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Uma breve análise da obra “Lavrador de café”, de Cândido Portinari por Patrícia Freitas1 Cândido Portinari, “Lavrador de café”, 1934. Óleo sobre tela, 100x80 cm. Museu de Arte de São Paulo. Imagem retirada do sítio virtual www.portinri.org.br, acesso em 17/05/2017. “Um ser humano com bem definida função2 ” Assim o crítico de arte Geraldo Ferraz descreveu o personagem principal da obra o “Lavrador de Café”, de Cândido Portinari, de 1934. O texto comentava a grande exposição em que o artista apresentou ao público de São Paulo pela primeira vez um conjunto de obras com temática social. O destaque foi para o “preto da enxada”3, que segundo Geraldo Feraz era a melhor obra de Portinari disposta ali. A tela mostra esse enorme homem, colocado em escala monumental contra uma paisagem rural. A pose guarda alguma coisa de familiar, e com um pouco mais de atenção conseguimos perceber a estratégia do artista. Portinari empresta a este trabalhador a imponência da escultura 1 Dra. em História da Arte pela Unicamp, especialista em arte e arquitetura modernas. 2 Geraldo Ferraz, “Descordando de Portinari”, Folha da Noite, 28/12/1934. Expressão de Geraldo Feraz. 3 !1 clássica italiana, algo que o artista conhecia de seus estudos da Escola de Belas Artes e por suas viagens à Europa ainda no começo de sua carreira. Ao colocar este homem negro como um Davi de Michelangelo, Portinari não só desafiava a ordem social apenas recentemente modificada lembremos aqui que a escravidão tinha sido abolida no Brasil há menos de 50 anos - mas elegia um novo protagonista na criação de uma identidade nacional. O assunto social Portinari não era o único que pensava a formação da sociedade brasileira naquele momento. Sua obra dialogava com uma intensa produção intelectual, cuja obra mais importante é o livro “Casa Grande e Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre. A publicação de 1933 trata justamente da importância dos escravos e da miscigenação entre eles e os portugueses durante o período colonial para a definição das relações sociais, políticas e culturais no Brasil. No cenário das artes, o modernismo se desenvolvia no Brasil após um grande movimento que irrompeu nos anos de 1920. Enquanto para a primeira geração desse movimento, a ruptura com a pintura chamada acadêmica, ligada ao ensino institucional das artes, era uma bandeira importante, a segunda leva de artistas buscou nos anos de 1930 refletir sobre a identidade brasileira ao mesmo tempo em que absorvia o que ficou conhecido internacionalmente como um movimento de retorno à pintura figurativa. Para esses artistas, o assunto social tinha um peso fundamental dentro de suas produções. É nesse momento que surge uma ideia que se espalhou por toda a America, e que estava por trás, por exemplo, de manifestações como o muralismo mexicano. O artista deveria exercer um papel ativo na sociedade, ele deveria, a partir de reflexões pertinentes ao seu contexto local, expressar-se em prol de mudanças sociais e assumir assim sua verdadeira vocação. No caso de Portinari, isso de fato tinha um significado pessoal. O artista era filiado ao Partido Comunista, e dedicou-se nesse período a povoar suas obras com trabalhadores, migrantes e refugiados. Portinari, pintor oficial Em 1934, Portinari já trabalhava com arte há pelo menos dez anos, e a projeção de suas telas começava a chamar a atenção do poder oficial. Getulio Vargas, o presidente do Brasil na época, tinha sua agenda particular no que concernia à construção de uma memória e uma identidade nacional, e Portinari se alinhava muito bem aos seus propósitos. O plano oficial do governo nesse sentido envolvia uma série de ações, que iam desde o fortalecimento do órgão de preservação do patrimônio histórico nacional até a construção de novas sedes para os departamentos federais. !2 Neste projeto de readequação do programa arquitetônico brasileiro, Portinari cumpriu um papel chave: ele foi o artista responsável pela decoração do novo Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, um projeto de Lucio Costa, que contou com a consultoria do arquiteto francosuíço Le Corbusier. A encomenda para diversos painéis sobre a história do ciclos econômicos do Brasil veio apenas alguns anos após a exposição de “Lavrador de café”, em 1937, e consolidou a fama de Portinari não apenas como um pintor moderno, mas como um artista que era muito bem sucedido em traduzir o que significava ser brasileiro. Carreira internacional Portinari certamente foi o pintor brasileiro mais conhecido internacionalmente, e tudo começou com seus lavradores de café. Em 1935, o artista conseguiu sua primeira participação de destaque nos Estados Unidos, quando recebeu uma menção honrosa pela exposição da tela “Café” no Carnegie Institute, em Pittsburg. Apenas alguns anos depois, em 1940, participou da exposição Latin American Exhibition of Fine Arts, no Museu Riverside de Nova York, com 35 obras. Nesse mesmo ano, a exposição Portinari of Brazil, com aproximadamente 180 obras, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) lançou Portinari a novos horizontes e funcionou como um turning point para a sua carreira. No ano seguinte, a Universidade de Chicago editou o álbum “Portinari, his Life and Art” e em 1942 Robert Smith, vice-diretor da Biblioteca do Congresso de Washington e estudioso das obras de Portinari o convidou para pintar quatro grandes murais sobre a história da America Latina na Seção Hispânica da Biblioteca. Todas esses engajamentos prepararam o terreno para a encomenda da obra mais emblemática da carreira do artista, os dois enormes painéis “Guerra e Paz”, entregues em 1956 para compor a decoração do prédio da ONU, em Nova York. Curiosamente, Portinari não foi à inauguração de seus painéis. Seu visto foi negado pela embaixada americana, temerosa de suas ligações com o Partido Comunista. Portinari + Picasso Depois de exatos 73 anos da primeira vez que “Lavrador de Café” foi motivo de noticiais, em 1934, ele voltou a ocupar a mídia, desta vez na seção policial dos jornais. Em dezembro de 2007, a obra foi roubada da coleção do Museu de Arte de São Paulo, onde estava por doação de um influente colecionador de São Paulo. Os ladrões levaram apenas três minutos para saquear o segundo andar do museu, de onde carregaram a obra de Portinari e o “Retrato de Suzanne Bloch”, !3 uma tela de Pablo Picasso, de 1904. O fato de uma obra de Portinari ter sido levada juntamente com um Picasso nos diz muita coisa. Enquanto uma obra é o retrato de uma importante cantora lírica que frequentava as rodas de artistas de Paris no início do século XX, a outra tem como personagem um ilustre desconhecido, uma figura tipo, definida menos por sua posição social e mais por sua força de trabalho. Nesse sentido, as duas obras não podem ser mais contrárias. Ainda assim, existe alguma coisa que as aproximam, não somente na escolha acertada dos ladrões por duas obras primas, mas nessa atmosfera de significado social em que os artistas inserem seus objetos. Cada um em seu contexto, tanto Portinari como Picasso estavam preocupados em pensar a sociedade que os rodeava, e assim produziram um retrato importante de seu tempo. As obras foram recuperadas intactas alguns meses depois ao roubo e estão atualmente em exposição no Museu de Arte de São Paulo. Referências ALMEIDA, Paulo Mendes de. De Anita ao museu. 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