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Francisco Bento da Silva Acre, formas de olhar e de narrar: natureza e história nas ausências Nepan Editora Rio Branco - Acre 2020 Rio Branco - Acre - Brasil Diretor administrativo: Marcelo Alves Ishii Conselho Editorial Agenor Sarraf Pacheco - UFPA Ana Pizarro - Universidade Santiago/Chile Carlos André Alexandre de Melo - UFAC Elder Andrade de Paula - UFAC Francemilda Lopes do Nascimento - UFAC Francielle Maria Modesto Mendes - UFAC Francisco Bento da Silva - UFAC Francisco de Moura Pinheiro - UFAC Gerson Rodrigues de Albuquerque - UFAC Hélio Rodrigues da Rocha - UNIR Hideraldo Lima da Costa - UFAM João Carlos de Souza Ribeiro - UFAC Jones Dari Goettert - UFGD Leopoldo Bernucci - Universidade da Califórnia Livia Reis - UFF Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro - UFAM Marcela Orellana - Universidade Santiago/Chile Marcello Messina - UFAC Marcia Paraquett - UFBA Marcos Vinicius de Freitas Reis - UNIFAP Maria Antonieta Antonacci - PUC/SP Maria Chavarria - Universidad San Marcos Maria Cristina Lobregat - IFAC Maria Nazaré Cavalcante de Souza - UFAC Miguel Nenevé - UNIR Raquel Alves Ishii - UFAC Sérgio Roberto Gomes Souza - UFAC Sidney da Silva Lobato - UNIFAP Tânia Mara Rezende Machado - UFAC editoranepan@gmail.com Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas - Nepan Diagramação: Marcelo Ishii Projeto Gráfico e Arte final da Capa: Raquel ishii Imagem da Capa: “O progresso acreano”, autor desconhecido. Fonte: O Malho, 12 de outubro de 1912, ed. 526, p. 49. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S586a Silva, Francisco Bento da Acre, formas de olhar e de narrar: natureza e história nas ausências / Francisco Bento da Silva. – Rio Branco: Nepan, 2020. 157 p.: il. Formato em E-book-PDF Inclui referencias bibliográficas. ISBN: 978-65-991525-5-9 1. Acre – História. 2. Identidade. 3. Memórias. I. Título. CDD: 981 Bibliotecária: Maria do Socorro de Oliveira Cordeiro. CRB-11/667. À espera dos bárbaros O que esperamos na Ágora reunidos? É que os bárbaros chegam hoje. Por que tanta apatia no senado? Os senadores não legislam mais? É que os bárbaros chegam hoje. Que leis hão de fazer os senadores? Os bárbaros que chegam as farão. Por que o imperador se ergueu tão cedo e de coroa solene se assentou em seu trono, à porta magna da cidade? É que os bárbaros chegam hoje. O nosso imperador conta saudar o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe um pergaminho no qual estão escritos muitos nomes e títulos. Por que hoje os dois cônsules e os pretores usam togas de púrpura, bordadas, e pulseiras com grandes ametistas e anéis com tais brilhantes e esmeraldas? Por que hoje empunham bastões tão preciosos de ouro e prata finamente cravejados? É que os bárbaros chegam hoje, tais coisas os deslumbram. Por que não vêm os dignos oradores derramar o seu verbo como sempre? É que os bárbaros chegam hoje e aborrecem arengas, eloqüências. Por que subitamente esta inquietude? (Que seriedade nas fisionomias!) Por que tão rápido as ruas se esvaziam e todos voltam para casa preocupados? Porque é já noite, os bárbaros não vêm e gente recém-chegada das fronteiras diz que não há mais bárbaros. Sem bárbaros o que será de nós? Ah! eles eram uma solução. Konstantino Kaváfis (1863-1933) AGRADECIMENTOS O s agradecimentos são vários em relação a feitura deste trabalho ensaístico, algo iniciado desde a minha liberação em agosto de 2019 até meados de 2020 quando conclui meu estagio de pós doutoramento no curso de Pós Graduação em História da UFRJ no Largo do São Francisco, sob a supervisão do professor Dr. José Augusto Pádua. Infelizmente, devido a pandemia global do Corona vírus, tive que suspender a permanência naquela instituição e a finalização do estágio foi a distancia. Agradeço também à coordenação do PPGHIS/UFRJ pela acolhida e presteza nas pessoas de Lise Sedrez (coordenadora) e Sandra Helena (secretaria). No Rio de Janeiro agradeço ainda ao companheirismo de colegas que conheci quando o professor José Augusto Pádua ministrou na disciplina Natureza e História no segundo semestre de 2019 no PPGHIS/UFRJ: Paulo Ítalo; Bruno Azambuja; Gustavo Amaral; Laila Pedrosa; Isabela; Mariana e Hanna Mariana. Do ponto de vista institucional agradeço a administração superior da UFAC nas pessoas das professoras Guida Aquino (Reitora) e Margarida Carvalho (Pró Reitora de Pesquisa e Pós Graduação-PROPEG) que sempre foram solicitas nas minhas demandas burocráticas de documentos para viabilizar meu estágio de pós doutoramento no PPGHIS da UFRJ. Esse mesmo agradecimento se estende à direção do Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFCH, tendo à frente o professor José Dourado. Sou também devedor de agradecimentos aos colegas professores dos cursos de Pós Graduação em Letras: Linguagem e Identidade – PPGLI/UFAC e Mestrado Profissional em Ensino de História – PPGPEH/UFAC, que durante minha ausência das atividades cotidianas nesses PPGs, foram levando em frente e lutando diante dos tempos angustiantes que enfrentamos no âmbito político e de saúde pública. Agradeço também aos professores e alunos dos cursos de graduação da área de História, principalmente aqueles que durante os últimos anos participaram como bolsistas PIBIC de projetos coordenados por mim e que contribuíram de algum modo com parte dos caminhos tomados aqui a partir de reflexões compartilhadas. Aos amigos de sempre e que mesmo na distancia — primeiro pelo fato de eu ter me ausentado do Acre e depois pelo isolamento compulsório devido ao Covid 19 — foram e são portos seguros para momentos relaxantes e de compartilhamentos intelectuais. Neste rol incluo Sérgio Roberto Gomes de Souza, colega de sala na UFAC e de caminhadas outras; Elder Andrade de Paula, compadre e amigo fraterno agora na aprazível vila do sossego nas serras fluminenses; Gérson Rodrigues de Albuquerque e Raquel Ishii, compadres e amigos constantes nas labutas e em outros respiros/suspiros. Agradecimentos sinceros ao Marcelo Ishii, que junto com a editora Nepan deu as formas gráficas para que esse texto fosse vertido para os formatos de livro digital e impresso. Algo que foi viabilizado pelo apoio financeiro da PROPEG/UFAC através do Edital Cartão Pesquisador, a quem também teço sinceros agradecimentos na pessoa da professora Margarida Carvalho. Aos de casa e de sempre: Mariana Bernadette (filha); Francisca Janaina (esposa); João Marcos (filho); Jéssica (afilhada) e Maria (mãe), pessoas que durante a reclusão forçada pelo Corona vírus ficaram mais próximas diante dos imprevistos do ano 2020. Já estava preparando minha volta ao Rio de Janeiro em março, com tudo cancelado e alterado, tornei-me um anacoreta forçado no gratificante esteio caseiro e familiar, porem espaço de distrações e obrigações outras que às vezes me faziam sair do ostracismo da escrita e leitura para depois retomá-las renovado e sem o tempo tão definido como antes. Isso porque estamos, com a imposição anglicizada do trabalho em home office, diante do tempo sem tempo. Qualquer horário é horário para o chamado trabalho remoto, pois transparece aos outros que todo tempo caseiro é um tempo livre para o qual você estará disponível para interagir à distancia e ainda fazer suas atividades internas e externas de forma simultânea a partir de um lugar em sua casa. O tempo racionalizado e compartimentado que herdamos da revolução industrial não existe mais: lazer, trabalho e descanso estão cada vez mais embaralhados em tempos atuais. Esse texto é fruto desse obtuso novo normal. Desejo boa leitura. PRÓLOGO – o Acre como caricatura Capítulo I: O Acre como deserto conquistado: amansar e civilizar como missão O dese r t o e a s d is t a n c ia s: n a ture z a , n a cio n a lida de e história ............ 28 O es p a ç o d a s a u sê n c ia s: va z io, b a rb á rie, te mpo e n a ture z a .............. . 34 A c on q u is t a d o t e r r it ó r io – te rrito ria liz a çã o e te rrito ria lida de ............ 37 Arquit e t u r a e e st é t ic a u r b a n a : a s a usê n cia s do b o m g o sto n o Ac re F e d e r a l ................................................................................ . 47 Capítulo II: Bichos, florestas e doenças: o outro mundo selvagem A f au n a e a f l o r a : r iq u e z a , e x ub e râ n cia e se lva g e ria ........................ 59 A s el va c o m o so m b r a d a c iviliz a ç ã o ................................................ 63 Ali m e n t a ç ã o, d o e n ç a s e o s co rpo s “fo ra do lug a r”............................. 67 A na t u re z a re d im id a n o e spa ç o urb a n o ........................................... . 80 Capítulo III: Indígenas e caboclos no caminho da conquista e da colonização A n at u rez a s el va g em d o n a tivo ........................................................ . 87 Os i n d í g e n a s: v io l ê n c ia s e a in do lê n cia a távica .............................. . 94 Des lo c a m e n t o s e a p a g a m e n to s ........................................................ 9 9 Os i n d í g e n a s e a n a c io n a lida de ..................................................... 105 Capítulo IV: As disputas pelo Acre: narrativas do risível e do heróico A Bol í v ia c o m o mu l h e r e a re pre se n ta ç ã o co lo n ia l do g ê n e ro ............ . 1 14 Ac re, o “ m a u ” n e g ó c io d o B ra sil e a vitória de Pirro ......................... . 121 O s h e r ó i s s i n g u l a r e s e c o l e t i vo s: u f a n i s m o n a s i d e n t i d a d e s i nve n t a d a s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 32 Nome n c l a t u r a s e m e m ó r ia s e m disputa s ........................................... 1 36 Epílogo Referências PRÓLOGO – O ACRE COMO CARICATURA Escrever nem uma coisa Nem outra A fim de dizer todas Ou, pelo menos, nenhumas. Assim, Ao poeta faz bem Desexplicar – Tanto quanto escurecer acende vaga-lumes. Manoel de Barros1 1 BARROS, Poesia completa, 2010, pp. 264/265. C omeçar a trajetória dessa escrita com o poeta pantaneiro Manoel de Barros me permite pontuar alguns aspectos norteadores da minha narrativa textual acerca desta pesquisa realizada e, principalmente, dos motivos diversos que me levaram a elaboração dela. Não sou poeta, por isso serei cobrado academicamente a me explicar no intuito de trazer sentidos mais diretos, explanar e manifestar argumentos em torno das questões aqui apresentadas como foco de estudo em cada um dos capítulos. O verbo explicar deriva da junção latina de duas palavras: ex, aquilo que está fora, que se tira ou se abre externamente e o termo plicas, que se refere às dobras feitas em tecidos com a finalidade de lhes diminuir o tamanho. Literalmente, explicar é desdobrar o tecido e vê-lo em toda sua dimensão. Pelo aspecto denotativo remete ao ato de revolver camadas e ir abrindo-as diante dos olhos, desvelar aquilo que está envolto no mistério, trazer algo do oculto, tornar alguma coisa inteligível, desembaraçar, esclarecer, aprender e ensinar certas coisas2. Mas esse exercício denotativo sempre pode ser entendido, em sentido geral, como sendo também um ato de desexplicação a quem já sabe algo ao se narrar outra versão daquilo que é objeto de uma nova explicação. Ou seja, dizer de outra maneira, olhar por outra perspectiva analítica ou teórica, reparar um equívoco ou logro. O que quero dizer é que todos nós desexplicamos o mundo continuamente, sejamos poetas ou não. Isso porque o ato de explicar é geralmente fugidio, perecível, inalcançável em sua totalidade, pois é atravessado pelos valores e as idiossincrasias dos tempos, dos lugares e do humano e do não humano. Assim como a memória e o esquecimento se complementam, a explicação e a desexplicação também se irmanam em suas incompletudes necessárias do fazer e dos saberes humanos e não humanos. As ciências humanas, exatas e experimentais buscam explicar e desexplicar constantemente o mundo em um devir perene. Vivemos sob a égide da autoridade do conhecimento cientifico “que reina de forma suprema”, em que a “divisão entre realidade e imaginação em dois domínios totalmente exclusivos é tão enraizada que se tornou autoevidente”3. Contudo, outras posturas ontológicas vazam há tempos o monolitismo presente nas fronteiras que se desejavam fixas e às vezes antagônicas. A metáfora do vaga-lume presente no poema de Manoel de Barros também é bem vinda para esta empreitada, pois seus lampejos alternados são pequenas claridades na escuridão das noites e dos tempos. Essa alegoria do lampejante momentâneo alude à nossa vã pretensão e incapacidade humana de ver e entender tudo claramente sem outros matizes. Pretender algo e reconhecer as intrínsecas limitações de sua consecução não é para se lamentar, pois talvez seja essa a beleza do viver humano e do metier do pesquisador: buscar o obscuro, o que piscou e deixou de piscar, o não sabido, a (des)explicação do porque das coisas humanas e não humanas, do ambiente-mundo ao qual estamos inserido, de sermos (in)formados “pelo que já está no mundo”4. O historiador das imagens George Didi-Huberman5, em seu livro Sobrevivência dos vaga-lumes, faz um ensaio brilhante sobre o claro-escuro em suas várias dimensões da vida humana ao também usar a figura retórica dos lampejos do pirilampo luminoso. Esses lampejos são entendidos metaforicamente como reminiscências do passado histórico aos quais Walter Benjamin6 também se refere em passagem sobejamente citada do seu texto Sobre o conceito de história, ao se referir aos clarões do saber historiográfico surgidos em “momentos de perigo”. O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em sua obra História, a arte de inventar o pas7 sado aponta para uma tautologia evidente, mas geralmente negligenciada: o conhecimento histórico é 2 CUNHA, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 2010, p. 280. 3 INGOLD, Caminhando com dragões: em direção ao lado selvagem, 2012, p. 16. 4 Idem, 2012, p. 24. 5 DIDI-HUBERMAN, Sobrevivência dos vaga-lumes, 2011. 6 BENJAMIN, O anjo da história, 2013. 7 ALBUQUERQUE JÚNIOR, História: a arte de inventar o passado, 2007. 11 histórico. Isso ocorre porque os lugares da história, da historiografia e do historiador se alteram com o tempo e os seus topoi. Essa é uma característica do humano: somos marcados pelos lugares e pelos tempos em suas múltiplas dimensões e sentidos denotativos e conotativos que nos envolvem. Ou dizendo metaforicamente, os lampejos dos vaga-lumes nos iluminam e nos obscurecem nas nossas trajetórias individuais e coletivas no ambiente-mundo e também, em particular, através das narrativas historiográficas produzidas no tempo. Entendendo a experiência humana como fragmentaria e a evidente incapacidade de sabermos objetivamente o que ocorreu na sua totalidade, tomo por empréstimo e faço concordância com a ideia de que a história se alia mais à arte do que a ciência racional e experimental8, numa concepção que caminha à margem da tradição iluminista e objetivista tão duradoura na “tradição ocidental moderna”. O que cabe ao poeta e ao historiador é então a “arte de inventar o passado com os materiais dispersos deixados”9 e com instrumentais que não são estranhos ao metier de cada um desses sujeitos. As proximidades talvez sejam maiores que as distâncias. A citação abaixo sintetiza essa perspectiva, quando Albuquerque Júnior se inspira e se refere aos escritos do poeta Manoel de Barros como ponto de partida para o seu des-fazer/des-saber historiográfico. Tarefa nobre não é só produzir o conhecimento, mas o desconhecimento também; não é só produzir o saber, mas o dessaber; não é só definir e se apropriar do objeto, mas fazê-lo perder-se, desdefini-lo; não é só identificar o sujeito, mas desidentificá-lo, desacontecê-lo. É preciso desformar o mundo, desnaturalizá-lo10. Essa tão decantada e duradoura divisão do conhecimento em campos precisos, com fronteiras definidas é outro mito que hoje já não é tão abraçado nas renovações que se empreenderam nas diversas áreas dos saberes acadêmicos. Não me refiro apenas ao campo das chamadas ciências humanas, isso pode ser ampliado também para o domínio das ciências biológicas e da natureza. Isso porque as vidas sociais e biológicas, bem como o mundo físico, estão em constantes transformações que precisam de sentidos renovados e mais condizentes com as multirrelações entre essas dimensões que são inseparáveis, mas que a tradição cientifica ocidental e eurocêntrica dividiu com fronteiras duradouras conforme aponta German Palacio11. Em estudo mais recente, Tim Ingold e Gisli Palsson12 também defendem que os humanos e o chamado mundo natural (outros seres biológicos e o mundo físico) compõem uma dimensão inseparável e complexa que é o biosocial (o vivido), conceito que engloba as múltiplas formas de vidas biológicas, ambiente mineral, mundos históricos e culturais que se inter-relacionam continuamente no planeta terra. Contudo, a fantasia, o desejo, o discurso e a ideologia do humano civilizado separado da natureza é um mito incessante e ainda permanente em grupos hegemônicos da chamada tradição ocidental iluminista. Complementando o que foi dito com as concepções de Gisli Palsson em particular, os fenômenos da vida negam as fronteiras entre as disciplinas13 e os conhecimentos. Seguindo essas orientações mais gerais pontuadas até aqui de maneira resumida, quero então falar sobre minhas preocupações de estudo como pesquisador que nasceu, vive e trabalha em um lugar marcado por diversos estereótipos, alegorias e imaginações que o “explicam” peremptoriamente diante da nacionalidade brasileira e ao mundo, bem como aos que nele vivem a partir do que seria sua essência/ caráter/marca. Essa região é a Amazônia genérica, com seus espaços e sociedades narradas desde algum 8 Idem, p. 88. 9 Idem, p. 64. 10 Idem, p. 92. 11 PALACIO, História tropical: a reconsiderar las nociones de espacio, tiempo y ciencia, 2005. 12 INGOLD & PALSSON (orgs.). Biosocial becoming, 2013. 13 PALSSON, Retrospect, 2013, pp. 229/248. 