• Ligia Mesquita
  • Colaboração para a Marie Claire
Atualizado em
OSGEMEOS (Foto: João Bertholini)

OSGEMEOS (Foto: João Bertholini)

Não é raro chegar à rua Estefano, no Cambuci, zona central de São Paulo, procurando por Otávio e Gustavo Pandolfo e tocar a campainha na casa errada, do lado oposto da rua. É lá que está pintado um mural grande com os típicos personagens amarelos da dupla paulistana de grafiteiros, nascida e criada naquele bairro tradicional de classe média. A funcionária que trabalha na empresa ali atende e logo fala: ‘Ih, todo mundo vem aqui, mas é ali, ó, aquela casa preta”, diz, apontando para a casa em frente.

Daquela porta preta se abre uma passagem quase dimensional para o conhecido universo lúdico dos irmãos gêmeos univitelinos de 45 anos, conhecidos artisticamente como OSGEMEOS. O espaço é um misto de barracão de escola de samba, com esculturas, instalações e telas enormes em finalização, com carpintaria e oficina. As paredes são cheias de cacarecos, caixas, tintas, lâmpadas e placas bem humoradas como a que diz “É obrigatório o uso de óculos de segurança nos engarrafamentos”. Na cozinha, até as panelas ganham desenhos feitos pelos artistas. A bandeira da Lituânia, terra dos avós maternos, está suspensa no teto do espaço de dois andares. No chão, a referência é São Paulo, com um banco no formato do mapa do Estado. Ao lado, uma caixa cheia de vinis, já que música é uma das paixões da dupla formada sob influência do hip hop. O primeiro da longa pilha é “Escolha o Seu Caminho”, dos Racionais MC’s, de 1992.

Como acreditam em tempo certo para as coisas e forças energéticas e espirituais guiando tudo, não parece ser coincidência que justo aquele disco fique em destaque. É o caminho escolhido e percorrido pelos irmãos Pandolfo ao longo de mais de 30 anos de carreira que o público que for à Pinacoteca de São Paulo poderá ver a partir do dia 28 de março, na exposição OSGEMEOS: SEGREDOS. A mostra em cartaz até agosto exibirá 60 obras deles, sendo 50 inéditas no Brasil.

Celebrados internacionalmente e com passagens pelos mais importantes museus do mundo, como a Tate Modern, em Londres, somente agora eles ganham uma exposição individual grande no Brasil. “A gente tá querendo revelar esse segredo, mostrar qual foi nosso processo criativo para chegar aonde a gente chegou. A gente tem feito muita coisa fora do Brasil. É extremamente importante a gente mostrar essa nossa trajetória para as pessoas aqui, para entenderem como a gente chegou aonde chegou, como a gente fez, o que a gente acreditava lá atrás, o que a gente acredita hoje. Defendendo essa bandeira brasileira, porque a gente é daqui”, dizem.

Os dois preferem responder às perguntas como OSGEMEOS, e não como Otavio e Gustavo individualmente. “A gente não liga para quem fala o quê, pensamos igual”, dizem sentados na mesa em uma sala cheia de caixas, tintas, canetas, no mezanino do ateliê. Durante o bate-papo com Marie Claire, Gustavo não para de desenhar com caneta hidrocor em um papel sulfite o nome OSGEMEOS estilizado. Eles frisam que a exposição “não é de grafite”. Para deixar claro, mais uma vez mais que o trabalho que fazem dentro de instituições culturais, apesar de ter o mesmo estilo e usar as mesmas técnicas, é diferente, já que a mais básica definição de grafite implica usar a rua como plataforma.

“A rua tem magia que só quem tá na rua entende. Que faz o grafite ser especial.” Curiosamente, seus trabalhos que junto ao de outros grafiteiros são constantemente apagados nas ruas de São Paulo, por diferentes gestões municipais, agora ganham destaque em um dos principais museus do Estado governado por João Doria (PSDB-SP). Em seus primeiros dias à frente da prefeitura da cidade, em 2017, o político mandou cobrir com tinta cinza diversos grafites da cidade.

Eles contam que desde que começaram a pintar nas ruas, em 1987, grafites são apagados pela prefeitura. “Sempre apagaram. Algumas gestões mais, outras menos. Não é o Doria que chegou agora e apagou primeiro. Pra gente é só mais um combatendo uma arte... tem tanto problema na cidade pra se preocupar e vão se preocupar em gastar dinheiro com isso.”

