrófica da cultura e
a história, natureza e métodos da pesquisa das instituições científicas – sentida na altura
científica. A minha coluna antecipa o prefácio como inverosímil – para chamar a atenção,
que escrevi para essa obra, portadora de uma através do efeito de contraste, para o estado de
original profundidade e que ganha especial decadência, fragmentação e anemia da cultura
relevância numa altura em que, delibera- ética ocidental, ao longo de uma degradação de
damente, se procura degradar o discurso vários séculos.
científico ao nível da mera opinião, ou mesmo Em 2021, talvez a situação global da ética Francis Bacon e Karl Popper Dois gigantes do conhecimento
do preconceito ideológico. não tenha melhorado, sobretudo no sentido de
O tempo separa o que é substancial e dura- um regresso à “ética das virtudes” propugna-
douro do que é meramente efémero. No caso do pelo filósofo escocês. Todavia, o que parecia O FASCÍNIO DO PENSAMENTO CRÍTICO disputas, hipóteses, teorias e conceitos. Numa
de Fazer ciência, afinal, é fascinante, eu diria uma experiência de pensamento excessiva, a É verdade que as ciências sempre foram usadas escrita sempre baseada nas fontes e articulada
que o teste temporal sublinhou intensamente roçar o absurdo – a destruição da gramática como instrumentos dos diferentes poderes com clareza e elegância, o leitor é convidado a
a valia e a urgência do contributo de Francisco científica pelo linguajar de bárbaros belicosos instalados. Não apenas na projeção tecnológica compreender como na essência da descoberta
Abreu para a compreensão do universo com- e ululantes –, transformou-se, passo a passo, do saber científico (a tecnociência), mas como científica não está a indução nem a generaliza-
plexo, criativo, apaixonante e polémico, onde ao longo das últimas quatro décadas, numa argumento de legitimação de estratégias de ção, mas o labor de uma imaginação criadora,
se forjaram as ciências modernas. Com domí- realidade que assola, em vagas cada vez mais opressão e dominação. Não foi Darwin usado que submete a experiência à integração em
nio das fontes e um pensamento bem equipado nítidas e intensas, o nosso quotidiano coletivo para dar respeitabilidade às mais grosseiras totalidades maiores e complexas, submetidas
de talento crítico e originalidade, onde não à escala global. modalidades de racismo? Não foi a tirania de depois aos testes da validação exigente, na linha
falta ousadia intelectual, o autor conduz-nos, O monstro de muitas cabeças, cor- Estaline apoiada na invocação ritual de um do falsificacionismo de Karl Popper.
de Francis Bacon a Karl Popper, entre muitos porizado pela entropia civilizacional dos socialismo dito “científico”? Francisco Abreu não se limita a oferecer ao
outros gigantes do conhecimento, pelos defensores da ideologia do Know-Nothing, Mas desta vez é diferente. A diferença leitor um excecional roteiro ilustrado sobre as
grandes problemas, cujas sucessivas tentativas manipula hoje o leme de governos e outros hodierna reside na brutal substituição dos grandes controvérsias científicas, como aquela
de solução, nunca definitivamente fechadas, interesses poderosos, e senta-se em pratica- argumentos, mesmo que falsos, pelo império travada em torno do estatuto das hipóteses em
ajudam a explicar o universo contemporâneo mente todos os parlamentos do mundo, sem da vontade arbitrária, que dispensa razões. ciência, que só na aparência separaria Newton
das ciências. esquecer que o perigo da “mentira orga- As opiniões, nascidas do preconceito e da de Descartes, mas vai muito mais longe. Não
nizada”, denunciado em 1967 por Hannah preguiça mental, sobrepõem-se, por um ato deixando nunca de prestar homenagem a Karl
O PERIGO DA IGNORÂNCIA ORGANIZADA Arendt, se transformou numa das atividades de vontade unilateral, às teses resultantes do Popper, Abreu, fiel a um ideal de pensamen-
Em 1981, o filósofo escocês Alasdair C. económicas mais lucrativas para as empre- método esforçado e diligente, da experimenta- to crítico – que se poderia filiar numa matriz
MacIntyre publicou aquele que é um dos mais sas mundiais das “redes sociais”, apesar ção reiterada e da morosa e exigente avaliação kantiana –, vai mais longe, propondo uma
estimulantes livros sobre ética (After Virtue: a das desculpas nada convincentes dos seus das hipóteses. A procura de uma verdade, inovadora teoria epistemológica, o “falsifica-
study in moral theory) do último meio sécu- criadores e donos. mesmo que parcial e provisória, como base cionismo moderado”, apresentada numa abor-
lo. Essa obra começava com uma “sugestão para a habitação em comum da Terra, foi a dagem reformulada ao conceito de “programa
inquietante”. MacIntyre apelava à imaginação essência da criação de uma comunidade cien- de investigação”.
dos seus leitores para viajarem com ele a um tífica internacional, particularmente vibrante Com serenidade argumentativa, procuran-
futuro ficcional em que na sequência de uma a partir do século das Luzes. Primeiro na do sempre colocar-se num registo discursivo
“série de desastres ambientais”, as ciências Europa, depois no globo inteiro. Nem mesmo que garanta a melhor compreensão do leitor
naturais e os cientistas seriam transformados as guerras, particularmente as mundiais no e escrevendo com rigor e detalhe sobre essa
em bodes expiatórios. Massas enfurecidas ata- século XX, demoliram a firme crença de que o “fascinante” actividade que é o “fazer ciência”,
cariam universidades e laboratórios, assassi- conhecimento científico é a grande condição Francisco Abreu contribui, neste tempo tão
nando e queimando, até que um “movimento de possibilidade não apenas do progresso, assolado pelos ventos inóspitos da ignorância
político de ignorância voluntária (Know- Uma viagem aos grandes mas da própria sobrevivência da humanidade. arrogante e armada, para a reafirmação dos
Nothing)” tomava de assalto o poder e destruía pensadores e aos maiores Quando o tribalismo da ignorância se começa dois princípios fundamentais de uma autêntica
os alicerces do saber científico. a sobrepor ao universalismo das ciências, já gramática científica: a procura incondicional
Ao fim de algum tempo, a resistência debates que permitiram não basta soar o alarme. Importa agir com da verdade, e a fundação dos alicerces de uma
contra a barbárie daria origem a um renas- fundar a cultura científica prontidão e firmeza. universalidade capaz de garantir a segurança da
cimento da curiosidade científica. Contudo, Este livro de Francisco Abreu não poderia nossa espécie e a protecção da nossa única, hoje
o que havia sobrado das arruinadas ciências moderna e contemporânea. ter sido publicado numa altura mais útil para o tão ameaçada, casa comum planetária. J
eram meros fragmentos de obras e conceitos Uma galeria de génios público que a ele poderá aceder. O autor ofe-
(por exemplo, “neutrino”, “massa”, “peso rece-nos uma viagem aos grandes pensadores
atómico”…), sem contudo existir um co- criativos, com inovações e e aos maiores debates que permitiram fundar a
nhecimento, sequer superficial, das teorias insucessos, mas sobretudo cultura científica moderna e contemporânea. › Francisco Abreu
gerais e dos seus contextos de enquadra- Nas páginas desta obra desfilam uma galeria FAZER CIÊNCIA, AFINAL,
mento mais vastos que pudessem revelar o
com disputas, hipóteses, de génios criativos, com as suas inovações É FASCINANTE
significado dos aparelhos conceptuais e das teorias e conceitos e insucessos, mas sobretudo com as suas Manufactura Editora, 400 pp., 19,90 euros
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Naufrágios PROPRIETÁRIA/EDITORA: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA.


SEDE: Rua da Fonte da Caspolima – Quinta da Fonte,
Edifício Fernão de Magalhães, nº8, 2770-190 Paço de Arcos
NIPC: 514674520
GERÊNCIA DA TRUST IN NEWS: Luís Delgado,
Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
COMPOSIÇÃO DO CAPITAL DA ENTIDADE

SOBREVERSÕES
PROPRIETÁRIA: 10.000,00 euros
PRINCIPAL ACIONISTA: Luís Delgado (100%)

J
PUBLISHER: Mafalda Anjos

Nuno Júdice

U
JORNAL
DE LETRAS,
ARTES E
ma boa leitura para os dias que o cofre se esgota, e por vezes mendigam o regresso à pátria IDEIAS
vivemos seria a História trágico- que roubaram. DIRETOR: José Carlos de Vasconcelos

marítima. Para os que não a Porém, em muitos dos casos, a viagem decorre sem
conhecem, e presumo que sejam incidentes e, quando se avista terra, o que os marinheiros
REDATORES: Maria Leonor Nunes, Manuel Halpern, Luís Ricardo Duarte.
muitos, é uma compilação de fazem é contar a felicidade da viagem, não poupando Colaboradores permanentes: Afonso Cruz, Agripina C. Vieira, A. C.
relatos de naufrágios feitos pelos esforços em elogiar esse espírito de grupo que lhes permitiu Cortez, A. Mega Ferreira, Boaventura de Sousa Santos, Carlos Fiolhais,
Carlos Reis, Daniel Tércio, Fernando Guimarães, Guilherme d’Oliveira
sobreviventes, quase sempre o sucesso e, por vezes, ganhar fôlego para recomeçar. Não Martins, Gonçalo M. Tavares, Helder Macedo, Helena Simões, J. Rego
de Almeida, João Gobern, João Ramalho Santos, Lídia Jorge, Manuela
salvos em circunstâncias atrozes, é este, como sabem os leitores desses textos em boa hora Paraíso, Mª Alzira Seixo, Mª Emília Brederode Santos, Mª José Rau, Mª
depois de terem assistido à morte recolhidos por Bernardo Gomes de Brito, o destino daquilo João Fernandes, Mª Augusta Gonçalves, Miguel Real, M. Sanches Neto,
Nuno Júdice, Onésimo Teotónio Almeida, Paulo Guinote, Patrícia Portela,
de muitos dos seus companheiros. A situação tópica destes que neles é contado. A nau principal, por vezes, desperta Sofia Soromenho, Tiago Patrício, Tiago Rodrigues, Valter Hugo Mãe e V.
naufrágios consiste na viagem de uma pequena expedição a inveja das suas seguidoras, e ao verem o seu sucesso, Soromenho-Marques

composta por três naus, a principal e duas secundárias alguns dos tripulantes das embarcações mais pequenas OUTROS COLABORADORES: A. Laborinho Lúcio, A. Cândido Franco, A. Pedro
Pita, A. Sampaio da Nóvoa, Ana Maria Bettencourt, Arnaldo Saraiva, B.
que dependem dela para o seu curso, embora a nau maior começam a murmurar. É, a princípio, um rumor feito às Bénard-Guedes, C. Mendes de Sousa, Fernando J. B. Martinho, F. Pinto
do Amaral, Gastão Cruz, Filinto Lima, E. Marçal Grilo, Graça Morais,
também dependa das outras para sustentar a sua navegação escuras, tentando soltar os demónios que cada um traz Hélia Correia, I. de Loyola Brandão, Inês Pedrosa, João Abel Manta, João
que pode durar quatro anos. À saída da barra, guiadas por dentro de si. Há um que pede um pouco mais de ração; Barrento, João Costa, J. A. Cardoso Bernardes, Jorge Fazenda Lourenço,
J.-A. França, José Luís Peixoto, José Manuel Castanheira, José Manuel
pilotos experientes, outro que desconfia Mendes, José Reis, J. Gomes André, Leonor Xavier, Manuel Alegre, M.
o mar está calmo e que os porões vão Frias Martins, Marcello Duarte Mathias, Mª Fernanda Abreu, Mª Graciete
Besse, Mª Helena Serôdio, Mª Irene Ramalho, Mª Luísa R. Ferreira,
tudo decorre sem cheios, e não lhes Mário Avelar, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, M. Vieira de Carvalho,
imprevistos, com as contam o que trazem; Miguel Carvalho, Nélida Piñon, Norberto V. Cardoso, Ondjaki, Pilar del
Rio, Ramón Villares, Ricardo Araújo Pereira, R. Miguel Puga, Rui Vieira
naus à vista umas das outros ainda que, Nery, Salvato Teles de Meneses, Sérgio G. Sousa, Sérgio Rodrigues, Sofia
Soromenho, Teolinda Gersão, Teresa Toldy
outras. É possível que pura e simplesmente,
PAGINAÇÃO: Patrícia Pereira
se percam, numa ou querem deitar abaixo
SECRETÁRIA: Teresa Rodrigues
noutra circunstância o comandante e
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO: Gesco
de ventos mais fortes, substituí-lo por outro, REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS COMERCIAIS: Rua da Fonte da
ondas maiores ou mais fraco, que lhes Caspolima – Quinta da Fonte, Edifício Fernão de Magalhães, 8
2770-190 Paço de Arcos - Tel.: 218 705 000 Fax: 218 705 001
nevoeiros, mas o facto façam as vontades. email: jl@jornaldeletras.pt. Delegação Norte: Rua Roberto Ivens, 288
de serem três ajuda a A situação talvez 4450-247 Matosinhos - Tel.:220 993 810

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(Assistente Comercial) eanacleto@visao.pt; Florbela Figueiras (Assistente
as fazem perder um e os passageiros é Comercial) ffigueiras@visao.pt; DELEGAÇÃO PORTO: Margarida Vasconcelos
ou outro mastro, ou mais forte do que (Gestora marca) mvasconcelos@trustinnews.pt; Rita Gencsi (Assistente
Comercial) rgencsi@trustinnews.pt PARCERIAS E NOVOS NEGÓCIOS: Pedro
mesmo fazer com que esses desejos de Oliveira (Diretor) poliveira@trustinnews.pt
alguns dos tripulantes, revolta; e há uma BRANDED CONTENT: Rita Ibérico Nogueira (Directora)
rnogueira@trustinnews.pt
temendo pela vida, certa solidariedade
TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO: João Mendes (Diretor)
salte borda fora e se que se cria até
Telf Lisboa – 21 870 5000
renda ao inimigo que, aportarem à ilha onde Telf. Porto – 22 099 0052
muitas vezes, o acolhe História Trágico-Marítima Pintura de Helena Vieira da Silva o remédio de fruta PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO: Vasco Fernandez (Diretor); Pedro Guilhermino
no seu bordo e chega fresca se revela ser (Coordenador de Produção); Nuno Carvalho, Nuno Gonçalves e Paulo
Duarte (Produtores); Isabel Anton (Coordenadora de Circulação)
mesmo a conceder- uma solução mágica
ASSINATURAS: Helena Matoso (Coordenadora de Assinaturas)
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Felizmente, doentes se tenham perdido pelo caminho. IMPRESSÃO: Lisgráfica – Casal de Sta. Leopoldina – 2745 Queluz de
Baixo. Distribuição: VASP MLP, Media Logistics Park, Quinta do
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mesmo a referência À saída da barra, que, afinal, ainda não existem, ou estão atacadas pelos ratos Estatuto editorial disponível em www.visao.sapo.pt/informacaopermanente
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de alguns que guiadas por pilotos e pelo bolor. E o pior acontece: as naus mais pequenas, as nem pela exatidão das características e propriedade dos produtos
fugiram com mais fracas, resolvem abandonar a principal, e seguir cada e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a
o cofre cheio e experientes, o mar está uma para seu lado, pensando que vão ganhar alguma coisa realidade, são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes
e agências ou empresas publicitárias. Interdita a reprodução, mesmo
partiram para calmo e tudo decorre com isso. parcial de textos, fotografias ou ilustrações sob qualquer
meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais.
locais de difícil Como diz Bernardo Gomes de Brito, na sua conclusão: “É
acesso, nessa sem imprevistos, com cousa de muita mágoa considerar na perda de tantas naus
PORTE PAGO

altura em que as naus à vista umas das desta carreira da Índia, e quase todas por desastre e cobiça
não havia meio insaciável; e não quero dizer o porquê mais.”
de os alcançar, o outras. É possível que Fique esse porquê para cada um; e considere que, em Assine o Ligue já 21 870 5050
Dias úteis: 9h às 19h

que ainda hoje, se percam, numa ou vez de um só galeão, que sempre chega ao porto porque
nalguns casos, tem solidez, poderiam ter sido três os que iriam atingir
pode suceder,
noutra circunstância, o destino. Em vez disso, perdem-se os passageiros, as
permitindo a esses mas o facto de serem fortunas, a boa terra que iriam ajudar a povoar e enriquecer;
fugitivos viverem e morrem sem dizer ámen, apenas porque sonharam que
das suas riquezas
três ajuda a explicar o também eles eram galeões, e não essas pequenas naus
furtadas até que bom curso da viagem condenadas a um naufrágio sem glória nem virtude. J
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ILUSTRAÇÃO DE VALTER HUGO MÃE


Os Lusíadas
no ‘feminino’
Pedro Calapez É uma edição diferente das inúme-
ras edições ao longo dos séculos de Os
Lusíadas. Desde logo, e fundamentalmen-
te, por isto: é da inteira ‘responsabilidade’

AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA
de mulheres.
Assim, a fixação e atualização do
texto, muito competente trabalho, é de
Valter Hugo Mãe

T
Rita Marnoto, profª da Fac. de Letras da
Universidade de Coimbra, que na última
edição escreveu aqui no JL sobre Dante e,
como noticiamos, comissária para as co-
enho muitas vezes a impressão de que, que não podemos responder em absoluto com aquilo que já sabe- memorações dos 500 anos de Camões.
diante de uma obra de Pedro Calapez, o mos, também é dizer que não podemos ser em absoluto aquilo que Além disso, a edição é ilustrada só por
espaço inteiro se repensa e me compete, já somos. É urgente ser de outra maneira. A obra destitui-nos de mulheres. Dez, cada uma fazendo uma
enquanto observador, criar verdadeira- nossos pontos cardeais, procura um pacto de rasura com o passado e ilustração para um canto, e precedendo-
mente o dentro e fora, definir onde estar não há senão sua própria regra, outra regra ainda não dominada, um -o. Essas dez artistas são: Carolina Celas,
e onde não é de estar. Pelas formas, código por quebrar. Joana Rego, Joana Estrela, Madalena
pelas cores ou por ambas, as telas, os Está na Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva a exposição Matoso, Amanda Baeza, Inês Machado,
papéis ou as instalações sugerem-me Perto da Margem, com um vasto conjunto de obras de Calapez Mariana Rio, Catarina Gomes, Marta
esse jogo de interiores e exteriores como produzido, segundo a informação disponível, sobretudo desde o ano Madureira e Marta Monteiro. E, para cul-
se perturbassem a certeza de sermos presentes. Estamos ou não de 2019. Comissariada pelo grande João Pinharanda, esta exposição minar, 'design' do volume de Joana Pires.
inscritos na obra? De que modo nos identifica quando é substancial- traça um percurso perfeito pelos costumes do artista. Da obra como A escolha das ilustradoras foi do júri dos
mente um desafio ao lugar, a encontrar lugar, um desafio a rever o estudo da quase ausência, até à instalação que propõe a demasia, um vários prémios da Bienal de Ilustração de
mundo segundo formas e cores que jamais seriam expectáveis ou até certo fascínio também agressor da cor e da luz, ou à instalação do Guimarães - em 3ª edição, e que se pro-
traduzíveis? efetivo labirinto, por sinal bastante opressor, extenso obstáculo que longa até ao fim do ano –, na qual o livro,
Estamos numa equação nova e única. Cada peça é essa explo- se levanta robusto, passando pelas peles do quebra-cabeça, o molde de capa dura e em bom papel, foi lançado
ração do imprevisível, e também do acidental, o que parece impor que sobra de algo que não teremos como saber o que é. a 21 de outubro. Já agora a obra foi possível
a sua esdrúxula, inclassificável, naturalidade e acarreta do mesmo Percorrer as salas da Fundação é caminhar por claros e escuros, graças ao apoio da Câmara da cidade, cuja
modo o sobressalto. Não há segurança, nada é concreto, frequen- mas sempre pelo que não se denuncia. O enigma é inteiro e o grande vice-presidente, e vereadora da Educação,
tamos as obras como desconfiados alienígenas no questionamento sentido radica na emoção. Entre os claros e os escuros, a intensidade também é uma mulher, Adelina Pinto. E
ao que é humano porque da cor, sua palidez ou apagão, seguimos igualmente convidados ao a chancela é da editora Kalandraka, que
não podemos responder deslumbre mas jamais à revelação do segredo. tem como diretora, claro, uma mulher,
em absoluto com aquilo A arte é uma ciência cujo conhecimento se impede por natureza. Margarida Noronha – que no lançamen-
que já sabemos. Conhecer é um bocado, como extremidade generosa, mas seu fito é to do livro afirmou sentir um "orgulho
Frequentar a arte de a devolução da responsabilidade. A arte devolve tudo ao observador. imenso" por o ter no catálogo, dado a sua
Calapez é voltar a não É este que encontrará em si mesmo aquilo que há para conhecer. É o "modernidade gráfica, que pode levar o
saber e aceitar que tudo Estamos numa equação observador o próprio objeto de estudo. Frequentar a obra é assumir a poema épico de Luís Vaz de Camões a ‘pú-
é um questionamento responsabilidade de se frequentar a si mesmo. O artista fica, enquanto blicos-alvo’ diferentes dos habituais”
que não admitiu ainda nova e única. Cada tal, incólume, sempre impune. Nisto, o caso de Calapez é exemplar. A edição é de 1 200 exemplares, 600
verdadeira superação. peça é essa exploração Fiquei parado nos desenhos, coleção de linhas na alvura franca no mercado, preço 35 euros. Dos ou-
Neste sentido, não en- do papel. Suspende-se o peso, os corpos. A obra é como um cabelo tros 600, 300 vão ser distribuídos pela
contro jamais a sensação do imprevisível, e ensimesmado, uma propensão para o ínfimo como se do nada Universidade do Minho, parceira no
de me haver apaziguado também do acidental, voltasse a haver identidade, ou para o nada caminhasse. Gosto do projeto, a para cujo reitor, Rui Vieira de
por completo com uma modo como precisamos de ver no espaço vazio algo que se estrutu- Castro, essa é uma maneira de alargamen-
obra de Pedro Calapez. o que parece impor ra. Não aceitamos a queda contínua, sem mais chão. Mas é o que me to da ação e das fronteiras das instituições
Ao contrário, fico com o a sua inclassificável impressiona naquela série. O desenho voga infinitamente, espectral, de ensino superior. Em cima reproduz-se
dilema magnífico de me é também um corpo desbastando até se perder para sempre na luz. a capa do volume, em outra oportunidade
desconhecer. naturalidade e acarreta o Gosto muito. Gosto de não saber que corpo foi, ou que corpo virá a se reproduzirão talvez algumas das suas
Quando digo acima sobressalto ser, e precisar apenas de aceitar que corpo ainda é.J ilustrações. J
32 ↗
J 3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

