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Resenha

Um novo olhar sobre Guignard

Alberto da Veiga Guignard: Modernidade e tradição | Taisa Palhares | Editora Unicamp |152 páginas | R$ 35,00

O artista plástico Amílcar de Castro contava que os também artistas Alberto da Veiga Guignard e Oswaldo Goeldi, quando se encontravam, passavam imediatamente a falar em alemão. Justo eles – que eram vistos, cada um a seu modo, como representantes do interesse modernista pelas pessoas simples do Brasil e pela natureza tropical –, não pareciam ter qualquer pudor em falar em um idioma que poucos entendiam e que revelava seus vínculos com a cultura europeia. Essa anedota dá bem a medida do desafio enfrentado por Taisa Palhares neste livro.

Guignard (1896-1962) ocupa lugar peculiar na história da arte moderna brasileira. É nome conhecido e muito citado como artista representativo da segunda geração de modernistas. Porém a sua incorporação no movimento se deu pelo destaque à combinação de qualidades por vezes opostas, como lirismo, ingenuidade, formação europeia, nacionalismo, modernidade e tradição. Essa situação um tanto esquiva e paradoxal, com a qual o próprio artista não parecia se incomodar, é enfrentada por Palhares com grande sensibilidade e rigor. Filiando-se à tradição crítica e historiográfica que permitiu uma virada na compreensão da obra do pintor a partir da década de 1980, a autora vai questionando, um a um, os preconceitos e os limites dessa visada mais comum e rasteira que encapsula uma obra tão relevante para a compreensão da nossa modernidade.

A autora mostra como críticos contemporâneos a Guignard forjaram a chave interpretativa que ainda parece válida na nossa historiografia da arte, reconhecendo no artista uma espécie de lirismo ingênuo e sentimental, que o aproxima da natureza e da cultura popular brasileira de modo direto e intuitivo. Guignard seria, então, o representante da vertente lírica de nosso regionalismo (segundo Rubem Navarra) ou nacionalismo (segundo Lourival Gomes Machado), em oposição e complementariedade ao realismo social de Cândido Portinari. Mesmo em Mário Pedrosa, no qual a autora reconhece uma mudança de perspectiva importante pelo entendimento da paisagem como problema moderno e pela ênfase no debate sobre o colorismo, é mantida a visão de Guignard como artista espontâneo e despretensioso.

Para desfazer ou desnaturalizar essa chave crítica, a autora lança mão de um recurso que se renova nos demais capítulos: a análise comparativa de obras de Guignard. Essa talvez seja, entre todas as várias qualidades do livro, a que mais se destacaria, pois traz para o primeiro plano a análise propriamente formal da obra do artista, mostrando que, sob a sua aparente facilidade, há pensamento plástico e diálogo com diferentes tradições artísticas. Por outro lado, ao fazer comparações entre trabalhos do próprio artista, revela as suas ambivalências, entendendo-as não como defeito, e sim como valor.

A comparação, por exemplo, entre a tela Noite de São João, de 1942 (hoje no acervo do MoMA, em Nova York), e o Retrato de Felicitas Barreto, de 1931, permite à autora discutir os temas da ambiguidade e da descontinuidade como elementos de construção formal. Ao identificar no retrato e na paisagem procedimentos pictóricos comuns – como a verticalidade do suporte, a espacialidade descontínua ou a combinação entre as manchas de cor do fundo e o linearismo descritivo dos objetos à frente –, revela o exercício construtivo que fundamenta a sua poética.

Tendo despachado a visão mais senso comum do artista, Palhares envolve-se com a construção de um novo olhar sobre Guignard. Analisa a sua formação europeia para dimensionar a complexidade da sua visão de arte moderna. Chega mesmo a dizer, de modo surpreendente, que as questões da modernidade artística seriam vivenciadas por ele especialmente após sua chegada ao Brasil. Guignard encontra no país o impulso para desafiar e renovar a cultura figurativa aprendida dentro do clima de modernismo moderado de Munique, com toques de simbolismo, naturalismo e pós-impressionismo.

O livro traz uma série de informações novas, resultado de uma pesquisa séria e dedicada, às quais acrescenta importantes análises críticas comparativas e elevado rigor conceitual. Ainda que Guignard já tenha sido objeto de algumas publicações anteriores, muitas das quais reunindo artigos críticos menores ou textos para catálogos de exposições, faltava um livro como este, que servirá certamente como referência para futuras pesquisas sobre o artista e sobre a história da arte moderna no Brasil.

Vera Beatriz Siqueira é professora titular do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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