O esporte e sua manifestação educacional

O esporte é hoje um fenômeno midiático © Bruno Kelzer

A mídia costuma divulgar violência entre atletas, doping e falta de ética, enquanto educar é justamente o contrário: promover o entendimento das regras, respeito ao adversário, socialização e saúde

Por Humberto Aparecido Panzetti e Heleno da Silva Luiz Junior
20 de outubro de 2020 / Curitiba (PR)

O esporte é expressão cultural. Está presente em todos os locais e sob variadas formas. Exerce, hoje, influência nunca antes vista, dadas as dimensões que, enquanto fenômeno midiático, alcançou no mundo moderno.  Está presente nas telas, nos debates, nas esquinas, nos lares, nos ambientes de trabalho etc.

Sua relevância e presença consolidaram-se não apenas na mídia e nas ruas, mas também nas diversas instituições formadoras, como a escola e a família. Acumula, assim, um número crescente de praticantes, pois é legitimado socialmente. É, ainda, tema de estudos no campo acadêmico da Educação Física, bem como ponto prioritário nas políticas públicas (LUIZ JUNIOR et al, 2018).

Tendo em vista as múltiplas possibilidades didáticas que oferece, posicionamo-nos a favor do esporte enquanto prática educativa, uma manifestação cultural permeada de valores e princípios. Acenamos positivamente à questão, reiterando que a sua vivência é potencialmente fértil em experiências ricas e formativas aos diferentes atores envolvidos.

Não basta uma concepção filosófica de esporte e de humanidade para fazer valer o esporte como meio de educação © David Tran

Entretanto, orientados pelas vivências que seguida e seguramente demonstram que as respostas às questões teóricas não se confirmam tão facilmente na prática, enxergamos uma lacuna a ressaltar: o esporte, por si só, não educa. Tal fato pode ser explicado pelo chamado esporte moderno, originado no século XIX e que se perpetua até os dias atuais (KORSAKAS, 2002).

Korsakas (2002) traduz a palavra esporte como algo comercial, geradora de vendas de vários produtos, desde uma camisa de uma equipe de futebol até sofisticados aparelhos eletrônicos, gerando adaptações em regras para atender interesses além do esporte, simplesmente para que o lucro com o produto seja mais e mais abrangente.

Seguindo o raciocínio do autor, percebe-se uma grande incoerência entre educação e esporte, haja vista que a mídia usualmente vende violência entre atletas, marginalização dos árbitros, doping e a falta de ética em relação às regras, enquanto educar é simplesmente o contrário, ou seja, promover o entendimento das regras, respeito ao adversário, socialização e saúde.

Da legislação, encontramos na lei 8.672, de 6 de julho de 1993 – Lei Zico – a primeira conceituação do esporte a contemplar uma diversidade de modelos, diferenciados em relação às suas finalidades: a) o desporto educacional; b) o desporto de participação; e c) o desporto de rendimento.

Desta lei, posteriormente revogada pela 9.615 – Lei Pelé –, de 24 de março de 1998, foi mantido o texto sobre a natureza e as finalidades do desporto.

Em suma, a) o desporto educacional caracteriza-se por evitar a seletividade e a hipercompetitividade, objetivando o desenvolvimento integral do indivíduo para o exercício da cidadania e a prática do lazer (decreto 2.574, 29 de abril de 1998); b) o desporto de participação tem como finalidade integrar os praticantes na plenitude da vida social, bem como na promoção da saúde, educação e na preservação do meio ambiente; e c) o desporto de rendimento, praticado sob as regras da prática desportiva nacional e internacional, busca a obtenção de resultados e a integração entre pessoas e comunidades do País, assim como com outras nações.

Tais atribuições nos apresentam três faces do esporte. Conceituam o modelo do desporto de rendimento, praticado segundo regras, podendo ou não, em determinados locais, ser realizado em consonância com os valores morais da tradição e dos bons costumes.

É o tipo de maior apelo midiático. A figura do herói esportivo alimenta o imaginário do público espectador. Por tal razão, em detrimento do desporto educacional e de participação, tem recebido maior atenção e apoio financeiro da iniciativa privada. E, até a década de 1980, era o único modelo esportivo fomentado no País (TUBINO, 2010).

Entretanto, não sendo prioritária a questão educativa, os interesses sobre o jogo/performance prevalecem sobre a formação cidadã do jogador. A finalidade é o desempenho esportivo. E justamente por, cada vez mais, haver menos pessoas aptas à sua prática, não contempla aquilo que passa a ser apontado pela Constituição Federal de 1988: é dever do Estado fomentar a prática do esporte, direito de todos.

O Esporte-Educação é fundamentado nos princípios da inclusão, participação, cooperação, coeducação e corresponsabilidade © Rachel / Unsplash

À semelhança do que problematiza Kunz (2004), entendemos que, ainda que o esporte de rendimento, enquanto produto altamente valorizado na sociedade, seja aceito de forma imediata e inquestionável, isso ainda não garante que este seja o tipo mais adequado para atender os reais interesses dos praticantes.