HOMEM DO LEME
Morder com êxito Manuel Halpern

Falsos futuros
NA HORA DE COMER O TREINADOR
A
Patrícia Portela

N
realidade é a três dimensões, mas o
2D é mais realista. No passado dia 27,
no City Alvalade, o cinema português
viveu um momento histórico de que poucos se
ão deve ter sido só hoje, mas hoje menti- cado na combinação 21. O Trovão e o relâmpago combinam-se num aperceberam. Edgar Pêra exibiu, pela última
ram-me. Eu assisti sem me mover no es- padrão. Simbolizam o morder. vez, um filme 3D, pondo termo à sua pesquisa
paço. Sem respirar. Perguntei novamente. Não deve ter sido só hoje, mas hoje falei de uma pessoa que não e criação à volta do formato, com filmes que
A sensação foi ligeiramente incómoda. me lembro de mencionar há mais de 20 anos e dez minutos depois também serviram de tese de doutoramento.
Tentei lembrar-me das razões que me tinha uma notificação numa das minhas redes sociais a confirmar Kinorama é a despedida de um futuro por
levavam a aceitar este emprego todos os que essa pessoa reagira, pela primeira vez, a uma história minha. cumprir. O próximo filme, uma ficção à volta
dias. O cérebro lembrava-se de qualquer As coisas ouvem-nos, as máquinas ouvem-nos, as empresas co- de Pessoa e dos seus heterónimos, ficar-se-á
coisa como: segurança, mais 50€ por mês, merciais são todas ouvidos. Isto está tudo ligado e não é pelas forças já pelas duas dimensões, apesar das persona-
um contrato, e a inscrição na nova escola do Universo. Desinstalo as aplicações das redes sociais no telefone. gens serem côncavas e convexas. A decisão
do meu mais velho que necessita de mais apoio e que está muito melhor Limpo o caixote do lixo do ambiente de trabalho do computador. O prende-se com vários fatores, o mais deter-
desde que o mudámos. O cérebro lembrava-se, mas o corpo não. O corpo histórico de todas as pesquisas na Google. minante é a exibição: as salas de cinema de
anda inchado. Anda sem apetite. Ou com muito apetite, a meio da noite. Leio a Componente 2 do yin – morder através da carne tenra, de autor em Portugal não estão apetrechadas com
Não deve ter sido só hoje, mas hoje a pergunta surgiu com maior modo que o nariz desaparece. Dominar com força firme. a tecnologia 3D, o que deixa os filmes de Pêra
clareza na cabeça e o veneno espalhou-se pelo corpo que não se lembra Atravesso a rua e vou ao teatro. Compro um bilhete para ver fechados numa quadratura do círculo — os que
para o acordar: Se eu me for embora daqui vou sentir falta de alguma Infomaníaco de André e Teodósio*. Não há muitos lugares onde se possa o querem exibir não podem, os que podem não
coisa? Esperei pela resposta. Senti a cura das ideias quando aparecem pela ser outro sem ter de ser escutado. Saio de casa porque posso, não porque querem.
primeira vez. Fui à pasta dos calendários. Contei as horas extraordinárias. quero ou me apeteça. Entro no teatro por hábito. A escuridão acompa- Desconheço que no mundo haja outros
Troquei tudo em folgas. Comecei a contar os dias para o fim do contrato. nhada ainda me oferece conforto. Apagam-se as luzes. O espetáculo autores a trabalhar o 3D, pelo que esta última
Terminei o dia mais cedo e saí do escritório para me enfiar na cine- vai começar. A plateia serve de cenário a um homem de meia idade que experiência de Pêra poderá também ser a
mateca. Não há muitos lugares onde nos podemos esconder do que nos se move de forma estranha. Sem parar. Fala dele, fala de mim, fala do derradeira obra de um 3D independente.
acontece. O filme era de Kurosawa, Ikuru. A história de um burocrata que lhe aconteceu a ele, ao universo, ao fio que a avó lhe deu, às células Ideia, diga-se, que nunca teve grande fôlego,
com uma doença terminal que decide questionar-se sobre o sentido da e aos organismos, à Via Láctea e repete: hoje o dia passa, hoje o dia é o apesar das experiências de Werner Herzog,
vida. A certa altura, num jantar de des- dia de ontem, hoje é também há dois Wim Wenders (que parafraseio no início deste
pedida com os seus colegas de trabalho, mil anos, hoje é também 1911, e 2001, texto), entre outros. Os filmes 3D de autor
um deles comenta: É muito fácil manter e 2006 e 2021. O homem não para arriscam-se assim a ficar inscritos nas obras
um lugar, basta não te mexeres. de falar nem para de se mexer e, no de arte efémera.
Saí do filme sem vontade de ir entanto, ele não está ali. Ele dissolve-se Quando, em 2009, James Cameron lançou
para casa, hoje é o dia em que estão na energia daquele tempo que se passa Avatar, batendo recordes de orçamento e de
todos fora. O João trabalha no turno comigo. E ele explica: Eu antes queria bilheteira, nada fazia crer que aquele não seria
até às cinco da manhã, e os filhotes rebentar com isto tudo, queria chegar a um novo futuro. Mas quando a academia, para
ficam sempre com a avó de sexta para um teatro e rebentar com isto tudo. Ele surpresa de muitos, lhe negou o Oscar, entre-
sábado. hoje é a explosão que não tem detona- gando-o à sua ex-mulher Kathryn Bigellow,
Não deve ter sido só hoje, mas hoje dor. Isto está tudo ligado, diz ele. Mas por Estado de Guerra, subliminarmente estava
o governo em que votei traiu-me. é ele que está todo ligado, como se ele a afirmar que o caminho da indústria não seria
Jogou ao bilhar comigo. Colocou as não fosse ele mas algo maior do que ele, por aí. E não foi. O 3D até poderia ser uma boia
urnas dos votos à frente das urnas dos enquanto eu estou ligada a algo que me de salvação para as salas de cinema, com a sua
mortos, as contas do ábaco à frente faz mirrar. vertente lúdica, quase pirotécnica, difícil de
das contas de vidro, o braço de ferro Componente 3 do yin - morder reproduzir no sofá da sala. Mas, simplesmente,
à frente do braço que abraça, carrega, André e Teodósio em Infomaníaco, no Devir/Capa carne seca chegando ao veneno. Há fracassou.
segura, ajuda, ensina, conduz a mão um certo embaraço, mas não há culpa. Segundo Pêra, o grande obstáculo são os
a desenhar a história e a reescrever a Não tenho culpa, mas também não óculos. Enquanto não chegarmos à tecnologia
lei. E eu assisti. E pensei: era isto que tenho razão, penso. E o homem con- autoestereoscópica o 3D não tem futuro, por-
Hume dizia quando afirmava que causa e efeito são apenas um hábito tinua a mexer-se e a sua energia contagia-me. Lembro-me que o meu que aqueles objetos são obstáculos à liberda-
e que não temos como prever onde uma bola vai bater quando lhe corpo não se mexe há muito. Nem em direção ao amor, nem na direção de de movimentos do espectador, que quer
acertamos com um taco numa mesa de bilhar? do trabalho, nem na direção do outro, nem na minha direção. O meu sentir-se à vontade para olhar para o telemóvel
Passo por uma livraria. Não há muitos lugares onde possamos corpo há muito é arrastado pelo chão, preso por um pé com uma corda enquanto vê o filme.
conversar sem abrir a boca que não sejam ruidosos. Compro o Livro que está amarrada a um cavalo desenfreado sem cenoura à frente. Uma questão chave é a imersibilidade.
das Mutações, de I Ching. As lojas entretanto fecharam, os cafés e os Chegar ao veneno significa estar fora do lugar. Ou seja, a capacidade que alguns filmes têm
jardins enchem-se de jovens. Decido ir para casa aquecer qualquer O espetáculo termina e eu fico na dúvida se deveria aplaudir a minha de nos levar para dentro da tela e fazer com
coisa do dia anterior. desintegração moral e física perante este homem que me provou que que nos esqueçamos que estamos no cinema.
Não deve ter sido só hoje, mas hoje sinto-me claramente dividida. está tudo ligado e é muito maior do que o que ocupa os meus dias. No 3D tal é improvável, tudo é demasiado
Vivo fechada numa torre de pele como se fosse de marfim. Prometi Regresso a casa para ler o Livro das Mutações como se fosse um romance. artificial, desde os óculos mal presos no nariz
a mim mesma que nunca mais jogaria xadrez. Se a vida não tem só Componente 4 morder carne seca e com osso, descobre uma às imagens que se aproximam e afastam num
reis, rainhas, bispos, cavalos e peões, então os jogos também não flecha de ouro. É vantajoso ser diligente, é bom presságio ser cons- irrealista simulacro de realidade.
deveriam ter. Tenho de fazer qualquer coisa. Tomar alguma decisão tante e íntegro, quando ainda não se alcançou distinção. A ideia de 3D está na História desde os
que afete de forma mínima mas irreversível o curso dos meus dias. Tudo verdades infomaníacas. Abro um caderno e decido escre- seus primórdios. Já no século XIX se fizeram
Chego a casa. Abro o livro que comprei numa página ao calhas ver tudo o que me vem à cabeça. Quando já não sei o que escrever experiências. De momento voltamos a colocar
enquanto aqueço os restos do jantar de ontem. aponto a componente 5 da mutação do trovão e do relâmpago. este futuro em pausa. Mas sabemos que um
Morder com êxito é útil ao exercício da justiça. 5 mordendo carne seca descobre ouro amarelo. Se for constante dia havemos de conseguir tirar o cinema da
Penso: para que estas instruções sejam fiáveis, devo proceder no perigo, não haverá problema. Ser constante no perigo significa tela. Ou fazer com que o espectador entre pelo
com verdade e não com razão. Para o exercício ser justo devo ser encontrar o que é justo. filme afora, como imaginou Woody Allen, em
maior do que a causa que me move ou a causa deve ser maior do Deito-me com uma estranha sensação de dia cumprido e até Rosa Púrpura do Cairo.J
que o meu movimento? tenho a sensação de estar a sorrir. Amanhã chego mais cedo ao
Devo Ter alguma coisa entre os maxilares, indica o Livro das Mutações. trabalho e mudo a secretária para a frente da janela. Amanhã, não
Mas não é fome o que tenho. É angústia. Concluo que os dias sei se voto no mesmo. Amanhã será hoje com mais dois mil anos de
estão cada vez mais cheios e, no entanto, encolhidos. A noite chega ouro e perigo para exercitar. J
cada vez mais cedo. O dia tem cada vez menos cores. Decido que
vou sair de novo de casa e levar comigo o Livro das Mutações mar- *Infomaníaco apresenta-se em Faro, no DEVIR/Capa dias 5 e 6 de novembro
Agenda Cultural
3 a 16 de novembro 2021

O Pecado de João Agonia


Clássico de Bernardo Santareno no palco do Teatro Carlos Alberto, de 11 a 21 de novembro

ALMADA Luís Lobão, Romeu Vala.


12 e 13 de novembro – 21h
E Moda Feminina no Século XX
até 16 de janeiro 2022
BRAGA
14 de novembro – 16h
Museu de Almada - Casa da Cidade Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa
T O Barbeiro de Sevilha
Pç. João Raimundo. Cova da Piedade.
3ª A S ÁB ., DAS 10 H ÀS 13 H E DAS 14 H ÀS 18 H Espetáculo de marionetas. Encenação de
AVEIRO R. dos Bombeiros Voluntários. Tel.: 253 273 706
3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 17 H 30
Teresa Gafeira. Interpretação de Anabela
E Entre Dois Mares e Um Rio. Teatro Aveirense E Coleção Bühler-Brockhaus
Ribeiro, Marco Trindade, Vera Santana.
Almada, 3 Mil Anos de História R. Belém do Pará. Tel.: 234 400 920 exposição de longa duração
13 de novembro – 16h
até 31 de dezembro 2022 M Mimi Froes
14 de novembro – 11h
4 de novembro – 22h Theatro Circo
Teatro Municipal Joaquim Benite Av. da Liberdade, 697. Tel.: 253 203 800
M Sons Misteriosos
Av. Prof. Egas Moniz. Tel.: 212 739 360 AMARANTE Direção artística de Sofia Dias & Vítor Roriz. M Nova Arcada Braga Blues -
T Nem Come Nem Deixa Comer 7 de novembro – 16h Budda Power Blues & Maria João
Texto de Lope de Veja. Encenação de Ignacio Museu Mun. Amadeo de Souza-Cardoso 8 de novembro – 10h30 e 14h30 4 de novembro – 21h30
García. Interpretação de Ana Cris, David Al. Teixeira de Pascoaes. Tel.: 255 420 282 9 de novembro – 10h30 M Gilberto Gil
Pereira Bastos, Diogo Bach, Leonor 3ª A D OM ., 10 H ÀS 12 H 30 E DAS 14 H ÀS 18 H 5 de novembro – 21h30
NC Une Partie de Soi
Alecrim, Margarida Vila-Nova, entre outros. E Amadeo, Entretecem-se as Gerações... Escrita e interpretação de João Paulo Santos. M Nopo Orchestra - Rão Kyao,
5ª A SÁB., ÀS 21H; 4ª E DOM., ÀS 16H; 1 DE DEZEMBRO, ÀS 21H até 31 de dezembro
5 de novembro a 5 de dezembro
12 de novembro – 21h30 Karl Seglem e Francisco Sales
6 de novembro – 21h30
T Um, Dois, Três!
Texto de Ferenc Molnár. Encenação de ANGRA DO HEROÍSMO BATALHA T Faz-me Rir
Com Heloísa Périssé.
António Pires. Tradução de Rodrigo Francisco.
Interpretação Adriano Luz, Carolina Serrão, Carmina Galeria de Arte Contemporânea 11 a 13 de novembro – 21h30
Mosteiro da Batalha
Duarte Guimarães, Francisco Vistas, Hugo Outeiro do Galhardo, 13A, Ladeira Grande. T Feira de Outubro
Lg. Infante D. Henrique. Tel.: 244 765 497
Mestre Amaro, Jaime Baeta, entre outros. 3 ª A 5 ª , DAS 9 H 30 ÀS 12 H E DAS Autor de António Onetti. Encenação de
13 H 30 ÀS 16 H ; 6 ª E S ÁB ., DAS 17 H ÀS 20 H E Almada Negreiros e o Mosteiro da Rui Dionísio. Interpretação de Ana Lúcia
4 e 6 de novembro – 21h Batalha - Quinze Pinturas Primitivas
7 de novembro – 16h E Re_act Contemporary 2021: I Have Magalhães, Juana Pereira da Silva e Sara Cipriano.
Been in Love for 8 Million Years num Retábulo Imaginado 16 de novembro – 21h30
T Um Gajo Nunca Mais é a Mesma Coisa até 21 de dezembro
Texto e encenação de Rodrigo Francisco. até 8 de janeiro 2022
Interpretação de Afonso de Portugal, João CALDAS DA RAINHA
Farraia, Luís Vicente, Pedro Walter, Lara Mesquita. Museu de Angra do Heroísmo BEJA
3ª E 4ª, ÀS 15 H ; 5 ª , 6 ª E S ÁB ., ÀS 21 H ; D OM ., ÀS 16 H Ladeira de São Francisco. Tel.: 295 240 800
3ª D OM ., 10 H 17 H 30
Centro Cultural e Congressos
9 a 21 de novembro A DAS ÀS
Centro de Arqueologia e Artes de Beja R. Dr. Leonel Sotto Mayor. Tel.: 262 094 081
T Killology E Nove Séculos de Amoedação Pç. da Republica. E Uma História com Violência
Texto de Gary Owen. Encenação de Portuguesa. A Doação de Luís 3ª A S ÁB ., DAS 10 H ÀS 13 H E DAS 15 H ÀS 19 H
Exposição de pintura de Miguel Ângelo Marques.
Gonçalo Carvalho. Tradução de José Vala Filipe Thomaz - Primeira Parte E Cangiante. A Partir da Coleção da CGD até 9 de novembro
Roberto. Interpretação de Diogo Mesquita, até dezembro de 2021 até 6 de novembro
M Orquestra Jazz de Matosinhos
4 de novembro – 21h30
M Tord Gustavsen Trio
5 de novembro – 21h30
C Os Grandes Standards do Jazz:
Uma Viagem Sonora e Comentada
Conferência por João Moreira
dos Santos e Cláudio Alves.
5 de novembro – 23h
M Samara Joy com Pasquale Grasso Trio
6 de novembro – 21h30
M Impulso: Glockenwise + Tó Trips
11 de novembro – 21h30
M Orquestra Gulbenkian
12 de novembro – 21h

Museu José Malhoa


Parque D. Carlos I. Tel.: 262 831 984
3 ª A S ÁB ., DAS 10 H ÀS 12 H 30 E DAS 14 H ÀS 18 H ;
D OM . E F ERIADOS , DAS 10 H ÀS 14 H E DAS 15 H ÀS 18 H
E Casulos. José Malhoa,
Dado e Carolein Smit
22 OUT 2021 até 9 de janeiro 2022
09 JAN 2022

CASCAIS
Casa das Histórias Paula Rego
Av. da República, 300. Tel.: 214 826 970
T ODOS OS D IAS , DAS 10 H ÀS 13 H E DAS 14 H ÀS 18 H
E Coleção de Arte Britânica do CAM
até 30 de janeiro 2022
Agenda Cultural
A audiovisual » C colóquios / conferências » D dança » E exposições » M música » MD multidisciplinares » NC novo circo » P pedagogia » T teatro

Centro Cultural de Cascais M Orquestra Filarmonia Vale de Gato. Apoio à dramaturgia