12 tempo como lugar social e “natural” que adentra na história global e nacional carregada dessas particularidades generalizadas e inventadas conforme apontam os trabalhos14 de Neide Gondim, Auxiliomar Ugarte e Candance Slater, entre outros estudos correlatos que serão referenciados no decorrer deste texto. E o Acre, parte menor dessa parte maior, carrega semelhantes características gestadas em muito na primeira metade do século XX. Desdizer e desexplicar, remar contra as narrativas hegemônicas que foram sendo tecidas e cristalizadas como as únicas e verdadeiras no mundo gestado pela vaga iluminista ortodoxa torna-se tarefa hercúlea, conforme em parte destes estudos já citados apontam. Mas é possível, seguindo essas e outras sendas de renovação que aos poucos se abrem, desexplicar o que pretensamente “já está explicado”. Neste sentido, me direciono para algo que Nenevé & Sampaio15 propugnam ao afirmarem que sobre a Amazônia é preciso reimaginá-la por dentro, pois “reimaginar de dentro significa redizer e desdizer, significa ressignificar e repensar as definições e conceitos sobre o local”16. Nessa linha de concordância, abraço a perspectiva de reimaginar/desdizer/desexplicar/ressignificar de dentro e por dentro. Essa defesa de perspectivas posicionais não significa estar em um lugar mais privilegiado ou mais objetivo que outro na produção do conhecimento. A importância está em desejar que saberes multifacetados em seus aspectos epistemológicos, de fontes e de lugares de falas diversas, sejam produzidos, confrontados e divulgados em concomitância e até estilhaçando aos que já são canônicos. Há a necessidade da presença de outros pirilampos iluminando sob novas bases o que já está posto, trazendo algo renovado e que provoque o descentramento do já posto no panteão dos saberes acadêmicos consagrados. É como indivíduo e pesquisador que apresento então esta minha escrita intitulada Acre, formas de olhar e de narrar: história e natureza nas ausências. Procurei sintetizar nesse título o problema central deste ensaio em torno de uma fluida estética do vazio e do caricato em relação ao Acre na primeira metade do século XX, que foi tomando forma através de fluxos mentais, fazeres humanos, não humanos e múltiplas culturas materiais gestadas. Há em relação à Amazônia brasileira, e ao Acre em particular, a construção duradoura de uma estética do vazio que se expressa em varias dimensões e por diversas vozes nesse período. Essa perspectiva tem longevidade, conforme apresenta Margarita Serje para semelhante questão em um estudo de contexto mais amplo: La experiencia estética y pictórica del paisaje constituye el eje central de la aproximación a la realidad que consolidan las ciencias naturales en el marco colonial de la “era de los descubrimientos”: cuando Europa lanza sus viajeros “naturalistas” a todos los mares y continentes del planeta, se comienza a generar un pensamiento acerca de la diversidad; de “la diferencia” que em primera instancia va a consolidar la idea de la comparación17. Essas vozes se verbalizam e se adjetivam geralmente em tons lamentosos, irônicos e pretensamente objetivos afirmando que nesse Acre territorial das décadas iniciais do século XX não tem crianças, não tem mulheres, não tem civilização, não tem progresso, não tem signos do moderno, não tem gente preparada para a burocracia estatal, não tem salubridade, não tem indústria, não tem projetos duradouros, não tem sociedade, etc. Em resumo, tudo falta. Ou seja, as narrativas das ausências seria aquilo que definiria o Acre através do que estou nomeando aqui de caricatura. Caricatura que não deve ser compreendida somente em seu sentido literal, através das narrativas cômicas, mas também quando se querem objetivas, imparciais, sérias e definidoras. 14 GONDIM, A invenção da Amazônia, 1994; UGARTE, Sertões de bárbaros, 2009; SLATER, Visions of the Amazon: what has shifted, what persists, and why this matters, 2015. 15 NENEVÉ & SAMPAIO, Re-imaginar a Amazônia, descolonizar a escrita sobre a região, 2015. 16 Idem, p. 20 17 SERJE, Ciencia, estética y cultura en la naturaleza moderna, 2002, p. 181. 13 Quando falamos que algo é uma caricatura, que é caricato ou que é caricatural emerge de imediato em nossa imaginação significados que apontam para definições muito próximas semanticamente. Os dicionários de língua portuguesa mais consagrados irão conceituar que a caricatura é uma imagem exagerada e distorcida de uma pessoa, de um objeto, de um animal ou de um lugar com fins humorísticos, jocosos e picarescos. Caricato é um termo que aponta para traços do que seria um jeito específico de ser, das idiossincrasias de uma personalidade, de um lugar ou de um objeto em sua singularidade que também direciona para o alegórico. O termo caricatural é o adjetivo derivado do seu substantivo correspondente. A origem semântica desses termos seria do verbo italiano caricare, que significa carregar, no sentido de transportar, de deslocar e levar para outro lugar algo ou alguém. São esses transportes que o Acre teve e tem ao longo dos anos iniciais do século XX que me interessam discutir nesta escrita, tentar abordá-los a partir de outras perspectivas. Enfim, desexplicá-los. É necessário apontar que nesse aspecto há uma narrativa historiográfica hegemônica que realça o Tratado de Petrópolis (1903) como uma espécie de registro de nascimento — ou adoção — do Acre ao território brasileiro por obra e ação de um intrépido gaúcho e dos bravos e heróicos “nordestinosceraenses” que o conquistaram da Bolívia. Deriva daí a anacrônica expressão que vez ou outra vemos em reportagens escritas e ouvimos da boca de muitos acreanos ou de gentes que nasceu ou vive(u) no Acre: “somos brasileiros por opção”. Sem enveredar por esta discussão com profundidade, importa realçar que em 1903 não se resolveram por completo as questões de fronteira de um Acre brasileiro e até mesmo de um Acre acreano que “fulge como um astro na nossa bandeira”18 de forma completa e harmoniosa como muitos vocalizam no afã regionalista. Esse exemplo — entre tantos outros — é o de uma narrativa hegemônica que se expressa por manifestações identitárias apontadas como originais através de ações de grupos políticos locais19, indivíduos variados, manifestações artísticas, produções acadêmicas e não acadêmicas. Esse conjunto de olhares lançados sobre a região da qual o Acre faz parte se constitui em um espaço importante no contexto econômico mundial a partir do ultimo quartel do XIX e anos iniciais do século XX, sendo referencial de narrativas duradouras que irão inventar e reinventar o Acre e a Amazônia indelevelmente. Algo que tem um marco mais recuado nesse ambiente histórico e biogeográfico que remonta as narrativas ibéricas da conquista inauguradas a partir da chegada de Cristovão Colombo20 ao continente e ampliadas no contexto do Vale amazônico basicamente pelos cronistas portugueses e espanhóis em movimentos de subidas e descidas pelos rios da região nos séculos XVI e XVII21. Cabe realçar que tomo essas narrativas textuais e visuais como representações de cada época e de determinados lugares. São expressões da cultura em seus vários níveis, ordenadas por motivações ideológicas também marcadas pelas camadas temporais e sociais. Para caminhar por estas sendas, tenho como ancoragem as discussões de Roger Chartier22 sobre esse assunto. Partindo das discussões de Paul Ricouer, ele traz três perspectivas em que se alicerçam essas representações: na ficção narrativa; na produção do conhecimento histórico e nas operações da memória23. Dizendo de maneira mais direta e especifica, nas obras de cunho literário; escritos de base historiográfica e documentos vinculados às operações da memória (autobiografias, jornais e imagens visuais diversas). São esses documentos, essas fontes em 18 Trecho do Hino acreano, composto em 1903 pelo médico Francisco Mangabeira que atendia as tropas dos rebeldes do Acre durante o embate contra os bolivianos. Cf: RIBEIRO, 2008, pp. 153/154. 19 Sobre os usos recente da “identidade” essencialista e narrativas glorificadoras pela política local no Acre, temos: MORAIS, Acreanidade, 2016. 20 TODOROV, A conquista da América, 2010. 21 UGARTE, 2009; GONDIM, 1994. 22 CHARTIER, O passado no presente: ficção, história e memória, 2011. 23 Idem, pp. 114/117. 14 movimento que oferecem ao pesquisador suporte para fazer a “desmontagem da história e a montagem da historicidade”24. Reforçamos ainda o olhar com questões postas por Christian Kiening, em sua obra intitulada O Sujeito selvagem: pequena poética do Novo Mundo. Principalmente sobre o processo de contato entre europeus e o chamado Novo Mundo, quando ele diz que os conquistadores procuraram desde então “alcançar a realidade do ‘estranho’”25 a partir dos seus valores e mentalidade eurocêntrica. E ao fazer uma abordagem conceitual do termo representações, ele assim nos fala: O conceito de representações sugere que símbolos e esboços não devem ser pensados nem como categoricamente separados, nem continuamente fundidos em simiose. O representante e o representado podem se aproximar um do outro até a identidade aparente. Porem, eles podem ser marcados por uma não identidade que, em contrapartida, possibilita as mais diferentes formas de transmissão. Assim sendo, a representação se baseia nos princípios de alteridade e mimesis26. Nesse jogo complexo de simioses e aproximações temos a explicação e a desexplicação em dualidades constantes quando mergulhamos para além das aparências tranquilas da superfície onde se encontram as hegemonias estabelecidas. Creio que também é interessante pensar no conceito de comunidade imaginada em relação ao Acre e aos acreanos por via dialética e complexa. Para isso é necessário abstrair a ideia conceitual de nação discutida por Benedict Anderson na sua obra Comunidades imaginadas e pensar o termo no contexto dos regionalismos no Brasil. Vejamos então o que nos diz Anderson sobre essa questão no âmbito das nacionalidades: uma comunidade imaginada é imaginada como sendo intrinsecamente limitada e ao mesmo tempo, soberana. Ela é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva de comunhão entre eles27. A partir da ideia geral apresentada acima, temos estabelecida a narrativa de um Acre de incorporação tardia à uma “comunidade” nacional imaginada, filho enjeitado e adotado de forma errática como Território Federal (ente federativo inexistente na Constituição Federal de 1891). Local apontado como pouco lembrado pelo Estado brasileiro no tocante a políticas públicas voltadas para o beneficio da população que ali vivia nas décadas iniciais do século XX, quase esquecido pelas autoridades publicas da União e para onde rumavam gentes que iriam fazer sem saber uma “colonização à gandaia” e participarem de uma “seleção natural invertida”, como vai afirmar Euclides da Cunha na sua já referenciada obra ao se referir aos “sertanejos” tangidos pelas secas recorrentes no agreste do hoje nordeste brasileiro28. O Acre e a Amazônia são tornados o outro geográfico da brasilidade litorânea, pois se caracterizam pela imanência da floresta tropical sombria, calorenta e úmida; lugares com invernos rigorosos, rios caudalosos, animais ferozes, indígenas selvagens, doenças mortíferas e coletividades anárquicas em suas formações. Sabemos que não é nada fácil lançar o olhar ao passado que passou, mas que pode ser remontado pela operação historiográfica na arte de inventar o passado. O passado aqui não mais entendido como um fato objetivo, mas o passado como fato da memória, como bem aponta Walter Benjamin29. São essas narrativas dispersas no tempo e no espaço, arraigadas nas memórias coletivas, cristalizadas em alguns documentos de memória transformados em documentos monumentos que tornam possível essa reatualização do Acre continuamente nos marcos do que foi estabelecido como seu lugar de fixidez. Mas para alem do tão presente ufanismo fácil e condensado do Acre monumento, podemos no contrapelo perceber as (des) 24 DIDI-HUBERMAN, Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens, 2017a, p. 136. 25 KIENING, O sujeito selvagem: pequena poética do novo mundo, 2014, p. 63. 26 Idem, p. 64. 27 ANDERSON, Comunidades imaginadas, 2008, p. 32. 28 CUNHA, Um paraíso perdido, 2000, p. 150. 29 BENJAMIN, 2013. 15 continuidades erráticas, não lineares, dos múltiplos aspectos e distintos lugares de origem — no devir e no declínio benjaminiano — e dos tempos fraturados em que emergem tais representações. Tal como apontam os ensinamentos de Walter Benjamin, entendamos aqui o passado como algo paradoxal, que só pode ser apreendido como algo irrecuperável. Esse passado não é físico com materialidade palpável e nem capaz de ser objetivamente apreendido. É o passado que faz a história, um passado humano, cognitivo por excelência. Não há como ingenuamente querermos recuperar o passado, mas somente nos é permitido lançar um lampejo para iluminar fugazmente o outrora com “um tempo preenchido pelo agora”30. Algo que nos deixa diante da fatalidade do anacronismo em relação ao trabalho do historiador, como bem vai afirmar Didi-Huberman pois “nos é particularmente impossível interpretar o passado sem fazer apelo ao nosso próprio presente... mas mesmo assim (...) o anacronismo continua sendo aquilo que precisamos evitar a todo preço”31. Diante desse paradoxo, este autor — apoiado em Lucien Febvre — diz que o anacronismo é o pharmakon da história, “o que é bom e o que é ruim: o anacronismo-veneno contra o qual se proteger e o anacronismo-remédio a prescrever, mediante algumas precauções de uso e algumas limitações de dosagem”32. Devemos estar conscientes desses perigos porque a todo instante somos atraídos pela “história doce” e menos afeitos às aventuras de uma “história acre”, amarga e travosa33. Dependendo da dosagem, ambas podem envenenar pessoas que se arraigam em suas posições ortodoxas em busca de uma pretensa história objetiva, verdadeira e altiva em brilho e heroísmos. Com os cuidados devidos, quero então caminhar na direção dessa história de teor mais acre e que causa dissabor àqueles acostumados aos adocicados não problemáticos das narrativas historiográficas glorificantes. Faz poucos anos, surgiram no meio acadêmico e fora dele produções em que o foco de abordagem é a (in)existência do Acre como entidade política e cultural vinculada à nação brasileira. Estes trabalhos vieram à tona na esteira da popularidade da internet e das suas redes sociais que possibilitaram a emergência de vários sites, blogs, páginas e perfis pessoais on line em que o Acre é geralmente apresentado como lugar que não existe, um não-lugar. O tom predominante é de ironia, sarcasmo e preconceitos variados nesses territórios virtuais. Um desses trabalhos é o documentário chamado O Acre existe (2013) de quase duas horas de duração, realizado por quatro jovens paulistas que ao ouvirem muitas piadas sobre a inexistência do Acre, resolvem visitar o estado para fazerem um documentário e se contraporem às afirmações das ausências que os incomodaram inicialmente. Mas as “provas” que eles apresentam do Acre “verdadeiro” não deixa de ser uma reprodução de lugares comuns sobre as decantadas “cultura” e a ”identidade” acreanas vinculadas basicamente ao mundo rural/florestal, aos indígenas e a religião do Daime/Ayahuasca34. É um Acre que permanece exótico aos olhos externos, lugar dos “povos” da floresta, ícone da preservação ambiental, com suas identidades indígenas e “nordestinas” como matrizes originais e sincréticas do passado que redundaram no Acre atual. Nos dizeres dos professores Aquinei Timoteo e Francielle Mendes, em artigo recente sobre este documentário, “os diretores chegam ao Acre com uma visão estereotipada sobre a cultura indígena e deitam um olhar interpretativo uniforme sobre um conjunto heterogêneo de indivíduos. Eles não percebem, portanto, as diferenças socioculturais existentes”35. 30 Idem, p. 18. 31 DIDI-HUBERMAN, 2017a, p. 33. 32 Idem, p. 37. 33 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Por uma história acre: saberes e sabores da escrita da historiografia, 2014. 34 O documentário está disponível on line: https://bit.ly/33tqVsY, acesso em 05/03/2019. 35 QUEIRÓS & MENDES, Caudal identitário: representação, imaginário e estereótipo no documentário O Acre Existe, 2018, p. 28. 16 No campo acadêmico há uma dissertação de Giselle Lucena, intitulada O Acre (não) existe: um estudo sobre identidade, memória e midiatização, defendida em 2014 na área de Comunicação Social36. No referido trabalho, a autora busca discutir as representações que circularam em ambientes virtuais da internet sobre a afirmativa/negativa da existência do Acre e como essas narrativas se reproduziam e se retroalimentavam continuamente no ambiente da extinta rede social Orkut e dos sites Youtube e Yahoo responde entre os anos de 2004 e 2011. Esses ambientes virtuais selecionados pela autora são uma pequena mostra de como e onde hoje se verbalizam xenofobias, preconceitos, ironias corrosivas e o politicamente incorreto por meio de influencers digitais, youtubers e seguidores virtuais em perfis muitas vezes falsos e anônimos. Essa inexistência narrada galhofeiramente é tomada então como algo que incomoda os “acreanos” orgulhosos de sua identidade “verdadeira” que é aviltada em rede mundial. Algo que acaba por gerar um paradoxo a quem através das mesmas redes sociais intenta desfazer o “boato”, o “mito” e a mentira para provar a existência factual do Acre, porque reforça a reprodução da narrativa contrária e amplifica seu alcance ao tomá-la como objeto de confronto, de combate necessário das “inverdades” ali postadas por aqueles vistos como detratores. Em sentido comparativo, isso é muito parecido com o que ocorria através das sátiras sobre o Acre produzidas em jornais em revistas humorísticas nos anos iniciais do século XX e que serão parcialmente discutidas ao longo do texto. Inversão e desconstrução de sentidos são ativados continuamente. No âmbito da pesquisa acadêmica, o caminho a ser seguido, para além das dualidades em conflitos — de negação e afirmação —, seria tratar essas manifestações como representações, imagens em (des) construção, imaginações que fazem parte do real, do cotidiano, de certos ambientes virtuais e impressos em que múltiplos sujeitos compartilham/recusam idênticas narrativas sobre si mesmos e aquilo que os diferenciam dos outros. Devemos entender que “a imaginação não é uma fantasia (...) a imaginação é uma faculdade que percebe as relações intimas e secretas das coisas, as correspondências e as analogias”37. Os graus de autonomia e manipulação acerca disso tem infinitas escalas e impactos ao longo do tempo. Essas narrativas polissêmicas sobre um Acre insólito, estranho e específico possibilitam pensarmos retroativamente certos enquadramentos, que mesmo diante do abismo perigoso do anacronismo, lançam lampejos sobre a historicidade desse lugar narrado e imaginado por tantas vozes e em meios variados ao longo do tempo. Um exemplo é o da já citada narrativa hegemônica, laudatória e glorificadora da conquista e da exploração dos recursos naturais e humanos da região tornada acreana. Podemos resumi-la em uma linha do tempo cronológico em que pretensamente existiria sucessivamente dando vez aos vários e único Acre: um Acre que inicialmente não é de ninguém; Um Acre que está “lá”, geograficamente falando, esperando ser descoberto, colonizado; um Acre boliviano de direito pelo Tratado de Ayacucho desde 1867; um Acre já abrasileirado majoritariamente pelos brasileiros do Acre, mas que a Bolívia queria se apoderar; um Acre litigioso quando o Barão do Rio Branco entra em cena e impõem as condições de negociação; E, por fim, um Acre brasileiro a partir de 1903 com o Tratado de Petrópolis38. É resumidamente este modelo de linearidade redentora que marca as várias escritas e as inúmeras verbalizações mais conhecidas sobre a trajetória histórica do Acre: de algo que vai de um espaço geográfico vazio a um ente político tutelado da federação brasileira em forma de Território Federal, mas brasileiro por opção, até sua autonomia política em 1962. Na ultima década do século XIX e os anos iniciais do século XX foram bastante agitados na região do atual estado do Acre. O território era oficialmente boliviano, mas habitado quase que exclusivamente por brasileiros atraídos notadamente pela abertura de uma nova fronteira econômica e extrativista: a 36 LUCENA, O Acre (não) existe: um estudo sobre identidade, memória e midiatização, 2014. 37 BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN, 2017a, p. 135. 38 SILVA, Insolitudes acres, hibridas e fronteiriças: as disputas pelas identidades, 2017, p. 53. 