Assim, sendo a prática do esporte uma questão de direito, a necessidade do incentivo ao desporto educacional e ao desporto de participação se evidencia. Uma vez que o esporte performance não se mostra inclusivo, o incentivo à prática de outro modelo apresenta-se em caráter de urgência. A ênfase exclusiva no desporto de rendimento já se mostrou insuficiente. Em consonância com tais demandas surge então o modelo do desporto educacional, do qual emerge o conceito, citado por Tubino (2010), do Esporte-Educação. Se, antes, o desafio era selecionar as crianças mais talentosas, sob esta nova concepção o desafio passa a ser ensinar o esporte para todos!

O bom profissional nesta modalidade já não é mais aquele com o olhar aguçado para identificar jovens que se destacam por suas habilidades esportivas. Do bom professor exige-se o olhar apurado para o desenvolvimento das potencialidades de todos, independentemente de quais sejam. Aquele que o pratica passa a ser o protagonista – prioritário em relação ao jogo em si.

Tubino (2010) conceitua o Esporte-Educação por balizar-se nos princípios da inclusão, participação, cooperação, coeducação e corresponsabilidade. A prática esportiva tem como fim, então, a formação para a cidadania[1]. Assim, é direcionada fundamentalmente a crianças e jovens, diferentemente do esporte-lazer/desporto de participação – que tem como princípio fundamental o prazer e usualmente é oferecido a todas as faixas etárias.

Diferencia-se, ainda, naquilo que entendemos ser o ponto fundamental para uma prática educativa:

[…] embora ambos possam ser praticados com regras e regulamentos adaptados, muitas vezes sem vinculação aos esportes de rendimento de referência, no Esporte-Educação, por ser dirigido por professores, as regras, devem ser estabelecidas pelos por eles, enquanto, no Esporte-Lazer as convenções são estipuladas pelos próprios praticantes […] (TUBINO, 2010, p. 52).

Professor Humberto Aparecido Panzetti © Divulgação

Da citação acima, entende-se que o esporte ensinado com fins educativos não é o mesmo praticado para o lazer, ou mesmo para a performance. O Esporte-Educação diferencia-se por ser forjado, produzido pelo professor/educador. E, daquilo que pensamos, é este molde que cria o ambiente e as situações de ensino inclusivas e didaticamente organizadas.

O esporte simplesmente reproduzido segundo regras, padrões e convenções do desporto de rendimento não educa, pois quem educa não é o esporte. Quem educa é o professor. É ele que transforma o esporte, patrimônio cultural, e lapida suas características de forma a contemplar a todos. Enquanto exercício de sua profissão, tece, com intencionalidade pedagógica, situações concretas que possibilitam o ensino e o fortalecimento de princípios éticos, cooperativos e inclusivos.

Tendo-se em consideração que a questão aqui posta não é discutir qual seja o modelo ideal, ou mesmo o que possui mais virtudes, apresentamos aqui uma discussão sobre os tipos de esporte, conceituados conforme suas finalidades, compreendendo a relevância e o significado cultural/social, bem como o espaço que se deve reservar a cada um. Somos adversos à ideia de que toda prática esportiva é educativa, independentemente de sua natureza.

Não deixamos de reconhecer que o esporte, nos diferentes modelos aqui apresentados, é um possível local de resgate de valores e princípios morais. Ao contrário. Mas advertimos que a ação educativa não acontece naturalmente, sem a devida intencionalidade para sua realização. Ela não é natural, pois só se realiza enquanto produção cultural, enquanto produto elaborado com seus respectivos fins formativos.

Desta forma, defendemos a urgência e a importância do trato pedagógico do esporte como um ato de resgate, produção e reconstrução cultural, referenciado em princípios éticos e educativos, quando se trata de desporto educacional. Pois, do contrário, será estéril para a missão à qual foi incumbido.

Korsakas (2009) adverte que não bastam os princípios filosóficos para que o esporte seja educativo. É imperativo que se tenha uma prática pedagógica para transformar e concretizar aquilo que os princípios filosóficos fundamentam.

Ou seja, a oferta de atividades esportivas à população é ponto primário no processo de massificação do esporte. Todavia, para a implementação do desporto educacional, é ainda elementar que as práticas e vivências sejam forjadas por uma didática que assuma a responsabilidade de decidir qual face do jogo será usufruída.

A autora indica, enquanto possibilidades didáticas, as metas orientadas à tarefa, quando a competência é entendida como melhora, e não necessariamente ser melhor do que o outro – ego; e a orientação do clima motivacional à aprendizagem, e não ao desempenho – em vez de assumir a vitória, ou o resultado, como critério de sucesso, preocupa-se com o desenvolvimento de cada um dos praticantes, baseando-se no progresso individual como critério de avaliação (KORSAKAS, 2009).