Av. Rei Humberto II de Itália. Tel.: 214 848 900 da Beiras & S.A. Marionetas de Dina Mendonça. Interpretação
3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H 6 de novembro – 21h30 de Leonor Keil e Gonçalo Alegria.
E João Abel Manta, M Homenagem 400 anos 3 a 5 de novembro – 11h
A Máquina de Imagens Francisco Rodrigues Lobo M Mísia: As Mais Bonitas
até 16 de janeiro 2022 Interpretação da Filarmónica de Chãs e convidados. 4 de novembro – 19h (presencial) e 21h30 (online)
E Mostra Espanha: Núria Vidal 7 de novembro – 16h T Monólogo de uma Mulher
até final de janeiro 2022 M Noiserv: Uma Palavra Começada Por N Chamada Maria com a sua Patroa
E Coleção José Lima 12 de novembro – 21h30 Criação, texto e interpretação de Sara Barros Leitão.
até 6 de fevereiro 2022 T Vamos a Tempo, Avô? 4 e 5 de novembro – 21h
Produção Teatro de Animação de Sta. Eufémia. 6 de novembro – 19h
Espaço Memória TEC 14 de novembro – 16h 7 de novembro – 16h
Av. Marechal Carmona, 104. Tel.: 214 670 320 M London Community Gospel Choir
3ª A D OM ., DAS 15 H ÀS 19 H Teatro Miguel Franco Presents: One Night With The Beatles!
E Carlos Alberto Vidal: R. Dr. Correia Mateus. Tel.: 244 839 680 5 de novembro – 21h
o AVÔ das nossas CANTIGAS M Deepway M A Cor Amarela
até 19 de dezembro 5 de novembro – 21h30 Interpretação da Orq. Metropolitana de Lisboa,
M HHY & The Macumbas sob a direção de Pedro Neves, e Wu Wei (sheng).
Museu Condes de Castro Guimarães 6 de novembro – 19h Obras de M. Azguime, L. Freitas Branco e H. Ruo.
Av. Rei Humberto II de Itália. Tel.: 214 815 303 M Um Avô Apaixonado 7 de novembro – 17h
E Acqua in Bocca – Vidros de Concertos para bebés. Direção de Paulo C Real + 51N4E
Murano na Coleção do MCCG Lameiro. Com Paulo Lameiro, Alberto Roque, 10 de novembro – 18h30
até 27 de fevereiro 2022 José Lopes, Pedro Santos, Inesa Markava, Isabel M Carles Dénia
A Benção dos Animais Catarino. Solista convidado Gil Gonçalves. 12 de novembro – 21h
D Jezebel
COIMBRA 7 de novembro – 10h e 11h30
A Shortcutz Leiria Coreografia e performance de Cherish Menzo.
Convento São Francisco FARO 11 de novembro – 21h30 13 a 15 de novembro – 19h
A SOB A TERRA um Processo Criativo M Enoch Arden
Av. da Guarda Inglesa 3. Tel.: 239 857 190
4ª A 2ª, DAS 15 H ÀS 20 H Teatro das Figuras Documentário realizado por Álvaro Romão. Com Rita Blanco (declamação) e
Horta das Figuras, E. N. 125. Tel.: 289 888 100 13 de novembro – 21h30 Nuno Vieira de Almeida (piano e direção).
M Misty Fest: Nopo Orchestra
E A Drawing Exercise Programa: R. Strauss (1864-1949), Enoch Arden.
5 de novembro - 21h31
Exposição da artista Ana Rostron. 14 de novembro – 17h
T Coimbra-C, Estação Exílio S.Ó.S.
Direcção de André Gago. Interpretação de 3 de novembro a 23 de dezembro LISBOA
T Romeu & Julieta Cordoaria Nacional
André Gago, Helena Faria e Sérgio Costa.
Texto e criação de Cláudia Jardim, Av. da Índia. Tel.: 213 637 635
7 de novembro – 18h
Diogo Bento e Pedro Penim. Interpretação Biblioteca Nacional de Portugal E Ai Weiwei – Rapture
NC CRASSH_DuoCircus
de Cláudia Jardim e Diogo Bento. Campo Grande, 83. Tel.: 217 982 000 até 28 de novembro
Criação WETUMTUM.
7 e 8 de novembro – 16h 4 de novembro – 14h30 e 19h E João da Rocha:
M V Festival Intern. de Guitarra de Faro um Escritor a Descobrir Culturgest
E Formas: do Texto R. Arco do Cego, 1. Tel.: 217 905 155
Pelo Quarteto Concordis com Orq. Clássica do Sul. até 17 de dezembro
Tangível ao Imaterial E O Pequeno Mundo.
4ª A 2ª, DAS 15 H ÀS 20 H 5 de novembro – 19h E Seara Nova, Editora de Livros
7 de novembro a 2 de janeiro 2022 M António Zambujo até 31 de dezembro A Partir da Coleção da CGD
6 de novembro – 21h30 E A Bibliotheca Iluminada Curadoria: Sérgio Mah.
M Misty Fest: Matthew
T Parlamento Shakespeare até 22 de janeiro 2022 Artista convidado: Gonçalo Barreiros.
Halsall – Salute To The Sun 3ª A DOM., DAS 12H ÀS 19H; SÁB. E SOM., DAS 11H ÀS 18H
10 de novembro – 19h Criação de Bestiário e Joana Petiz. E Um Arquivo, Doze Documentos
Texto de Bestiário e Joana Petiz, partir até abril 2022 até 31 de dezembro
M Jazz Momentum #2: Desconcertos E Samson Kambalu: Fracture Empire
de À Vossa Vontade, de William E Mestres e Monstros
11 de novembro – 19h
Shakespeare. Interpretação de Afonso Viriato, Exposição de Pedro Proença, até 6 de fevereiro 2022
T Ónus M Oriente:Ocidente – Cage:Otte
Joana Petiz, Miguel Ponte e Teresa Vaz. artista plástico e escritor.
Encenação de Ricardo Vaz Trindade. Cocriação
10 de novembro – 14h30 e 19h 10 de novembro a 8 de janeiro 2022 Recital de piano por Joana
de Costanza Givone, Fernando Giestas,
M Serena Serenata C República das Letras – Gama e Margaret Leng Tan.
Nuno Camarneiro e Ricardo Vaz Trindade.
De Mário João Alves. Criação Ópera Isto. Palácios do Espírito. Livros e 6 de novembro – 19h
Texto de Fernando Giestas e Nuno Camarneiro.
14 de novembro – 11h30 itinerários (Séculos XVII-XIX) T Alkantara Festival:
11 e 12 de novembro – 21h30
Sessão com presença de Pierre-Antoine História(s) do Teatro II
M Misty Fest: Wim Mertens – Inescapable
Direção de Faustin Linyekula. Em francês e
13 de novembro – 21h30 GUIMARÃES Fabre, José Adriano de Freitas Carvalho
e moderação por Zulmira Coelho Santos. lingala com legendagem em português e inglês.
M Um Avô Apaixonado 13 de novembro – 21h
Concertos para bebés. Direção de Paulo 11 de novembro – 16h
Centro Cultural Vila Flor 14 de novembro – 19h
Lameiro. Com Paulo Lameiro, Alberto Roque, Av. D. Afonso Henriques, 701. Tel.: 253 424700 C Do Folhetim ao Livro:
José Lopes, Pedro Santos, Inesa Markava, Isabel M The Vijay Iyer Trio Featuring o Percurso do Romance O Coruja
Fund. Arpad Szènes - Vieira da Silva
Catarino. Solista convidado Gil Gonçalves. 12 de novembro – 14h30
Linda May Han Oh and Tyshawn Sorey Pç. das Amoreiras, 56. Tel: 213 880 044
14 de novembro – 10h 4 ª A DOM .. DAS 10 H ÀS 18 H ; ENCERRA 2 ª , 3 ª E FERIADOS
11 de novembro – 19h30
M Miguel Zenón Quartet E Pedro Calapez: Perto da Margem
Museu Nacional de Machado de Castro Centro Cultural de Belém até 16 de janeiro 2022
12 de novembro – 19h30
Lg. Dr. José Rodrigues. Tel.: 239 853 070 Pç. do Império. Tel.: 213 612 400
M WHO Trio E Viera da Silva & Arpad
3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 17 H 30 E Do Outro Lado da Toca
13 de novembro – 16h Instalação imersiva de Alice Albergaria Azenes na Colecção Ilídio Pinho
E O Vinho
M Chris Lightcap’s SuperBigmouth Borges, Beatriz Bagulho e Madalena Castro. até 16 de janeiro 2022
Mostra de trabalhos de Paula Rego.
até 5 de dezembro 13 de novembro – 19h30 4ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 13 H E DAS 14 H 30 ÀS 18 H E Kaissa
M Big Band da ESMAE até 4 de dezembro Exposição de fotografia de Anne Lefebvre.
14 novembro – 16h E At Play: Arquitetura & Jogo C ASA -A TELIER V IERA DA S ILVA
C O N D E I X A - A -N O V A 3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H até 22 de janeiro 2022
até 30 de janeiro 2022
Museu Monográfico de LEIRIA E Fragmentos Arqueológicos da Fundação Calouste Gulbenkian
Conímbriga - Museu Nacional Arquitetura Portuguesa 1987–2006 Av. de Berna, 45ª. Tel.: 213 3880 044
Conimbriga. Tel.: 239 941 177 Teatro José Lúcio da Silva 3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H 2ª, 4ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H
2ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H Av. Heróis de Angola. Tel.: 244 834 117 até 30 de janeiro 2022 E Visões de Dante.
E Palmira, a Rainha do Deserto M Lena D’ Água T Paradoxos de Alice O Inferno Segundo Botticelli
até 27 de novembro 5 de novembro – 21h30 Direção de Maria Gil. Tradução de Margarida até 29 de novembro
Agenda Cultural
A audiovisual » C colóquios / conferências » D dança » E exposições » M música » MD multidisciplinares » NC novo circo » P pedagogia » T teatro

E Hergé FCSH/ NOVA - CIEG/ISCSP- UL), M Mistyfest 2021: Suso Sáiz Museu Nacional dos Coches
2ª, 4ª, 5ª, SÁB. E DOM., DAS 10H ÀS 18H; 2ª, DAS 10H ÀS 21H integrada no ciclo “Mulheres Pintoras 7 de novembro – 21h Av. da Índia, 136. Tel:210 732 319
até 10 de janeiro 2022 no Mundo Ibero-Americano” 2021- 2022. M Mistyfest 2021: Matthew Halsall 3ª, DAS 14 H ÀS 18 H ; 4 ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H
E Fernão Cruz. Morder o Pó 11 de junho – 17h 11 de novembro – 21h E Dante Plus 700
até 17 de janeiro 2022 M Mistyfest 2021: Nancy Vieira, até 31 de dezembro
E Manoel de Oliveira Fotógrafo Museu Colecção Berardo Manhã Florida M Banda de Música de Mateus
até 17 de janeiro 2022 CCB. Pç. do Império. Tel.: 213 612 878 14 de novembro – 17h e 21h A NTIGO P ICADEIRO R EAL
3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 19 H 6 de novembro – 16h
E Coleção de Arte Britânica do CAM M Tangabile Para Astor
até 30 de janeiro 2022 E Matéria Luminal Por Solistas da Camerata Atlântica e convidados. M Banda Cabeceirense
E O Poder da Palavra III: até 9 de janeiro 2022 Obras de A. Piazzolla, D. Schvetz. A NTIGO P ICADEIRO R EAL
Mulheres: Navegando E André Gomes e Pedro Calapez. 16 de novembro – 19h 7 de novembro – 16h
Entre a Presença e a Ausência Seja Dia ou Seja Noite Pouco Importa
até 2 de janeiro 2022 Teatro Aberto
até 31 de março 2022 Museu Nacional de Arqueologia
Pç. de Espanha. Tel.: 213 880 079
M Sinfonia Incompleta de Schubert Ed. dos Jerónimos. Tel.: 213 620 000
3ª A 6ª., DAS 10H ÀS 18H; SÁB. E DOM., DAS 10H ÀS 13H T Começar
Interpretação da Orquestra Gulbenkian,
Museu Nacional da Música De David Eldridge. Encenação
sob a direção de Raphaël Pichon, Konstantin E Religiões da Lusitânia.
Estação do Metropolitano Alto de João Lourenço. Interpretação
Krimmel (barítono) e Sofia Silva Sousa (viola). Loquuntur Saxa
dos Moinhos. Tel.: 217 710 990 de Cleia Almeida e Pedro Laginha.
Obras de P. Hindemith, F. Martin, exposição de longa duração
M Amália, uma História de Vida 4ª E 5ª, ÀS 19 H , 6 ª E S ÁB ., ÀS 21 H 30; D OM ., ÀS 16 H
F. Schubert e J. S. Bach. até 14 de novembro
4 de novembro – 20h Concerto multimédia do Ensemble Vox Museu Nacional de Arte Antiga
5 de novembro – 19h Angelis de celebração de Amália R. das Janelas Verdes. 213 912 800
Rodrigues. Teatro Nacional de São Carlos
M Mahler Chamber Orchestra 3ª A 6ª., DAS 10H ÀS 18H; SÁB. E DOM., DAS 10H ÀS 13H
5 de novembro – 18h R. Serpa Pinto, 9. Tel.: 213 253 000
Leif Ove Andsnes - piano / direção. E Obra Convidada: Infanta Isabel
M Trios e Sonatas M Ariodante HWV 33
Obras de W. A. Mozart. Clara Eugénia com Magdalena Ruiz De Georg Friedrich Händel. Libreto anónimo
6 de novembro – 21h Interpretação de Solistas da Metropoli- Obra de Alonso Sánchez Coello pertencente
tana: Lurdes Carneiro (fagote barroco), segundo Ginevra, principessa di Scozia de
M My Favorite Things ao Museo Nacional del Prado, Madrid.
Ágnes Sárosi (violino barroco), Diana Antonio Salvi. Versão semi-encenada. Direção
Com Il Pomo d’Oro, Joyce DiDonato até 2 de janeiro 2022
Vinagre (violoncelo barroco) e Fernando Musical de Antonio Florio. Encenação de
(meio-soprano) e Maxim Emelyanychev E O Belo, a Sedução e a Partilha Mario Pontiggia. Interpretação de Cecilia
Miguel Jalôto (cravo).
(cravo / órgão / direção). Obras da Coleção Maria e João Cortez de Lobão. Molinari, Ana Quintans, Yury Minenko,
Obras de Telemann, Galliard, Schaffrath e
Obras de S. Rossi, C. Monteverdi, até 2 de janeiro 2022 Sreten Manojlovic, João Rodrigues, entre
Bach.
P.A. Cesti, G. F. Händel, entre outros. E Boba Kana Muthu Wzela: outros. Com a Orquestra Sinfónica Portuguesa.
11 de novembro – 18h
9 de novembro – 21h Aqui é Proibido Falar! 4 de novembro – 20h
M Recital de Nuno Soares (Violi-
M El Amor Brujo Exposição de fotografia de JRicardo Rodrigues. M Concerto de Câmara
Com Orquestra Gulbenkian, sob a no) e Youri Popov (Piano)
Programa: Sonatas para Violino e Piano até 9 de janeiro 2022 Interpretação de Paula Carneiro (violino)
direcção da Maestrina Lina González-Granados, e da Orquestra Sinfónica Portuguesa.
de Johannes Brahms. E Estudo, Conservação e Restauro dos
Maria Luísa de Freitas (meio-soprano) Direção musical de Bruno Borralhinho.
12 de novembro – 18h “Painéis de São Vicente” 2020/2022
e Cristian Grajner de Sa (violino). Obras de Jean-Baptiste Lully,
Obras de C. Saint-Saëns, M. de Falla, M. Ravel. até 18 de maio 2022
W. A. Mozart e B. Bartók.
14 novembro – 12h e 17h T Quem é Esta Gente
5 de novembro – 20h
Museu de Arte Popular nos Painéis de São Vicente?
M Recital de Canto e Piano
MAAT - Museu de Arte, Av. Brasilia. Tel.: 213 011 282 Criação e encenação de Vasco Letria.
Por Regina Freire (soprano), Gabriel
Arquitetura e Tecnologia E Um Cento de Cestos Interpretação de Tobias Monteiro.
Santos (tenor) e João Paulo Santos (piano).
até 28 de novembro 7 de novembro – 16h
Av. Brasília, Central Tejo Obras de J. Vianna da Motta, A. Machado,
4ª A 2 ªDAS 11H H ÀS 19 H D. de Sousa, F. Lacerda, L. Freitas Branco,
E Dia. Carsten Höller Museu de Lisboa – Sto. António Museu Nacional de Etnologia F. Lopes-Graça, entre outros.
até 28 de fevereiro 2022 Lg. de Sto. António da Sé, 22.Tel.: 218 860 447 Av. Ilha da Madeira. Tel.: 213 041 160 11 d e novembro – 18h30
3ª A D OMª , DAS 10 H ÀS 18 H 3ª A 6ª., DAS 10H ÀS 18H; SÁB. E DOM., DAS 10H ÀS 13H
E Ensaio Para Uma M Concerto de Homenagem
E A Bênção dos Animais E Lugares Encantados,
Comunidade. Retrato de uma a Cantores Portugueses
Exposição de fotografia de Alfredo Cunha. Espaços de Património
Coleção em Construção (take 1) até 23 de janeiro 2022
Direção Musical de Antonio Pirolli.
até 19 de dezembro
até 7 de março 2022 Interpretação de Dora Rodrigues, Carla
E Contadores de Histórias Caramujo, Cátia Moreso, Luís Gomes,
Museu de Lisboa - Palácio Pimenta entre outros. Participação do Coro
Coleção de Património Energético Fundação EDP.
Campo Grande 245. Tel.: 217 513 200
até 7 de março 2022 do Teatro Nacional de São Carlos
3 ª A 6 ª , DAS 10 H ÀS 18 H ; S ÁB . E D OM ., DAS 10 H ÀS 13 H
E Seres Vulneráveis: e da Orquestra Sinfónica Portuguesa.
E Hortas de Lisboa. Obras de W. A. Mozart, G. Donizetti, J.
Assembleia II – Sounding Out Da Idade Média ao Século XXI
Assembleias públicas sobre Massenet, P. Mascagni, A. Keil, G. Donizetti.
até 12 de dezembro 13 de novembro – 21h
o espaço e o tempo das epidemias.
E Lisboa no Tempo de D. Manuel I.
26 a 28 de novembro
A Cidade que Ambicionava o Mundo Teatro Nacional D. Maria II
5 de novembro a 27 de março 2022 Pç. D. Pedro IV. Tel.: 213 250 800
MNAC - Museu do Chiado
R. Serpa Pinto, nº 4. Tel: 213 432 148 T Pranto de Maria Parda
3ª A 6ª., DAS 10H ÀS 18H; SÁB. E DOM., DAS 10H ÀS 13H
Museu de Lisboa - Teatro Romano Texto e encenação de Miguel Fragata, a partir
R. de São Mamede, 3A. Tel.: 218 172 450 de Gil Vicente. Interpretação de Cirila Bossuet.
E O Caminho para a
E O Museu Antes de o Ser 4ª A S ÁB ., ÀS 19 H 30; D OM ., ÀS 16 H 30
Luz porque Passa pela Luz
até 13 de março 2022 até 5 de novembro
até 14 de novembro
T Diário da Peste
E O Artista do Momento: Museu do Oriente Projeto vídeo - online de Isabel Abreu,
o Homem do Paleolítico Av. Brasília, Doca de Alcântara. Tel.: 213 585 200 a partir de textos de Gonçalo M. Tavares.
Exposição de Luís Afonso. E Ulrike Ottinger. Livros de Imagens até 31 de dezembro
até 25 de novembro até 14 de novembro T O Inesquecível Professor
E Olhares Modernos. E A Ópera Chinesa Texto, encenação de Pedro Gil. Interpretação
O Retrato em Pintura, até 30 de novembro de Ana Isabel Arinto, Anna Leppänen,
Escultura, Desenho (1910-1950) E Exposição de Fotografia de Ana Abrão António Fonseca, Bruno Ambrósio, Catarina
até 31 de dezembro até 30 de janeiro 2022 Pacheco, Joana Bernardo, entre outros.
3 ª A S ÁB ., ÀS 19 H ; D OM ., ÀS 16 H .
E Imago 2021: Joakim Eskildsen M Mistyfest 2021: Nopo Orchestra 14 DE NOVEMBRO , ESPETÁCULO COM L ÍNGUA
até 2 de janeiro 2022 4 de novembro – 21h G ESTUAL P ORTUGUESA E C ONVERSA COM ARTISTAS .
C Mily Possoz, Artista Profissional E Ana Aragão. No Plan For Japan 20 DE NOVEMBRO , SESSÃO COM AUDIODESCRIÇÃO
Sessão por Emília Ferreira (MNAC - IHA/ 5 de novembro a 13 de fevereiro 2022 Ana Quintans 11 a 20 de novembro
Agenda Cultural
A audiovisual » C colóquios / conferências » D dança » E exposições » M música » MD multidisciplinares » NC novo circo » P pedagogia » T teatro