17 exploração do látex extraído da seringueira e do caucho. Embora existissem dezenas de etnias e milhares de habitantes indígenas antes da chegada dos pioneiros, todos foram invisibilizados como não dotados de direitos e de protagonismo na lógica da sociedade superior e do Estado nacional dos civilizados que ali foram chegando, se constituindo como os únicos portadores de direitos e os próprios narradores de suas façanhas. Lembrando ad hoc a máxima nietzscheana, de que a história é a história do vencedor. Mas cabe lembrar que entre esses pioneiros nem todos foram vencedores e nem formavam um bloco histórico coeso, algo que por hora não cabe tratar nesta introdução. Nesse período de passagem de século, o “assunto Acre” torna-se algo que ninguém na região e fora dela se mantinha indiferente. Principalmente em cidades como Manaus, Belém e, ainda, no Rio de Janeiro então a capital do país. Constroem-se múltiplas narrativas carregadas de representações várias sobre o Acre como um novo Eldorado, terra da borracha, Inferno verde, Sibéria tropical, local de aventureiros e espaço de homens tumultuários onde predominavam as vontades dos poderosos e as vinganças baseadas em leis não escritas. É sob esta ótica multifacetada de representações/imaginações que o estado nacional passa a administrar o Acre após 1904 como o primeiro Território Federal brasileiro, enviando então homens de confiança — geralmente militares — para governarem como prefeitos departamentais nas incipientes vilas e cidades que começaram a surgir com a organização administrativa estatal. De pronto, o Acre torna-se um contraste definitivo com a cidade do Rio de Janeiro para muitos desses homens que chegavam com parâmetros de civilidade, urbanidade e modernidade espelhados no que entendiam ser a capital federal ou outras cidades metropolitanas do país. Logo vão se construindo discursos sobre o que eram e como eram o Acre e suas gentes; o espaço geográfico é normalizado como sendo de imensidão incomensurável; a natureza é sentenciada como vazia, misteriosa e que provocava —, na descrição de muitos —, a sensação de solidão; e, por fim um espaço visto como sendo habitado por pessoas bárbaras ou pouco civilizadas39. Essas noções aparecem em muitos escritos nos anos iniciais do século XX, como aqueles produzidos por Euclides da Cunha e o militar Annibal Amorim que estiveram no Acre em viagens40 a trabalho em anos muito próximos. Foram então se hegemonizando essas concepções muito em voga sobre o Acre e a Amazônia e que incidem inclusive no arcabouço cientifico e intelectual da época. Deve ser incluído nesse rol o saber médico brasileiro, principalmente quando ascende a chamada medicina tropical irmanada com os projetos políticos de nação em voga. Essa visão com viés científico ancorada na lógica da desejada salubridade dos “sertões” é realçada principalmente pelas pesquisas do Instituto Oswaldo Cruz, quando a partir de 1912 alguns dos seus médicos sanitaristas visitam a região amazônica e o Acre e produzem diversos relatórios sobre as endemias tropicais que atravancavam o progresso e a civilização nas ditas lonjuras esquecidas dos interiores do país41. A ciência medica precisava chegar à imensa roça brasileira, ao wilderness tropical que se iniciava a partir das bordas simbólicas e moventes a partir da oposição do sertão versus litoral que marcava os limites entre os espaços antípodas da civilização e da barbárie. Esses limites dualistas eram menos geográficos e mais ideológicos, representacionais, narrados a partir de estereótipos em voga à época. Olhar alguns relatórios de governo dos primeiros prefeitos departamentais do Território Federal do Acre, mesmo tomando o cuidado de perceber as fantasias administrativas desses documentos — como apontou Euclides da Cunha em seu texto Um paraíso perdido42 — nos proporciona captar essas narrativas para alem do debate em torno do verdadeiro e do falso contidos nessas produções textuais administrativas. Realizadas as devidas criticas das fontes, esta é uma documenta39 VIANA, O erro da autonomia acreana, 1942. 40 AMORIM, Viagens pelo Brasil, 1917; CUNHA, 2000. 41 CASER, O medo do Sertão, 2009; LIMA & BOTELHO, Duas viagens amazônicas e o espectro de Euclides da Cunha, 2014; SOUZA, “Desnervados, desfi brados e amarelos” em busca de cura: saúde pública no Acre Territorial (1904/1930), 2014. 42 CUNHA, 2000, p. 151. 18 ção riquíssima para capturar o olhar desses homens que chegavam a um Acre que “nada tinha” e exaltam a si mesmos como construtores do “progresso” na “selva”. O médico-militar Raphael Cunha Mattos foi o primeiro prefeito do Departamento do Alto Acre, cuja sede Vila Empreza é por ele renomeada de Vila Rio Branco em fins de 1904. O novo nome foi uma homenagem ao Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores que tomou à frente nas discussões com a Bolívia que redundaram na assinatura do Tratado de Petrópolis em 17 de novembro de 1903, documento que formalizou os direitos do Brasil sobre o Acre. Cunha Mattos diz em seu relatório que uma das medidas a ser tomada com brevidade era adotar Xapury como sede administrativa do referido Departamento, pois a região do então povoado Empreza (depois Vila Rio Branco) era de clima insalubre e mortífero à população devido as doenças endêmicas que ali vicejavam. Eis parte de seu relato: “insalubérrimo, quase todo elle [o Acre], o que se comprehende e se concilia com as condições fisicas que lhes são inherentes e favoraveis á vida das organizações inferiores responsáveis por um grande número de moléstias infecciosas”43. Ele também aponta que faltavam pessoas especializadas aos novos afazeres públicos que a administração departamental necessitava. Como então fundar cidades e dotar a desejada civilização em locais de gentes incapazes e natureza hostil? Esse era o grande desafio que apontavam esses políticos de carreira militar, geralmente engenheiros e médicos, que passaram a ser designados para administrarem o Acre Federal a partir de 1904. Todas essas questões apontadas — mesmo quando travestidas de cientificidade, tecnicidade, neutralidade e objetividade — se enquadram, em parte, naquilo que Durval Muniz de Albuquerque Júnior vai chamar de preconceitos ligados à origem geográfica: O preconceito quanto à origem geográfica é justamente aquele que marca alguém pelo simples fato deste pertencer ou advir de um território, de um espaço, de um lugar, de uma vila, de uma cidade, de uma província, de um estado, de uma região, de uma nação, de um país, de um continente considerado por outro ou outra, quase sempre mais poderoso ou poderosa, como sendo inferior, rústico, bárbaro, selvagem, atrasado, subdesenvolvido, menor, menos civilizado, inóspito, habitado por um povo cruel, feio, ignorante, racialmente ou culturalmente inferior44. Essas representações negativas em parte explicam o porquê de o governo federal escolher o Acre para enviar como desterrados os indesejados sociais da capital republicana na primeira década do século passado. Ao explodirem as revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1910), de pronto o governo federal decretou estado de sítio, sufocou os vários focos rebeldes dessas revoltas e prendeu milhares de pessoas. Parte delas foi desterrada para o Acre, Território Federal tornado uma espécie de Sibéria tropical para os indesejados da jovem e pouco democrática República brasileira45. Na época dessas revoltas, diversos jornais e revistas satíricas da capital federal retrataram esses desterros em textos escritos e em charges. No caso das iconografias do gênero charge, além de remeterem às expulsões em si, elas também traziam um conjunto de representações e estereótipos acerca do que seria Acre e o porquê dele ser o destino adequado aos indesejados revoltosos. Como gênero, essas narrativas visuais fazem parte de uma leitura e crítica do mundo social brasileiro, conforme nos apresenta Elias Tomé Saliba em sua obra Raízes do riso46, cujo foco gira em torno das charges e cartuns presentes nas principais publicações que circularam ao longo do século XX a partir do eixo editorial Rio — São Paulo. A charge, do francês charger, significa numa tradução literal carga e é uma das formas que o humor gráfico adquire para retratar de maneira exagerada, surreal e cômica situações do mundo social. Por isso 43 MATTOS, Relatório da Prefeitura do Departamento do Alto Acre relativo ao período decorrido entre 18 de agosto e 31 de dezembro de 1904, 1905, p. 12. 44 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Preconceito contra a origem geográfica e de lugar, 2007, p. 11. 45 SILVA, Acre, a Sibéria tropical, 2017. 46 SALIBA, Raízes do riso, 2002. 19 ela é temporal e situa um lugar. Tempo e espaço se conjugam na existência da charge. Diferente do cartum, ela é datada historicamente47 e carrega elementos do contexto em que foi concebida. Podemos pensar essas representações veiculadas como inseridas também em um processo amplo e difuso de interpretação de mundos por parte do público leitor. Elas não são estáticas, mas moldáveis, localizadas, deslocadas e utilizadas em diversos territórios (político, cultural, econômico, esportivo, ecológico, paisagístico). É possível estabelecer suas funções discursivas, existências e permanências em duas dimensões relacionadas: uma externa e outra interna. Ou dizendo de outra forma, como um indivíduo ou um grupo coletivo vê a si; como enxerga os outros a partir dos seus valores e como são vistos a partir do mundo externo a eles. Esse é o cerne de afirmação das identidades coletivas e individuais, vinculadas por um lado através ideia de harmonização com seu semelhante devido uma decantada origem comum a partir de “um lugar” de vivências, de “uma história” partilhada e de “uma cultura” unificada. Por outro lado, surgem as visões opostas em relação aos que não compõem essa comunidade imaginada, partilhada e “normalizada”: são os exóticos, os diferentes, os estranhos e até os inferiores quando comparados a partir dos valores destituídos de alteridade que esse outro coletivo maneja. Nós e os outros se estabelecem como elementos relacionais e em oposições, às vezes transitórias e efêmeras, outras vezes mais permanentes e arraigadas nos imaginários coletivos em suas dimensões históricas e culturais48. Tudo isso faz parte da realidade nas suas dimensões concretas e imaginárias, se constitui naquilo que o historiador Giovani Levi49 chama de herança imaterial e outros autores de representações coletivas, conforme já realçado. São conjuntos de ideias, imagens, símbolos, mitos e utopias que permitem estabelecer as conexões sociais entre os diferentes sujeitos que compõem uma dada sociedade nas suas perspectivas sincrônicas e diacrônicas em relação ao mundo do vivido e do herdado. Na virada do século XIX para o XX, o olhar de grande parcela dos homens metropolitanos50 do país — pertencentes à intelligentsia da época — desde algum tempo estava marcado e influenciado pela ideia generalizante de que a Amazônia era uma terra ignota, distante, inóspita e inadequada à presença do humano civilizado. Naquele espírito do tempo em voga, quem nela habitava era caracterizado geralmente como estando em descompasso com a história nacional e com os ideais civilizatórios dos trópicos. O domínio desse meio hostil é visto como um dever dos agentes civilizadores compromissados com a pretensa unidade nacional de caráter uniformizante, racializado e autoritário. Esta visão aparece como já foi dito em escritos de médicos sanitaristas, nas obras de análise social, na literatura romanesca canônica, em obras fílmicas posteriores, nas memórias biográficas e em escritos de caráter historiográfico. Nessas narrativas o ponto de convergência que acompanha todas elas é a imagem do atraso dos sertões do Brasil em comparação ao discurso/sentimento do progresso, da civilização e da modernidade que já existiria no litoral das elites eurocentradas e depois americanizadas. O pano de fundo que junta tudo isso é a busca da identidade nacional, pois já não servia mais aquela exageradamente utópica construída pelos românticos brasileiros do XIX em torno de uma nação de perene vocação agroextrativista, de alma rural, herança lusitana e monarquista. O objetivo a partir das décadas finais do XIX e décadas iniciais do século XX visado pelos intelectuais do realismo-naturalismo era mostrar um Brasil “real”, autentico e profundo. Grosso modo, duas perspectivas são dominantes: em uma delas, o que se encontrava era feio, antiestético e pois renegado (mestiçagem/negritude/indianidade). Irão então apresentar soluções para transformar e integrar esse Brasil em descompasso cultural, histórico, racial e identitário. Outra visão, talvez de menor representa47 FONSECA, Caricatura: A imagem gráfica do humor, 1999. 48 TODOROV, op. cit., p. 04. 49 LEVI, A herança imaterial, 2000. 50 Aqui o termo deve ser interpretado menos em seu sentido geográfico e mais na perspectiva histórico-cultural e de valores. 20 tividade e força, crer existir identidades autenticas nos sertões profundos do país e que elas retratariam a verdadeira cultura do Brasil, que seria de matriz popular, regionalista e folclórica. No primeiro grupo temos figuras como Euclides da Cunha, Sílvio Romero e Roquete Pinto. Para a segunda “corrente” se enquadram, com as devidas diferenças, Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Monteiro Lobato51, entre outros. Posteriormente aparecem nomes ligados ao modernismo, ao regionalismo e em outras correntes que irão dar continuidade/romper com tais visões em torno do problema da brasilidade, da identidade nacional dessa comunidade imaginada chamada Brasil e das suas particularidades regionais. Obras seminais como Casa grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda; Macunaíma (1928), de Mário de Andrade; Cobra Norato (1931), de Raul Bopp são, às suas maneiras, obras marcantes de reinterpretações do Brasil como nação a partir, principalmente, de 1930 quando intensas mudanças políticas, econômicas e sociais necessitavam de novas bases de leituras e sustentações. A Amazônia e o Acre não ficam incólumes às influencias do cânone nacional dos renomados intelectuais e também produz o que muitos ainda hoje apontam ser um conjunto literário e historiográfico menor, regional, de expressão amazônica onde muitos são herdeiros de Euclides da Cunha na forma de interpretação da região, nas tramas narrativas, na estética utilizada e nos conceitos norteadores das abordagens dominantes52. Essa historiografia historicista, como nos adverte Walter Benjamin53, caracteriza-se pelas pretensões totalizantes de uma história uniforme e nesse caso específico, uma “história nacional” e até “regional” quando equaliza e essencializa as pessoas, as regiões e a nação. Passa a haver um modelo de narrativa nacional, regional e local no singular e que se quer englobante ao todo tomado como “sagrado” objeto de estudo. O que não se encaixa nesse princípio passa a ser apontado como problemático à idealização da coletividade (nacional, regional, local) como artefato unificado e historicamente coeso. Podemos perceber essas tentativas de encaixe subordinado do regional ao nacional em várias obras e autores que escreveram sobre a Amazônia e que são reconhecidos como intelectuais de renome na região em seus campos de estudos e produções narrativas. Sem detalhar e esgotar a lista, os múltiplos estilos, o tempo de escrita, as influências recebidas e campos de atuação, citarei alguns, entre outros de reconhecida importância intelectual e de suas respectivas obras: Alberto Rangel (Inferno verde); Ferreira de Castro (A Selva); Abguar Bastos (Certos caminhos do mundo); Arthur Cesar Ferreira Reis (O Seringal e o seringueiro); Djalma Batista (O Complexo da Amazônia); Samuel Benchimol (Amazônia: um pouco antes e além depois); Leandro Tocantins (O Rio comanda a vida). Há de maneira geral uma imagem bastante generalizada, em torno de uma região temida pelas doenças endêmicas que comumente infestavam os corpos de qualquer adventício temporão que desembarcasse na zona desconhecida e exótica. A imagem da morte, espreitando a todos, rondava com temor a mentalidade coletiva nessas décadas inaugurais do século XX. Comumente, associa-se de forma longeva a Amazônia como uma terra de extremos. Ora descrita como uma região dadivosa na possibilidade de riqueza baseada nas peripécias de homens audaciosos; noutros momentos aparece como um lugar de castigo, de punição e de infortúnio aos que nela se aventuram. Aparece em algumas narrativas mais tardias o lamento pela perda do protagonismo da região após a época áurea da riqueza do látex, da necessidade de investimentos estatais e da imperativa diversificação econômica para soerguer a Amazônia novamente ao patamar anterior. Quando o escritor Euclides da Cunha tem seu primeiro contato com a Amazônia em 1905, ele de pronto afirma existir uma Amazônia real e outra imaginada que predominava com força na memória 51 SOUZA, Identidade nacional e modernidade brasileira, 2013. 52 MURARI, Natureza e cultura no Brasil (1870-1922), 2009; HARDMAN, A vingança da hiléia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna, 2009. 53 BENJAMIN, 2013. 21 coletiva e em escritos diversos. Esta última vertente seria aquela presente nos relatos de cronistas e viajantes desde o século XVI. No capítulo Terra sem história, de sua obra póstuma A margem da História, ele afirma que a imagem real era inferior à subjetiva, tecida ao longo dos tempos. Segundo suas impressões desejadas como “objetivas e reais” e constituídas pelo impacto da visita in loco, faltava harmonia estética e beleza equilibrada à Amazônia54. Nesse meio físico — alegava ele — o homem chegou como um “intruso impertinente”. Aparecera sem ser esperado e querido quando a natureza era ainda uma opulenta desordem55. A Amazônia e o Acre apareciam aos olhos euclidianos como pertencente à outra era geológica. Mais que um descompasso temporal e físico, havia também um descompasso civilizatório e cultural. Era uma região que tinha tudo (riqueza extrativa) e faltava tudo (obras materiais e valores imateriais). Ele alega ainda as ausências de artes, ciências, história e compreensão abalizada sobre aquele espaço. Por isso Euclides da Cunha considerou que na Amazônia o brasileiro, mesmo pisando em terras pátrias, era um estrangeiro. A própria região era vista como espaço selvagem que impressionava a civilização distante, aquela do litoral56. A partir do que já foi exposto até aqui, entendemos que o Acre como espaço social, geográfico e político é uma invenção, tal qual a Amazônia. Constitui-se em uma comunidade imaginada, re-imaginada, narrada e re-narrada por múltiplas vozes durante a primeira metade do século XX. Em muito, essas operações ocorreram de fora para dentro em relação ao Acre e a Amazônia, mas também operou no sentido inverso e teve como centro irradiador as vozes locais que irão reverberar suas construções discursivas em jornais, relatórios, livros e fotografias. Contudo, ocorreram também interpolações e hibridizações para além do dualismo geo-cultural — sertão versus litoral — que se apresenta também com vigor narrativo perene. Como bem apresenta e detalha Ana Pizarro, Como poucos lugares, a selva é o centro propulsor de energias do imaginário. São energias que se dispõem perante o homem com suas próprias tensões e fraturas internas. É um universo mítico e mitificante ao mesmo tempo. Sua proximidade e vivencia estimulam a necessidade de expressão, movida, possivelmente, pela grandiosidade, pela beleza, pela riqueza imaginária da região, pela sensação única de sua experiência. A sensibilidade da escrita brota à flor da pele para expressar os abismos anteriores, e isto faz com que exista uma importante narrativa de autores – em nível nacional e internacional, não somente amazônicos ou procedentes dos países da região – na selva amazônica e escrita a partir de diferentes situações e perspectivas57. Reforçado pelo o que está dito acima pela intelectual chilena, todas essas referências descritas brevemente ao longo dessa introdução carregam imagens do passado e do presente em relação ao Acre, e a Amazônia, e as suas gentes. São imagens mentais e imagens visuais poderosas. Sobre as imagens visuais como artefatos e fontes históricas, cabe lembrar que elas carregam mais memória e mais futuro que o ser que a olha e aquele que a produziu58, nos dizeres de Didi-Huberman. Ou seja, jamais esgotaremos os possíveis sentidos motivadores de quem as produziu. E olhamos para elas sempre com o olhar do presente, algo que terá continuidade depois de nós com quem em outros contextos porventura queira re-iniciar a jornada inacabada da “remontagem” historiográfica no contínuo movimento de explicar e desexplicar, dobrar e desdobrar o vivido ou, o que foi tecido (plicas) pelas vidas coletivas e individuais. Nossas fontes primárias de pesquisa se ancoram em obras literárias (romances e poesias), produções memorialísticas e historiográficas, relatórios administrativos, fotografias, charges, artigos e maté54 CUNHA, 2000. 