A travessia do turbilhão de emoções provocado pelo suicídio de uma pessoa próxima é difícil de narrar: sente-se perplexidade, desamparo, culpa, arrependimento, medo (da repetição), angústia, vergonha. Raiva. Culpa de novo, por sentir raiva de um ser amado que praticou ato tão extremo. Por fim, “estranho alívio”. Mas não nesta ordem, ou em ordem alguma. No meio da tormenta, o essencial é nunca deixar de procurar o Sol.
“Para os que Ficam”, documentário de Marcia Disitzer e Susanna Lira, não carece de ambição, nem de beleza. Filme de alta inteligência emocional, destina-se a ajudar familiares de pessoas que se mataram a entender o sofrimento existencial que leva alguém a esse desfecho. E a lutar por um caminho diferente para suas próprias vidas. A escolher “ficar do lado do Sol”, nas palavras de Disitzer, 56 anos de vida e quatro décadas de convivência com o trauma.
“O resultado do suicídio para a pessoa que vive o luto é fragmentação, é viver uma dor sem nome, é viver uma travessia sem pedir”, diz a psicóloga paulista Karina Okajima Fukumitsu, de 52 anos, PhD em suicidologia, consultora de escolas e empresas, que acaba de lançar o livro “Luto por suicídio e posvenção - A outra margem” (Summus Editorial).
As autoras do filme e seus entrevistados, testemunhas de tragédias, muitos com a pele ainda em carne viva, se propõem a romper o tabu que cerca o suicídio. Fazem uso do poder de cura proporcionado pela fala (e pela escuta) para conter o processo de adoecimento das famílias dos “que ficam”, no trabalho definido como “posvenção”.
É disso que se trata: limpar o terreno dos estilhaços que voam quando a granada é acionada. E fazer esse trabalho de forma árdua e denodada, porque o suicídio é um tema rodeado de falsos clichês: o raio cai, sim, duas vezes no mesmo lugar, na mesma família. E cão que ladra pode morder.
O documentário será exibido no início da madrugada do próximo dia 19 (terça-feira) pelo GNT, que o coproduziu, como parte da programação do Setembro Amarelo, mês mundial de prevenção ao suicídio. “Para os que Ficam”, de 75 minutos de duração, estará disponível no Globoplay a partir da mesma data, de forma gratuita.
Susanna Lira, jornalista, documentarista e psicanalista em formação, é conhecida, aos 48 anos, pela capacidade de abordar temas espinhosos. No GNT, canal para o qual prepara uma série sobre crimes sexuais no ambiente espiritual, os executivos já sabem: “Quando eu os procuro, não vem florzinha do campo”, diz Lira, rindo de si mesma.
“O papel do documentarista é falar de temas que são tabu, temas que as pessoas não querem discutir. Como jornalista, sempre fui orientada a não divulgar a causa da morte em casos de suicídio. Se não falarmos disso, só vai piorar a epidemia de depressão, de doença mental, principalmente entre os jovens. A gente não está evitando nada com o silêncio”, afirma Lira.
Fukumitsu confirma: jovens, em especial adolescentes, e velhos são os grupos entrelaçados com o risco de suicídio.
“São dois momentos de crise de identidade. As pessoas começam a se desconhecer daquilo que elas já conheciam. Passam da condição de depender dos outros para ter autonomia, no caso dos adolescentes, e o inverso, no caso dos idosos. É preciso desconstruir algo que é conhecido, e esse é o momento chamado de crise”, explica a psicóloga. “A prevenção do suicídio precisa ser prática diária. Temos que dar condições para as pessoas gerenciarem crises, para elas desenvolverem fatores de proteção”, diz Fukumitsu, alertando para o atraso do Brasil em relação aos países desenvolvidos nos trabalhos de prevenção e “posvenção”.
O roteiro de “Para os que Ficam” tem como ponto de partida a pergunta feita por Marcia aos 12 anos, um clássico entre parentes de alguém que escolhe tirar a própria vida: “Como assim!?”. A mais nova de três irmãs de uma família de classe média carioca implodida pelo gesto paterno, ela não se conformava: “Como assim o amor de três filhas não foi suficiente!?”.