D Gentle Unicorn
Criação/performance Chiara Bersani.
M Delírio Concertante
1ª parte: Orquestra Barroca Casa da Música,
Culturgest Porto
Av. dos Aliados, 104. Tel.: 222 098 116
SETÚBAL
13 , 14 e 15 de novembro – 19h30 Laurence Cummings (cravo e direcção musical); 4ª A D OM ., DAS 10 H 30 ÀS 14 H E DAS 15 H ÀS 18 H 30
Fórum Municipal Luísa Todi
16 de novembro – 16h30 2ª parte: Orquestra Sinfónica do Porto Casa E Rodrigo Hernández: Moon Foulard
Av. Luísa Todi, 65. Tel.: 265 522 127
T LEFFEST’21: To Reverse One’s Eyes da Música, sob a direção musical de Christian até 5 de dezembro
Zacharias, e Pieter Wispelwey (violoncelo). M Misty Fest 2021: NOPO Orchestra
Um programa dedicado a Romeo Castellucci.
Obras de A. Vivaldi, C. Avison, A. Corelli, Fundação de Serralves 8 de novembro – 21h
15 de outubro – 15h às 21h
F. Geminiani, G. F. Handel, J. Haydn. R. D. João de Castro, 210. Tel.: 226 156 500 M Loosense
5 de novembro – 21h30 3 ª A 6 ª , DAS 10 H ÀS 13 H E DAS 14 H ÀS 17 H ; 12 de novembro – 21h
MATOSINHOS M Pintura Concertante S ÁB ., DOM . E FERIADOS DAS 10 H ÀS 19 H M Orquestra Académica Metropolitana
1ª Parte: Remix Ensemble Casa da Música, E João Maria Gusmão Obras de Schubert / Mozart.
Casa da Arquitectura sob a direcção musical de Peter Rundel, e Pedro Paiva: Terçolho 13 de novembro – 21h
Av. Menéres, 456. Tel.: 227 669 300 Marc Coppey (violoncelo) e Ashot Sarkissjan até 7 de novembro M Pedro Lisboa
E Radar Veneza – Arquitetos (violino); 2ª Parte: Orquestra Sinfónica E Alexander Kluge: 14 de novembro – 17h
Portugueses na Bienal 1975-2021 do Porto Casa da Música, sob a direcção Política dos Sentimentos
até 30 de janeiro 2022 musical de Christian Zacharias.
E What? When? Why Not? Obras de S. Sciarrino, W. Rihm, A. Bruckner.
até 14 de novembro
E Para uma Timeline a Haver
SINTRA
Portuguese Architecture 6 de novembro – 18h até 28 de novembro
Centro Cultural Olga Cadaval
até 24 de abril 2022 M Tradição Italiana E Louise Bourgeois: Pç. Francisco Sá Carneiro 9353B. Tel.: 219 107 110
1ª Parte: Remix Ensemble Casa da Música, Deslaçar Um Tormento
sob a direcção musical de Peter Rundel, M Eu Sou Fábia Rebordão
até novembro
OLIVAL BASTO Carolin Widmann (violino), 2ª parte: E Olafur Eliasson:
5 de novembro – 21h
Orquestra Barroca Casa da Música, com T As Cadeiras
O V/Nosso Futuro É Agora Co-encenação e interpretação de
Centro Cultural Malaposta Laurence Cummings (cravo e direcção
até 31 de dezembro Jozé Sabugo, Maíra Santos e André Fausto.
R. Angola. Tel.: 219 383 100 musical), e Pieter Wispelwey (violoncelo).
E Pedro Tudela na Coleção de Serralves 6 de novembro – 21h
T Pinóquio - da Raiz ao Nariz Obras de P. Rundel, C. Widmann,
até 6 de março 2022 M Ricardo Ribeiro + Mónika Lakatos
Dramaturgia de Claudio Hochman. G. P. Telemann, J. Haydn e A. Salieri.
Interpretação de F. Pedro Oliveira. 7 de novembro – 18h E Modus Operandi. 14 de novembro – 19h
3ª, ÀS 10H30; 5ª, ÀS 14H30; SÁB., ÀS 16H; DOM., ÀS 11H M Ensemble Allettamento Obras da Coleção de Serralves
até 28 de novembro até 6 de março 2022
1 de dezembro – 11h e 16h
Obra de G. Battista, G. M. Bononcini,
A. Corelli, G. Valentini, entre outros. E Joan Miró: Signos e Figurações VIANA DO CASTELO
E Dominik Jasinski: Introduction 9 de novembro – 19h30 até 6 de março 2022
3 ª A D OM ., DAS 14 H 30 ÀS 18 H ; D OM ., DAS 10 H ÀS 13 H E Ai Weiwei: Entrelaçar. Pequi Teatro Municipal Sá de Miranda
M Joana Espadinha: R. Sá de Miranda. Tel.: 258 809 382
até 19 de dezembro Ninguém Nos Vai Tirar o Sol Vinagreiro, Raízes e Figuras Humanas
M Sexteto Bernardo Moreira até 9 de julho 2022 T FIIN 2021 - Festival
10 de novembro – 21h
4 de novembro – 21h30 A Honestamente… Não Me Internacional de Imagem de Natureza
M Requiem de Mozart 10 a 20 de novembro
T Blind Date Interpretação da Orquestra Sinfónica do Apetece Muito Companhia – I & II
Texto de Afonso Cruz e Joana M. Lopes. Ciclo de cinema dedicado a Alexander Kluge – T O Barbeiro de Sevilha
Porto Casa da Música e Coro Casa da Música,
Encenação de Rute Rocha. Interpretação um dos grandes pensadores do nosso tempo. Espetáculo de marionetas, a partir da ópera
sob a direcção musical de Michael Sanderling.
de Cristina Cavalinhos, Maria D’aires, 13 e 14 de novembro – 18h de G. Rossini. Encenação de Teresa Gafeira.
Com Katharina Konradi (soprano), Catriona
Ricardo Moura, José Mateus, entre outros. 16 de novembro – 19h
Morison (meio-soprano), Martin Mitterrutzner
5ª A S ÁB ., ÀS 21 H ; D OM ., ÀS 16 H 30 Galeria Municipal do Porto
(tenor), Krešimir Stražanac (barítono).
4 a 14 de novembro
T Filoctetes
Programa: W. A. Mozart, Requiem. R. de Dom Manuel II. Tel.. 225 073 305
3ª A D OM ., DAS 10 H ÀS 18 H
VILA REAL
13 de novembro – 18h
Texto Heiner Müller. Encenação de Mário M Carles Dénia E Os Novos Babilónios:
Trigo, com Jaime Rocha. Interpretação Teatro de Vila Real
13 de novembro – 21h30 Atravessar a Fronteira Al. de Grasse. Tel.: 259 320 000
Filipe Araújo, Miguel Coutinho e Pedro Jesus. Um projeto de Pedro G. Romero.
5ª A S ÁB ., ÀS 20 H 30; D OM ., ÀS 16 H
M Ciclo Piano Fundação EDP: T O Barrete de Guizos
Vadym Kholodenko até 21 de novembro
11 a 21 de novembro De Luigi Pirandello.
Obras de S. Prokofieff e F. Schubert. E Pandemic. I Don’t Know 5 de novembro – 21h30
A Curtas Vila do Conde: Best Of Karate, but I Know Ka-Razor!
14 de novembro – 18h M Janeiro Sessions. Live
12 de novembro – 20h
M Clamat - Colectivo Variável Exposição de Filipe Marques.
Tour com Carolina Deslandes
Direcção musical de Nuno Aroso. até 21 de novembro
6 de novembro – 21h30
PENICHE Obras de I. Badalo, C. Camarero, A Festival Internacional
A. Lopes, A. Cole e J.P. Oliveira. Inst. de Ciências Biomédicas Abel Salazar
R. de Jorge Viterbo Ferreira, 228. de Imagem de Natureza 2021
Museu Nacional Resistência e Liberdade 16 de novembro – 19h30
15 a 31 de novembro
2ª A 6ª, DAS 9H ÀS 18 H
Fortaleza de Peniche. Tel.: 262 789 159 M O Regresso de Andreas Scholl
4 ª A 6 ª , DAS 14 H ÀS 18 H ; S ÁB . E D OM ., DAS 10 H ÀS 13 H Interpretação da Orquestra Barroca
E Ciclo da Vida
E Por Teu Livre Pensamento Casa da Música, sob a direção de Laurence Mostra de quatro telas do século XVII, em
parceria com o Museu Nacional Soares dos Reis.
VISEU
até 31 de dezembro Cummings, Andreas Scholl e Filipe Quaresma.
Obras de J. S. Bach, A. Vivaldi. até 7 de fevereiro 2022
Teatro Viriato
PORTIMÃO 16 de novembro – 21h
Mosteiro São Bento da Vitória
Lg. Mouzinho de Albuquerque. Tel.: 232 480 110
T Madame: Conversas
R. de São Bento da Vitória. Tel.: 223 401 900
Teatro Municipal de Portimão Privadas em Espaço Público
M MUSIC4L-MENTE:
Lg. 1.º de Dezembro. Tel.: 282 402 470
Centro Português de Fotografia De António Alvarenga e Leonor Barata.
Pelo Quarteto Michelangelo
Campo Mártires da Pátria. Tel.: 222 076 310 6 de novembro – 16h às 20h
M Black Puzzle + DJ Naresk 3 ª A 6 ª , DAS 10 H ÀS 12 H 30 E DAS 14 H ÀS 18 H ;
e Filipe Pinto-Ribeiro (piano).
4 de novembro – 19h Obras de Beethoven, Tcherepnin, Schumann. D Juventude Inquieta
S ÁB ., D OM . E F ERIADOS , DAS 15 H ÀS 19 H
11 de novembro – 19h Texto e direção de Joana Craveiro.
M Teresa Viola + Edmundo Vieira E A Herança do Lugar 12 de novembro – 21h
11 de novembro – 19h Para assinalar os seus 20 anos na
Teatro Carlos Alberto 13 de novembro – 17h
M SAX@SUL / 2_LOW + HOLI Antiga Cadeia e Tribunal da Relação
13 de novembro – 21h R. das Oliveiras, 43. 223 401 900
do Porto, o Centro Português de
Fotografia apresenta uma exposição T O Pecado de João Agonia
De Bernardo Santareno. Encenação João
PORTO retrospetiva da história deste edifício.
até 7 de novembro Cardoso. Interpretação de Ângela Marques,
GABINETE DE ESTRATÉGIA,
Benedita Pereira, Daniel Silva, Inês Afonso
Casa da Música E Nicolás Muller. PLANEAMENTO E AVALIAÇÃO CULTURAIS
Cardoso, João Cardoso, João Castro, Pedro
Av. da Boavista, 604-610. Tel.: 220 120 200 O Olhar Comprometido Galiza, Pedro Quiroga Cardoso, Rúben Pérola. Palácio Nacional da Ajuda. 1300-018 Lisboa
M Luta Livre até 20 de fevereiro 2022 4ª A S ÁB ., ÀS 19 H ; D OM ., ÀS 16 H . Tel.: 213 614 500 | Fax: 213 621 832
4 de novembro – 21h30 11 a 21 de novembro relacoes.publicas@gepac.gov.pt
Nº 298 * 3 a 16 de novembro de 2021
Suplemento da edição nº 1333, ano XLI,
do JL, Jornal de Letras, Ar tes e Ideias
com a colaboração do Camões, I.P.

Uma exposição para pensar


as “heranças coloniais”
Entrevista a Margarida Calafate Ribeiro
Pág. 2/3

Paulina Chiziane vence Prémio Camões 2021


Pág.4
2 CAMÕES

3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

Europa Oxalá
Uma exposição para pensar
as “heranças coloniais”

Exposição Obra da
fotógrafa Pauliana
Valente Pimentel
e fotografias da
inauguração de Europa
Oxalá, no Mucem,
em Marselha

São 70 obras de 21 artistas instalações de: Aimé Mpane, Aimé museus, pensadores portugueses, cimento inovador adquirido e o dimensões? Qual o impacto cultural
nascidos e criados num contexto Ntakiyica, Carlos Bunga, Délio franceses e belgas, as suas diás- convite que lhe tinha sido dirigido. e artístico dessa memória latente na
pós-colonial. Uma produção artís- Jasse, Djamel Kokene-Dorléans, poras e outras nacionalidades”, Europa contemporânea?
tica que “reflete sobre as heranças Fayçal Baghriche, Francisco sublinha ainda a investigadora, De que forma podemos enquadrar
coloniais na Europa de hoje”, diz Vidal, Josèfa Ntjam, Katia Kameli, coordenadora do projeto Memoirs esta iniciativa no contexto do tra- Como têm procurado as respostas a
Margarida Calafate Ribeiro sobre Malala Andrialavidrazana, Márcio - Filhos de Império e Pós-memórias, balho que tem sido desenvolvido essas questões?
Europa Oxalá, uma exposição Carvalho, Mohamed Bourouissa, no âmbito do qual nasceu Europa pelo projeto Memoirs - Filhos de O Memoirs foi construíndo uma
internacional que decorre de 2021 Mónica de Miranda, Nú Barreto, Oxalá, como conta nesta entre- Império e Pós-memórias? resposta abrangente, realizando de-
a 2023 em três instituições de três Pauliana Valente Pimentel, Pedro vista. O projeto Memoirs estuda a diversi- zenas de entrevistas a descendentes
países: França, Portugal e Bélgica. A.H. Paixão, Roland Gunst [John dade da Europa contemporânea, e de segunda e terceira geração de
Inaugurada no passado dia K. Cobra], Sabrina Belouaar, Como surgiu a exposição Europa o seu principal objetivo é entender ex-colonizadores, ex-combatentes
20 de outubro, no Mucem, em Sammy Baloji, Sandra Mujinga e Oxalá? os desafios de viver numa Europa e ex-colonizados que vivem em
Marselha, onde está patente até Sara Sadik. Surgiu dentro da investigação do pós-colonial. Concentra-se nas França, na Bélgica e em Portugal,
16 de janeiro de 2022, a exposição A exposição é acompanha- projeto Memoirs - Filhos de Império memórias intergeracionais dos analisando as suas representações
pode ser vista em Portugal, na da por duas publicações - um e Pós-memórias, financiado pelo filhos e netos daqueles que viveram artísticas em cinco áreas – artes
Fundação Calouste Gulbenkian, catálogo e um livro de ensaios Conselho Europeu de Investigação os dias finais do colonialismo e das visuais, literatura, artes perfor-
em Lisboa, de 3 de março a 30 de -, em quatro línguas (português, e sediado no Centro de Estudos lutas pela independência nas anti- mativas, cinema e música –, lendo
maio de 2022, e segue depois para francês, inglês e neerlandês), Sociais da Universidade de gas colónias africanas da Bélgica, múltiplas obras críticas e acom-
o Africa Museum, em Tervuren, realizadas com o apoio do Camões, Coimbra. Foi um convite do então de França e de Portugal: República panhando os eventos políticos e
onde fica de 6 de outubro desse ano I.P. e com a chancela das Edições diretor da Delegação da Fundação Democrática do Congo, Argélia, os debates dos últimos anos, com
até 5 de março de 2023. Afrontamento. Gulbenkian em Paris, Dr. Miguel Angola, Moçambique, Guiné- comunidades académicas, ativistas,
“Demos este nome [Europa Paralelamente à exposição, Magalhães, ao investigador e Bissau, Cabo Verde e São Tomé e artistas e outros agentes culturais.
Oxalá] a fim de veicular a ideia de cada instituição organizará um programador cultural do projeto Príncipe. O caráter inovador do Foi este longo caminho de conheci-
uma Europa plural, mas unida”, ciclo de debates com o intuito de Memoirs, António Pinto Ribeiro, projeto encontra-se nas suas ques- mento co-produzido entre diversos
afirmam António Pinto Ribeiro, “dinamizar o pensamento sobre que viu no trabalho desenvolvido tões de pesquisa, que nunca tinham atores, com uma programação
Katia Kameli e Aimé Mpane, a Europa que agora se constrói”, por este projeto a possibilidade sido colocadas à escala europeia: académica e cultural própria, a
os comissários da exposição refere Margarida Calafate Ribeiro. de realizar uma exposição de arte Como se deu, na Europa atual, a publicação de mais de 40 artigos
que reúne pinturas, desenhos, “Juntos, estarão artistas, curado- contemporânea, conjugando assim transferência de memórias do fim científicos, 50 capítulos, 8 livros
esculturas, filmes, fotografias e res, universitários, diretores de um desejo do projeto, o conhe- do colonialismo nas suas múltiplas e uma newsletter que já soma 150
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números, que possibilitou um sólido Boukari-Yabara, António Pinto


