Stephanie (a atriz Karen Lynn Gorney) e Tony Manero (John Travolta) em cena clássica de

Stephanie (a atriz Karen Lynn Gorney) e Tony Manero (John Travolta) em cena clássica de "Embalos de Sábado à Noite" (Foto: Getty Images)


Minha brincadeira preferida quando criança era "ser princesa". Filha única até os 6 anos (quando Vanessa chegou e me livrou do tédio), os contos de fada eram minha principal companhia. Além dos livros, tinha também uma coleção de disquinhos coloridos que narravam as histórias de Alice no País das Maravilhas, João e Maria, A Bela Adormecida... O da Branca de Neve sei de cor até hoje. Duvida? “Meus passarinhos que voam tanto, levem a reinos distantes a história desta princesa que vive prisioneira e busquem para ela um príncipe que a venha libertar...”. Pomposo, né? Vou lhes poupar do restante. Brinco que, se ao invés de Branca de Neve, tivesse ouvido cursos de idiomas, seria poliglota.

Aos 4, 5 anos, meu maior prazer era pegar uma camisola da minha mãe (ela tinha modelos lindíssimos!), fechar a porta do quarto, subir na enorme cama de casal dos meus pais e performar. Me jogava no colchão, simulando tapas de uma bruxa imaginária, e vibrava com a chegada do príncipe. Na pré-adolescência, troquei as princesas pela música das boy bands (Menudo, claro). Também fazia aulas de jazz (a dança) e, por consequência, era louca por filmes como Footloose, Grease, Embalos de Sábado à Noite e, o meu preferido, Flashdance. Assisti a todos dezenas de vezes, desde a estreia no Supercine às reprises da Sessão Tarde. Deu tudo certo, viu gente. Cresci, continuei obcecada por música (mas troquei as boy bands por techno, house, D&B, guitarras distorcidas e jazz), me tornei uma cinéfila louca e passei a adolescência e boa parte da vida adulta enfiada na sala de cinema assistindo Truffaut, Fellini, Tarantino e por aí vai.

E o que isso tudo tem a ver com “cancelar” os ídolos de infância e adolescência? Bem, sobre contos de fada não vou me estender, pois acredito que todo adulto vivendo nos anos 2020, principalmente aqueles que são pais, entenda o quão preocupante é uma menina de 5 anos idealizar o beijo de um príncipe, enquanto está caída no chão, após tomar uns petelecos de uma bruxa. Beijo na boca sem consentimento é estupro. Em uma criança, pedofilia. E sobre a figura da bruxa e da madrasta, as feias e mal amadas que destilam maldade, deixo as maravilhosas Silvia Federici, Djamila Ribeiro e Cláudia Fusco teorizarem à respeito. Em mim, o efeito foi passar a adolescência e a primeira fase da vida adulta dividida entre ser uma grunge revoltada e a princesa em busca do tal príncipe encantado. Foi uma experiência péssima, frustrante e que causou sofrimento e baixa autoestima, até eu compreender que não existe príncipe (que as deusas os poupem, né rapazes?), mulheres não são bruxas etc.

Já sobre os musicais … Outro dia, meu marido e eu demos o play em Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever), disponível na Netflix. Confesso que não me lembrava de nada do filme. Para mim, exceto por Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, todos os outros filmes de John Travolta dançando são um só (ou seja, todos são Grease). Tony Manero, o personagem de Travolta em Embalos, é filho de imigrantes italianos nascido no Brooklyn pré-hipsterização, ou seja, quando o bairro ainda era uma periferia perigosa e feia de Nova York. Sem muitas pretensões na vida, Manero trabalha numa loja de tintas durante o dia, mas, à noite, se transforma no rei da disco, deslizando pela pista de dança de uma boate local ao som de Bee Gees (“Ah, ah, ah, ah staying aliveeeee”). Logo na primeira cena, Manero e os amigos (todos toscos como ele) usam a palavra “nigger”. Para quem não sabe, esse é um xingamento racista absolutamente banido nos Estados Unidos. Ao ponto de que, quando têm de se referir a ele, as pessoas usam “n word”, algo como “aquela palavra que começa com a letra n”. Meu marido e eu nos entreolhamos boquiabertos.

O filme segue e aparecem as primeiras personagens femininas (Manero, obviamente, é o galã). Todas, sem exceção, são maltratadas. Misoginia e machismo são elevados à enésima potência pelo quarteto de protagonistas. Mas o pior ainda estaria por vir. Uma das jovens  frequentadoras da boate, Annette (a atriz Donna Pescow), é particularmente destratada. Apaixonada por Manero, ela faz de tudo (tudo mesmo) para transar com ele, que a ignora e a despreza ao extremo. Por fim, quando percebe que ele está interessado por outra, Stephanie (a atriz Karen Lynn Gorney) _par de Manero no concurso de dança_, Annette decide dar o troco, ficando com os amigos dele. E daí começa uma das cenas mais nojentas que já assisti (e eu já vi muito filme de Lars Von Trier...).

John Travolta como Tony Manero e a atriz Donna Pescow, que interpreta Annette, vítima de estupro em

John Travolta como Tony Manero e a atriz Donna Pescow, que interpreta Annette, vítima de estupro em "Embalos de Sábado à Noite" (Foto: Getty Images)



Manero está “de bico” porque levou um fora de Stephanie (ele tenta transar com ela à força, que foge, ou seja, tentativa de estupro). Ele e os quatro amigos entram no carro. Três ficam no banco da frente. No de trás, Annette transa com um deles, enquanto os outros fazem piadas. Quando eles terminam, um outro rapaz, JJ (o ator Joseph Cali), vai para o banco de trás, e Annette, chorando, diz mais de uma vez: “Não JJ, eu não quero"; "Pare JJ”. E ele a estupra. Enquanto isso, os outros continuam rindo no banco da frente como se nada! Quando a violência termina, Manero/Travolta olha para Annette e diz: “Está feliz agora que você se tornou uma vadia?”. Muito, muito pertubador.

Como disse, eu não lembrava de absolutamente nada deste filme, a não ser a cena da pista de dança. Sendo uma produção de 1977, é provável que eu não tivesse nem 10 anos quando o assisti na TV, nos anos 1980, e "aprendi" que meninas “oferecidas” são vadias; que é normal os meninos tratarem as moças como lixo; e que o prêmio por ser uma garota virtuosa é terminar com o tosco do John Travolta. Junte isso aos contos de fada e temos o machismo, a misoginia e o patriarcado moldando o comportamento de toda a geração que nasceu nos anos 1970. Os tempos eram outros? Que tempos terríveis eram esses em que esse tipo de coisa era normatizada na Sessão da Tarde? É para “cancelar” Embalos de Sábado da Noite já ou não? Aliás, é o que eu acho que a Netflix deveria fazer, pois não há hit de Be Gees ou perfomance de dança de John Travolta que justifiquem que um filme racista e que faz apologia ao estupro se mantenha até hoje como um “clássico”.