Repórter da revista “Ela”, que circula aos domingos com o jornal “O Globo”, Disitzer levou 30 anos até ser convencida, pela editora Marina Caruso, a revelar, em artigo em primeira pessoa publicado em 2021, que havia perdido dessa forma trágica o pai, inconformado com um pedido de separação, e a mãe, após 11 anos de culpa dilacerante.
Entre os méritos de Marcia Disitzer estão a coragem de expor sua história familiar, a habilidade para montar uma equipe de rara sensibilidade e o emprego de extrema delicadeza ao entrevistar os seis sobreviventes, todos com traumas recentes. Houve múltiplas interrupções nas gravações porque a emoção era avassaladora.
“Eu os abracei. Falar não é fácil. Falar para o mundo não é nada fácil”, diz Disitzer.
São personagens impactantes. A mãe de dois adolescentes que se mataram em um breve, mas irrecuperável, intervalo. O pai e a mãe, separados, de uma menina de 13 anos que deixou aberto o diário em que expunha suas tristezas antes de tomar a decisão irreversível. Uma filha frustrada nas tentativas de salvar o pai. Um marido devastado pelo ato final do companheiro, vítima de linchamento moral nas redes sociais. Uma jovem em frangalhos ao relatar o bullying e o racismo sofridos no campus da Universidade de São Paulo (USP) e que levaram o irmão dela a desistir de viver.
A narrativa é entremeada com imagens de famílias às quais a direção de arte da artista plástica Paula Costa, de 41 anos, empresta a delicadeza de seu bordado.
“A vida de uma pessoa não pode ser definida pelo ato final. O que eu mais quis fazer, minha missão neste filme, foi levar luz e amor a esses familiares, acender uma luz para tanta gente que se sente só”, diz Costa. Mãe de um rapaz de 16 anos e grávida de uma menina, ela trabalhou em cima das fotos familiares de casamentos, férias, viagens, formaturas, como a mostrar que aquelas pessoas poderiam ser você.
Em comum, além da expressão de dor, os parentes dos que se foram têm uma acuidade absoluta no recordar a hora do dia, a luz do amanhecer ou entardecer, o local exato onde se encontravam e a pessoa em quem se apoiaram quando receberam a notícia inimaginável. Eles também partilham uma evidente necessidade de se explicar, enumerando providências tomadas e profissionais contatados na obstinação de evitar o temido desenlace.
“A culpa é um dos sentimentos que são trazidos por especificidade do luto por suicídio, por se tratar de uma morte violenta, impactante, uma morte em que a gente começa a questionar as nossas ações”, diz Fukumitsu. “Todas as vezes que questionamos nossas ações, principalmente quando o resultado deu ruim, deu errado, a gente começa a viver essa emoção chamada culpa. A palavra culpa deriva de um termo no alemão que significa dívida. A culpa é uma imaginação que essa pessoa tem de que poderia mudar o desfecho desse suicídio. É uma lamentação onipotente para dar conta da impotência”, explica Fukumitsu, que orientou a linha argumentativa do filme.
Segundo ela, é muito importante que os parentes se autorizem a sentir raiva, embora a culpa seja um sentimento muito mais aceito pela sociedade.
“A raiva escancara que a necessidade da gente não foi satisfeita. Porque nós gostaríamos que essa pessoa tivesse ficado conosco, que não tivesse nos deixado no breu, sem respostas”, afirma a psicóloga, líder de grupos online de apoio aos enlutados que chegam a reunir 150 pessoas.
Para os que ficam, viver é a melhor resposta. Mas como? Muitas vezes, há uma ruminação, um repassar de decisões que poderiam ter sido diferentes, que se aproxima de novo da areia movediça da culpa.
“O suicídio é um ato único e exclusivo da pessoa que se matou. A verdade foi embora com essa pessoa”, esclarece Fukumitsu.
Para muitos enlutados, é necessário buscar um novo propósito de vida, que pode estar no ativismo, no trabalho voluntário ou até no estudo de psicologia.
Mas, no fundo, é o que me disse uma pessoa convidada a participar da produção de “Para os que Ficam” e que suporta há décadas uma dor que parece não dar trégua. Só há um caminho: crescer. “Essa dor não passa, nem diminui de tamanho. A gente é que tem que crescer em volta dela.” Et voilà.