conhecimento e permitiu avançar Ribeiro, António Sousa Ribeiro,
para uma parceria internacional Ariella Aïsha Azoulay, Cécile
construída à volta de um tema tão Bourne-Farrell, Christine Bluard,
novo e tão urgente como aquele que Bruno Verbergt, Fabienne Bideaud,
é veiculado pela exposição Europa Lisette Lombé. Ambas as publica-
Oxalá e que exigia um compromisso ções estão disponíveis em portu-
múltiplo – desde as instituições, aos guês, francês, inglês e neerlandês.
curadores e artistas, desde acadé-
micos a agentes culturais, desde No texto de apresentação da expo-
cenógrafos a tradutores, editores e sição pode ler-se: “Europa Oxalá é
jornalistas em três países. a evidência de que a descoloni-
zação das artes está a caminho e
Qual é a dimensão inovadora desta que é hora de se aceitarem novas
exposição? Para utilizar as suas narrativas sobre a Europa”. De
palavras, o que traz de “tão novo”? um modo geral, como olha para
O caráter inovador desta exposição o lugar que estas questões têm
assume várias configurações, a co- atualmente na Europa e, especifi- Cátedra Vasco da Gama
Università degli Studi
meçar pela narrativa que produz, camente, em Portugal?
Internazionali di Roma
que, na linha do projeto Memoirs, Europa Oxalá é uma exposição que e cartaz do colóquio
nos mostra como as memórias co- mostra a mais contemporânea e internacional dedicado a Eça
loniais moldam o nosso presente e cosmopolita cultura europeia, na de Queirós, que se realiza nos
estão em questionamento pelas ge- qual Portugal ocupa um lugar de dias 4 e 5 deste mês
rações seguintes. As obras expostas destaque, não apenas pela sua his-
foram produzidas por ‘Filhos de tória, mas pela sua contemporanei-
Impérios’, artistas de segunda e
terceira gerações, nascidos e cria-
dos num contexto pós-colonial, e
dade, expressa pelos seus artistas,
pelos seus pensadores, pelas suas
tentativas de diálogo entre várias
Na língua de Camões: Cátedras pelo mundo
cuja produção artística, maiori-
tariamente realizada na Europa,
reflete sobre as heranças coloniais
regiões do mundo, pela sua luta
na construção de uma cidadania
europeia inclusiva e pós-colonial.
Itália: Cátedra Vasco da Gama
na Europa de hoje. Os fantasmas são muitos, as fan-
tasias criadas para os enganar têm
É esse o traço que une os artistas a espessura de séculos. É uma luta
de Europa Oxalá: são filhos ou constante e quotidiana, portuguesa, MARIAGRAZIA RUSSO
netos das gerações que viveram o europeia, global.
processo de descolonização? A Cátedra Vasco da Gama foi UNINT tem no âmbito da inovação o colóquio internacional “Eça
Sim. Recetores de memórias Uma “luta” que o projeto Memoirs inaugurada no dia 28 de janeiro no ensino, alguns recursos econó- de Queirós, viagens e diploma-
transmitidas por pais e avós, que - Filhos de Império e Pós- de 2020, na presença do en- micos são dedicados ao ensino da cia: um olhar sobre o mundo”.
nasceram e viveram em territórios memórias continuará a travar? tão Presidente do Camões, I.P., língua portuguesa na área local e O colóquio, patrocinado pelo
colonizados, como o Congo, Angola, Com certeza. Já no próximo dia 4 de Embaixador Luís Faro Ramos, nas escolas. Camões, I.P., irá ter a participa-
Moçambique, Guiné-Bissau, Benin, novembro vamos encontrarmo-nos do Embaixador de Portugal em Desde o seu nascimento, a ção de estudiosos queirosianos
Argélia ou Madagáscar, estes artistas na Culturgest, em Lisboa, no coló- Itália Pedro Nuno Bártolo e da Cátedra Vasco da Gama tem de nível internacional e também
herdaram vozes, sons, gestos, sabo- quio internacional Constelações da professora doutora Annabela realizado diversos eventos, apesar a apresentação da tradução de
res, documentos, imagens, objetos pós-memória na Europa pós-colo- Rita, da Universidade de Lisboa. do subitâneo aparecimento da “O Egito”, pela Tuga Edizioni,
ou narrativas que, no seu conjunto, nial. A parte da manhã é dedicada a A Presidente da Cátedra é a pandemia ter reduzido as pos- a exposição virtual de alguns
constituíram pontos de partida para apresentar os resultados do projeto, professora doutora Mariagrazia sibilidades de iniciativas no ano documentos originais queirosia-
um trabalho de investigação em ar- uma plataforma de artistas e obras Russo, professora catedrática de 2020. Assim, em 2021, foram nos outorgados pela Fundação Eça
quivos públicos e privados, gerando da pós-memória com mais de 350 de língua portuguesa e Diretora organizadas por Maria Serena de Queirós, e a inauguração na
múltiplas interrogações. O que ve- artistas e mais de 1200 obras e o livro da Faculdade de Interpretação e Felici duas conferências no âmbito UNINT do Observatório da Língua
mos nas suas obras não é o ‘regresso A cena da memória. O presente do Tradução da Università degli Studi da disciplina de literatura portu- Portuguesa.
do colonial’, mas as formas contem- passado na Europa pós-colonial, or- Internazionali di Roma (UNINT); a guesa, que viram a participação Com o objetivo de fomentar a
porâneas de questionar esse passado ganizado por António Sousa Ribeiro, docente de referência é a doutora de remoto do doutor José Carvalho divulgação da língua portuguesa,
e as suas permanências na nossa que constitui uma cartografia do Maria Serena Felici, professora Vanzelli e do professor doutor durante o ano letivo 2020-2021
contemporaneidade. A reflexão que projeto, com textos da minha autoria auxiliar (‘ricercatrice’ RtdA) de Sílvio César Alves. Os temas foram realizados dois cursos na
as produções artísticas apresentadas e de António Pinto Ribeiro, António língua portuguesa. Todos os pro- tratados, respetivamente, foram: UNINT para o público externo
em Europa Oxalá trazem para temas Sousa Ribeiro, Bruno Sena Martins, fessores contratados de português a intertextualidade na escrita à universidade e quatro cursos
como as migrações, a luta contra o Ettore Finazzi-Agrò, Fátima da da UNINT também integram a de Manuel Alegre e os concei- extra-curriculares em escolas de
racismo, a descolonização das pes- Cruz Rodrigues, Felipe Cammaert, Cátedra. tos de nação, pátria e revolução Roma (trabalhos organizados pela
soas e das artes, as sobrevivências do Fernanda Vilar, Graça dos Santos, A Cátedra segue linhas de inves- em Almeida Garrett, Antero de Presidente da Cátedra).
pensamento colonial europeu desde Paulo de Medeiros e Roberto Vecchi. tigação que incluem a língua por- Quental e Eduardo Lourenço. Em A UNINT, finalmente, é ente
o nosso quotidiano e das nossas Na parte da tarde teremos mesas de tuguesa, a linguística, as culturas e maio de 2021, para celebrar o Dia aplicador dos exames do CAPLE
instituições às relações Norte-Sul, debate à volta das questões “Como as literaturas de língua portuguesa. Mundial da Língua Portuguesa, (Centro de Aplicação do Português
apontam-nos para uma Europa se transmite a memória?”, “Como se Mais especificamente: literatura e a professora doutora Gislaine Língua Estrangeira), e realiza
cosmopolita que assume novas representa a memória?”, “Como se história da navegação, italianos em Marins, professora contratada de duas sessões de exames por ano.
linguagens, novas narrativas e novos expõe a memória?”, com académi- Portugal e portugueses em Itália, português na UNINT, juntamente Para o futuro, a Presidente e a
sujeitos históricos. Uma Europa que cos, artistas, diretores de museus, trabalhos de arquivo e estudos da com a Presidente, Mariagrazia docente de referência pretendem
desenha um futuro transnacional, curadores e jornalistas. A confe- diáspora; interpretação e tradu- Russo, organizou o webinar continuar na linha já traçada e
mais igualitário e mais democrático rência final, intitulada “Cidadania ção; lexicografia; português como internacional “Embaixadores das incrementar a colaboração com
- Europa Oxalá. da Memória: Legados Polémicos língua estrangeira, segunda língua Culturas de Língua Portuguesa”, Cátedras do Camões, I.P. na Itália
do Colonialismo e do Genocídio”, ou língua de herança; língua por- que viu a participação de nume- e no exterior, com a finalidade de
A par da exposição foi publicado está a cargo de Michael Rothberg, tuguesa e linguística (linguística rosos estudiosos de universidades constituir uma rede que garanta
um catálogo e também um livro de da Universidadez da Califórnia, Los missionária, línguas de fronteira e portuguesas, angolanas e brasi- aos estudantes universitários e a
ensaios. Angeles, um dos maiores especialis- de contacto); literatura portuguesa leiras. No mesmo ano, a Cátedra, todos os que estiverem interessa-
Precisamente. Com o apoio do tas em estudos da memória. J de todas as idades. na pessoa do professor Federico dos em aprender a língua portu-
Camões, I.P., a exposição publicou Em termos de didática, a Giannattasio, realizou para os guesa um contacto constante com
um catálogo que apresenta as obras Nota: Na capa deste Encarte utilizamos a Cátedra promove o ensino das alunos intérpretes de português o mundo lusófono e com as suas
dos artistas (fotografias, textos imagem da capa do catálogo da exposição línguas e culturas portuguesas e das outras línguas o webinar manifestações artísticas. J
críticos de François de Coninck e Europa Oxalá. A obra é Dada (2018), de e especializa-se na formação de “Riservatezza, Interpretariato,
notas biográficas) e uma entrevista Sabrina Belouaar. Escultura, molde de tradutores e intérpretes luso- Uso dei social”. Neste mês de *Presidente da Cátedra Vasco da Gama,
diretora da Faculdade de Interpretação
com os curadores. Paralelamente, mãos, em gesso, e cinto velho em couro, -italiano-português e luso-in- novembro de 2021, a Presidente e Tradução e professora catedrática de
foi também publicado um livro com dimensões variáveis. © ADAGP, Paris 2021, glês-português. Tendo em conta Mariagrazia Russo e a docente Língua Portuguesa da Università degli Studi
textos da minha autoria e de Amzat cortesia Mohamed Bourouissa a posição de vanguarda que a Maria Serena Felici realizarão Internazionali di Roma (UNINT), Itália
4 CAMÕES

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EUA Escritora moçambicana Paulina Chiziane


X Conferência de Literatura
em Língua Portuguesa vence Prémio Camões 2021
“Em que português nos entendemos? Lusofonia na
literatura e as suas derivas da escrita” foi o tema da Paulina Chiziane venceu por una- Paulina Chiziane nasceu em
X Conferência de Literatura em Língua Portuguesa, nimidade a 33.ª edição do Prémio Manjacaze, província de Gaza, no sul
uma iniciativa organizada pela Coordenação do Camões, um dos mais importantes de Moçambique, em 1955. Cresceu
Ensino Português nos EUA (CEPE-EUA) e pelo Camões prémios literários de língua portu- nos subúrbios de Maputo e durante
- Centro de Língua Portuguesa na Universidade
guesa, no valor de 100 mil euros. a juventude fez parte da Frente de
de Massachusetts em Boston (UMass Boston). As
Segundo uma nota informativa Libertação Nacional (Frelimo), mas a
escritoras Lídia Jorge, de Portugal, Augusta Teixeira,
de Cabo Verde, e o escritor João Almino, do Brasil,
divulgada pelo Ministério da Cultura, o política não a convenceu, sobretudo
foram os convidados da edição deste ano, que júri decidiu por unanimidade atribuir no que toca à emancipação da mulher,
decorreu no passado dia 22 de outubro, via Zoom, o galardão à escritora moçambicana, e não tardou até se dedicar por inteiro
com transmissão em direto na página de Facebook destacando a sua vasta produção e re- à escrita.
da CEPE-EUA, onde o vídeo se mantém disponível na ceção crítica, bem como o reconheci- Falante das línguas chope e ronga,
íntegra. O evento realizou-se no âmbito do plano de mento académico e institucional da sua aprendeu português na escola de uma
atividades culturais para 2021 do Consulado-Geral de obra. O júri referiu também a impor- missão católica e começou a estudar
Portugal em Boston, em parceria com o Consulado- tância que dedica nos seus livros aos linguística na Universidade Eduardo
Geral do Brasil em Boston e com o Consulado-Geral problemas da mulher moçambicana Mondlane, em Maputo, sem concluir

LUCÍLIA MONTEIRO
de Cabo Verde nos EUA, com apoio do Camões, I.P., da e africana, e sublinhou o seu trabalho o curso.
Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento recente de aproximação aos jovens, Em declarações à Lusa, a escrito-
(FLAD) e do Latin American & Iberian Studies nomeadamente na construção de pon- ra, de 66 anos, confessou-se con-
Department da UMass Boston. tes entre a literatura e outras artes. fusa com a notícia do prémio, que
Paulina Chiziane foi a primeira considerou “uma surpresa muito boa
mulher a publicar um romance em Paulina Chiziane Escritora moçambicana para mim, para o meu povo, para a
Moçambique, Balada de Amor ao é a primeira mulher africana a receber o minha gente, que em África escreve
Espanha Vento, em 1990, e é também a pri-
meira mulher africana a receber o
Prémio Camões o português, aprendido de Portugal”.
Sublinhou que o Prémio Camões
I Bolsa de Residência Prémio Camões. Da sua obra fazem 2021 serve para valorizar o papel das
Literária em Madrid parte livros como Ventos do Apocalipse
e O Alegre Canto da Perdiz (2008), As A Voz do Cárcere, depois de ambos
mulheres numa altura em que o seu
trabalho ainda é subvalorizado, ten-
Estão abertas as candidaturas para a atribuição Andorinhas (2009), Na mão de Deus e entrarem nas prisões e ouvirem os do afirmado que “afinal a mulher tem
da I Bolsa de Residência Literária em Madrid, uma Por Quem Vibram os Tambores do Além reclusos - ela a escutar as mulheres, uma alma grande e tem uma grande
iniciativa promovida pela Embaixada de Portugal em (2013), Ngoma Yethu: O Curandeiro e o ele, os homens. mensagem para dar ao mundo. Este
Madrid e pelo Camões, I.P., que integra um programa Novo Testamento (2015), Niketche: Uma Alguns dos seus livros foram prémio serve para despertar as mu-
de atividades que visam a divulgação da literatura História de Poligamia (2016) e O Canto publicados em Portugal e no Brasil, e lheres e fazê-las sentir o poder que
portuguesa em Espanha. Os interessados deverão dos Escravos (2017). estão traduzidos em inglês, alemão, têm por dentro”. J
apresentar as suas candidaturas até ao próximo dia Este ano lançou em Maputo, em italiano, espanhol, francês, sérvio e
11 de novembro de 2021. A residência tem início entre conjunto com Dionísio Bahule, o livro croata. *Com Lusa
novembro de 2021 e janeiro de 2022. Pode consultar
mais informações e o regulamento no portal do
Instituto.
Livro “Uma periferia global: Armando de Lacerda e o Laboratório de Fonética
Experimental de Coimbra (1936-1979)” lançado na sede do Camões, I.P.
Concurso
2.ª edição dos “Contos do Dia Foi lançado, no passado dia 14 de projetos de investigação nacionais e
Mundial da Língua Portuguesa” outubro, no auditório da sede do
Camões, I.P., em Lisboa, o livro “Uma
internacionais. Em 2018 recebeu o
Prémio “Publicações Internacionais
Está aberta a 2.ª edição do concurso “Contos periferia global: Armando de Lacerda e de Jovens Investigadores”, atri-
do Dia Mundial da Língua Portuguesa”, uma o Laboratório de Fonética Experimental buído pela Associação Portuguesa
iniciativa da Porto Editora, do Camões, I.P. e do de Coimbra (1936-1979)”, da autoria de de História Económica e Social. É
Plano Nacional de Leitura, destinada a alunos que Quintino Lopes. investigador integrado do Instituto
estudam português, em todo o mundo. Até 28 de “O Laboratório de Fonética de História Contemporânea – Grupo
fevereiro de 2021, os concorrentes podem expressar Experimental da Faculdade de Letras de Investigação Ciência (Faculdade
a sua voz literária em português, através de um da Universidade de Coimbra era consi- de Ciências Sociais e Humanas,
conto inédito. derado em meados do século XX o mais Universidade Nova de Lisboa;
O concurso está associado ao Dia Mundial da avançado da Europa”, lê-se na nota in- Universidade de Évora), onde de-
Língua Portuguesa, efeméride consagrada pela formativa sobre o livro. “Nas suas salas senvolve a sua atividade centrada
UNESCO que se assinala a 5 de maio e que visa investigaram e especializaram-se nos na História científico institucional
promover a língua portuguesa no mundo, através do
inovadores instrumentos e métodos de do Portugal entre guerras e do pós-
estímulo à escrita criativa.
investigação criados pelo seu dire- -II Guerra Mundial, numa perspetiva
O concurso dirige-se aos milhares de
estudantes que frequentam cursos de língua
tor, Armando de Lacerda, cientistas comparativa e transnacional.J
portuguesa, na rede de Ensino Português no das universidades de Harvard, Paris,
Estrangeiro (EPE), em leitorados do Camões, Cambridge, Bona, Texas, Toulouse,
I.P. e em universidades com Centros de Língua Milão, Salvador da Bahia, Madrid,
Portuguesa (CLP) do Camões, I.P. Acra, Uppsala, Oslo, Rio de Janeiro, Cartaz do lançamento
Nesta 2.ª edição, apadrinhada pelo escritor Barcelona e Edimburgo”.
Manuel Jorge Marmelo, os candidatos têm de Editado com apoio do Camões, I.P.,
escrever um conto inédito que se enquadre num o livro apresenta-se como um estudo das técnicas e instrumentos criados por
dos seguintes temas: «Centenário de nascimento “exploratório” que procura responder a Armando de Lacerda desde 1931?” Camões, I.P.
de José Saramago» ou «Os Oceanos». várias questões, entre as quais: “Como Quintino Lopes é doutorado em Av. da Liberdade, n.º 270
Os vencedores serão anunciados no âmbito das se explica que num país considerado História e Filosofia da Ciência pela 1250-149 Lisboa
celebrações do Dia Mundial da Língua Portuguesa, periférico e cientificamente atrasado Universidade de Évora. Autor do TEL. 351+213 109 100
a 5 de maio de 2022. existisse esta infraestrutura de inves- livro “A europeização de Portugal FAX. 351+213 143 987
A Porto Editora publicará os contos premiados
tigação? Quem foram os cientistas que entre guerras. A Junta de Educação www.instituto-camoes.pt
na página oficial de Ensino Português no
se especializaram nas suas salas? Qual Nacional e a investigação científica”, jlencarte@camoes.mne.pt
Estrangeiro, tal como fez na 1.ª edição do concurso
O livro digital que reúne os contos vencedores de o impacto dos trabalhos deste labo- tem publicado artigos e capítulos PRESIDENTE João Ribeiro de Almeida

2021 pode ser consultado no portal da editora. ratório na ciência e na sociedade? Em de livros em Portugal e no estran- COORDENAÇÃO Vera Sousa
que consistiram e qual foi o percurso geiro, e participado em diversos COLABORAÇÃO Carolina Freitas
Sofia Ramalho A atualidade da Sónia Moreira
Um plano de recuperação educação permanente Aprendizagem cooperativa
para as Escolas p. 3 Texto de Alberto Melo, Licínio Lima
e Paula Guimarães p. 6 e 7
O autorretrato da vencedora
portuguesa do Global Teacher Prize p. 8

J educação
Nº 1333 * Ano XLI * 3 a 16 de novembro de 2021 * Diretor José Carlos de Vasconcelos

Ensino superior: números


para refletir
Aqui se revela um esclarecedor estudo da Edulog (Investigação e Debate em Educação), da Fundação Belmiro
de Azevedo, que teve como objetivo sistematizar os mais recentes dados do acesso ao ensino superior,
para analisar o presente e perspetivar o futuro, questionando o passado

D
ções localizadas no interior do
país e em politécnicos. Ainda
assim, o ensino politécnico
conhece um crescimento de
2,5% face a 2020 e de 25%
face a 2015, quando as contas
ministeriais revelaram 19.422
alunos colocados este ano neste
subsistema.
O Concurso Nacional de
Acesso ao Ensino Superior
2021/2022 começou por dar
nas vistas pelo elevado núme-
ro de candidatos à primeira
Da análise da história do fase: 63.878, o mais alto dos
acesso ao ensino superior em últimos 25 anos, razão pela
2021/2022 emerge uma ambi- qual o Ministério da Ciência,
ção: a de ter mais de 100 mil Tecnologia e Ensino Superior
estudantes a ingressar nas (MCTES) decidiu, em agosto,
universidades e politécnicos fazer um reforço extraordi-
portugueses até ao final do nário de vagas, acrescentando
concurso nacional de acesso. A às 52.242 fixadas no início do
GONÇALO ROSA DA SILVA

julgar pelo passado, a maioria concurso mais 3080 lugares nas


proveniente das três fases do universidades e politécnicos.
Concurso Nacional de Acesso Em setembro, a Direção-
ao Ensino Superior, os restan- Geral do Ensino Superior
tes vindos de outras vias de confirmou outro recorde: o
ingresso e também dos regimes ensino superior registava quase
especiais de acesso. 412 mil estudantes inscritos no
As previsões da Direção- ano letivo de 2020/2021, mais
Geral do Ensino Superior 15 mil inscritos, comparativa-
(DGES) acerca dos novos DAS ESTIMATIVAS E o estrangeiro ou preferirem mente a 2019/2020. Ou seja: um
ingressos, feitas em setembro, AMBIÇÕES AOS NÚMEROS tentar outras opções –, ficaram aumento de 4%, a maior taxa
vão ao encontro de duas REAIS 11.649 vagas disponíveis para de crescimento anual da última
ambições: 1) a de ter seis em Na primeira fase do Concurso Apenas cerca de a segunda fase. Por outro lado, década. Será preciso recuar
cada dez jovens de 20 anos a Nacional de Acesso ao Ensino 14.500 alunos não obtiveram a 2010/2011 para encontrar o
frequentar o ensino superior Superior 2021/2022 ficaram metade dos alunos colocação. Para as pouco mais último máximo de estudantes
até 2030 (atualmente são colocados 49.452 mil estudan- que se inscreveram de 11 mil vagas disponibiliza- inscritos no ensino superior:
cerca de quatro em cada dez) tes, o segundo maior número das na segunda fase, apresen- cerca de 403 mil. Importa
e 2) a de qualificar com o de colocações dos últimos 30 em licenciaturas de taram-se a concurso 22.953 acrescentar neste ponto que,
ensino superior a população anos. Recuando ao período três anos conseguiram candidatos. No final, apenas segundo o MCTES, desde 2015
adulta, superando os 33,2% de pré-pandémico do ano letivo de 9154 ficaram colocados. - altura em que o número de
diplomados na faixa etária dos 2019/2020, ficavam colocados concluí-las dentro dos Os resultados da terceira inscritos era inferior a 350
35 aos 44 anos, os 24% entre os na primeira fase 44.500 alunos. primeiros quatro anos e última fase conheceram-se mil - a tendência de expan-
45 e os 54 anos e, por último, os Entre as vagas que sobraram em a 29 de outubro. Apesar de são do ensino superior tem-se
16,9% de diplomados entre os 2021, porque a elas ninguém se de estudo, e mais de um terem sobrado 4441 vagas da acentuado.
55 e os 64 anos, percentagens candidatou, e as que resultaram em cada quatro alunos segunda fase, para esta terceira
essas que estão atualmente da não inscrição de estudantes foram abertas apenas 3354. A ANOS EXTRAORDINÁRIOS
abaixo da média registada na que tinham sido colocados –
abandonaram o ensino sua maioria está disponível em Em 2020, o sistema educativo
União Europeia. por se terem deslocado para superior cursos oferecidos por institui- português enfrentou um ano
2 EDUCAÇÃO