55 Ibidem. 56 Ibidem. 57 PIZARRO, Amazônia, as vozes dos rios: imaginário e modernização, 2012, p. 177. 58 DIDI-HUBERMAN, 2017a, p. 16. 22 rias jornalísticas59 produzidas durante o período da vigência do Acre como Território Federal brasileiro (1904/1962), dando ênfase maior às três primeiras décadas desse recorte temporal. No que diz respeito particular aos periódicos e aos romances, Benedict Anderson nos diz que essas duas formas “proporcionaram os meios técnicos para ‘re-presentar’ o tipo de comunidade imaginada correspondente à nação”60. Principalmente os jornais, que trazem imagens, poemas, romances seriados, mensagens oficiais, o cotidiano social, policial, político e cultural de uma determinada sociedade. Isso torna o jornal um produto arbitrário e profundamente ficcional ao organizar de maneira justaposta coisas que não tem necessariamente conexões entre si e os agentes ali retratados não se conhecem mutuamente em sua quase totalidade. O vinculo imaginário maior é apenas a coincidência cronológica, do dia da publicação, que traz a sensação do avanço do tempo vazio e homogêneo61. Por fim, o jornal proporciona a experiência do efêmero pela sua obsolescência diária, ele é o “Best seller de um dia”, consumido como um produto de massa a cada dia que se segue62. Sem negar ou se opor a Benedict Anderson, utilizo Machado de Assis que em tom mais retumbante na sua coluna Bons Dias!, de junho de 1889, precisou a perenidade dos jornais como documentos do tempo. Diz o bruxo do Cosme Velho que “jornal antigo é melhor que cemitério, por esta razão que no cemitério tudo está morto. Enquanto que no jornal está vivo tudo. (...) as noticias parecem recentes; é a galera que sai, a peça que se está representando, o baile de ontem, a romaria de amanhã, uma explicação, um discurso, dois agradecimentos, muitos elogios; é a própria vida em ação”63. Nessa remontagem em particular por mim operada a partir desse conjunto variado de fontes, o texto está dividido em quatro seções principais que dialogam entre si através de temas centrais que se articulam com o problema de pesquisa anteriormente apresentado. Ao mesmo tempo, tentei fazer com que cada capítulo mantivesse determinada independência em relação aos outros e que pudessem ser lidos sem a ordem sequencial estabelecida no sumário. Isso é complementado pela tentativa também de não estabelecer uma sequencia cronológica interna e externa a eles que criasse uma continuidade que fosse do primeiro ao último capitulo, pois eles não seguem necessariamente o encadeamento linear e sim as temáticas internas de cada um deles como foi já afirmado. A primeira dessas seções é o capítulo I, intitulado O Acre como deserto conquistado: amansar e civilizar como missão que tem a centralidade da abordagem assentada na discussão em torno das representações narrativas do Acre Federal como deserto, sertão, espaço vazio, terra sem história e um peso incomodo para a nacionalidade brasileira a partir de 1904. É discutido como a chamada conquista e colonização do Acre trazem, nessas múltiplas narrativas presentes nas fontes consultadas e de onde emergem em maior grau os elementos relacionados a temporalidades em progresso, construções de identidades apontadas como originais e a pretensa vitória sobre a natureza. Emergem ainda muitas vozes que relacionam a perenidade da decantada barbárie e do continuado atraso que não teriam sido vencidos por parte dos agentes do progresso, estes no máximo teriam imprimido uma superficial e às vezes falsa imagem de redenção. Há um Acre por se fazer, incompleto na sua busca de redenção. No capitulo II, Bichos, florestas e doenças: o outro mundo selvagem, as discussões estão centradas em dialogar, a partir das múltiplas fontes já referenciadas, em torno dos “incômodos” naturais e humanos que confrontavam os projetos civilizadores e colonizadores. Temos então a fauna e flora em seus ambientes naturais vistas como ativos relacionados aos usos humanos ou atrapalhos; emergem sen59 Quase todos os periódicos (jornais e revistas) aqui citados e utilizados foram consultados através do site <memoria.bn.br> da Fundação Biblioteca Nacional (doravante FBN). Quando não, serão indicados no texto ou em nota informativa. 60 ANDERSON, op. cit., p. 55. 61 Idem, p. 65. 62 Idem, p. 67. 63 Gazeta de Noticias, 14 de julho de 1889, ano XV, número 165, p. 01. Acervo da FBN. 23 tenças sobre os ditos ares corrompidos e abrasivos que predominavam na região; tomam proeminência as doenças endêmicas e epidêmicas que atravancavam a permanência de corpos saudáveis na região, algo que se somava a decantada má alimentação disponível no Acre. O colonizador que chega está imbuído de enfrentar essas “ameaças” e adversidades naturais e humanas para a realização da obra civilizadora tão desejada e tão distante de ser alcançada porque é sempre um devir. No capitulo III, Indígenas e caboclos no caminho da conquista e da colonização, a centralidade das discussões está voltada para tratar das narrativas sobre a “natureza selvagem” das populações indígenas e mestiças, da propalada e vista como autoevidente incapacidade dos indígenas de realizarem trabalho nos marcos da lógica capitalista, de como eles são invisibilizados nessas narrativas e apresentados como destituídos de direitos e de subjetividades, animalizados ou humanizados como inferiores ao homem branco64. Esses deslocamentos geográficos, nacionalistas, culturais, políticos e ideológicos sofridos por essas populações levaram a um processo de apagamento progressivo de cunho físico e identitário dessas gentes e de muitas sociedades que já estavam estabelecidas antes da chegada dos agentes conquista e da anti-conquista65. No capítulo IV, intitulado As disputas pelo Acre: narrativas do risível e do heróico, o foco está voltado para discutir como reverberou na imprensa e outros meios discursivos da época as disputas do Brasil com a Bolívia pelo Acre e como tudo isso se vincula posteriormente às construções representacionais sobre o Acre e os acreanos de forma duradoura. Há ainda uma abordagem em torno das narrativas sobre os “heróis acreanos” e dos mitos de origens do Acre como uma comunidade imaginada nas suas dimensões internas e locais, que dialogam no contexto da nacionalidade brasileira, do regionalismo e em relação a outras nacionalidades de fronteiras (Peru e Bolívia). 64 O termo branco ou homem branco remete aqui ao homem colonizador, conquistador e que mesmo não sendo branco está imerso na branquitude. Aproxima-se do que Anna Tsing chama de homem iluminista. Nos dizeres desta autora, “ele tem um gênero, uma raça, uma religião, uma teoria da propriedade e uma ideia sobre si mesmo; essas características permitem ele generalizar”. In: TSING, Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno, 2019, p. 204. 65 PRATT, Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação, 1999. 24 CAPÍTULO I: O ACRE COMO DESERTO CONQUISTADO: AMANSAR E CIVILIZAR COMO MISSÃO Acalanto do seringueiro (...) Como será a escureza Desse mato-virgem do Acre? Como serão os aromas A macieza ou a aspereza Desse chão que é também meu? Que miséria! Eu não escuto A nota do uirapuru!... Tenho de ver por tabela, Sentir pelo que me contam, Você, seringueiro do Acre, Brasileiro que nem eu. Na escureza da floresta Seringueiro, dorme. Mario de Andrade66 66 Cf.: ANDRADE, O clã do jabuti, 2016, p. 36. O poema Acalanto do seringueiro foi escrito por Mário de Andrade em 1925 e, junto com outro chamado Descobrimento, faz parte do duo intitulado Dois poemas acreanos publicados dois anos depois na sua obra Clã do Jabuti. Na epígrafe acima, trago o fragmento dos versos da segunda estrofe em que o eu lírico do autor se enternece em relação ao seringueiro acreano-brasileiro morador e trabalhador das/nas florestas tropicais da Amazônia sul - ocidental do Brasil. Esses poemas se inserem na esteira do Movimento da Poesia do Pau-Brasil67 apresentado por Oswald de Andrade em consonância com pensamento de outros modernistas paulistas que irão pregar um nacionalismo mais autêntico, simples e de origem primitiva (no sentido de original, primeiro, não maculado pelo estrangeirismo). O seringueiro é então tomado como um desses tipos de brasileiro primitivo, que habita um lugar onde a natureza é apontada como virgem, escura, de chão e aromas desconhecidos e que chega ao autor pelas vozes de terceiros, por tabela. Poucos anos depois, Mário de Andrade perambula pela Amazônia com intuito de não mais ver por outros filtros aquele chão que ele dizia ser também dele. Entre 08 de maio e 15 de agosto de 1927 o autor percorre alguns espaços da região: passa por Belém, Manaus, Santo Antônio do Madeira e chega até Iquitos no Peru. Contudo não passa pelo território acreano, que pareceu lhe inspirar na sua viagem dois anos antes dela ocorrer68. Tomo o poema como ponto de partida deste capítulo para pontuar a apropriação pela estética modernista do Brasil dito profundo, autêntico e dos sertões por esse intelectual paulistano ao incluir o Acre na nacionalidade e o seu tipo essencializado do seringueiro como habitante característico daquelas paragens ditas escuras e incorporadas ao Brasil havia pouco mais de duas décadas. Partindo desse referencial, tenho como foco neste capitulo centrar cronologicamente no Acre do período que se estende desde a sua organização administrativa pela União em 1904 até próximo ao fim do Território Federal em 1962. Apresentar as algumas análises das múltiplas vozes de sujeitos contemporâneos ao período através de seus escritos memorialísticos de fundo historiográfico, matérias jornalísticas, fotografias e obras literárias que tem o Acre como foco, procurando destacar nessas narrativas as representações acerca do Acre como localidade distante, isolada, vazia, sem civilização constituída e fora da ordem nacional brasileira. E como este território, marcado por múltiplas territorialidades, é olhado/ pensado pelos (e através dos) diversos sujeitos (ficcionais ou não) que por ele palmilharam ou o viram através de múltiplos filtros. Para discutir tais questões, lidamos em muito com o uso de algumas dessas produções literárias como fontes primárias e publicadas dentro do recorte temporal aqui estabelecido. O ano de publicação da primeira edição das mesmas e os respectivos gêneros encontram-se destacados entre parênteses. Temos então Cartas do Acre (1910, memórias), de Antônio José de Araújo; Deserdados (1922, romance), de Carlos de Vasconcellos; A Represa: romance da Amazônia (1942, romance), de Océlio Medeiros; Certos caminhos do mundo (1936, romance), de Abguar de Bastos; Epopéia acreana (1919, poesia épica), de Farias Gama; A epopéia acreana (1939, relato histórico), de Freitas Nobre; A primeira insurreição acreana (1904, memória), de José Carvalho; A conquista do deserto ocidental (1940, relato histórico), de João Craveiro Costa; e, No coração do inferno verde, de Alberto Diniz (1927, memórias). Cabe realçar que neste ensaio visamos analisar essas narrativas textuais genericamente como crônicas, entendendo os textos (as crônicas) como representações discursivas de suas épocas, datadas no tempo (cronos) e construídas pelos seus autores a partir de experiências e visões de mundo que tinham em relação ao Acre. Narrativas em trânsitos constantes entre o real e o ficcional, a memória e a história, elementos objetivos e subjetivos, sem fronteiras plenamente definidas nos campos e correntes da literatura e da historiografia. Por isso me ancoro em Alessandro Portelli e, como ele diz, “não temos, pois, a 67 Esse texto-manifesto foi publicado originalmente no jornal Correio da Manhã em 18 de março de 1924. Acervo da FBN. 68 Em 1976 foi publicado pela primeira vez o seu relato dessa viagem, sob o título de O turista aprendiz. Recentemente, o IPHAN reeditou esta obra. Cf.: ANDRADE, O turista aprendiz, 2015. 26 certeza do fato, mas apenas a certeza do texto: o que nossas fontes dizem pode não haver sucedido verdadeiramente, mas está contado de modo verdadeiro”69. Desta forma os textos também são fatos, são materialidades culturais e históricas que nos possibilitam criar pontes com o tempo pretérito. O que é contado tem interesses atravessados no tempo e entre os tempos. Esses textos “podem ser analisados e estudados com técnicas e procedimentos em alguma medida controláveis, elaborados por disciplinas precisas como a linguística, a narrativa ou a teoria da literatura”70. Como se verá, não mergulho com densidade em teorias linguísticas ou literárias, privilegiando a narrativa em si e seu contexto em diálogos com múltiplos campos. Creio que um aspecto importante a ser discutido de partida é a perspectiva de distância que havia em relação ao Acre e a Amazônia por parte de muitas dessas narrativas literárias, textos jornalísticos, relatos de viagens e obras memorialistas. As distâncias não são apenas aquelas medidas em quilômetros ou milhas, mas as das paisagens geográficas declaradas incomuns, dos modos de vida percebidos como estranhos, do ecossistema tropical visto como inapropriado ao humano, da brasilidade dita incompleta ou anunciada como esquecida nos interiores desses sertões. Há uma distancia que é estética, de (des)gosto, de (des)semelhança e de afeição ou rejeição. Até mesmo internamente à região, parte das vozes letradas que constrói textos escritos, se posiciona em muitos momentos como sujeitos diferentes, incomodados e descentrados dos demais que vivem como eles no mesmo espaço geo-cultural acreano e amazônico. São acima de tudo sujeitos que se sentem metropolitanos vivendo deslocados na selva inculta e com gentes das mesmas características reducionistas. Mesmo quando apontam a riqueza extrativa existente como carro chefe da economia da região e sua redenção presente ou futura, as carências são realçadas com mais intensidades porque essa riqueza tem direcionamento exógeno, atrasa e dilapida a possibilidade de progresso local, seja ele humano ou material. Ou ainda, as ausências locais de gente preparada e de uma base material sólida complementariam o descompasso com o restante do país. A natureza e a sociedade imperfeitas, esta última uma espécie de proto-sociedade, também são elementos que brotam com muita intensidade nas escritas aqui selecionadas para análise. Há natureza demais e sociedade de menos. A natureza emerge sempre como o oposto da civilização, servindo apenas para ser explorada naquilo que tem de útil ao mercado consumidor nacional/mundial. E para os indivíduos pobres, a natureza é narrada como fonte de sobrevivência direta e indireta através da exploração das suas forças de trabalho conjugada com outros multiusos desse ecossistema. A sociedade, por definição atrasada, ainda não teria atingido o patamar mínimo pensado como o ideal: cidades com os signos da modernidade em voga e gentes civilizadas compondo seus estratos mais elitizados. Os dramas humanos e o descompasso histórico-cultural apresentados nas obras/fontes citadas giram em torno dessas questões relacionadas com a natureza e suas multiespécies e com as sociedades humanas em formações. A natureza não é percebida plenamente como paisagem humana por esses olhares. Isso porque ela não foi domada e materializada pela cultura, pelos signos da civilização dita moderna, do progresso econômico e material que espelhassem o domínio humano de fato — ou desejado — sobre o mundo físico e outros seres vivos. É um olhar essencialmente colonial, em oposto a uma definição de paisagem mais englobante e complexa como pensada por Anna Tsing. Esta autora nos diz que paisagem “é um ponto de encontro para os atos humanos e não humanos e um arquivo de atividades humanas e não humanas do passado”71. Essa visão é negada, pois deriva do tradicional olhar colonial das ausências o papel atribuído ao colonizador, o elemento dito pioneiro, que é definido como desbravador e o desvirginador, alguém em luta constante com a natureza exuberante que ele encontra ao chegar ao propalado deserto, que também 69 PORTELLI, A Filosofia e os Fatos, 1996, p. 62. 70 Idem. 71 TSING, 2019, p. 17. 27 apresentaria a decantada barbárie da sociedade anárquica que não teria atingido ainda seu equilíbrio histórico e evolutivo. O DESERTO E AS DISTANCIAS: NATUREZA, NACIONALIDADE E HISTÓRIA O escritor Euclides da Cunha no seu texto Um clima caluniado, publicado postumamente na primeira parte dos seus ensaios na obra intitulada À margem da história em 1909, traz interessantes impressões sobre o Acre e seu povoamento quando ali72 esteve em 1905. Aqui estamos utilizando os textos reunidos na edição da obra Um paraíso perdido, publicada em 2002 pelo Senado Federal. Em sua narrativa ele assevera que: O povoamento do Acre é um caso histórico inteiramente fortuito, fora da diretriz do nosso progresso (...) em menos de trinta anos, (...) era uma vaga expressão geográfica, um deserto empantanado, a estirar-se, sem lindes, para sudoeste, definiu-se de chofre, avantajando-se aos primeiros pontos do nosso desenvolvimento econômico. E naquele extremo sudoeste amazônico, quase misterioso (...) cem mil sertanejos, ou cem mil ressuscitados, apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um modo original e heróico; dilatando a pátria até aos terrenos novos que tinham desvendado. (...) Abram-se os últimos relatórios das prefeituras do Acre. Nas suas páginas maravilha-nos mais do que as transformações sem par que ali se verificam, o absoluto abandono e o completo relaxo com que ainda se efetua o seu povoamento73 (Grifos meus). Interessante notar nas passagens acima destacadas, o fato de Euclides da Cunha entender que, no caso acreano, o Estado brasileiro não foi um agente incentivador da ocupação daquele espaço geográfico além da fronteira política nacional até então reconhecida. Nesse nosso [dele] progresso, o autor se coloca como parte compromissada com a nacionalidade brasileira e reconhece que aqueles nomeados sertanejos, chamados de enjeitados, fizeram um empreendimento heroico de cunho privado e sem sabê-lo. O espaço geográfico não é negligenciado pelo autor, que destaca negativamente seu pouco povoamento territorial pelo colono, algo percebido como vago e vazio em adensamento humano, quando usa da expressão “vaga geográfica” como descrição do território acreano antes dele pertencer ao Brasil. Lugar de natureza misteriosa para o celebrado escritor e aqueles que como ele habitavam o litoral distante e antípoda, espaço por excelência de uma civilização que ali nos sertões acreanos ainda não tinha chegado. Não chegou porque a condução de ocupação do espaço selvagem não fora realizada pela burocracia estatal, pelos saberes objetivos e racionalizados, lamenta Euclides da Cunha. Mas por sertanejos que ali ressuscitaram da morte que os espreitavam nos sertões das caatingas de onde partiram para emergirem nos trópicos úmidos da Amazônia acreana. O Acre era um terreno novo, diz o autor, tanto em perspectiva geológica incrustada no tempo de longa duração quanto naquilo que tangia ao ordenamento político da pátria brasileira, para a qual homens simples realizavam sem saber uma obra para a nação que ali os teria esquecidos. Ainda no tempo curto, sua sentença política de denúncia dos problemas locais concentra-se na crítica aos prefeitos departamentais ali enviados a partir de 1904 pelo ministério da justiça, homens que segundo Cunha pouco faziam para tirar do lugar a marca do abandono público. Essa visão vai ter validade duradoura nas interpretações sobre o Acre em narrativas memorialistas e de cunho historiográfico posteriores. Tomemos como exemplo inicial o escritor e político paraense Abguar Bastos, que escreveu a apresentação e as notas do livro de João Craveiro Costa A conquista do deserto ocidental: subsídios para a história do Território do Acre, quando esta foi lançada em sua terceira edição no ano de 1940. O título original que o autor deu à sua obra em vida foi O fim da epopéia, quando se deu o 72 O ali remete ao tempo pretérito dos autores e fontes citadas em relação ao agora, em contraposição ao aqui do tempo presente e do meu lugar de fala. Mesmo se quisesse usar o aqui em sentido geográfico do meu lugar de fala, vejo como problema porque o geográfico em seu sentido físico não é estático e a natureza biológica também não é. Ou seja, o Acre visitado e palmilhado por Euclides da Cunha e tantos outros na mesma época era outro Acre que não o de agora e dos sujeitos que o habitam atualmente. 