• LUANDA VIEIRA (@luandavieira)
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A trajetória da mulher negra com os seus fios naturais (Foto: Gui Paganini / Arquivo Vogue)

A trajetória da mulher negra com os seus fios naturais (Foto: Gui Paganini / Arquivo Vogue)

Durante o nosso Vogue Wellness Summit, chorei com o vídeo da Teresa Cristina falando sobre a saúde mental da mulher negra. Chorei por me ver passando pelas mesmas situações (só nós sabemos o que é ir a uma festa, na adolescência, e não ser chamada para dançar ou ouvir na escola, entre muita risada, que o nosso cabelo armado está atrapalhando a visão do resto dos alunos); chorei por receber mensagens de amigas negras que também se viam ali; chorei por perceber que o tempo passa e a história se repete: nossas características físicas são motivo de piada, nojo e preconceito. Entre todas as batalhas, que são muitas, uma das mais difíceis foi aceitar o meu cabelo natural. Faltou referência para acreditar que ele era bonito, mas hoje celebro a liberdade de não aceitar o senso comum

Não muito distante, em maio de 2019, lembro de estar na fila A de um desfile e ouvir uma pessoa da fila B reclamar da sua posição no evento, já que o meu cabelo estava, em suas palavras, "atrapalhando a visão". Automaticamente voltei para os tempos de colégio e a vergonha de sentar na frente. Poucas pessoas fazem esta ligação, mas o fato da mulher negra encarar químicas no cabelo desde muito jovem também vem da sensação de não lugar na escola - e traumatiza por um bom tempo - além, é claro, do padrão que nunca foi o nosso.

De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), foi só em 2017 que a busca por "cabelos crespos" cresceu no Brasil se comparada a quatidade de vezes que se digitou "cabelo liso" no Google. O aumento de 309% acompanha a popularidade de influenciadores digitais nas redes sociais e o início de uma representatividade mais expressiva em campanhas publicitárias (o famoso reconhecimento do negro como consumidor) e na mídia.

Esta solidão estrutural, que representa a falta de reconhecimento em outros corpos, vem do mundo colonial que, até hoje, percebe apenas um corpo específico como detentor do poder, da fala. Todo o resto é faltante. Quando a assistente social e mestra em Políticas Sociais Obirin Odara interpreta o texto "Cumé que a gente fica", de Lélia Gonzalez, em seu curso sobre "Colonialidade e Branquitude", ela diz sabiamente que a modernidade é uma festa de mal gosto e que apesar do fim da escravidão, a beleza continua sendo branca.

É sob a ótica dessa mesma lente colonial que nós, mulheres negras, crescemos com o complexo do auto-ódio. Até os 14 anos ou 15 anos eu não entendia que nem todo cabeleireiro, por exemplo, sabia cuidar de cabelos crespos, seja para fazer um corte ou penteado. Mas aprendi ao aceitar participar de um desfile. Na época, a minha escola de balé foi convidada para apresentar as novidades do salão do bairro. Me comprometi em fazer parte do casting porém nunca apareci na apresentação. Enquanto as minhas amigas desfilavam as últimas tendências para o cabelo, eu chorava em casa implorando para a minha mãe me levar. Nunca esqueci sua resposta: "eles não sabem mexer no nosso cabelo, Lu". Sem acreditar no quanto ela estava me poupando da exposição, segui o caminho de dor natural e passei a achar que o meu cabelo estava errado, ao invés de cobrar interesse dos profissionais em relação às características dos meus fios crespos.

De lá para cá muita coisa mudou no mercado, desde os referenciais até alguns salões especializados em cabelo afro. Entretanto, o sentimento de segregação permanece. Há um tempo, quando entendi que ocupar um espaço na área da beleza seria uma forma de mudar a história das próximas gerações de crianças, adolescentes e mulheres negras, recebi um convite para conhecer um salão de técnicas naturais e orgânicas. Lá veio minha mãe de novo: "salão de branco, Lu?". E desta vez, com poder de decisão, a minha resposta foi "sim, eu vou". Com discussões latentes sobre diversidade e inclusão, aprendi que o desconforto em relação ao cabelo crespo não deve ser meu.

TRANSIÇÃO CAPILAR

Durante uma live com a Thelminha (disponível no IGTV da Vogue), médica, influenciadora e campeã do BBB 20, me surpreendi ao saber que ela resolveu encarar a transição capilar só depois dos 30 anos. Eu fiz aos 17, no auge da adolescência, doida para chegar à vida adulta. Independente das dificuldades de cada etapa da vida, a mulher negra também tem em comum a decisão de realizar o big chop, que nada mais é do que aquele corte definitivo que retira qualquer parte do cabelo que tenha química, seja por vontade própria (geralmente motivada pelo cansaço), seja pela queda causada por tratamentos capilares agressivos.

E se o cabelo curtinho não atrapalha mais (no meu caso precisei raspar) a visão de quem está atrás, o que entra em jogo é a feminilidade x machismo. Além da cor, as piadas passaram a ser de gênero. Enquanto as minhas amigas faziam sucesso entre as paqueras no colégio, faculdade e festas, mais uma vez eu culpava o meu cabelo de me privar dos "melhores anos da minha vida". Anos depois, entendi que ter um cabelo liso ou até mesmo black power, como hoje, não me privaria de viver a solidão da mulher negra na adolescência.

Esta sou eu, em 2013, aos 24 anos (Foto: Arquivo pessoal)

Esta sou eu, em 2013, aos 24 anos (Foto: Arquivo pessoal)

Entre as situações que colaboram para este período ser de muitos questionamentos e autoestima baixa, a mais recorrente, para mim, era ser confundida com homem. Sempre com a minha mãe, nunca me esqueço de um almoço em que o garçom entregou a conta para mim, sem titubear, e me chamou de "campeão". Depois de um tempo eu até me acostumei com o corte, passei a tingir e encontrar formas de gostar da minha imagem.

Mesmo eu tendo crescido com a minha vó trançando o meu cabelo, o turning point da transição capilar chega quando o cabelo tem centímetros suficientes para fazer tranças. Entre altos e baixos com a cabeça raspada, consegui fazer box braids pela primeira vez aos 26 anos. Apesar do processo ser lento, o meu cabelo não demorou 10 anos para crescer. No meio do caminho decidi usar a minha interpretação de moicano.

Entre várias mulheres que converso sobre o sentimento de trançar o cabelo, a resposta é unânime: é uma sensação de empoderamento sem igual. Usado para fortalecer os fios crespos (que tendem a ser finos e fracos), o penteado também é um resgate à ancestralidade e por isso esse poder estantâneo. O ato nos coloca diretamente em contato com a raiz que, lá atrás, precisamos apagar para caber no mundo colonizado, mas isso vale outro texto. Hoje e todos os dias celebro a liberdade de não aceitar o senso comum.