3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

ESTUDO

de “medidas excecionais”, à Evolução do total de estudantes inscritos no Ensino Superior, de 2000/2001 a 2020/2021
semelhança do que aconteceu
por todo o mundo. Por força
da pandemia por COVID-19,
foi alterado o calendário de
Mesmo com a
realização dos exames nacionais ambição nacional
do ensino secundário, também de aumentar a
usados para o ingresso no
ensino superior. E, por isso, frequência do
foi também adiado o concurso ensino superior até
nacional de acesso: de julho,
como era hábito, para agosto. 2030, que parece
Por outro lado, e com o objetivo concretizar-se
de minimizar o impacto da
pandemia nos resultados dos este ano, Portugal
alunos, os exames nacionais enfrenta ainda
tiveram a sua estrutura
alterada, com questões desafios na sua
optativas, dando assim maior aproximação às
liberdade a quem realizou as
provas. Por fim, o Governo
médias da União
decretou que os exames Europeia
nacionais do secundário,
nesse ano, serviriam apenas
como provas de ingresso, não
contando para a classificação de
conclusão do ensino secundário, universitário e mais elevada
como era habitual. nas instituições privadas do
Este conjunto de medidas que nas instituições públicas.
teve como consequência a Estes dados e a informação
subida dos resultados obtidos mais recente corroboram
Fonte:DGEEC
pelos alunos do ensino as conclusões do EDULOG
secundário a praticamente apresentadas em 2019, no
todas as disciplinas. Essa estudo A equidade no acesso
subida foi, em média, de três ao ensino superior. Para a
valores, o que conduziu a uma
Estudantes bolseiros do ensino superior (2019/2020) análise à equidade do acesso
subida das médias de acesso ao ensino superior, o EDULOG
na generalidade dos cursos de utilizou como indicadores as
ensino superior. qualificações dos pais e mães
O elevado número de dos estudantes e a percentagem
candidatos ao ensino superior de alunos bolseiros. Resultou
começou também a ser notícia a evidente que é no subsistema
meio de agosto de 2020. Dados universitário, público e privado,
iniciais revelavam, face ao ano que se encontram, em maior
anterior, um aumento de 51% percentagem, os estudantes
nas candidaturas ao ensino cujo pai e mãe têm níveis
público na primeira semana educativos mais altos, e que é
de arranque do Concurso o subsistema politécnico que
Nacional de Acesso ao Ensino agrega a maior percentagem
Superior. Quem se candidatou de estudantes bolseiros: no ano
às universidades e politécnicos letivo 2018/19, dos 31,49% do
no ano letivo de 2020/2021 teve total de estudantes inscritos
51.408 vagas disponíveis, mais no primeiro ano, pela primeira
548 do que em 2019. vez, que obtiveram bolsa de
Em 2021, a situação estudo, 37,38% frequentavam
pandémica vivida no país o ensino politécnico e 28,14%
obrigou o Ministério da o universitário. Olhando
Educação a manter as regras para os dados mais recentes,
de 2020. Assim, os alunos do Fonte: EDUSTAT (www.edustat.pt) disponibilizados no EDUSTAT
11.º e do 12.º ano realizaram, (edustat.pt), e considerando
novamente, exames nacionais apenas licenciaturas, verifica-
apenas às disciplinas que se que, em 2019/20, de um total
lhes serviam como provas de de 35.793 estudantes bolseiros,
ingresso para efeitos de acesso de melhoria que se verificava tinham diplomado, não tendo 7% frequentavam o subsistema
ao ensino superior ou para desde 2015: nos cursos técnicos sido encontrados, passados universitário, enquanto 12,4%
melhoria de nota interna para superiores profissionais, quatro anos, no ensino frequentavam o politécnico,
efeitos de candidatura ao ensino ministrados apenas nos É no subsistema superior português. Ou seja, verificando-se, portanto, a
superior. institutos politécnicos, universitário, público apenas cerca de metade dos tendência identificada em anos
subiu de 17% em 2018/19 alunos que se inscreveram anteriores.
OS MESMOS PROBLEMAS DE para 18,7% em 2019/20; nas e privado, que se em licenciaturas de três anos Mesmo com a ambição
SEMPRE licenciaturas,subiu de 8,8% encontram, em conseguiram concluílas dentro nacional de aumentar
Quase um ano depois para 9,1%, e nos mestrados dos primeiros quatro anos de a frequência do ensino
do primeiro ano letivo integrados de 3,4% para 3,7%. maior percentagem, estudo, e mais de um em cada superior até 2030, que parece
condicionado por razões de Já um estudo da Direção- os estudantes cujos quatro alunos abandonaram concretizar-se este ano com o
carácter sanitário (2019/2020), Geral de Estatísticas da o ensino superior algures aumento de vagas e de inscritos,
a percentagem de estudantes Educação e Ciência (DGEEC) pai e mãe têm níveis neste período de tempo. se ao histórico de abandono
não encontrados no ensino de 2018 sobre os percursos no educativos mais altos, Estas taxas de abandono não juntarmos as circunstâncias
superior um ano após se terem ensino superior, que analisa são homogéneas no sistema pandémicas vividas e as suas
inscrito no 1.º ano pela primeira a situação dos estudantes e que é o subsistema de ensino superior, já que a consequências sociais a curto
vez (dados que ajudam a medir após quatro anos da sua politécnico que agrega percentagem de abandono e a médio prazo, Portugal
o eventual abandono do ensino inscrição em licenciaturas durante os quatro anos tende enfrenta ainda desafios na sua
superior) conheceu uma de três anos, mostrava que
a maior percentagem de a ser mais alta no ensino aproximação às médias da União
quebra na tímida tendência 29% dos estudantes não se estudantes bolseiros politécnico do que no ensino Europeia. J
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PERSPETIVA

Um plano de recuperação e resiliência


A autora, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, integrou o grupo multidisciplinar, formado em março passado,
coordenado por José Verdasca, com o objetivo de refletir sobre o “diagnóstico” das aprendizagens, bem-estar, saúde
(física e psicológica), bem assim das necessidades de proteção social, apresentando um conjunto de recomendações ao
Governo. E neste texto dá-nos o seu ponto de vista sobre o plano de recuperação e resiliência para as escolas portuguesas

SOFIA RAMALHO
Enquanto principais propulsores mento em casa e de aulas à distância, tempo que de recuperação dos alunos
das profundas mudanças sociais em os jovens manifestaram contenta- e de si próprios enquanto pessoas.
curso, a Educação e as Ciências do mento com uma maior flexibilidade Uma nota particular para o grupo
Comportamento surgem na primeira para a gestão do seu tempo, acusando das mulheres adultas e das mães ou
linha. O nível sociocultural e económi- as oportunidades proporcionadas cuidadoras, que desde sempre têm a
co das famílias surge como determi- pela menor carga letiva, menor maior representatividade de género
nante do sucesso escolar e educativo centração nos resultados e maior nas nossas escolas, e que na ainda
(sim, escolar e educativo são conceitos preocupação dos professores com atual forma de organização social se
diferentes na sua abrangência), mas os processos de aprendizagem, os encontram em maior risco de vulne-
por outro lado o sucesso escolar e edu- efeitos desvaneceram-se no tempo, rabilidade.
cativo, medidos respetivamente pela à medida em que avançavam pelos Todo este cenário, que na ver-
qualidade do ensino/aprendizagem e diferentes períodos de confinamento. dade não deixa de ser um retrato da
pelo bem-estar e qualidade do ecossis- As impossibilidades de uma apren- Educação em Portugal e noutras partes
tema educativo, têm um impacto po- dizagem que se concretiza dentro e fora do mundo nas últimas décadas (ape-
sitivo e significativo, particularmente da sala de aula essencialmente através nas mais vincado agora), carece de
na vida das famílias mais vulneráveis, da sua dimensão social, cooperativa e um verdadeiro Plano de Recuperação
das pessoas e da sociedade. E é nesta não formal; os não-acontecimentos e e Resiliência, desta feita das Pessoas
interligação que a Educação se assume JOSÉ CARIA os planos adiados ou não concretiza- que habitam o ecossistema educativo!
como um valor social transformador, dos; ou o aumento dos fatores de stress Não apenas ações avulsas centradas
reformista e progressista, e por isso familiar como os conflitos e violência no acesso ao currículo e às aprendiza-
recuperador das pessoas, das famílias e parentais e conjugais, desemprego ou gens, mas planos sistemáticos de apoio
das instituições sociais. perdas económicas, foram criando ao desenvolvimento das aprendiza-
Assim vejo a Educação enquanto espaço para a emergência ou agrava- gens, ao desenvolvimento socio-emo-
valor social, assente nos princípios a vida ativa, as substanciais alterações porquanto se registam falhas metodo- mento de problemas de saúde física, cional e do bem-estar (vide Relatório
fundamentais da dignidade humana às rotinas e estilos de vida, a exposição lógicas (e. g. limitações na represen- psicológica e mental, e para a dimi- de Recomendações para a definição
e de uma sociedade humanizadora e (excessiva) às tecnologias e redes so- tatividade da amostra e na ausência de nuição da perceção de bem-estar e de do plano de recuperação de apren-
democrática, fazedora de uma cida- ciais, a exposição aumentada ao stress, dados comparativos pela atipicidade felicidade. Já agora, pontos fundamen- dizagens: https://escolamais.dge.
dania global, responsável e compro- ao trauma, às perdas e lutos, com risco do contexto pandémico e das condi- tais ao desenvolvimento da identidade mec.pt/sites/default/files/2021-10/
metida, general ativa no combate às agravado para aqueles que se apre- ções e modelos de avaliação), é certo adolescente, comprometendo a sua RelatorioGrupoTrabalho
desigualdades e a todas as formas de sentavam em maior desvantagem ou que os resultados refletem tendências motivação, o gosto e a capacidade Despacho38662021.pdf ).
discriminação e de exclusão social, vulnerabilidade prévia, contribuíram anteriores a que não podemos ficar cognitiva para aprender! Um plano que se eleja prioritário
central para uma sociedade mais para a profunda intensificação das alheios. Uma vez mais, resultados para os próximos anos, com foco
coesa e mais inclusiva. desigualdades educativas e sociais. mais baixos foram observados nos OS ADULTOS DA ESCOLA, leia-se na prevenção, no desenvolvimento
A Psicologia, enquanto ciência so- Em março deste ano, a Ordem dos grupos mais vulneráveis, nomeada- pais e mães, cuidadores e cuida- das pessoas e da escola enquanto
cial e humana, forçosamente rompeu Psicólogos Portugueses foi convida- mente nos alunos que beneficiavam doras, professores e professoras, organização, em parcerias efetivas
fronteiras e tabus, tornando-se numa da a integrar um Grupo de Trabalho de Ação Social Escolar, e nos alunos outros profissionais e as próprias com a comunidade e com as famílias,
especial aliada na recuperação das multidisciplinar, criado no âmbito do mais velhos e que apresentavam his- lideranças educativas, ou seja, todos e baseados na evidência aplicada da
crianças, jovens, famílias e de toda a despacho n.º 3866/2021, publicado tórico anterior de insucesso escolar e os educadores, não ficaram imunes ciências psicológica e da pedagogia.
comunidade escolar face à crise pan- em Diário da República, 2.ª série, de retenção. Resultados estes, agravados a este acontecimento pandémico, Um plano que signifique e dê sentido
démica e seus impactos. O seu papel 16 de abril. Competia a este grupo de pelo contexto de crise pandémica, que sendo frequentes os relatos de stress e à construção de projetos de vida dos
tem sido fundamental na preparação trabalho independente a árdua tarefa deixou a nu o impacto das desigualda- burnout no grupo dos profissionais da alunos e dos demais educadores. Um
e prevenção do impacto psicológi- de refletir sobre o “diagnóstico” das des sociais, das trajetórias de insuces- educação, depois de tentativas inter- plano assente nas oportunidades
co da crise pandémica nas escolas, aprendizagens, do bem-estar e saúde so e da exclusão escolar e social. mináveis de construção de respostas que nascem da crise e dos exemplos
garantindo necessidades básicas de (física e psicológica), e das necessidades Não obstante estes resultados, iniciais de emergência, de tentativas de boas práticas construídas pelo
segurança psicológica e de proteção de proteção social, e a missão de apre- não nos esqueçamos do poder das exaustivas de conciliação do trabalho país fora. Um plano que efetive a
social. Na promoção do bem-estar sentar um conjunto de recomendações aprendizagens alternativas, isto é, da- com a vida pessoal e familiar, e final- transição digital na educação e a
e da saúde física e psicológica da ao Governo, concernentes ao momento quelas que resultam num conjunto de mente de tentativas sistemáticas (e respetiva adaptação das pessoas,
comunidade educativa, com o apoio de regresso à escola, mas igualmente competências múltiplas, como uma muitas vezes frustradas) de recupe- evocando o aspeto diferenciador
de equipas de trabalho constituídas traçando uma visão para, no mínimo, maior responsabilidade, autonomia e ração das aprendizagens, ao mesmo para o futuro, o de Ser Humano. Um
pelas próprias lideranças, psicólogos, três anos letivos. capacidade de autorregulação do seu plano que promova a resiliência das
docentes e outros profissionais. Na estudo, maior questionamento crítico pessoas e do sistema educativo para
avaliação de situações de vulnera- INTEGREI ESTE GRUPO DE da realidade, maior capacidade para responder a futuras crises. Um plano
bilidade e de risco. No planeamento TRABALHO e recordo bem que o selecionar informação útil, para lidar que promova redes de cuidados, a
de intervenções para responder às anúncio da sua constituição ocorreu com a adversidade ou para tomar saúde, a satisfação com a vida e o
necessidades de cuidados psicológicos em simultâneo com a apresenta- decisões fundamentadas a partir das bem-estar. Um plano que aproveite
de alunos/famílias/comunidade edu- ção dos primeiros dados do Estudo experiências do seu dia a dia. Sim, as experiências individuais e coletivas
cativa, ativando as redes de suporte Diagnóstico das Aprendizagens, do podemos vir a ser surpreendidos, É necessário um plano de interdependência, solidariedade e
social necessárias, bem como promo- Instituto de Avaliação Educativa numa forma que não se expressa nem com foco na prevenção, de sentido de comunidade educativa,
vendo medidas de autocuidado e de (IAVE), referentes a janeiro de 2021. se mede de imediato em resultados de de uma participação cívica ativa e
construção da resiliência, preparando Os dados recolhidos no 3º, 6º e 9º fichas de avaliação sumativa, mas que no desenvolvimento orientada por alicerces éticos, e que
desta forma as escolas e a educação anos de escolaridade relativos às áreas se expressará num rol de competên- das pessoas e da escola fomente a inclusão e a coesão social.
para responder a crises futuras. de Leitura, Literacia Matemática e cias para a vida escolar, para a vida Creio ser aqui, neste lugar, que a
O isolamento social prolongado, Literacia Científica apontavam para familiar ou para a vida adulta. Parte enquanto organização, Educação elevará ao máximo o seu
a desmotivação e desinvestimento resultados globais abaixo dos 50% (i. do valor social da Educação! em parcerias efetivas valor social e a sua capacidade de
dos alunos na dimensão escolar e na é. abaixo de suficiente). Ainda assim, face ao contexto desenvolvimento e de transformação
aprendizagem, as (não) vivências das Apesar de algumas tentativas de pandémico que atravessamos, se com a comunidade e social e económica, hoje, e para as
transições de ciclos, de escolas ou para generalização abusiva destes dados, num primeiro momento de isola- com as famílias gerações futuras! J
4 EDUCAÇÃO

3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT

OPINIÃO

A reforma das universidades no nosso tempo


JOÃO RELVÃO CAETANO
Pretendo com este artigo chamar a mas podem ajudar a pensar melhor, entre os governos, as instituições de
atenção para a necessidade de refor- se forem bem utilizados. Pela sua investigação e ensino e a sociedade,
ma do sistema de ensino superior e, estrutura hipertextual, os computa- tanto na definição de estratégias
em particular, das universidades em dores permitem navegar com notável concertadas como na partilha de
Portugal. É uma matéria complexa, eficiência pelas redes digitais, com meios e responsabilidades. Em
pouco evidente e mal-assumida, ganhos imensos, o que os torna Portugal, isso faz-se, em parte, no
pelo que é preciso fazer o debate, indispensáveis. CRUP, mas está-se aquém do que é
porque as universidades nunca se Em termos de metodologias de necessário.
autorreformam, salvo se forem em- ensino, mais do que dar centralidade A transição digital das institui-
purradas ou persuadidas. ao estudante em substituição do pro- ções de ciência e ensino superior é
Nada como começar pela realida- fessor no processo de aprendizagem, nevrálgica. Para além de capacitar
de, para se perceber que há fatores uma ideia muitas vezes defendida, as instituições tecnologicamente e
favoráveis ao progresso social e à mas que é enganadora, deve apos- de formar as pessoas, é preciso esta-
reforma das universidades, como tar-se no aumento da interação e belecer uma agenda de prioridades
sejam o desenvolvimento científico colaboração, seja entre professores públicas e de sensibilizar as pessoas
e tecnológico, o desenvolvimento e estudantes, seja entre os próprios para elas. Neste contexto, defendo a
socioeconómico e as iniciativas que professores ou estudantes, visando criação de uma “diplomacia” acadé-
visam alargar os direitos de acesso ao uma formação efetiva e a produção e mica que seja capaz de estabelecer
ensino superior e à democratização disseminação de conhecimento novo. uma ordem internacional de cida-