73 CUNHA, 2000, pp. 150/151. 28 lançamento da primeira edição na década de 1920. Portanto, o título pelo qual ela é mais conhecida foi adotado por terceiros após sua morte em 193474. Parece que a opção pela expressão deserto tinha um apelo mercadológico maior à época e visava corresponder aos imaginários já bastantes cristalizados sobre a região Amazônica e sobre o Acre em particular, algo que Euclides da Cunha deu visibilidade angular. A centralidade dessas narrativas e de seus intrínsecos imaginários se encontra ancorada com intensidade no ecossistema florestal tropical. Por isso, nas palavras de Ana Pizarro, a natureza desponta como terreno fértil para a emergência de variadas representações por que: A selva é uma espécie de basso continuo nos imaginários da Amazônia, uma presença inquietante que sempre está latente no discurso oral e no texto escrito, como espaço, como figura, como ruído ou como silêncio. A selva é como fogo para o viajante que a vê a partir do rio, uma monotonia variável, uma beleza em permanente transformação. O tempo passa. É como se a selva não tivesse tempo, ainda que este apareça definido não só pelas enchentes e mudanças – o rio muda permanentemente de leito –, mas também pelo ritmo das aves e animais, na madrugada em que estes saem a comer (...)75. Mergulhado nessa arraigada visão de mundo descrita acima, o autor paraense reproduz em grande medida os essencialismos apontados na análise de Ana Pizarro como recorrentes. A partir das imagens de movimento e de estagnação, a predileção pela expressão deserto é sintomática na apresentação que Abguar Bastos faz à obra de Craveiro Costa, ao utilizá-la de forma amiúde, conforme aparece no fragmento em destaque a seguir: Era o deserto. Contudo, ali nada havia de Saara, de Líbia, de Sibéria ou de Cariri. Havia, ao contrario, uma famosa mesopotâmia que se prolongava entre o Juruá e o Purus. (...) Entretanto, para os civilizados do ocidente, era mesmo o deserto. Porque só os índios flutuavam nas margens dos seus rios e só os bichos vagavam pelas extensas e misteriosas paragens76. Abguar Bastos usa a nomenclatura deserto dezesseis vezes na sua introdução comentada de trinta e nove páginas à obra de João Craveiro Costa. Já este autor usa a mesma expressão apenas dez vezes ao longo de mais de trezentas páginas de seu livro. Bastos é mais incisivo na apropriação de um termo consagrado por Euclides da Cunha cerca trinta anos antes sobre o que era o Acre. Algo que perdura, portanto, de maneira duradoura após o autor d’Os Sertões ter definido perante as elites do cânone literário, com reverberações na imprensa, no mundo político, no meio cientifico e acadêmico, o que era o Acre e a Amazônia no alvorecer do século XX. Contudo Abguar Bastos deixa claro algo que em seus antecessores já havia sido bem compreendido: a desertificação — no sentido de ausência — era do humano caracterizado como civilizado, era das rarefações colonizadoras naquele espaço geográfico percebido como ainda não sendo plenamente dominado e domado, onde indígenas e bichos vagavam pelas florestas sombrias e chegavam inadvertidamente nos espaços das pequenas vilas urbanas, colocações e barracões. Em sua obra Certos caminhos do mundo77, cujo subtítulo é Romance do Acre, Bastos simbolicamente aponta o cearense como sendo mais semelhante a uma planta de ambiente árido do que ao humano quando diz que “no deserto só o cactus não morria. No Acre só o cearense resistia ás maldades do tempo. O cearense era o cactus do Acre”78. 74 Uma biografia sobre João Craveiro Costa foi lançada em Alagoas, de onde era natural, em 1983. Cf.: SILVEIRA, Craveiro Costa, 1983. 75 PIZARRO, 2012, p. 176. 76 BASTOS, p. 07. In: COSTA, 1940. 77 Uma análise sobre esta obra pode ser encontrada em: ALBUQUERQUE & ISHII, A Amazônia acreana de Abguar Bastos, 2013. Os autores assim dizem sobre essa escrita de Abguar Bastos: “ecoando percepções e leituras sobre mundos amazônicos, presentes em inúmeros relatos de viagem, lavrados por diferentes homens e mulheres de ciência, que passaram pelos rios e cidades amazônicas, o enredo de Abguar Bastos é impregnado não da crença romântica de um re-encontro do homem com a natureza, mas da perspectiva de uma natureza ameaçadora, reguladora, condutora da vida” (Idem, p. 123). 78 BASTOS, Certos caminhos do mundo, 1936, p. 54. 29 Interessante destacar que José Carvalho, cearense que defende o legado de ter sido a liderança maior da chamada primeira ação armada contra os bolivianos em 1898, não usa em seu texto o termo deserto ou outro correlato. Essa obra memorialística intitulada Primeira Insurreição acreana, impressa na cidade de Belém, veio a público em 1904. O autor faz questão de dizer que seu pequeno opúsculo é “documentado”, para atestar a “verdade” da história acontecida e daquela narrada como sendo plenamente equivalentes e objetivadas no texto pelos documentos escritos anexados (atas e cartas). Para enfatizar tal crença, em epígrafe de abertura ele diz: “mereça esta narração absoluto despreso dos meus concidadãos, si ella não for a expressão da mais restricta verdade”79. Claramente esse autor se deixa encantar, como era de praxe, pelo fetiche central da historiografia em voga à época que monumentalizava o documento oficial. Contudo não ocorre o mesmo quando buscamos o seu olhar sobre os espaços geográficos do território nacional ainda não inseridos plenamente na lógica discursiva da dualidade litoral versus sertão estabelecida por Euclides da Cunha, após este lançar em 1902 o seu livro “vingador” que o torna afamado. Em nenhuma passagem do impresso, de cerca de vinte páginas, José Carvalho usa a expressão “deserto”, “vazio” ou “sertão”, adjetivações que posteriormente escritores, memorialistas, jornalistas, médicos e políticos irão inseri-los em seus textos sobre o Acre e a Amazônia com bastante frequência e como termos qualificadores inquestionáveis e obrigatórios pelo cânone em voga. Como bem aponta Luciana Murari80, conhecer a fisionomia da natureza do país era um aspecto angular na perspectiva nativista-cientifica daquele período. A nacionalidade e a ocupação nesses espaços distantes e de ocupação “à gandaia”, “fora do nosso progresso”, eram percebidas como erráticas e que só poderiam ser realizadas com a compreensão objetiva e cientifica do espaço geográfico. Há a certeza de existir incompletude entre homem e meio, de uma falta de harmonia entre o humano dito civilizado e a natureza selvagem, diferenças entre humanos civilizados e aqueles apontados como mergulhados na barbaria. No Acre, a terra e os humanos e não humanos estariam então literalmente à margem da história da nação, ou da história desejada como sendo a da nação. Uma história narrada e projetada desde o século XIX com sendo de trajetória retilínea, homogênea, integradora, cristã e linguisticamente do português brasileiro81. Nessa tentativa de homogeneizar a nacionalidade — em seu território geográfico — toda fronteira é por definição um campo de frentes que muitas vezes se chocam e se desarmonizam. A fronteira é um front, incluindo o seu sentido bélico (confronto/enfrentamento) de raiz etimológica mais direta a este aspecto e originada do latim. Na sua existência manifesta, carrega interesses diversos e põe em contatos muitas vezes não desejados ou esperados pessoas de perfis antagônicos em sentidos político, nacionalista, ideológico, linguístico, cultural, religioso, econômico, ambiental, etc. Um desses enfrentamentos ocorre em relação à natureza e suas múltiplas paisagens, algo que acontece com a aproximação do colonizador de outras práticas diferentes daquela a que ele estava adaptado e imerso anteriormente. Essa visão aparece no clássico texto de Frederick J. Turner, publicado em 1893 e intitulado a O significado da fronteira na história americana em que ele trata do encontro entre a civilização dos pioneiros migrantes e o Oeste selvagem norte-americano, espaço identificado com a natureza virgem ou wilderness. O historiador ambiental David Arnold afirma que a tese da fronteira de F. J. Turner seria uma expressão máxima de determinismo ambiental, pois ela só tem sentido se haver espaço considerado vazio, inexplorado, selvagem e virgem82. Segundo Arnold, Turner aponta para a necessidade do colonizador que chega naquela fronteira de se adaptar ao meio físico e cultural novo para poder sobreviver. Novas rou79 CARVALHO, A Primeira Insurreição Acreana, 1904. 80 MURARI, Brasil, ficção geográfica, 2007. 81 SADLIER, O Brasil imaginado, 2016. 82 ARNOLD, La naturaleza como problema histórico, 2000, p. 95. 30 pas são necessárias, os alimentos locais disponibilizados pela fauna e flora são diferentes, existem outras formas de construção de casas e de arar a terra, de plantar e o que plantar. Esse colonizador turneriano das terras do Oeste americano — dessa fronteira em movimento — tem que deixar de ser europeu e se tornar “colono americano”. É o momento em que uma terceira identidade surge, proto nacional, do sujeito americanizado83 que faz brotar naquelas paragens um emergente espírito nacional. No caso do Acre, pensando de modo alusivo, encontramos a construção do acreano como sendo a síntese desse nacional de origem sertaneja, desse brasileiro mestiçado, migrante ou nascido em um lugar que até 1903 foi objeto de disputa territorial de caráter transnacional. Contudo, esse processo é complexo e permeado de superposições com outras identidades tipológicas narradas como indígenas, brancas, caboclas, sertanejas, nordestinas, brasileiras, turcas, sírias, peruanas, bolivianas, etc. Essas narrativas são sempre tomadas a partir de posições que carregam determinados conteúdos valorativos em contextos relacionais, mas em grande medida o senso comum apresenta essas identidades como sendo essencializadas e perenes. Euclides da Cunha já havia antecipado na sua obra Os Sertões que um dos problemas da integração nacional e, portanto, da identidade brasileira, era a monumentalidade dos sertões com seus espaços vazios desmedidos, tediosos e que apequenavam o humano em uma situação de marasmo onde o tempo corria devagar. Assim, para ele, o humano nesse lugar mitificado como sertão se aproximaria mais de um elemento da natureza do que da história. A síntese da proposição euclidiana então aponta que onde há muito espaço vazio, há pouco ou nenhum tempo humano que carregue as marcas da obra humana. O que há é então muita geografia, como pouca ou nenhuma história84. Tempo e espaço em descompasso, em desencontros com a civilização, com a história e com o progresso. Esse nominado “vasto” território do Acre foi objeto de extensa matéria de autoria do crítico literário José Veríssimo e publicado pela então prestigiosa revista carioca Kosmos em sua segunda edição no ano de 190485. Em cerca de oito páginas são traçadas as características climáticas, fluviais, demográficas, recursos naturais e o que seriam os aspectos sociais da região acreana. O clima é descrito como péssimo, mau, “quente e umidissimo”, sendo então um território de doenças agravadas pela falta de higiene da parca população residente. A solução seria a chegada do “progresso” e da “civilização”, que resolveriam os males humanos e naturais existentes naquele Acre recém incorporado ao Brasil. O exemplo de “sucesso” civilizacional apresentado na matéria é a região do rio Madeira, onde hoje se situa a cidade de Porto Velho e que antes era também um lugar descrito como “inóspito”, mas que teria passado por melhorias dos “costumes” e das habitações da população que seguiram um padrão mais “civilizado” de vida que no Acre de então. A matéria é intitulada Território do Acre e traz um mapa do Acre junto com diversas fotografias que servem como ilustrações do “atraso” do lugar e da sua natureza “selvagem”, pois duas delas são de malocas dos indígenas Apurinãs; três são de rios; outra tem como centralidade a árvore de uma samaúma e por fim, duas outras expressariam os agentes do progresso e da civilização que em dias mais tardios brotaria daquela terra: militares do 36º batalhão do exército brasileiro estacionado onde hoje é o segundo distrito da cidade de Rio Branco. Estes últimos eram humanos e civilizados, agentes exógenos da ordem e da disciplina estatal em falta no Acre, cujo comando executivo será geralmente de oficiais engenheiros ou médicos militares a partir de 1904. Essas duas últimas profissões estavam identificadas com o ideal de salubridade e bom gosto citadino, dos corpos disciplinados e do bom uso do espaço público86. 83 Idem, p. 97. 84 MURARI, 2007, pp. 49/50. 85 Kosmos, fevereiro de 1904, ano I, nº 02, p. 07/15. Acervo da FBN. A matéria é assinada pelo autor apenas com a letra “V”. O texto é atribuído posteriormente ao crítico literário e escritor José Veríssimo (1857/1916) e também foi publicado em uma coletânea dele intitulada Estudos amazônicos pela UFPA em 1970. 86 Ver, entre outros: LIMA, Um sertão chamado Brasil, 1999; ROCHA, A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro – 1870/1920, 31 Os poucos povoados acreanos são descritos nessa reportagem como sendo compostos de habitações com coberturas de palhas, paredes e assoalhos de barro e madeira rústica. Lugares “ainda agora sem existência política”, como atestou o autor da matéria. Essa ausência da política é em relação a burocracia estatal brasileira, ainda não instalada no Território do Acre. Cabe ressaltar que o Tratado de Petrópolis sido assinado quase três meses antes dessa publicação e a organização administrativa com a criação dos três Departamentos (Acre, Purus e Juruá) do Território Federal do Acre aconteceu somente no inicio de abril de 190487, portanto, dois meses após a veiculação dessa matéria. Temos acima interessantes questões de discussão no contexto da época, pois como nos alerta Luciana Murari, progresso, civilização e integração nacional eram elementos que se conjugavam para a construção da nacionalidade brasileira desejada pelas elites políticas e intelectuais88 em fins do XIX e inicio do XX. Esse abrasileiramento do território acreano — pouco antes legalmente boliviano — passava por essas transformações do lugar com a emergência de novas territorialidades e outras habitabilidades, da sua natureza progressivamente amansada, das suas gentes menos rudes a partir do momento que adotassem os valores corretos. Era necessário incorporar esses brasileiros distantes, estrangeiros em território nacional como disse em certo momento Euclides da Cunha89. José Veríssimo certamente não era estranho a esse ponto de vista ao escrever a matéria para a revista Kosmos. A distância do Acre em relação à civilização mais próxima comumente era medida em relação às capitais do Pará e do Amazonas. Na mesma matéria da revista Kosmos citada antes, se diz que as viagens fluviais ligando o Acre a cidade de Manaus era de 15 a 25 dias se descendo os rios; de 25 a 30 dias, se subindo os mesmos rios. Alem do aspecto fluvial — se contra ou favor da corrente —, também influía no tempo de viagem o tipo de embarcação utilizada, a estação climática (verão ou inverno) em vigor, as necessidades de paradas e o tempo dessas paradas nos diversos portos ao longo do trajeto. Uma viagem de Manaus ao Acre, mais precisamente para Sena Madureira — sede do Departamento do Alto Purus — foi realizada pelo militar Annibal Amorim no segundo semestre de 1909. Este militar do Exército brasileiro narra, em formato de diário, cada dia do trajeto que demorou 23 dias e ele de maneira hiperbólica diz que lhe pareceram 23 anos90. Ele destaca o contraste logo na partida, quando a “apoteótica” e iluminada Manaus vai ficando para trás na medida em que o gaiola Ajuricaba se afasta da cidade e a única iluminação em bordo vem do luar noturno. A feérica iluminação artificial da urbe manaura, dita como superior em brilho às luzes naturais da lua e das estrelas, vai bruxuleando e dando lugar às sombras. Essa é a partida — como ele afirma — para as “remotas paragens do Acre”, onde a maioria dos passageiros, nos seus dizeres, são homens rudes com os quais não se podia entabular outra conversa que não girasse em torno do assunto borracha. Uma viagem assim se tornava, segundo suas impressões, estúpida e brutificadora para as almas humanas mais civilizadas como ele. Isso porque o tédio imperava diante dos calores abafados dos “meios-dias equatoriaes”91, cuja a única recompensa — nos seus dizeres — era a “visão da natureza prodigiosa que a audácia do homem do norte desvirginou”92. Quanto ao conforto da viagem, ele assevera que “talvez uma viagem ao inferno fosse mais agradável do que esta”93. 1999. 87 SILVA, Autoritarismo e personalismo no poder executivo acreano, 1921-1964, 2012. Esta discussão será realizada no quarto capitulo deste trabalho. 88 MURARI, 2007, p. 91. 89 CUNHA, 2000, p. 121. 90 AMORIM, 1917. 91 Idem, p. 177. 92 Idem, p. 181. 93 Idem, p. 189. 32 Esse “desvirginamento” da natureza em parte foi proporcionado pelos avanços cobiçosos aos altos rios da Amazônia sul - ocidental e, por isso, o autor aponta o Rio Purus como a “grande estrada da civilização brazileira”. Por esta perspectiva, a civilização, o progresso e a brasilidade do Acre dependiam em boa medida da navegabilidade pelo Purus e seus afluentes, como era o caso do próprio Rio Acre. Mesmo havendo as distancias a se vencer para chegar e sair do Acre, as dificuldades eram compensadas porque o valor econômico da região acreana era incalculável devido a presença da borracha natural ser a “maior do mundo”, justificava outra matéria da revista Kosmos. Esta revista, em sua primeira edição, de janeiro de 1904, estimava em “60 mil brazileiros” vivendo no território acreano que foi tornado parte do Brasil no ano anterior94. Essa incorporação é apontada pela revista como obra da genialidade do ministro das relações exteriores do Brasil, Barão do Rio Branco. Ele é apresentado como um herói pátrio que lega ao seu país a região “mais rica da terra” em látex, algo que permitia então que aqueles brasileiros habitassem o território nacional sem sair de onde já estavam. Segundo Olavo Bilac, que assinou esse artigo elogioso e ufanista dirigido à pessoa do Barão do Rio Branco, o Tratado de Petrópolis foi o desfecho linear da formação histórica e geográfica do Brasil, pois “a conquista pacífica (sic) do Acre veio completar a reivindicação das Missões e do Amapá. E os ideais brasileiros de civilização, de concórdia, de piedade, de amor e de paz, tão bem servidos, no Império, pelo primeiro Rio Branco, vieram ter, na República, como seu maior servidor, o herdeiro desse nome venerado”95. Em tom menos glorificante e procurando ser mais comedido nos exageros, Alberto Augusto Diniz que havia sido nomeado desembargador para exercer o cargo no Território Federal do Acre, teceu anos depois comentários sobre suas vivencias no Acre. Entre 1908 e 1917 ele atuou na cidade de Sena Madureira e depois de anos de ausência foi nomeado governador do Acre, cargo que exerceu entre junho de 1926 e março de 192796. Nesse mesmo ano ele publica seu livro de memórias enxertado de discursos, entrevistas e declarações feitas e recebidas por ele como governador. O título da obra — No coração do inferno verde — é bastante sintomático porque expressa a aura de Alberto Rangel ecoando no olhar de Alberto Diniz sobre o Acre/Amazônia. Em uma passagem datada de 1926 ele discursa em um evento de homenagens ao seu aniversário e retroage na memória ao ano de 1908 quando foi designado para chefiar o Tribunal de Apelação em Sena Madureira. Lembra-se do que teria sido sua primeira impressão sobre o Acre ao saber ainda em Minas Gerais que iria que viver nos altos rios da Amazônia acreana: aconselhado pelo desprezo e num quase propósito de suicídio, me dispuz a desfazer-me de vantajosa situação que desfructava em minha amada Minas, para vir buscar no Acre esquecimento às magoas que então, como víboras, me mordiam o coração. E essa desesperada resolução, que classificaram os meus próximos de louca e desassisada, resultou em mim grandemente benéfica, pois se não me deu o almejado esquecimento, de certo modo me reconciliou com a vida, offerencendo-me a ocasião de concorrer com meu esforço e civilisação de um povo que se organizava, terminada a memorável pugna que sustentara em defesa de seu lar e de sua nacionalidade97. A sua memória retroativa, senão para impressionar a platéia, aponta para um homem atormentado em algumas questões da sua vida pessoal. Completara 40 anos de idade quando chegou pela primeira vez ao Acre. Havia se formado na Faculdade de Direito de São Paulo dezoito anos antes. Não estamos falando de um jovem desesperançado pela inexperiência da vida e nem da profissão. Tanto que nos seus dizeres, deixava uma vida mais confortável para trás e escolhia o quase “suicídio” ao se mudar para o 94 Kosmos, janeiro de 1904, ano I, número 01, p. 27. Acervo da FBN. 95 Kosmos, fevereiro de 1904, ano I, número 02, p. 05. Acervo da FBN. 96 Uma breve biografia dele se encontra no site do CPDOC. Disponível em: https://bit.ly/2tYK36s, acesso em 31/01/2020. 