Os irmãos contam que quando um de seus murais é apagado na rua, sentem que “é hora de fazer mais um”. Em seus trabalhos, OS GEMEOS dialogam frequentemente com a realidade brasileira. No último ano pintaram a tragédia de Brumadinho e os incêndios que devastaram parte da floresta amazônica. Como veem então o atual governo do presidente Jair Bolsonaro? “A gente não acredita em política, a gente acredita na força da arte. Qualquer forma de expressão artística, vinda de verdade, da necessidade de se expressar, tem o poder de mudar tudo. E ninguém consegue parar isso.”

OSGEMEOS (Foto: João Bertholini)

OSGEMEOS (Foto: João Bertholini)

Machismo no grafite

Uma reclamação frequente das mulheres que fazem parte da cena do grafite no Brasil é que este é um ambiente muito machista. OSGEMEOS reconhecem que isso aconteça, mas afirmam não fazer parte do grupo que olha o trabalho feminino com indiferença. “Tem que ter respeito, respeitar”, falam. “A gente nunca teve nenhum pensamento machista, nem nos anos 80. Talvez por ter essa criação na família [com figuras importantes da mãe e da irmã]. A gente conviveu muito nesse ambiente machista. Mas hoje em dia [a gente fala] 'para, peraí galera, vamos rever esse conceito que estão acreditando, que não é assim. A gente aprendeu muito com isso, todo mundo aprende.”

A dupla diz adorar ver as mulheres em ação pintando pela cidade. “Eram poucas mulheres que pintavam grafite quando a gente começou. Mas mudou muito. Hoje tem minas que pintam muito mais do que muitos caras e têm um estilo muito legal. Tem mina que representa muito mais que muito cara aí pintando.”

Elogiam o trabalho de Pran, Magrela, Karol, Rita Wainer, entre outras. A preocupação de representar o universo feminino em suas obras, afirmam, sempre existiu, mesmo que antigamente pintassem muitos personagens masculinos por influência da cultura hip hop dos anos 80. “Mas depois entendemos que existe um universo feminino gigantesco.”

Para eles, a força feminina não se compara à masculina. “A gente enxerga isso de uma forma muito lúdica. As primeiras vezes que a gente viu [a força da mulher] foi com a família, a força da mãe. A força que minha mãe teve para criar a gente, porque a gente nasceu prematuro, com muitos problemas, em 1974, sem recursos e com muito amor ela conseguiu. Mãe é essa coisa forte da mulher, de aguentar, de segurar a onda. É uma força que não se compara a outra. Tem uma diferença quando a gente pinta um personagem feminino. O traço e contorno são os mesmos, mas a delicadeza é mais sutil quando pinta a mulher.”

Por falar em força, se pudessem definir a mensagem que querem levar com essa mostra e com seu trabalho, afirmam que é muito simples: amor, esperança, transformar, acreditar. “[O mundo] tá cheio de negatividade, agressividade. Temos que ser o contrário, transformar para o bem. A arte pode fazer isso. Senão você tá jogando o jogo deles.”

Erros e acertos

Ao revisarem os mais de 30 anos de carreira para a exposição, fazem uma autoanálise dos erros e acertos ao longo do percurso. Eles dizem que apenas aceitam as críticas que venham um do outro. “A gente acredita muito no que a gente pinta, é a nossa vida.”

Em um período em que começaram a fazer várias parcerias com marcas como Nike e Louis Vuitton e a pintar casas de celebridades como a de Johnny Depp e do jogador Ronaldo, alguns críticos disseram que a obra deles seria apenas “entretenimento” e estaria se tornando comercial demais. A dupla reconhece ter tomado algumas decisões erradas. Hoje, afirmam, se “policiam bastante” na hora de escolher os projetos e dizem querer trabalhar apenas com o que os deixa feliz.

“A gente veio de uma época em que era extremamente difícil fazer qualquer coisa com arte. A gente cometeu alguns erros, que é normal na sua trajetória, depois você entende. Pessoas que te usaram, que usaram seu trabalho indevidamente, lugares em que você foi trabalhar e depois fala ‘Sério que você fez isso?’. Coisas que hoje jamais faria. São experiências que a gente passou pra poder chegar aonde chegamos hoje. É normal tomar esses tombos.”

Serviço:

OSGEMEOS: SEGREDOS
Visitação: até 3 de agosto de 2020
De quarta a segunda, das 10h às 18h.
Pinacoteca de São Paulo: Edifício Pina Luz; Praça da Luz 2, São Paulo, SP
Ingressos: R$ 15 (inteira), R$ 7 (meia-entrada).Aos sábados: gratuito