MARCOS BORGA
da ciência. dania na área da ciência e do ensino
Não falarei hoje do âmbito ou es- OS PROFESSORES UNIVERSI- superior, visando dar resposta a
pecificidades da reforma, limitando- TÁRIOS não podem limitar-se a problemas globais, como aconteceu
-me a mostrar que a mudança está a ensinar, porque têm também a com o combate à pandemia.
ser imposta de fora às universidades, obrigação de investigar, participar Uma das prioridades deverá ser o
pelo que é necessário que estas e os em atividades de extensão univer- apoio a iniciativas transnacionais na
universitários acompanhem essa sitária, exercer funções de gestão próximo, tanto dos estudantes como portuguesas, porque apostaram há área da ciência aberta, com a criação
mudança cumprindo as suas fun- nas suas instituições e participar dos colegas. Ainda há poucos anos, muito na formação e nos processos de infraestruturas comuns de comu-
ções, apoiados por políticas públicas em outras tarefas distribuídas pelos em algumas áreas científicas, era de recrutamento e há uma elevada nicação, preservação e disseminação
adequadas. órgãos de gestão competentes e que quase tão impensável um professor internacionalização. do conhecimento. Não há univer-
Que se espera das universidades e se incluam no âmbito da atividade de publicar um artigo científico com Assim como a qualidade das sele- sidades ou centros de investigação,
dos universitários no nosso tempo? docente universitário. É o Estatuto um estudante como com um colega, ções de futebol depende da formação por maiores que sejam, em qualquer
Um colega professor de literatura da Carreira Docente Universitária privilegiando-se o trabalho exercido dos treinadores, dos jogadores e dos país do mundo, que tenham por si
dizia-me há dias que a preparação (ECDU), no artigo 4.º, que acabo de de forma hierárquica e isolada. Hoje demais agentes do sistema despor- só capacidade financeira para tal,
do professor universitário se percebe expor,1 que traduz essa dinâmica, há que apostar em novas formas de tivo, também a riqueza dos países pelo que precisam de colaborar. Se
pelo computador que utiliza. É uma com o objetivo de uma aproxima- colaboração, tanto em projetos como depende dos níveis de formação dos é assim na exploração aeroespacial,
afirmação paradoxal, mas que evi- ção dos professores à sociedade. na publicação de trabalhos ou no seus cidadãos. Eu até inventei um deve também ser na ciência e ensino
dencia que a realidade evolui. Longe Mesmo a separação entre as carreiras desenvolvimento de patentes, que, quarto particípio futuro para a língua superior, duas modernas áreas de
vão os tempos em que ao estudante de docência e investigação é hoje ao invés de diminuírem, aumen- portuguesa para expressar essa ideia: soberania dos Estados.
se pedia que estudasse unicamente criticada por alguns responsáveis tam a exigência científica, por via “formaturo”, como “aquele ou aque- Há tempos um colega lamenta-
pela “sebenta” do professor, que universitários que defendem a da integração de mais pessoas no la que deve ser formado”. va-se de o Estado ter deixado uma
este escrevia por dever de ofício. Isso unificação de carreiras (como é o sistema científico. Essa é também cátedra no exterior sem financia-
mesmo experimentei ainda há 30 caso do Prof. Cruz Serra, reitor ces- uma forma de introduzir diferencia- NO CAMPO DO ENSINO SUPE- mento, ao que eu referi o proble-
anos na Universidade de Coimbra, sante da Universidade de Lisboa),2 ção nos sistemas de ensino superior RIOR, uma diferença em relação ma dos professores que estão tão
minha “alma mater”, onde aliás como forma de garantir uma maior de massas e promover a mobilidade ao passado é que as escolhas das ocupados fora da universidade que
aprendi muito. Mas hoje é impossível qualidade tanto do ensino como da social dos estudantes, aproveitando pessoas são cada vez mais livres, não cumprem as suas tarefas. São
que um professor universitário ou investigação. os seus talentos. porque podem estudar em qualquer dois exemplos que tocam o cerne
um estudante não saibam utilizar Assim como não pode limitar-se Neste contexto, pessoas e países instituição do mundo, sem neces- da reforma das universidades, o que
eficientemente um computador, nas a ensinar, o professor universitá- aproximam-se vertiginosamente. sidade de se mover. Um estudante passa por saber quais são as funções
múltiplas possibilidades que tem. rio deve saber ensinar de maneira No atual estádio de globalização, a pode estar no Índia e estudar numa destas no nosso tempo, porque isso
A universidade, como maior diferente do passado, fazendo uso de afirmação dos países depende funda- universidade de referência dos não é totalmente evidente. Qual
projeto humano alguma vez tentado novas metodologias de ensino e das mentalmente do que os seus cidadãos Estados Unidos ou da Europa. Além deve ser, por exemplo, o compro-
de procura sistemática da verdade redes digitais. E, sobretudo, deve ser fazem no mundo, pela facilidade com disso, pode construir o curso à me- metimento das universidades com
em todos os domínios do saber, que podem mover-se, tanto fisica- dida dos seus interesses. Importante a aprendizagem ao longo da vida?
persiste, mas a forma histórica da mente como, sobretudo, digitalmen- é que haja cada vez mais instituições Já vi universitários rechaçarem a
sua realização alterou-se. A transição te, sabendo-se que um país é tanto com capacidade e flexibilidade para ideia, por supostamente defraudar a
digital de que tanto se fala, como mais desenvolvido quanto maior é atrair os melhores, sejam estudan- missão histórica das universidades,
forma imprescindível e urgente de o número de pessoas que utilizam tes, professores ou pessoal especia- sem se procurar sequer saber o que
desenvolvimento das nações, abran- produtivamente as redes digitais. lizado, numa base de respeito pelo significa o conceito, que aliás não é
ge as universidades, implicando A qualidade da representação ideário científico. novo. Dei este exemplo, porque as
quer o acesso a novas tecnologias e a política continua a ser condição Nada disto se faz sem preparação. necessidades de formação exigem
formação generalizada dos parti- necessária do desenvolvimento, mas O campo das reformas necessárias em particular a transformação das
cipantes nos processos de ensino e Uma das prioridades não é condição suficiente. A riqueza nos modernos sistemas de ciência, universidades, mas há outros.
aprendizagem, quer uma mudança dos países depende das redes de re- ensino superior e inovação (que são Na base da minha argumentação
de mentalidades. deverá ser o apoio a lações das suas instituições e pessoas muito diferentes dos tradicionais estão critérios que se prendem com
Recordo-me de Carlos Reis, reitor iniciativas transnacio- e é nisso que as universidades devem sistemas universitários autárci- as funções legais e estatutárias das
da Universidade Aberta, em 2008, a apostar. Poderão continuar a ser cos) é complexo e exige avultados universidades e dos universitários
explicar, numa sessão pública com nais na área da ciência universidades nacionais, ao serviço investimentos. O desenvolvimento que implicam mudanças no sistema.
professores, a propósito do modelo aberta, com a criação de até dos interesses dos Estados, mas de sistemas de ensino inclusivos Em próximos artigos, analisarei do-
pedagógico virtual da Universidade devem estar viradas ao mundo. (que deem resposta, por exemplo, à mínios específicos em que a reforma
Aberta, que tecnologia significa infraestruturas comuns Nesta matéria, podemos aprender educação de populações fora da ida- deve incidir, tendo em conta essas
“reflexão sobre a técnica”, pelo que de comunicação, preser- com o futebol. A seleção e os clubes de de referência, uma questão hoje funções e os objetivos estratégicos de
deve ser usada de forma consciente portugueses de futebol estão mais premente) e a criação de condições política nacional, europeia e interna-
e produtiva. Os computadores não
vação e disseminação do bem classificados nos rankings in- para uma investigação de qualida- cional em matéria de ciência, ensino
pensam em lugar dos humanos, conhecimento ternacionais do que as universidades de exigem uma forte colaboração superior e inovação. J
3 a 16 de novembro de 2021 JORNALDELETRAS.PT EDUCAÇÃO 5 ↗

COLUNA

O todo e as partes
humanista (parafraseando diversos
autores desta corrente de ideologia
pedagógica) e a avaliação dos alunos
como indivíduos “no seu todo”,
de acordo com uma perspetiva
“holística”, mas depois se promova
de forma imperativa um modelo de

EDUCAÇÃO E MEMÓRIA
avaliação segmentado por rubricas
que se enquadra mais na corrente
da “avaliação analítica”. Fala-se
Paulo Guinote num novo paradigma, o “paradigma
pedagógico da comunicação” e na
necessidade de dar feedback per-
manente e de qualidade aos alunos,
Esta historinha vem em segunda pelo que é preciso recolher todo o
mão. Foi-me contada há anos pelo tipo de informação.
meu colega e amigo João Santos, É o caso do projeto MAIA que
que já se livrou do quotidiano do advoga, entre outras estratégias,
manicómio, mas que me continua a o recurso a rubricas como “um
abastecer de episódios e memórias, procedimento bastante simples para
sempre que a pandemia e outros apoiar a avaliação de uma grande
permeios não o impedem. Contou- diversidade de produções e desem-
me ele que nos seus primeiros penhos dos alunos” (Domingos
tempos de professor teve um colega Fernandes, Rubricas de Avaliação.
que quando chegava às reuniões de Folha de apoio à formação - Projeto
avaliação e era necessário preencher de Monitorização, Acompanhamento
a canónica “síntese descritiva” ou e Investigação em Avaliação
equivalente, para fundamentar o ní- Pedagógica (MAIA). Ministério
vel atribuído, escrevia ou ditava algo da Educação/Direção-Geral da
como “parece-me que o aluno merece Educação, 2001, p. 4).
nível três” (ou outro, conforme os O problema é que ao segmen-
casos). O que levantava alguma tar excessivamente a informação,
celeuma entre quem achava que se se perde a dado momento a visão
deveria ser mais detalhado e especí- de conjunto, acabando por tanta

MARCOS BORGA
fico em tal matéria mas que, ao fim soma de rubricas nos devolver um
de todos estes anos, me parece um todo que lembra uma espécie de
modo tão ou mais adequado do que frankenstein. Mesmo que se avise
qualquer de encarar a avaliação do para os riscos (“as rubricas podem
trabalho dos alunos. E, permitam- ser mais ou menos eficazes e úteis
-me, a forma mais genuinamente para avaliar certos objetos”, p. 5).
“holística” de proceder a uma tarefa dos alunos, que a avaliação contínua benefício de todos e para que não se COMPREENDE-SE QUE SEJA Para além de que na prática tudo isto
complexa, mas que só ganha em deve ser o instrumento por excelên- instale em definitivo o tédio. IMPORTANTE a referida coerência acaba por se traduzir num excesso
clareza e honestidade se aprender- cia da avaliação interna, devendo os Em 2018, como complemento à mas, nesse caso, a autonomia das de registos que em muitos casos
mos a simplificá-la. instrumentos de avaliação externa publicação do decreto-lei 54/2018 escolas existe apenas desde que dificilmente traz ganhos acrescidos
Vem este episódio quase carica- atuar como recurso que potencie de 6 de julho, a Direcção-Geral da obedeça a tal referencial úni- a uma forma tradicional de corrigir/
tural a propósito da enorme confu- a avaliação interna realizada na Educação publica um Manual de co. Aliás isso, fica bem claro nos classificar o desempenho de um
são conceptual em que mergulhou a escola”. Apoio à Prática, subtítulo da obra números 1 e 2 do diploma quando aluno.
avaliação dos alunos, em especial do Para uma Educação Inclusiva, com se determina que o PASEO é o “refe- Ao pretender-se que “as rubricas
Ensino Básico, nestes anos de “au- ESTA PASSAGEM, PERANTE A autoria partilhada por mais de uma rencial para as decisões a adotar por deverão incluir o conjunto de critérios
tonomia, flexibilidade, diferencia- EVOLUÇÃO dos resultados dos dúzia de especialistas na matéria, em decisores e atores educativos ao nível que se considera traduzir bem o que
ção, inclusão & etc”, em que muito alunos nos últimos 25 anos, com que se sublinha de forma repetida a dos estabelecimentos de educação e é desejável que os alunos aprendam
se diz e escreve, mas raramente com o quase contínuo crescimento dos importância de uma visão “com- ensino e dos organismos responsáveis e, para cada critério, um número de
o cuidado de articular as partes num níveis de sucesso, poderia ser ape- preensiva, holística e integrada” no pelas políticas educativas [e que] descrições de níveis de desempe-
todo coerente, optando-se pelos nas redundante, mas é mais do que apoio aos alunos e na avaliação do este Perfil constitui-se como matriz nho. Ou seja, para um dado critério,
remendos ao sabor do momento. isso porque, de uma forma habitual progresso das suas aprendizagens, comum para todas as escolas e ofertas poderemos ter, por exemplo, três,
Exatamente como se passa depois, nestas matérias, dá logo a entender pois só “adotando uma visão holísti- educativas no âmbito da escolaridade quatro ou mesmo cinco indicadores ou
na prática, com a dita avaliação. que quem discorda do “modelo” ca que considera os aspetos acadé- obrigatória, designadamente ao nível descritores de níveis de desempenho”,
Comecemos quase pelo prin- é porque está contra tão benig- micos, comportamentais, sociais e curricular, no planeamento, na reali- temos o caminho aberto para a uma
cípio, que é vício que resulta da nos “pressupostos”. Mais adiante emocionais do aluno mas também os zação e na avaliação interna e externa “grelhificação” do atos educativos,
formação histórica, ou seja, pelo sublinha-se “a dimensão eminen- fatores ambientais (designadamente do ensino e da aprendizagem”. A em que o registo parece ganhar
Decreto-Lei n.º 17/2016 de 4 de temente formativa da avaliação e da escola e da sala de aula)” (p. 46) “autonomia” só existe dentro de maior importância do que qual-
abril, no qual se visava “estabelecer considerando que um modelo de é possível mobilizar a informação uma matriz fechada. quer outra variável. Pode recolher
os princípios orientadores da avalia- avaliação é tanto mais exigente indispensável para reequacionar o A segunda contradição é a informação útil, mas, um pouco
ção das aprendizagens nos ensinos quanto contemple mecanismos de processo de ensino e aprendizagem. que resulta de se defender uma como com quem usa big data sem
básico e secundário, de acordo com introdução de uma maior qualidade E da sua avaliação, já agora. Educação “integral” e de matriz o algoritmo certo, pode acabar por
as orientações de política educa- no ensino e na aprendizagem, na A primeira contradição encon- obscurecer o mais importante. E,
tiva consagradas no Programa do medida em que fornece pistas claras tra-se quando se defende que as quase por certo, não avalia o aluno
XXI Governo Constitucional”. O para conduzir a uma melhoria pro- escolas devem ter autonomia na como um todo, mas apenas como
diploma, como todos os normati- gressiva das práticas a desenvolver definição dos seus referenciais para uma soma de imensas partes.
vos fortemente ideologizados, tem e dos desempenhos de cada aluno, a avaliação dos alunos, assim como Claro que podemos tentar ter o
um preâmbulo autojustificativo defende-se que o rigor e a exigência flexibilidade na forma de os aplicar, melhor de vários mundos, combi-
que merece que nele nos dete- se constroem pela diferenciação pe- mas depois surge um documento nando os contributos de diferentes
nhamos um pouco para melhor dagógica assente numa intervenção como o chamado PASEO (Perfil Há um excesso de teorias e metodologias. Aliás, esse
percebermos onde se acentuou a precoce no percurso das aprendi- dos Alunos à Saída da Escolaridade registos que em muitos seria o caminho mais certo. Só que
deriva atualmente em aceleração. zagens”. Obrigatória) que, fazendo-se lei assistimos, tantas vezes, a uma mis-
De acordo com o dito preâmbulo, Tudo isto acaba por ser reto- através do despacho n.º 6478/2017 casos dificilmente traz celânea que tudo empilha e confun-
após auscultações (informais) várias mado e parafraseado no Despacho de 26 de julho se assume como ganhos acrescidos a de, retirando verdadeira autonomia
“consolidou-se a evidência de que o normativo n.º 1-F/2016 de 5 de abril “um referencial educativo único que, pedagógica às escolas e tempo útil
modelo a adotar teria de ter subja- que “regulamenta este novo regime abrangendo as diferentes vias e per- uma forma tradicional ao trabalho com os alunos. Afinal,
cente um conjunto de pressupostos, de avaliação e certificação das cursos que os alunos podem escolher, de corrigir/classificar queremos que os alunos aprendam
nomeadamente que as dinâmicas aprendizagens desenvolvidas pelos assegure a coerência do sistema de ou que fique registado que apren-
de avaliação visam a melhoria das alunos do ensino básico” e fico por educação e dê sentido à escolaridade
o desempenho de um deram? Confesso que prefiro o
aprendizagens e o sucesso escolar aqui, por agora, na transcrição para obrigatória”. aluno “parece-me que…”J
6 EDUCAÇÃO

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PERSPETIVAS

A atualidade da educação permanente


INQUIETAÇÕES
PEDAGÓGICAS
A instrução não deve abandonar as pessoas dendo todas as suas formas, expressões e mo- Rui Canário refere que a perspetiva assenta Procurámos perceber a atualidade da
no momento em que saem da escola, ela deve mentos, de maneira a garantir a educação global em três pressupostos sobre o processo edu- educação permanente convidando Alberto
acompanhar todas as idades, sempre que das crianças e jovens e a preparar os adultos para cativo, “o da sua continuidade (em termos Melo, Licínio Lima e Paula Guimarães, para
seja possível e útil aprender ou colmatar a exercerem melhor a sua autonomia e liberdade. diacrónicos), o da sua diversidade (integrando uma revisitação crítica sobre o tema, e a Susana
desatualização do saber adquirido no ensino A Educação Permanente é entendida como deferentes níveis de formalização e instituições Coelho para nos elucidar sobre o desenvolvi-
de juventude. um projeto educativo que inter-relaciona a de natureza educativa escolar e não escolar) e o mento de uma estrutura do Sistema Nacional de
O conceito de Educação Permanente diz dimensão individual e social da educação, veicu- da sua globalidade (ao nível da pessoa e ao nível Qualificações, o Centro Qualifica do Município
respeito a todo o processo educativo, compreen- lando um sistema humanista de valores coletivos. de contextos locais) ”. de Sintra.

Revisitações críticas
ALBERTO MELO, LICÍNIO C. LIMA & PAULA GUIMARÃES
A Educação Permanente foi dizagens desenvolvidas por cada paradoxalmente, de se revelar de
bandeira de muitos educadores ao sujeito e por cada coletivo social, receção ambígua, teoricamente
longo dos tempos e, em especial, na numa relevante herança de cariz plural e controversa, politicamente
década de 70 do século XX. Apesar humanista que valoriza a igualdade dotada de uma história marcada
das tendências mais recentes, que de oportunidades e a justiça social. por momentos de protagonismo
procuram enfeudá-la à escolari- Como argumenta Licínio C. e por outros de profundo apaga-
dade formal e à formação para o Lima, esta ideia antiga, e apa- mento discursivo, para além de uma
emprego, a Educação Permanente rentemente simples, não deixa, presença com intensidades variáveis
tem hoje, mais do que nunca, um nas práticas sociais. A ambiguidade
papel essencial na resistência manifesta-se como sendo constitu-
aos novos veículos de opressão cional ao conceito de educação per-
e obscurantismo e na criação de manente, em boa parte resultante da
alternativas regeneradoras. É esta a sua condição aparentemente óbvia
mensagem central que os autores de e da sua natureza ampla e genérica,
A©tualidade da Educação Perma- A Educação apontando para a ideia, simulta-
nente fazem passar nos seus textos e neamente projetada como ideal a ser
é a vontade de divulgar este “Con- Permanente tem hoje, promovido, de que a educação é uma
ceito-Ação”, contra as operações de mais do que nunca, ação humana que transcorre “desde
escamoteamento a que foi sujeito o berço até à tumba”.
ultimamente, que levou a Asso- um papel essencial na
ciação Portuguesa para a Cultura e também com conexões fortes à rentes ao conceito, que traduzem os resistência aos novos À SEMELHANÇA DE OUTROS
Educação Permanente e a Asso- educação comunitária. contextos do passado, assim como CONCEITOS de política educativa,
ciação Espaço Ulmeiro a juntarem Como refere Rui Canário, situar da atualidade. Mesmo que marcado veículos de opressão como é o caso da hoje omnipre-
os seus esforços a fim de tornar historicamente o movimento da pela ambiguidade, o conceito enfa- e obscurantismo e na sente “aprendizagem ao longo da
realidade esta obra de reafirmação educação permanente favorece a tiza o hibridismo das modalidades vida”, poder-se-ia concluir que
da Educação Permanente. identificação de oportunidades e educativas (formais, não formais e criação de alternativas também a educação permanente
A obra inclui oito capítulos de de desafios, forças e fraquezas ine- informais) e a riqueza das apren- regeneradoras tem um longo passado, mas uma
autores portugueses (Alberto Melo, história curta, designadamente
Licínio Lima, Maria Priscila Soares, por efeito de recontextualizações
Paula Guimarães e Rui Canário), e políticas operadas por importantes
ainda de Àngel Marzo, da Catalu- organismos internacionais que
nha, Barry J. Hake, do Reino Unido,
Borut Mikulec, da Eslovénia, Timo-
thy Ireland, do Brasil. Há muito que
Sobre a Associação contribuíram para homogeneizar e
impor certos significados. Muda-
ram os sentidos atribuídos à ideia
os autores escrevem sobre o tema.
Para este livro, foi-lhes pedido que
o revisitassem criticamente e justi-
Portuguesa para a Cultura de que se aprende ao longo da vida
nos discursos políticos de influen-
tes organizações internacionais,
ficassem a sua atualidade.
O capítulo de Barry Hake aborda
e Educação Permanente do Conselho da Europa à UNESCO,
da OCDE à União Europeia, de
o conceito destacando os sentidos forma crescente sob abordagens
que diferentes organizações inter- economicistas e utilitaristas, como
nacionais lhe atribuíram. Inicial- A Associação Portuguesa para a Cultura e Educação Permanente (APCEP) foi criada se discute no capítulo de Paula
mente, a educação permanente foi em 27 de setembro de 1982, tendo por finalidade central “a defesa da democracia Guimarães, insistindo na qualifi-
apresentada como vetor da reforma cultural”. Visando a concretização deste propósito, assumiu, entre outras, a missão de cação e requalificação da mão de
da educação escolar, como resposta reunir e motivar pessoas e de congregar e reforçar movimentos, grupos ou entidades obra e nas competências orientadas
às mudanças sociais, económicas empenhadas na educação popular, educação permanente e desenvolvimento cultural. para o mercado de trabalho, como
e tecnológicas, por vezes sendo A APCEP inspira-se em Sócrates, Comenius, Espinoza, Condorcet, Grundtvig, Paul argumenta Borut Mikulec no seu
entendida como educação autodi- Lengrand, Paulo Freire, Ettore Gelpi e muitos outros na convicção de que qualquer capítulo. Neste debate, fica evi-
rigida, não-formal e informal, de pessoa nasce imperfeita, mas possui ilimitadas potencialidades, cuja concretização dente que as organizações interna-
adultos, frequentemente associada lhe permitirá crescer permanentemente como pessoa. Porém, para que se dê esse cionais parecem ter-se apropriado
à educação popular, a movimentos crescimento individual e social, a sociedade tem de garantir – em todos os espaços e do conceito desde meados do século
culturais, de educação dos tra- tempos de vida – as condições mais favoráveis, isto é, deve adotar uma política pública de XX. Nas mudanças de significa-
balhadores e de promoção social, promoção da Cultura e Educação Permanente dos ganhou destaque o papel da
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PERSPETIVAS

educação ao serviço das políticas


económicas e de emprego. Centro Qualifica do Município de Sintra
Da estratégia à resposta
Nessa deriva economicista,
como escreve Timothy Ireland,
o neoliberalismo “sequestrou” o
conceito de educação permanente,
de resto reatualizando a velha
narrativa da educação de jovens
e adultos sob um modelo de tipo SUSANA COELHO
deficitário que comporta riscos de
desumanização. Mesmo quando
os discursos políticos assumem
propósitos mobilizadores, é fre-
quente encontrar na sua origem o
modelo do défice de competências e
de qualificações. É em tal contexto
que passa a predominar uma lógica
política de gestão de recursos
humanos e de mercadorização da
educação e formação, através de
ideias, de instrumentos e métodos,
de recursos e financiamentos.