97 DINIZ, No coração do inferno verde, 1927, pp. 41/42. 33 Acre. Senão, a morte, queria o esquecimento. Nesse jogo de drama pessoal, vincula sua vinda a um projeto patriótico de contribuir em seu cargo de homem da justiça com a “civilização” do Acre. Algo que no contexto desse discurso em 1926, marcava o retorno de Alberto Diniz — no cargo de governador — frente aos mesmos propósitos da sua chegada anterior. Dizia querer manter a ordem dentro da lei, estabelecer relações cordiais entre o executivo e o judiciário, proteger o trabalho, cuidar da higiene publica, da instrução escolar e facilitar o transporte e as comunicações no Território Federal do Acre98. No citado livro, ele procura inicialmente falar das “origens e situação do Acre” e que apesar do decantado difícil acesso à região acreana, assevera que naquele momento os seringais estavam bem organizados e que havia uma “florescente indústria pecuária e próspero comércio”99. Recuando temporalmente, retoma a leitura presente em narrativas de diversos gêneros ao dizer que os “patrícios nossos da região nordestina”100 nada ficavam a dever pela conquista do Acre aos bandeirantes paulistas de outrora. Dialogando com Euclides da Cunha, fala que os “conquistadores” do Acre foram intrusos impertinentes que chegaram a uma terra que mal tinha saído do caos. O aspecto da nacionalidade não deixa de ser continuamente ressaltado mesmo após mais de duas décadas do Acre pertencer ao Brasil, como nesta passagem a seguir em que ele comenta os embates com os bolivianos por parte dos brasileiros que habitavam o território em disputa. Ciosos de sua nacionalidade e dispostos a impedir que passassem a alheias mãos riquezas creadas por brasileiros à custa de ingentes esforços e de duros sacrifícios em pugna memorável bateram-se os destemidos nordestinos contra as ambiciosas tentativas da visinha nação. Foi rude a peleja, com alternativas várias de sucessos e de desastres; mas blindados em seu ardente patriotismo e guiados pelo gênio militar de Plácido de Castro, acabaram triumphando de forma superiormente organisadas e mantendo o decidido propósito em que estavam de viver á sombra e sob a protecção do glorioso pavilhão do Brasil101. Em um tempo mais alargado em relação ao calor da proximidade com as disputas armadas com a Bolívia, Alberto Diniz repisa já consolidadas narrativas heroicas e triunfantes. Concorda que o embate foi marcado por doses significativas de patriotismo dos “destemidos nordestinos” conduzidos por um “gênio militar” chamado Plácido de Castro contra as ambições bolivianas. Na sua ótica — também eivada de patriotismo ufanista — somente os interesses dos brasileiros eram justos naquela refrega. O ESPAÇO DAS AUSÊNCIAS: VAZIO, BARBÁRIE, TEMPO E NATUREZA Espaço e tempo são questões emergentes na historiografia principalmente a partir de Fernand Braudel e depois com outros próceres da chamada tradição dos Analles, como é o caso de Jacques Le Goff e demais continuadores. História e Geografia, como campos do conhecimento, são aproximadas por Braudel para gestar seu conceito de geo-história. Com isso, o campo da historiografia é ampliado com a incorporação do espaço como elemento angular junto com a(s) temporalidade(s) por ele discutidas. Essa síntese pode ser mais bem compreendida na passagem abaixo de Guilherme Ribeiro em artigo recente sobre a obra do autor francês. Sua lição para as ciências humanas versa que a história das sociedades é simultaneamente temporal e espacial e que o espaço, embora alterado, apresentasse como uma estrutura da história. É dos laços entre as sociedades e seus espaços que Braudel apreende os diferentes ritmos da história. Em outras palavras, uma mudança de escala pode ser também uma mudança de temporalidade. Por isso 98 Trecho de um telegrama enviado por Alberto Diniz a um jornal acreano não identificado, que anunciava sua iminente chegada ao Acre. In: DINIZ, op. cit., p. 65. 99 DINIZ, op. cit., p. 11. 100 Ibidem. 101 Idem, p. 12. 34 sua geo-história é multiescalar, pois espaço é sinônimo de diversidade, de conexão, de redes entrelaçadas – noções que põem em xeque o tempo linear e as filosofias do progresso102. Para o autor de Civilização material, as civilizações são a síntese dos espaços, da economia, da sociedade e das mentalidades em uma longa duração. Em Braudel os tempos, múltiplos e dialéticos (eventos, conjunturas e estruturas), são pensados em escalas do vivido pelo indivíduo e pela coletividade em média e longa duração e formam as historicidades peculiares a cada civilização/cultura/espaço. O locus de suas preocupações de estudos é o do mar Mediterrâneo, num determinado tempo histórico em que este mar é posto em diálogos com fluxos humanos em múltiplas temporalidades entre os séculos XV e XVII, conforme aparecem discutidas em sua obra monumental O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II publicada em 1949. Este historiador tem sua trajetória marcada desde cedo pela experiência da fronteira, pois nasceu em um vilarejo francês que durante quase meio século esteve sob o domínio alemão na região da Alsácia-Lorena. Nesse vilarejo, um lugar-espaço chamado Lumeville-en-Ornois (Lorena francesa), “dialogam e se entrecruzam as culturas da Europa mediterrânea e da Europa nórdica. Ou seja, trata-se de uma zona que se alimenta da diversidade das duas grandes matrizes culturais que, na longa duração, ‘dividiram’ o espaço ocidental da civilização europeia”103. Uma zona marcada pelas froneiras, nacionalidades e identidades. Foi a partir dessa modernidade/civilização brotada na Europa ocidental e estudada por Fernand Braudel que se constituíram os pilares dos projetos de civilização e nacionalidade nos países do continente “latino” americano ao longo dos séculos XIX e XX. Aguirre Rojas assim sintetiza essa questão, carregada de impactos profundos para os países inventados na região: Lembremos, por exemplo, o projeto de uma modernidade européia de matriz mediterrânea. Tendo sido esboçado no espaço dos países latinos do Sul da Europa ocidental, tal projeto terminou derrotado e subsumido pelo projeto de modernidade dos países do Norte da Europa, depois exportado para quase todo o planeta e imposto como projeto civilizatório, com êxito muito desigual, por todo o globo. Lembremos apenas que foi esse projeto que constituiu um dos pilares da civilização latino-americana. Presente e atuante ainda na Europa moderna, seus traços civilizatórios essenciais serão delineados por Braudel em O Mediterrâneo104. Temos então a manutenção de heranças coloniais nos países surgidos dos múltiplos processos de independências nesse continente, que conservaram importantes vínculos metropolitanos e irão buscar como referenciais os modelos civilizacionais em voga no Velho Mundo. Jornalistas, escritores, artistas, políticos, religiosos e cientistas são embebidos desses valores que por excelência eram urbanos e das elites letradas e de poder, que estavam “buscando integrar o território nacional sob a norma urbana da capital”105 dos seus respectivos países e em suas unidades internas menores (Província/Estado/Cidades). O desejo de ser cosmopolita, civilizado, moderno, integrado e outros sentidos correlatos, cria espaços marcados por excelência pelo signo dos afetos aceitos e, por conseguinte, rejeição e crítica aos lugares/práticas percebidas como opostas aos sentidos desejados para esses espaços. No âmbito do espaço geográfico nacional, algumas localidades irão carregar o epíteto de serem portadoras das ausências que as excluem e as rebaixam perante o nacional. Elas são realçadas como não tendo o que existe no seu oposto, a metrópole nacional. Esse oposto é muitas vezes geograficamente horizontal, pois distante do centro, mas é essencialmente vertical e hierárquico porque inferioriza tudo aquilo que não se enquadra nos parâmetros considerados válidos. Naquele Acre das décadas finais do XIX e iniciais do século precedente temos um espaço geográfico fronteiriço em relação a outras duas nações, mas que também é carregado de fronteiras culturais, ét102 RIBEIRO, A arte de conjugar tempo e espaço: Fernand Braudel, a geo-história e a longa duração, 2015, p. 608. 103 AGUIRRE ROJAS, Braudel e as ciências humanas, 2013, p. 08. 104 Idem, p. 33. 105 Uma interessante abordagem sobre essas questões em torno do poder da escrita e da importância da ordem urbana na America Latina podem ser lidas em: RAMA, A cidade das letras, 2015, p. 78. 35 nicas, econômicas, linguísticas e políticas em relação ao estrangeiro e internamente à nação da qual passa a fazer parte depois. É um espaço de cruzamentos, de superposições, de trânsitos de gentes, de bichos, de coisas materiais e de ideias nessas micros, macros e múltiplas zonas de contatos que vão sendo tecidas por humanos e não humanos que transitam e vivem em um lugar de muitas territorialidades. O Acre é então o outro geográfico, o outro cultural, o espaço das ausências que estão sempre em maior destaque do que as permanências geradas pelo fazer humano. Isso pode ser mais bem expressado a partir de algumas narrativas como esta a seguir [Imagem 01] em uma chamada estampada em primeira página do jornal A Noite no ano de 1913. Esse periódico era um dos muitos existentes a época na cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil e cidade apontada como símbolo maior dos signos cosmopolitas em voga no país. A chamada intitulada O Acre ainda está em plena barbaria tem em si um aspecto interessante do ponto de vista vernacular. O termo ainda está aponta para a ideia de um movimento cronológico linear de longo tempo da manifestação da barbaria que deságua do tempo presente da escrita da matéria. O ainda com advérbio tem o significado de demonstrar que algo tem permanência e o verbo está por sua vez afirma o que seria a presentificação da situação. Imagem 01 – O Acre ainda está em plena barbaria Fonte: A Noite, 02 de junho de 1913, p. 01. Acervo da FBN. O tom chamativo da matéria voltado para o aspecto inusitado é evidente. Algumas abordagens retroativas podem ser elaboradas já a partir do título da matéria. Uma delas é a do paradoxo em relação ao que seria a prova da “barbaria” do Acre, se tomarmos a produção de papel moeda pela municipalidade da cidade sede do Departamento do Alto Acre, no Território Federal do Acre. Ou seja, um contra-discurso poderia operar a partir do que está escrito e afirmar que essa ação administrativa de emitir papel moeda seria a comprovação da disciplina urbana, da impessoalidade, da modernidade e do exercício da burocracia estatal no Acre Federal de acordo com certas condições em que ela ali operava. Ou seja, há espaço para uma narrativa que justificaria a ação publica e confrontaria a afirmação da existência da barbárie. Contudo, outra leitura na direção do absurdo da situação que o periódico quis demonstrar está no fato de haver emissão de papel moeda oficioso por parte de autoridades públicas em um local distante do centro de poder político da União, lugar tão marcado pelas ausências que nem dinheiro nacional ali ainda circulava e que a vontade dos governantes locais se impunha sem nenhum limite da lei ou do contrapeso dos outros poderes. As exorbitâncias dos chefes executivos foram alvo de muitas denuncias posteriores na imprensa e em escritos de alguns memorialistas, como é o caso do ex-desembargador e ex-governador do Acre Alberto Diniz em sua obra No coração do inferno verde. Ele, no entanto, critica em determinada passagem, 36 os exageros da imprensa da cidade do Rio de Janeiro em relação ao que ocorria no Acre, dizendo que ela era “mal ou perversamente informada” e explorava a “cahotica situação em que por vezes tem se encontrado o Acre”106. A matéria do jornal A Noite não tem autoria reconhecida, no final do texto aparece identificada como sendo do correspondente do periódico. O tom da matéria é de denuncia em relação às autoridades administrativas e judiciárias em Sena Madureira e Rio Branco, que cobrariam impostos à revelia de qualquer legalidade, emitiriam papel moeda através da prefeitura para pagamento de seus próprios salários e esse “dinheiro” circulava sem lastros ou garantias futuras de que os comerciantes locais em algum momento teriam a conversão para a moeda brasileira oficial. Essa característica de um Acre “bárbaro” aparece pouco depois na escrita de um conhecido intelectual como sendo um dos motivos para não haver a autonomia política e sim a consequente continuidade da manutenção do status de único Território Federal brasileiro administrado pelo poder executivo da União que designava seus gestores locais. Essa é a solução defendida por Oliveira Viana em um tópico chamado O erro da autonomia acreana, parte do capítulo O meio sertanejo de sua obra Pequenos estudos de psychologia social. Oliveira Viana justifica sua tese dizendo que no Acre havia uma “vaga população erradia e dispersa perdida num recanto vazio da Amazônia”. Sua composição étnica e social, ele lamentava, não se comparava a existente no sul do país, pois no Acre o que havia eram cangaceiros tumultuários, jagunços explosivos, sertanejos rebeldes e indomáveis que haviam migrado do norte do país107. Estes atributos negativos da população encerrados em caracterizações ligeiras e preconceituosas, seriam a prova da impossibilidade do Acre ter o mesmo estatuto das demais unidades federativas. Mais que isso, justificaria qualquer ação autoritária e de domínio por parte da União e dos prefeitos departamentais para ali exercerem poderes ilimitados. Entre outras coisas, diz o autor, porque o sertanejo piorava suas características atávicas negativas ao chegar à Amazônia e era um tipo intrinsecamente despreparado para a democracia e para a res publica. Existiria no Acre, sentencia este pensador conservador, um estado de natureza rosseauniano às avessas: em vez de harmonia, paz e inocência apenas a permanente rebeldia, o espírito de vingança, com rancores e recalques dominando os espíritos dessas gentes aventureiras. A CONQUISTA DO TERRITÓRIO – TERRITORIALIZAÇÃO E TERRITORIALIDADE Quando falo em o Acre como território aponto inicialmente para duas perspectivas, uma em sentido mais geral que remete para o espaço físico e geográfico nomeado assim. Ele é por definição desde muito algo fluido nas suas fronteiras, com sua soberania estatal boliviana volátil ou inexistente após 1867, habitado por brasileiros, estrangeiros de diversas nacionalidades e local de existência de múltiplas etnias indígenas com tempos seculares de antropizações diversas nesse espaço geo-cultural. O fato é que havia no Acre desde muito tempo as marcas de multiterritorialidades, naquele sentido empregado pelo geógrafo Rogério Haesbaert da Costa108. A segunda perspectiva esta mais estritamente relacionada a uma entidade político-administrativa brasileira e que inicialmente é chamada de Território Federal do Acre a partir de 1904, com o poder descentralizado nos Departamentos situados nos vales dos rios mais importantes. A partir de 1921 esses poderes executivos descentralizados são unificados na figura do Delegado da União (governador) que exerce o poder sobre todo o território a partir da capital Rio Branco109. Esse regime territorial, controla106 DINIZ, op. cit., p. 33. 107 OLIVEIRA VIANA, op. cit., pp. 146/147. A primeira edição é de 1921, ano em que o Acre Federal passou ter uma administração centralizada em Rio Branco após o fim dos quatro Departamentos (Alto Acre, Alto Juruá, Alto Tarauacá e Alto Purus). 108 COSTA, El mito de la desterritorialización, 2011. 109 Em sua tese de Professor Titular da UFAC, o professor Gérson Rodrigues de Albuquerque elaborou um importante e original estudo sobre as múltiplas narrativas que envolvem a cidade de Rio Branco em suas diversas vozes e temporalidades a partir de varias fontes (escritas e visuais) e memórias, articuladas com suas vivencias pessoais e apurado rigor analítico. Cf.: ALBUQUERQUE, Uma certa cidade na Amazônia acreana, 2019. 37 do pelo governo federal, dura até 1962 quando o Acre ganha estatuto de estado da federação brasileira. Esta perspectiva política evidentemente não apaga os aspectos citados anteriormente que antecedem e perpassam o Tratado de 1903. Mas podemos pensar ainda em uma terceira dimensão, mais simbólica, imaterial, ligada aos afetos e vivencias em relação ao lugar chamado Acre. Das relações entre os humanos, destes com os não humanos e com o ecossistema e estes todos entre si. Todos compondo historicamente em devir esse espaço geo-cultural chamado Acre. Um território continuamente des-re-territorializado em fluxos relacionais (e não estruturais) conforme nos diz Rogério Haesbaert da Costa. Inspirado em Guatarri e Deleuze, esse geógrafo afirma que não se pode pensar a ideia de reterritorialização como um retorno romântico ao “primitivo” e mais antigo. Portanto, a desterritorialização é um mito, pois logo ela é refeita pela reterritorialização numa dialética permanente. O território é sempre algo dinâmico, gerando a continua multiterritorialidade110. Percebe-se uma clara proximidade conceitual e epistemológica entre essa perspectiva de território e o espaço braudeliano. Essas questões em relação ao Acre eu já tinha tangenciado en passant em outro texto, mas sem maiores aprofundamentos ao dizer que na: perspectiva da conquista e da exploração econômica e humana, há um Acre que inicialmente não é de ninguém; um Acre que está “lá” geograficamente falando, esperando ser descoberto, colonizado; um Acre boliviano de direito pelo Tratado de Ayacucho desde 1867; um Acre já abrasileirado majoritariamente pelos brasileiros do Acre, mas que a Bolívia queria se apoderar; um Acre litigioso quando o Barão do Rio Branco entra em cena e impõe as condições de negociação; e, por fim, um Acre brasileiro a partir de 1903 com o Tratado de Petrópolis111. Esse Acre de “ninguém” é evidentemente pensado pela perspectiva da ausência de um poder estatal nacional que exercesse a soberania e o domínio com estabilidade sobre um determinado espaço geográfico, pois o Estado Moderno privilegia esse sentido unidimensional do território. Mesmo após 1867 o estado boliviano não conseguiu exercer o seu poder de domínio soberano sobre as terras do Acre e das gentes que ali já viviam e outras que continuamente foram chegando nas décadas finais do século XIX como plantation humana, realizando a ocupação “à gandaia” como grafará o já nominado Euclides da Cunha. Ou seja, esse sentido político de território é reducionista e não permite pensarmos para outras possibilidades que não seja aquela do espaço de poder institucionalizado. Nessa direção acima, no alvorecer do ano de 1903 o governo boliviano publicou o relatório de uma comissão de nacionais que havia andado pela “región del Acre” no ano anterior. Nas palavras do membro da Sociedade Geográfica de La Paz, J. T. Camacho, que faz a apresentação da publicação, ela visava dar publicidade a uma breve descrição corográfica do Território Nacional de Colonias e evidenciar os esforços “á la integridad de la Patria”112 por parte das autoridades bolivianas. Um território que é descrito por esse geógrafo boliviano como extremamente rico, ardentemente disputado e futuro campo da prosperidade nacional de sua pátria. De fato era o Acre o território identificado com a riqueza econômica da borracha natural, matéria prima de interesse angular ao capitalismo industrial e financeiro daquele período. O território vinha sendo intensamente disputado com os brasileiros havia alguns anos, inclusive com rusgas e enfrentamentos armados. Contudo, no principio do ano de 1903 o Acre se consolidava como cada vez mais distante dos bolivianos113. Olhando retroativamente, não nos escapa o aspecto irônico desse fulgor ufanista de J. Camacho, pois dez meses depois da obra publicada, boa parte desse território foi incorporada ao Brasil através do 110 COSTA, Território e multiterritorialidade: um debate, 2007, p. 19. 