Professor Heleno da Silva Luiz Junior © Divulgação

Brotto (1999) cita que há um vasto manancial de possibilidades para participar do esporte. Faz tal afirmação sob a perspectiva de explorar o aspecto cooperativo do jogo, extraindo dele o seu lado mais humano. Pensa que, ao professor, cabe o papel de colaborador para o bem-estar comum. Pois, mais do que ensinar o esporte, ao professor se deve atribuir as tarefas de ensiná-lo bem, a todos; de ensinar a gostar do esporte e, ainda, ensinar mais do que o esporte.

Contudo, na mesma linha da autora, entende que não basta uma concepção filosófica de esporte e de humanidade para fazer valer o esporte como meio de educação. Aponta a necessidade de uma pedagogia capaz de refletir e transgredir a filosofia que a permeia, dando ao esporte um enfoque pedagógico.

Para tal, indica o jogo como facilitador desse processo. Isso, no sentido de retornar às origens do esporte, sem uma valorização exacerbada da competição, de forma que a alegria e o prazer sobreponham-se a recompensas extrínsecas, como medalhas, troféus e brindes, e a quaisquer tipos de discriminação.

À semelhança do que aqui indicamos, nos remete à ideia de que as características do esporte/jogo – como os objetivos, as metas, o clima motivacional e as convenções de regras e regulamentos – não precisam nem devem ser consideradas permanentes e imutáveis. Ao contrário, necessitam ser elaboradas pelo professor, para que assumam um caráter educativo e comunitário.

Das citações dos autores temos orientações para uma prática esportiva que se realiza com fins educacionais; vivências que não se dão aleatoriamente, à mercê da direção do vento. Ainda que o ambiente seja complexo e indeterminado, é pensado e organizado segundo princípios socioeducativos, que se concretizam por uma didática e pelo comprometimento social do educador.

Ao professor não resta a possibilidade de abster-se e simplesmente ensinar o esporte, pensando tal ato enquanto prática educativa. Para educar é necessário posicionar-se e, a partir deste parâmetro, buscar a coerência entre seus princípios e suas ações.

Em suma, argumentamos no texto pela necessidade de uma estruturação didática orientada aos fins que o desporto educativo se propõe. Assim, à questão aqui posta direcionamo-nos ao seguinte ponto: na medida em que é pensado e organizado como prática educativa, o esporte o é, mas o agente a possibilitar que assim o seja é o professor.

Para tal, de início apresentamos as três faces do esporte conceituadas na legislação: o desporto educacional, o desporto de participação e o desporto de rendimento. Analisando-as, caracterizamos o desporto educacional pela sua função formativa.

E, num segundo momento, situamos o professor/educador no centro de efervescência em que ocorre o processo educativo. Colocamos na mesa as coordenadas de sua missão, bem como apresentamos o comprometimento ético e social como pré-requisitos para a formação daquele que educa, responsável pelo bom usufruto do esporte: o professor.

Assim, alertamos para a nossa atual condição. Ainda que a modernidade tenha deslegitimado a moral e os valores da tradição – sejam aqueles advindos da família, da comunidade, da igreja ou mesmo do esporte (BARRERE e MARTUCCELLI, 2001) – orientamos para que a prática do professor não seja esvaziada de valores e princípios. Não no sentido do resgate da moralidade deslegitimada, nos moldes da disciplinarização exercida sobre as gerações antecedentes. Mas com o intuito de apontar o esvaziamento moral/ético e o caos social, refletidos nas práticas esportivas e nos noticiários televisivos esportivos por nós hoje vivenciados, e a necessidade de preencher esse vazio.

Heleno da Silva Luiz Junior (CREF 053201-G/SP) é profissional de Educação Física,
doutorando pela Unifesp, assessor da Secretaria de Esportes, gestor Institucional
e docente do Centro Universitário Max Planck, ambos em Indaiatuba (SP).
Humberto Aparecido Panzetti (CREF 025446-G/SP) é profissional de Educação Física, gestor
público de esporte, conselheiro nacional de esporte, coordenador e professor do curso
de pós-graduação em gestão no esporte do Centro Universitário Max Planck (SP).
Referências
BARRERE, A e MARTUCCELLI, D. A escola entre a agonia moral e a renovação ética. Educação & Sociedade, ano XXII, n. 76, outubro 2001, p. 258-277.
BROTTO, F. O. Jogos cooperativos: o jogo e o esporte como um exercício de convivência. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física, Campinas, 1999.
KORSAKAS, P. O esporte infantil: as possibilidades de uma prática educativa. In: Esporte e atividade física na infância e na adolescência: uma abordagem multidisciplinar. Organizado por Dante de Rose Jr. et al. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
LUIZ JUNIOR, H. S. PANZETTI, H. A. SILVA, R. O. FILHO, R. P. Gestão pública no esporte: relatos de experiências. São Paulo, CREF4/SP, 2018.
KUNZ, E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 6ª ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2004. (Coleção educação física).
TUBINO, M. J. G. Estudos brasileiros sobre o esporte: ênfase no esporte-educação. Maringá: Eduem, 2010.