OS DOIS ÚLTIMOS CAPÍTULOS


analisam a educação permanente a
partir de práticas desenvolvidas em
territórios determinados, nomea-
damente na Catalunha e no Algarve
e de projetos de intervenção local
democráticos e emancipatórios, nos
quais a educação popular é central. Criados ao abrigo da portaria nº conhecimento, validação e certifica- de pressupostos metodológicos de insucesso, que tem de ser invertidas
Àngel Marzo defende que a educação 232/2016 de 29 de agosto, os Centros ção de competências (RVCC), a saber: (balanço de competências, aborda- quando retomam o seu percurso de
permanente assentará em processos Qualifica são estruturas do Sis- A. Acolhimento - consiste no gem autobiográfica) que permitem qualificação.
de renovação a partir das mar- tema Nacional de Qualificações que atendimento para a inscrição e es- a identificação, o reconhecimento, a 3. Encaminhar adultos pouco
gens, orientada para a mudança, assumem um papel crucial na ligação clarecimento ao candidato (jovem ou validação e a certificação das compe- escolarizados para as ofertas disponí-
para a criação de “contra-espa- efetiva entre os mundos da educação, adulto) acerca da missão e do âmbito tências previamente adquiridas pelos veis, que por vezes são respostas sem
ços” educativos do tipo “faça você da formação e do emprego, numa de intervenção dos Centros Qualifica; adultos ao longo da vida, em contextos a flexibilidade e adequação necessária
mesmo”, individualmente e com os perspetiva de aprendizagem ao longo B. Diagnóstico - análise do perfil do formais, não formais e informais. Os para aqueles, que geralmente apre-
outros, ancorada em alternativas da vida. candidato, com o objetivo de iden- restantes 35% dos encaminhamen- sentam uma maior vulnerabilidade
construídas a partir das periferias, Alinhado com o Projeto Educativo tificar respostas de educação e/ou tos efetuados estão distribuídos por social (e.g. emprego(s) precário(s),
não formais e não vocacionais. Em Local (PEL) de Sintra, onde o eixo formação ajustadas à sua situação (mo- outras modalidades como: cursos de horários por turnos, com pouca ou
suma, trata-se de partir de contex- Trabalho, Qualificação e Inovação ex- tivações, necessidades e expetativas); Educação e Formação de Adultos – EFA mesmo sem possibilidade de nego-
tos educativos auto-organizados e pressa a aposta firme que o município C. Informação e Orientação - (17%); vias de conclusão e certifica- ciação com a entidade patronal).
autogovernados, em contestação a tem nesta vertente, o Centro Qualifica apoio ao candidato na identificação ção do ensino secundário através do 4. Estimular a aprendizagem ao
formas de dominação gerencialista, Município de Sintra (CQMS) surge da de percursos de educação/ forma- Decreto-Lei n.º 357/2007, de 29 de longo da vida, para que os adultos que
meritocrática e performativa. convicção de que o aumento da qua- ção profissional, disponibilizando a outubro, para quem frequentou, sem terminam uma etapa de qualificação,
Trabalhar nas margens e em lificação da população ativa permite informação necessária que permita concluir, cursos de nível secundário procurem de forma continuada, com
pequena escala, a partir de mais o acesso a um futuro mais alicerçado a opção pela resposta que melhor se cujos planos de estudo se encontram o suporte do CQMS, outras etapas de
indagação e criatividade do que no sucesso, correspondendo de forma adeque ao seu perfil e que contribua extintos (6%); Ensino Recorrente, formação/qualificação, alinhadas com
de prescrição e normatividade, de mais sólida aos permanentes desafios para viabilizar, de forma realista, o quer na modalidade presencial, quer o seu desenvolvimento pessoal e pro-
procura e de descoberta, mais do que a sociedade nos coloca. Situado seu projeto individual; na não presencial (5%); Formações fissional. O impacto da qualificação
que de obediência a receituários e estrategicamente em Agualva Cacém, D. Encaminhamento - formali- Modulares Certificadas (4%) e Cursos deverá ser visível na vida do adulto.
a respostas canónicas altamente num local de grande acessibilidade, zação do encaminhamento do can- de Aprendizagem (3%). 5. Efetivar parcerias, através do
institucionalizadas, pode consti- cobre toda a extensão não abrangida didato para uma oferta de educação Apesar de a sua experiência se envolvimento de várias entidades
tuir um movimento de reinvenção pelos Centros já existentes no con- e formação ou para um processo de limitar a um ano coincidente com o num processo de franca cooperação,
da educação permanente. Outras celho e procura responder às efetivas reconhecimento, validação e certifi- período atípico da pandemia, a equipa em que as diversas sinergias sejam
conceções de cultura e de desen- necessidades de formação e qualifi- cação de competências - RVCC. Esta do CQMS, identifica as seguintes potenciadas, com partilha de expe-
volvimento humano e endógeno, cação de adultos e de jovens que não etapa decorre de um acordo entre a inquietações, resultantes da interven- riências, otimização de recursos e de
de animação local e de desenvol- estudam nem trabalham (NEET). equipa do CQMS e o candidato, com ção direta com os adultos com quem serviços envolvidos, na organização
vimento comunitário, através de Resultante da parceria com a base no processo prévio de diagnós- trabalha: de respostas úteis para as populações.
uma “pedagogia de situação” que Escola Profissional de Recuperação tico e ou orientação. 1. Garantir que o encaminhamento Por último, importa sublinhar que
sobressai no capítulo de Priscila do Património de Sintra e a Escola efetuado é a melhor opção para o a principal inquietação é não deixar
Soares e de Alberto Melo, são in- Secundária Ferreira Dias, o CQMS, ATÉ AO MOMENTO, O CQMS CON- adulto, tendo em conta que por vezes a nenhum adulto sem a sua resposta
contornáveis em qualquer perspe- integra, desde maio de 2020, a rede TABILIZOU 183 ADULTOS INSCRI- resposta possível apresenta limita- mais adequada. É nossa convicção que
tiva de educação permanente que, nacional de centros especializados TOS, sendo maioritariamente do ções (e.g. horários, localização, oferta este caminho só é possível com todas
compreendendo a formação técnica em qualificação de adultos. Coorde- género feminino (62%) e cujo intervalo disponível). O processo de enca- as convergências entre os diversos
e profissional, vá mais além desta e nado pela Agência Nacional para a de idades mais expressivo se situa entre minhamento envolve uma tomada atores envolvidos. No que diz respeito
lhe confira densidade política, cul- Qualificação e o Ensino Profissional, os 35 e os 50 anos (57%). Relativamente de decisão baseada em múltiplos à área da Educação e Formação de
tural e educacional. Estes aspetos I.P. (ANQEP), assume-se como uma aos níveis de escolaridade evidenciados fatores e tenta garantir a resposta mais Adultos, todos os caminhos possíveis
são cruciais na história do trabalho estrutura que visa a concretização na etapa de acolhimento, verificamos adequada a cada adulto, que por vezes nunca serão demais.J
realizado pela Associação In Loco, do objetivo do Programa Qualifica, que a maioria dos candidatos (60%) contrasta com uma oferta demasiado
nos projetos desenvolvidos e nas na melhoria dos níveis de educação e apresenta o 3º ciclo do ensino básico homogénea e pouco flexível na sua *Susana Coelho, técnica superior do Depar-
palavras dos entrevistados, reme- formação dos adultos, contribuindo completo; 24% dos candidatos tem modalidade. tamento de Educação, Juventude e Desporto
tendo, como em todo o livro, para para a melhoria dos níveis de quali- apenas até ao 2º ciclo e 16% já tem o 2. Motivar para a qualificação e va- da Câmara de Sintra é coordenadora do seu
a atualidade da (ou de uma certa) ficação da população e a melhoria da ensino secundário concluído. lorizar o percurso formativo, evitando Centro Qualifica
educação permanente. J empregabilidade dos indivíduos. No que concerne às modalidades desistências, em que a qualidade das
O trabalho desenvolvido com de encaminhamento concretizadas relações interpessoais estabelecidas LINKS DAS INQUIETAÇÕES PEDAGÓGICAS
*Alberto Melo, é prof. (aposentado Universi- os adultos é feito através de sessões pelo CQMS, destacamos o processo com os adultos, é um fator chave no
pedagogicasinquietacoes@gmail.com
dade do Algarve), Licínio C. Lima, docente sequenciais, respeitando as diferentes de RVCC como a mais expressiva, sucesso da formação e da qualifica-
inquietacoespedagogicasii.blogspot.pt
do Instituto de Educação da Universidade etapas de intervenção dos Centros representando cerca de 65% dos ção. O público-alvo do CQMS são
do Minho, Paula Guimarães, docente do Qualifica, desde o Acolhimento ao encaminhamentos efetuados. Este adultos que, por vários motivos, não www.facebook.com/InquietacoesPedagogicas
Instituto de Educação da Universidade de Encaminhamento para uma oferta processo, apenas possível para candi- concluíram uma ou várias etapas de www.youtube.com/user/inquietPedagogicas
Lisboa – e os três da APCEP formativa ou para um processo de re- datos adultos, assenta num conjunto escolaridade, apresentando histórias
8 EDUCAÇÃO

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AUTORRETRATO

O
› AU TO R R E T R ATO DE PROFESSORA‹ gens mediante o trabalho produzido
(feed forward). No final de cada tarefa,
alunos e professores avaliam o traba-
lho com recurso a grelhas de autoava-
lição, coavaliação e heteroavaliação,
rubricas de avaliação e diferentes
dinâmicas de melhoramento, como o
roleplay. Todos celebram o sucesso!
Encorajada por vários profissionais
da educação, alunos e encarregados

Sónia Moreira
de educação, em 2020, submeti a
candidatura ao Global Teacher Prize
Portugal, prémio internacionalmente
considerado como o “nobel da educa-

Aprendizagem
O fascínio pela arte de ensinar ção”. Em outubro de 2020 tive a honra
começou ainda em criança. Aos de ver reconhecido todo o investi-
sete anos já ajudava com paixão e mento de uma carreira profissional,
dedicação a minha professora, de com a atribuição do 1.º lugar neste

cooperativa
nome Graciosa, numa tutoria que se concurso. Este prémio ajudar-me-á a
estendia após o período letivo. Era democratizar a AC através da criação
habitual receber em casa colegui- de uma Plataforma WEB que já se en-
nhas de turma e outros meninos contra em desenvolvimento. Através
da rua onde vivia, a quem adorava da mesma, conseguiremos chegar a
orientar na realização dos traba- mais alunos e professores.
lhos, replicando o excelente exem- O facto de ter sido vencedora da
plo da minha professora. A vocação edição portuguesa de 2020 do Global
reforçou-se na adolescência, como ção de AE Gaia Nascente. Em 2015, necessário para mudar práticas Teacher Prize, pude ter acesso ao
mentora de uma colega de turma como resposta às necessidades de pedagógicas nas escolas do Ensino concurso internacional em 2021. E em
recentemente chegada da África vários professores em renovar as suas Pré-Escolar, Básico e Secundá- setembro de 2021 foi anunciado o TOP
do Sul. Os desafios eram ajudá-la a práticas pedagógicas, torná-las mais rio. Aposta na formação contínua 50. A alegria de estar nesta short list,
aprender a comunicar em portu- atrativas e adequadas aos alunos da de professores em contexto como a representar Portugal, num concurso
guês e facilitar o seu processo de atualidade, criei a oficina de forma- estratégia de desenvolvimento das com mais de 12 mil candidaturas,
inclusão. Uma missão que cumpri ção “Comunidades Cooperativas de escolas, através das Comunidades faz-me continuar a acreditar no valor
com toda a dedicação e algum Aprendizagem Profissional” (CCAP). Cooperativas de Aprendizagem do trabalho pedagógico de professores
sucesso. Tornava-se cada vez mais Este caminho, contando com mais Profissional (CCAP) com apoio ao empreendedores, inspiradores que
claro que este era o caminho que de 20 anos letivos, foi construído trabalho dos docentes em contexto refletem nos seus projetos o poder
escolheria seguir na fase adulta. simultaneamente com a responsabi- de sala de aula. Os alunos trabalham transformador da Educação.
Esta paixão foi decisiva na escolha lidade de professora titular de turma, em equipa (pequenos grupos hete- Educar no século XXI é uma arte
do curso de Professora do Ensino acumulando, em anos diferentes, rogéneos formados pelos professo- cada vez mais exigente, que implica
Básico (1.º Ciclo), como 1.ª opção, e as funções de Coordenadora de três res, assegurando-se desta forma a investimento permanente no desen-
tem acompanhado e determinado o Estabelecimento de Ensino, Coorde- homogeneidade relativa da turma), volvimento pessoal, social e profissio-
meu percurso até à atualidade. No ano nadora do Departamento do 1.º Ciclo, escolhem e elegem um nome e um nal, sustentado numa base humanista,
2000, com cinco anos de experiência Supervisora de Provas de Aferição símbolo para o seu grupo. Dentro de a fim de se dar respostas educativas
letiva, regressei à faculdade e ingres- Nacionais e Formadora de Professo- cada grupo, todos assumem funções de qualidade para alunos e respetivas
sei no curso de Ciências da Educação, res. Ainda em 2015, realizei forma- nos seus respetivos papéis, e sempre famílias das nossas comunidades. O
na Fac. de Psicologia e Ciências da ção de formadores com a equipa do de forma rotativa, passando pela grande desafio passa por nos conse-
Educação da Univ. do Porto. Esta Programa Nacional de Promoção do experiência de ser “secretário”, guirmos (professores, alunos e encar-
etapa académica permitiu-me Sucesso Escolar da DGE, liderada “gestor do silêncio”, “gestor do regados de educação) adaptar a novos
alargar conhecimentos no mundo da pelo Professor Doutor José Verdasca, tempo”, “porta-voz”, “conciliador”, contextos e realidades, mobilizando
educação e tornar-me formadora de que me lançou o desafio de criar um “verificador da tarefa”, “repórter”, competências (combinação de co-
docentes em diferentes áreas e domí- projeto mais alargado. Assim nasceu “coordenador”... Estas funções são nhecimentos, capacidade e atitudes) e
nios ligados à didática e à pedagogia. o COOPERA, Projeto de intervenção intencionalmente escolhidas, de preparando alunos, o melhor possível,
A experiência que fui adquirindo Pedagógica que coordeno desde 2016, acordo com os objetivos de aprendi- para viver e trabalhar numa sociedade
enquanto professora e formadora no AE Escultor António Fernandes de zagem e com o estilo da tarefa. Todos que se quer mais justa, participativa e
fez-me descobrir a importância de Sá, em Gaia. O foco está na qualidade Professora do ensino desenvolvem competências de forma democrática.
explorar a arte de aprender a ensinar das aprendizagens e consequente- apelativa, cativante e inclusiva, asse- Ajudar outros professores a su-
com outros docentes, e encontrar mente no sucesso educativo. básico, do quadro gurando combinações complexas de perar estes e outros desafios encon-
uma nova paixão na área da educa- Em 2016, o COOPERA teve do Agrupamento conhecimentos, capacidades e atitu- trados nas suas escolas tem sido um
ção, que é o prazer de trabalhar direta impacto direto em 60 professores des. A interdependência positiva está grande desafio com que me deparo
e pedagogicamente com professores e 29 turmas (cerca de 730 alunos).
de Escolas Escultor inevitavelmente presente em toda a regularmente através dos professores
no contexto da formação contínua. Deste trabalho, realizado nas CCAP António Fernandes dinâmica de trabalho, fazendo valer o com quem trabalho. E o caminho de
O desejo de continuar a inovar e a resultou, em 2017, o 1.º Encontro lema dos três mosqueteiros: "Um por querer renovar o conceito de escola
crescer académica e formativamente Pedagógico e em 2018 o 2.º Encon-
de Sá, de Vila Nova todos e todos por um!'' Cada equipa continua e continuará, certamente! O
no sentido de poder partilhar inova- tro Pedagógico com lançamento do de Gaia, doutorada personaliza a sua caixa com materiais sonho de querer ter uma escola, onde
ção com mais professores e, por sua livro Cooperar na sala de aula para o necessários para o melhor funciona- cada criança se sinta especial, única,
vez, estes com os seus alunos, mo- Sucesso. Em 2019, realizou-se o 3.º
em Educação e mento do grupo. Nela encontramos pertencente a esse espaço, a essa
tivou-me a realizar o doutoramento Encontro Pedagógico, já com a disse- Desenvolvimento crachás com as diferentes funções, comunidade que também é sua e que
em Educação e Desenvolvimento minação da AC em diferentes zonas do Humano pela ampulhetas para controlar o tempo lhe permite crescer e formar-se de
Humano, focando o meu trabalho país, ficando o seu contributo e tes- da tarefa, copos coloridos e cartões forma implicada, participada e feliz,
empírico na otimização e intervenção temunho no lançamento do segundo Universidade do Porto, semáforo para promover a avaliação fez com que nascesse o Projeto COO-
pedagógica através da metodologia livro Cooperar para o sucesso com Au- foi a criadora, em 2016, formativa das aprendizagens, entre PERA. Este sonho continua a crescer
ativa da AC. Os resultados foram sur- tonomia e Flexibilidade Curricular. Em outros... partilhando-o com outros profes-
preendentes, quer os dos alunos (ao 2020 e 2021, realizaram-se os 4.º e 5.º e é a coordenadora, Dentro dos grupos, as aprendiza- sores que também se reveem nele e
nível das competências sociais, crença Encontros Pedagógicos @ distância, do Projeto Coopera, gens são desenvolvidas com recursos por isso, a AC está a ser disseminada,
de autoeficácia, motivação, criativi- devido à COVID-19, contando com a diferentes métodos de AC recor- com sucesso, por várias escolas em
dade e rendimento escolar), quer os mais de 500 participantes e cada um de Aprendizagem rendo a ferramentas pedagógicas diferentes regiões de Portugal, com
dos professores (ao nível da prática deles. Até esta data, foram envolvidas Cooperativa, tendo digitais que se adequem e otimizem a professores que desejam reinventar as
pedagógica, autoeficácia percebida mais de 20 escolas, 80 turmas, 350 aprendizagem. Os alunos são conhe- suas práticas de forma estruturada e
na docência e clima de sala de aula). professores e 2.000 alunos. vencido a edição cedores do que é suposto aprender com o acompanhamento necessário,
Em 2011, concluído o doutoramento, O COOPERA alicerça-se na aplica- portuguesa do Global (feed up), recebem regularmente passando a ter alunos mais motivados
desenhei a primeira ação de formação ção da Aprendizagem Cooperativa informação útil, de forma pensada e para a aprendizagem tornando-se
para professores, em “AC Intervenção (AC) como metodologia educativa
Teacher Prize, atempada (feedback) e são motivados cada vez participantes, inovadores e
Pedagógica”, no Centro de Forma- ativa e inovadora, com potencial relativo a 2020 a reorganizarem as suas aprendiza- inclusivos. J

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