111 SILVA, Insolitudes acres, hibridas e fronteiriças: as disputas pelas identidades, 2017, p. 52. 112 BOLÍVIA. El Território Nacional de Colonias, 1903, pp. 10/11. 113 Cf.: TOCANTINS, Formação histórica do Acre, 2001. Este autor aborda, no segundo volume da sua obra, os momentos chaves dos conflitos envolvendo brasileiros e bolivianos a partir de uma rica documentação oficial da diplomacia brasileira. 38 já citado Tratado de Petrópolis assinado em novembro de 1903. E já em 21 março desse mesmo ano, o governo brasileiro ocupava militarmente a região e impunha o modus vivendi no Acre conflagrado. O governo brasileiro já expunha abertamente a morte do Tratado de Ayacucho de 1867, conforme podemos perceber na mensagem do presidente Rodrigues Alves dirigida ao Congresso Nacional do Brasil no inicio de 1903 ao dizer que: “não convém a Bolívia conservar esse território longínquo, habitado unicamente por estrangeiros que lhe são infensos. [...] a verdade é que, desde que quis dominar o Acre, a Bolívia tem feito sacrifício enormes de dinheiro e também de vidas arrebatadas pelo clima da região”114. Pelas palavras do presidente do Brasil, o clima quente parecia ter pendores patrióticos pelos brasileiros. Retomando o supracitado relatório boliviano, ele é pontuado por diversos tópicos de assuntos que tratam dos limites do território acreano, do seu clima, dos produtos extrativos ali explorados, da navegação fluvial, das tribos indígenas e seus “dialetos”, dos rios e lagos, dos hechos historicos ali emergidos e da divisão administrativa pensada em ser implantada no futuro Acre boliviano. Este último aspecto é algo inusitado ao ser explicitado naquele momento conturbado e de tibieza da Bolívia em relação ao Acre, pois nunca foi instituído este desenho administrativo que trazia a seguinte proposição de organização territorial: O Acre repartido em oito Cantones (cantões) sediados nos principais seringais situados no vale do Rio Acre — Humaitá, Bagazo, Vuelta de Empresa, Capatará, Amelia, El Carmen, Riosiño e Buen Porvenir. Por sua vez, esses Cantões seriam subdivididos em alcadias territoriales. A capital é apontada como devendo ser “Puerto Alonso hoy Acre” [atual cidade de Porto Acre]115. Essa quimera não tinha como dar certo diante da fragilidade dominial boliviana em relação ao Acre, agravada naquele momento pelas derrotas de suas tropas frente aos brasileiros. A territorialidade boliviana — em sentido político, administrativo e histórico cultural — nunca se efetivou de fato. Uma das territorialidades mais efetivas e duradouras existentes no Acre — antes e depois do Tratado de Petrópolis — é aquela realizada pelos trabalhadores da empresa seringalista, na sua grande maioria composta de brasileiros. Esses seringueiros em particular, dependendo das narrativas, adquirem múltiplas qualificações étnicas, culturais e de brasilidade. O já citado Oliveira Viana vai dizer que “elles tem sido os fundadores da nossa geographia physica, os desbravadores do nosso território, os nossos semeadores errantes de cidade. Os seus hábitos de nomadismo, a sua intrepidez, a sua estupenda resistência orgânica talharam-nos á maravilha para essa empreitada formidável”116. Mas esse mesmo autor vai dizer que eles — os “extraordinários exploradores do deserto” — eram incultos, apolíticos, incapazes de viverem em regime de liberdades democráticas e de autonomia. Essa incapacidade dos seringueiros era por tabela a própria incapacidade do Acre, como parte da federação brasileira, de ter alguma autonomia política. Tomemos então a seguir um romance da época como pano de fundo para discutirmos algumas dessas questões em torno das territorialidades seringueira, dos seringais e dos seringalistas. Nesse sentido, tenho como um dos referenciais a obra do geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves que sinteticamente afirma existir uma territorialidade do seringal e do patrão seringalista (seringalismo) que oprimia os trabalhadores extrativos117. Para ele, com a passagem tardia do seringueiro para a condição de trabalhador autônomo e com a criação das Reservas Extrativistas nos anos 1990, se estabeleceu uma então territorialidade dos seringueiros no Acre. Para este autor, é a extração do látex como atividade econômica hegemônica que deixou “marcas na terra, fez divisas, econômicas e geográficas, fez do espaço, território”118. Outro pesquisador, abordando as mesmas questões, mas com foco na teoria decolonial, vai 114 BRASIL, Relatório I do ano de 1902 e 1903, 1904, p. 09. 115 BOLÍVIA, 1903, p. 43. 116 OLIVEIRA VIANNA, op. cit., p. 154. 117 GONÇALVES, Geografando nos varadouros do mundo, 2003. 118 Idem, p. 72. 39 também afirmar a existência de um momento de hegemonia do que ele também chama de seringalismo e posteriormente dará vez para a emergência de uma seringalidade119. A obra aqui apresentada para discussão — Deserdados — é de autoria do engenheiro, jornalista e escritor Carlos Carneiro Leão de Vasconcellos, nascido em 1881 e que ao concluir seu curso de engenharia em Recife no ano de 1899, seguiu para a Amazônia no intuito de trabalhar como agrimensor na abertura e demarcação de seringais na região dos rios Purus e Iaco, localidade que a partir de 1904 inclui grande parte do Departamento do Alto Purus, no Território Federal do Acre. Em 1902 ele regressou dali para o Rio de Janeiro onde complementou seus estudos na Escola Polytechnica e posteriormente retorna ao Acre onde atua mais uma vez na agrimensura e como militante da autonomia acreana junto com alguns proprietários nos Departamentos do Alto Juruá (Cruzeiro do Sul) e do Alto Purus (Sena Madureira), cuja maioria era de pessoas com quem ele já tinha trabalhado e mantinha laços de amizades. Nesse período escreveu alguns manifestos em favor da “causa acreana” em jornais do Rio de Janeiro, de Manaus e em livros pouco conhecidos como: As terras e propriedades do Acre (1905); O Acre e os acreanos - impostos e anexação (1906); O Estado do Acre (1906) e Pró Pátria (1908)120. Carlos de Vasconcellos é o narrador onisciente do livro Deserdados, cuja escrita é fruto de suas vivências na Amazônia acreana no final do século XIX e início do XX. No decorrer do seu livro é possível perceber as influencias e as intertextualidades com escritos de autores antecessores como Euclides da Cunha (A margem da história, 1909), Rodolfo Teóphilo (Paroara, 1899) e Alberto Rangel (Inferno verde, 1908). Na apresentação da edição de 1921 ele diz que os seus manuscritos originais foram concluídos em 1905 e roubados em Manaus no ano de 1909, levando-o nos anos subsequentes a ter que (re)escrever novamente toda a obra. De maneira imodesta e grandiloquente Carlos de Vasconcellos afirma que nesse seu livro ele conseguiu “refazer em linhas originalíssimas, a vida amazônica” que os autores citados acima “apenas esboçaram”. No caso de Rodolfo Teóphilo ele afirma que este desconhecia a Amazônia por não tê-la palmilhado em nenhum momento; o português Alberto Rangel embora tenha vivido na Amazônia e Euclides da Cunha viajado pela região por algum tempo, Vasconcellos diz que o período em que ambos permaneceram ali não os permitiu “delatar suas causas essenciais”121. Isso denota uma preocupação desse tipo de escrita em descrever o real e o verdadeiro das relações humanas e históricas ali existentes de forma objetiva, mesmo quando se tratam de textos ficcionais em que seus autores buscam se ancorar na realidade histórica e social122. Carlos de Vasconcellos se insere nessa literatura do cânone amazônico como uma das vozes que narram o mundo dos seringais. Segundo Ana Pizarro, essas vozes são de três tipos: as narrativas dos barões caucheiros/coronéis de barranco; de intelectuais que a partir de algumas experiências pessoais elaboram registros de cunho ficcional, documental e ensaístico123. E por fim, os “de baixo”, indígenas e seringueiros, dos quais os registros autorais são mais escassos devido a tradição oral, e não a escrita, marcar os indivíduos desses grupos sociais/étnicos. Para a autora citada, a importância das vozes desses intelectuais é que “Leerlos es observar la mirada crítica y percibir la emergencia de la voz que denuncia”124. 119 SOUZA, Seringalidade: o estado da colonialidade na Amazonia e os condenados da floresta, 2017. Para este autor, o seringalismo como fenômeno histórico social se assentava na racialização dos trabalhadores extratores da seringa, na existência do sistema de aviamento e na concentração fundiária. A seringalidade seria essa herança em seu âmbito imaterial, dos imaginários, da memória individual e coletiva em torno do passado. O seringalismo é algo então marcado pela dominação colonial de caráter mais físico e a seringalidade de “autonomia” do seringueiro como sujeito livre e morador/trabalhador das RESEXs. 120 Estas informações foram obtidas do site História do Ceará <https://bit.ly/2QdjH93>, que remete como fonte original dos dados a obra 1001 cearenses ilustres (1996), de autoria de F. Silva Nobre. 121 VASCONCELLOS, Deserdados, 1921, pp. 05/06. 122 MURARI, 2009. 123 PIZARRO, Voces del seringal: discursos, lógicas, desgarramientos amazónicos, 2006, p. 31. 124 Idem, p. 35. 40 Em Vasconcellos há denuncias variadas em relação às condições de trabalho nos seringais, de doenças inclementes, da natureza sempre opressora e às vezes dadivosa, da falta de salubridade e da ausência da legalidade estatal regulando as relações sociais hierárquicas e autoritárias. Aspectos que dificultaram a emergência de uma territorialidade seringueira conforme pensada por Carlos W. Porto Gonçalves ou da seringalidade como vai expressar João Veras Souza. Em Deserdados temos a centralidade da figura do cearense Teodozio que migra para o Acre com a ânsia de melhorar de vida com o seu trabalho como futuro seringueiro. Ele é um imigrante do interior do seu estado natal, lugar que seria marcado indelevelmente pela aridez provocada pelos verões rigorosos e do sol causticante que trazia angústia e escassez alimentar aos que habitavam aqueles sertões. É um mundo apontado com sendo de excessos e de faltas. O excesso nesse ecossistema é o da claridade, conforme descrição presente no capítulo inicial intitulado Sob o sol do Ceará. Luz em excesso, que provocava “terror e delírio fantástico”125 nos habitantes do sertão. O sertanejo, em geral, então sonha e cultiva a esperança perene da chegada da chuva para irrigar a terra e subverter em si o humor negativo que lhe impregnavam os verões rigorosos. As chuvas, prenunciadas com o aparecimento do céu nublado, apontam nessa narrativa para a chegada das águas que umedecem o solo e fazem brotar as plantações de cultivares que permitem a sobrevivência dos animais domésticos, das pessoas e trazem de volta a fauna silvestre que havia sumido na estação anterior. Essa é a imagem chave que o autor constrói sobre os sertões cearenses de onde migra a personagem central do romance chamado Teodozio, um sertanejo acostumado a ler aquela natureza que o cercava, mas ela o expulsa para outras paragens desconhecidas. Desgarrado das territorialidades do sertão seco e iluminado, resta migrar para outro sertão de configuração natural oposta, para as escurezas irrigadas do Acre. Ele é um sujeito oriundo de um lugar descrito como sendo marcado pelos ciclos constantes e alternados de chuvas e de secas, onde estas últimas variavam periodicamente com suas intensidades rigorosas frentes as fugazes chuvas anuais. Mesmo em tempo de águas abundantes, o sertanejo genérico da obra é marcado pelo pensamento futuro da escassez e da inclemente luminosidade, período quando até os pássaros sumiam com seus cantos descritos como alegres. Com o desaparecimento da vida silvestre no verão, restaria ao sertanejo também ir para longe do lugar agourento como faziam antecipadamente as aves de arribação. A direção escolhida pelos humanos era muitas vezes o ecossistema de paisagem oposta: a Amazônia, úmida e tropical. É esse ambiente volúvel e desesperançoso dos sertões claros e secos que deserda homens, mulheres e crianças e os obriga a partirem para a floresta tropical de cor escura, sombreada por árvores imensas, com ares úmidos e aura misteriosa. São esses imaginários consolidados sobre a Amazônia que atraem pelos “tezoiros decantados pelos ‘paroaras’, o leite suculento da borracha, que vale oiro e dá felicidade e fortuna...”126. Ou seja, aos sertanejos despossuídos dos interiores do Norte chegavam narrativas carregadas de atrativos e que atiçavam os imaginários daqueles que nada tinham a perder se aventurando em busca de uma vida melhor em outro ambiente natural de características paisagísticas e bióticas opostas. Na narrativa do romance, a viagem para a Amazônia é quando começa o enredamento nas teias diabólicas que aprisionam o futuro seringueiro em dívidas que se avolumam constantemente. Ele é a imagem do seringueiro explorado, cuja passagem paga por um agenciador (paroara) no “bojo de um imundo navio”127 se transforma em um dos primeiros grilhões da “escravatura financeira”, numa clara proximidade com o que foi expresso por Euclides da Cunha em seu celebre texto de alguns anos antes 125 VASCONCELLOS, op. cit., p. 11. 126 VASCONCELLOS, op. cit., p. 17. 127 Idem, p. 25. 41 chamado Impressões gerais128. Essa intertextualidade aponta para a influência e herança do autor de Os sertões em muitos escritores que trarão em suas obras a complexa região Amazônia e seus componentes naturais como cenários privilegiados, como é o caso de Carlos de Vasconcellos e dos antecessores que ele diz tê-los superado em “realismo”. A partir de Manaus ou Belém, há uma nova etapa da viagem de Teodozio para os altos rios da Amazônia e a alocação desse migrante em um seringal sob o domínio de um patrão, algo que amplia sua servidão por dívida a ser abatida com trabalho futuro e infindável. Uma obrigação que nunca acaba porque se avoluma com as compras periódicas de mercadorias superfaturadas no barracão129 do seringal, cuja matemática financeira esse sujeito retratado como analfabeto não entende. Em Vasconcellos o patrão é chamado de “extorquidor” do “pobre diabo” que é Teodozio, mas também de todos os seringueiros, sempre vitimados pelas relações abusivas sobre as quais não teriam nenhum poder de mudá-las. É essa imagem que emerge em muitas obras posteriores e de cunho acadêmico, onde o seringueiro do período é apontado como alguém incapaz de se livrar do paraíso diabólico e de ter alguma autonomia. De forma geral, temos um Vasconcellos mergulhado nos adjetivos sobejamente já utilizados em escritos antecessores. Ele, através do narrador da obra, alude a “selva purgatório”, a “floresta maldita”, marcada pela “soturnidade verde”, “antro verde” e “inferno verde”, num claro diálogo com os três escritores que ele diz não conhecerem a Amazônia tão bem quanto ele. Um aspecto interessante é que Carlos de Vasconcellos também se coloca dentro do romance através de seu alter-ego chamado Costa Vitor, um engenheiro agrimensor, doutor, migrante cearense que chega à região dos vales dos rios Purus e Iaco para trabalhar medindo as posses de novos seringais em territórios apontados como vazios. Costa Vitor é descrito em Deserdados como alguém “muito jovem, platônico e sonhador” naquele “antro de feras” que é o Acre dos seringais. O termo “feras” alude de forma mais incisiva sobre os humanos destituídos de valores éticos e morais naquele espaço apontado como sendo de ganância e sem regras legais. Interessante perceber que a personagem do engenheiro ficcional tem as iniciais duplas do próprio escritor em seu nome: CV. Costa Vitor, ao conhecer a vida dos seringueiros através de suas historias contadas em rodas de conversas durante a viagem, se enche de comiseração e se enternece pelos “conterrâneos” explorados pelos gananciosos patrões emulados na pessoa do seringalista Avelino Chagas. Homem que exercia na plenitude a territorialidade seringueira ou o seringalismo na região do vale do rio Iaco em Sena Madureira. Costa Vitor é apresentado na obra como alguém que carrega uma luz de racionalidade naquele meio de pessoas ignorantes e exploradas, alguém que consegue perceber com acuidade as relações tenebrosas de poder e os abusos ali existentes e que enredavam todos no embrutecimento coletivo. Por nenhum modo podia Costa Vitor contribuir para que aqueles heróes, domadores da natureza selvajem e vítimas da ferocidade dos aviadores - aqueles verdadeiros pioneiros do progresso brazileiro – fossem espoliados por uma forma tão indigna! Devia falar-lhes com franqueza e admiração130. Era ainda um homem que causava “fascinação comunicativa” por onde passava e, na citação acima, o alter ego do autor se coloca como alguém que tem a obrigação de abrir os olhos dos espoliados, reconhecidos por ele como heróis e domadores da “natureza selvagem” da Amazônia acreana. Homens que exerciam a multiterritorialidade em favor da expansão da nacionalidade brasileira, da acreanidade em brotação e do mundo dos seringais em contínua reprodução dos seus fazeres e saberes hierarquizados. A chegada de Teodozio na Amazônia acreana é narrada pela perspectiva do estranhamento da personagem em relação ao meio natural. De antemão, a mata provoca “terror” ao recém-chegado que 128 CUNHA, 2000. 129 Misto de sede administrativa e armazém de provisões de um seringal. Sua descrição arquitetônica, funcional e estética aparece em muitos autores. Entre eles, destaco o escritor Mário Guedes com sua obra Os Seringaes: pequenas notas, 1920, p. 93 e ss. 130 VASCONCELLOS, op. cit., p. 92. 42 durante algum tempo irá viver na condição de “brabo”, pessoa não ambientada ao espaço natural e social, desconhecedora das regras humanas ali em vigor e dos ritmos da natureza local. A começar pelos sons diferentes emitidos pelos animais da diversidade faunística que lhe era desconhecida de antemão nos primeiros tempos de chegada. Os sons noturnos de macacos, sapos, ratos-coró, jacarés, tucanos e outros bichos formam segundo o narrador uma “polifonia esdrúxula” aos de “fora”. Teodozio — o de fora — aprende desde logo que o uso do fogo é essencial para espantar mosquitos, onças e cobras que rondam às proximidades da sua dormida improvisada e local da futura barraca131. Mas alguns sons são conhecidos pelo “brabo” Teodozio, como é o caso do pio da Coruja branca (Suindara). Sua leitura do som emitido pelo pássaro é realizada a partir dos valores e conhecimentos que ele carrega desde o seu local de origem e assim, o pássaro tomado de antemão como agourento traria o anúncio de alguma desgraça iminente e fatal inscrita nos desejos de entidades sobrenaturais divinizadas e de origem católico-popular. A habitabilidade do novo lugar é experimentada por uma carga cultural anterior. Solitário, esse homem que na narrativa literária é tido como carregado de superstições desde sua origem sertaneja, acredita que seu fim está próximo e o perigo viria fatalmente das matas escuras e misteriosas que o cercavam. Ele então, Morreria pois de desgraça, esmagado pela queda de uma arvore gigantesca, ou fisgado pelos aboríjenes, sinão envenenado pelos reptis... Mas si era inútil temer a fatalidade, por isso que o seu destino estava de antemão escrito, melhor fôra por o coração ao largo e buscar defender a vida com intrepidez e galhardia, a todo o preço, para cair antes como um homem do que feito um maricas! Os índios poderiam comel-o, mas o preço da sua carne ser-Ihes-ia caríssimo e na mesma moeda pagaria qualquer ,outro inimigo que viesse enfrental-o a peito descoberto132. Os medos originados em Teodozio a partir do “aviso” da coruja chamada popularmente de “rasga mortalha” são aqueles descritos como os mais comuns em um conjunto de narrativas variadas que emergiram desde os primeiros cronistas europeus que andaram pelos trópicos: indígenas selvagens e antropófagos, que junto com a fauna e flora traiçoeiras e fantásticas formavam a tríade temida pelos conquistadores chegados de outras terras133. Esse é o olhar etnocêntrico, canônico, oficial, objetivista e cientificista dominante em narrativas ficcionais, historiográficas, memorialísticas, relatórios oficiais e reportagens da imprensa que predominam até os dias de hoje e formam o que alguns autores chamarão de amazonismo134 ou amazonialismo135. Semanticamente, o sufixo ismo é comum nos dois termos e o que varia são as significâncias atribuídas a eles. A primeira categoria é assim nomeada pelo antropólogo José Pimenta em artigo publicado em 2015 e intitulado O amazonismo acriano e os povos indígenas: revisitando a história do Acre. Neste texto, o autor afirma que esse neologismo se caracteriza por ser “um edifício ideológico dicotômico, produzido historicamente pelo pensamento ocidental sobre a Amazônia e seus primeiros habitantes”136. Inserem-se nessa perspectiva todas essas narrativas de época aqui apresentadas em formato de romances, relatórios de viagens, reportagens, fotografias e charges. Contudo, a primeira vez que este autor citado acima usa o termo é em um trabalho publicado em 2004, que depois irá servir de base para o artigo de 2015 e aonde essa questão é mais bem elaborada. Em 131 Tapiri ou barraca era a casa de morada do seringueiro, esta moradia ficava situada em uma clareira composta de um território maior chamado colocação, que era uma unidade menor do seringal cedida a cada seringueiro para sua exploração pessoal e subordinada ao patrão. Ver entre outros, a obra de Mário Guedes (1920, pp. 108/109) aqui já citada. 132 VASCONCELLOS, op. cit., p. 42. 133 UGARTE, 2009. 134 PIMENTA, O amazonismo acriano e os povos indígenas: revisitando a história do Acre, 2015. 135 ALBUQUERQUE, Amazonialismo, 2016. 136 PIMENTA, 2015, p. 332. 43 ambos os textos, seu enfoque é mais voltado para lidar com o lugar que cabe aos povos indígenas nas diversas narrativas produzidas desde fins do XIX até os dias atuais. De clara inspiração em Edward Said e seu conceito de orientalismo, Pimenta define assim o que seria o amazonismo: como um conjunto de idéias e de discursos, produzidos pelo imaginário ocidental sobre a Amazônia e as populações nativas, destinado a viabilizar seus interesses políticos e econômicos. Como espaço imaginado pelo Ocidente, o “amazonismo” partilha muitas características com o “orientalismo”. Todavia, enquanto Said nos apresenta um Oriente construído de maneira negativa por um Ocidente hegemônico, o “amazonismo” constitui um campo ambíguo, catalisador de imagens e de discursos contraditórios, que podem ser mobilizados para servir interesses muito divergentes137. O historiador Gérson Rodrigues de Albuquerque, em variação quase similar do vocábulo, usa o termo amazonialismo em um sentido conceitual mais ampliado e para alem da questão indígena e que engloba a Pan-Amazônia138. Em seu verbete homônimo, publicado no Dicionário Analítico Uwa’kuru, o autor busca definir o neologismo derivado do substantivo Amazônia também ancorado em Edward Said e amplia com os estudos decoloniais de pensadores como Enrique Dussel, Anibal Quijano, Walter Mignolo e o historiador Durval Muniz de Albuquerque. Desta maneira, o termo englobaria uma gama variada de elementos formatados historicamente em suas dimensões cientificas e culturais. Por isso o amazonialismo segundo ele é: um conjunto de “conhecimentos” ou narrativas que inventa, descreve, classifica, cataloga, analisa de forma supostamente objetiva e mesmo científica a “Amazônia”, produzindo-a como um lugar no mundo da expansão dos impérios e do imperialismo: uma “Amazônia” ou a “Amazônia”, grafada pela escrita de distintos viajantes desde o advento da “modernidade” (...). Tal conjunto de narrativas, amplamente difundido, repetido e cristalizado produziu subjetividades, apagando ou eliminado violentamente as línguas, memórias, culturas e histórias outras, no processo histórico em que foi instituindo a “região amazônica” – entre os séculos XVI e o XIX –, inventando e catalogando seus povos, rios, fauna e flora, fabricando identidades e fronteiras “amazônicas” e “não-amazônicas”, fabricando e introjetando narrativas de diferentes sujeitos (pessoas físicas e jurídicas) que partem da ideia ou da palavra/conceito Amazônia como um todo homogêneo139. Em contexto mais amplo que o discutido acima, no ensaio O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, Flora Sussekind aborda também a emergência a partir do século XIX de um conjunto de narrativas literárias e relatos de viagem que se imbuíram em buscar/mostrar/detalhar uma pretensa singularidade brasileira do país e da nação em formação pela onipresença da originalíssima natureza brasílica. Ela nos diz que: se é problemática essa fundação de uma imagem original, singular, de Brasil, é igualmente difícil olhar para a paisagem brasileira real, que lá está de fato, quando o ponto de vista a ser adotado para fitá-la é pré-dado, quando o modo de vê-la se acha previamente determinado por toda uma série de crônicas, relatos, notícias, romances, por uma sucessão de miradas, estrangeiras ou não, que lhe demarcam os contornos, tonalidades, sombreados140. Em Vasconcellos temos um autor que não se desprende dessas perspectivas apresentadas; pelo contrário, submerge com o ímpeto carregado de pré-noções, pré-conceitos e lugares comuns já sedimentados para elaborar as tramas e descrições de paisagens e relações humanas de seu romance carregado 137 PIMENTA, A História oculta da floresta: imaginário, conquista e povos indígenas no Acre, 2004, p. 05. O artigo publicado em 2004 não foi encontrado por mim na sua publicação original. Uso aqui uma versão postada pelo autor em sua pagina pessoal (disponível em: https://brasilia.academia.edu/JoséPimenta) onde ele usa uma numeração de páginas divergente da original. 138 “Existe atualmente uma vasta produção bibliográfica que faz uso do termo Pan-Amazônia com seus múltiplos significados. Contudo, encontramos em obra de Djalma Batista lançada em 1976 o uso mais recuado e detalhado do termo, que o autor entende sobretudo por sua dimensão geográfica e espacial. Batista atribui a criação do termo ao médico Gastão Cruls nos anos 1950”. Apud SILVA & ALBUQUERQUE, Narrativas e amazonialismo: representações da Amazônia nos relatos de viagens de Paul Walle, 2019, p. 63, nota de rodapé 02. 139 ALBUQUERQUE, 2016, p. 77. 140 SUSSEKIND, O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem, 1990, p. 32. 44 de elementos do amazonialismo/amazonismo. A natureza apontada como selvagem, primeva e misteriosa corresponde também aos imaginários apontados pela autora acima citada no contexto da invenção do Brasil como nação ao longo do século XIX. Pela imaginação e voz solitária de Teodozio a Amazônia acreana que ele passa a conhecer é, em algumas passagens, o purgatório. Um lugar de trânsito ligeiro, um território de trabalho não definitivo e de onde ele almeja partir em alguma oportunidade futura. Noutros momentos mais frequentes, torna-se a representação do inferno terreal, um lugar de sofrimentos, de medos e onde ele terá fatalmente um fim aterrorizante. Contudo, ao amanhecer o primeiro dia após sua chegada ao local da futura sua colocação (barraca de morada), o clarão do dia é de esperança para o migrante cearense, de renovação do desejo de trabalhar e enricar para dali sair o mais rápido possível em direção à terra natal ou outras paragens menos malvistas que a Amazônia. A luminosidade local tem um sentido inverso em relação àquela que dominava os sertões cearenses descrita no inicio do romance, pois ela traz alento e a possibilita ver melhor o lugar ainda estranho, que vai sendo descortinado pelo brilho do sol ao amanhecer o dia. Mas a esperança de enricar ou ao menos pagar as dívidas era algo cada vez impossível para Teodozio, pois as seringueiras já estavam esgotadas devido a intensa exploração das décadas anteriores. E ele é um homem mal alimentado, adoecido e alquebrado pelos ataques das picadas de piuns, ferradas das formigas tucandeiras, choques dos peixes poraqués e inconvenientes de outros bichos da fauna local que ele desconhecia. A dívida de Teodozio no barracão do seringal só cresce pelos artifícios malandros do seu patrão Adelino Chagas, alguém descrito no romance como um explorador cruel de seringueiros nos confins do Rio Iaco, na região do Departamento do Alto Purus. Alem das (des)aventuras individuais das muitas personagens presentes em Deserdados, a figura do seringueiro como personagem anônimo e coletivo é alçado à condição genérica atribuída em particular a Teodozio. Cada um solitariamente, ao longo do tempo, internados em seringais, fizeram e fazem o “amansamento” do deserto malgrado as dificuldades, privações e explorações que sofrem. São chamados de “titãs das secas”, elevados ao patamar de heróis desconhecidos e encerrados em dois coletivos identitários: no laboral de “seringueiros” e no gentílico de “cearenses”. No romance de Carlos de Vasconcellos, a decantada conquista do Acre é fruto do ímpeto desses cearenses e de ações multifacetadas de empreendedores individuais não dirigidas pelo poder estatal. Se em Euclides da Cunha temos o sertanejo, na escrita de Vasconcellos temos o cearense, sujeito coletivo mais especifico e que carrega o gentílico de uma unidade da federação brasileira. São os filhos de um estado do Norte e desbravadores que realizam a colonização à gandaia, sem regramentos oficiais. Os cearenses, e não os nordestinos ou sertanejos, são elevados à condição de heróis coletivos e anônimos dessa conquista e incorporação do Acre ao Brasil. O cearense na pena de Vasconcellos se torna uma figura superior àquela do bandeirante na construção da nacionalidade (proto)brasileira em séculos anteriores. Eles são os “titãs das secas”, como comumente apresentados e adjetivados na obra desse autor. Longe da “natureza madrasta” do Ceará, o retirante só se salva na “mefítica da Amazônia por cauza da têmpera rija de sofredor”141. Mas uma vez há clara aproximação com a famosa sentença de Euclides da Cunha, de que o sertanejo é acima de tudo um forte e que na Amazônia ele passou por uma seleção natural invertida142. Titãs sofredores, que carregavam nos corpos tal qual um palimpsesto as marcas das dores, da fome e das doenças que lhes alvejam também a alma e os tornavam, sem saberem, heróis da pátria brasileira e do Acre em particular. Gentes que territorializam o novo espaço aonde vão palmilhando por caminhos de terra e por caminhos líquidos das águas de rios e igarapés. 141 VASCONCELLOS, op. cit., p. 31. 142 CUNHA, 2000, p. 150. 45 Esses migrantes que vão chegando em profusão ao Inferno verde são chamados pelo autor de “mais vitimas para o holocausto ou mais torturas para a tempera glorioza desses fortes da pátria”143. São uma espécie de plantation humana, modelo de exploração inerente à colonização. E a pátria descrita nessa passagem remete em particular ao alargamento do território brasileiro com a chamada conquista do Acre. Geralmente essa dita conquista é narrada em sentido duplo: da ocupação territorial de terras estrangeiras por migrantes que passam a explorar o látex retirado basicamente de seringueiras nativas desde a segunda metade do século XIX. O outro sentido, de caráter mais bélico e da pretensa opção objetiva de ser brasileiro, se refere ao embate militar entre brasileiros e bolivianos que redundou na anexação do Acre ao Brasil por meio de um tratado bilateral em 1903. Para Carlos de Vasconcellos, a odisseia dos sertanejos cearenses nas terras acreanas é algo superior e incomparável à obra de conquista e alargamento territorial realizada pelos bandeirantes de outrora. Esses dois tipos nacionais são mostrados pelo autor como sendo aqueles que nutridos de ímpeto e coragem se lançaram em aventuras que lograram ao Brasil a ampliação de suas fronteiras. As duas narrativas são alçadas à condição de feitos patrióticos na formação inicial e final do Brasil como nação. O bandeirante paulista é apontado como aquele que desbrava terras salubres, bem situadas topograficamente e com favores da coroa portuguesa. A saga tardia do sertanejo cearense é superior porque foi realizada em uma “zona tórrida”, região “infecta” e explorada em impostos por “governos vandálicos” da Bolívia e do Brasil144. Diz ele então que “foi assim que uma plêiade de cearenses valerozos (sic) pervagou as matas vírjens do Alto-Iaco, abrindo vastíssimos piques e aceiros que, á feição de parentezis imensos, abraçavam a area por eles dezejada como própria”145. Terras aparentemente vazias, vistas como sem donos e abertas à conquista, ocupação e direito de propriedade para aqueles que irão “abrir” seringais para exploração dos seus recursos naturais e também dos sujeitos pobres tornados força de trabalho perene atrelada às dívidas do barracão. Desejar a terra “como própria” nos possibilita apontar tanto no sentido de amor à pátria, de brasilidade, quanto ao sentido pessoal de possuir a terra, ser dono de fato (mesmo que não de direito) e ser reconhecido como tal. Na narrativa da obra Deserdados a terra acreana aparece como “recém libertada da Bolívia por uma plêiade de brazileiros inolvidáveis”146. Os cearenses são então elevados à identidade maior, alçados a condição de patriotas que lutaram contra o opressor estrangeiro. Passada essa fase de sonhos, a territorialidade do seringal ou o seringalismo retomaram seu protagonismo e o heroísmo dos “de baixo” se torna expediente ficcional, matérias jornalísticas laudatórias, discursos políticos regionalistas e de utópicas narrativas historiográficas. O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior afirma que essas narrativas sobre os intrépidos, corajosos e heroicos nordestinos foram uma forma das elites nordestinas se contraporem a uma narrativa historiográfica emanada no IHGB desde o século XIX, em que predominou a tese da conquista do território nacional como obra do bandeirante português/paulista. A chamada conquista do Acre é então a oportunidade dessa narrativa regionalista do Norte/Nordeste emergir, algo que em grande medida foi realizado por intelectuais cearenses, estado de onde provinha boa parte desses migrantes. Em função disso e em disputa com intelectuais do regionalismo pernambucano, os intrépidos nordestinos/ cearenses ganham ares épicos e heroicos no processo de expansão horizontal da fronteira amazônica sul - ocidental147. 143 VASCONCELLOS, op. cit., p. 38. 144 Idem, p. 90. 145 Idem, p. 91. 146 Idem, p. 65. 147 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Por uma história acre: saberes e sabores da escrita historiográfica, 2014, p. 125. 46 Conforme já citamos anteriormente, nesse processo contínuo de presença humana no espaço amazônico e acreano irão existir aqueles que estarão mais precariamente territorializados e outros melhores territorializados. Um exemplo nessa direção pode ser em relação aos grupos sociais de seringueiros e indígenas que habitavam o Acre do período em que estamos aqui enfocando. Embora esses grupos tornados subalternos diante dos agentes do capital não detivessem o poder legal, com o reconhecimento do direito ao território em seu sentido jurídico e político, eles sempre exerceram o poder simbólico sobre os territórios que ocupavam e viviam. Isso porque no dia a dia eram os melhores conhecedores do ecossistema nativo, dos recursos naturais disponíveis, de toda a geografia do lugar, dos seus mitos, do mundo humano e não humano, das dimensões do natural e do sobrenatural. Carregavam as simbologias envolventes do lugar e exerciam o valor de uso do território, com as práticas cotidianas do vivido e geravam mais apropriação do que dominação no sentido atribuído por Lefebvre148. É neste sentido que poderíamos então afirmar a existência manifesta e pretérita de uma territorialidade seringueira ou da seringalidade concomitante a territorialidade do seringal ou do seringalismo. Sem olvidar, evidentemente as outras multiterritoriades praticadas pelas diversas etnias indígenas nesse mesmo período, malgrado a ocupação de seus territórios e os intensos processos de destribalização. ARQUITETURA E ESTÉTICA URBANA: AS AUSÊNCIAS DO BOM GOSTO NO ACRE FEDERAL Se havia um conjunto de noções sobre a floresta, das territorialidades que vão sendo tecidas nos diversos viveres e com múltiplas conseqüências para os humanos e não humanos envolvidos, os olhares e as ações sobre o espaço urbano trazem também a narrativas das ausências, dos atrasos, dos deslocamentos sociais, culturais, políticos e estéticos que muitos reverberavam como verdades consagradas. Tomemos o exemplo do advogado Hugo Carneiro, que foi nomeado pelo presidente Washington Luís para exercer o cargo de governador do Acre. Ele sucedeu o desembargador Alberto Diniz e seu mandato foi de junho de 1927 a dezembro de 1930. Hugo Carneiro já era conhecedor do Acre, pois havia sido advogado e juiz municipal na Vila Seabra (sede do Departamento do Alto Tarauacá) durante alguns anos quando lá morou no início da década de 1910149. Sua chega ao Acre no final da década seguinte parece ter lhe causado uma espécie de “volta no tempo” ao se deparar com o que ele vai chamar de “atraso”, caracterizado pelas ausências em descompasso com o Brasil cosmopolita. Essa impressão primeira ele fez questão de expressar a quem o havia nomeado. Ele escreve então ao presidente brasileiro e para exprimir o “seu sentimento de frustração com o aspecto da capital do Território que iria administrar e descreveu Rio Branco, grotescamente, como um espaço formado por toscas construções em madeira, órgãos públicos abandonados e ruas mal preservadas”150. Dotar os espaços considerados urbanos e a pequena população de moradores de hábitos civilizados e que correspondessem ao bom gosto era uma meta que embalava alguns moradores das cidades acreanas, notadamente autoridades públicas e profissionais liberais migrantes. Principalmente os que chegavam ao Acre para exercer alguma função laboral de maior prestígio ou cargo público nos confins da selva. Por isso, parte dessas pessoas designadas para determinadas funções não queriam permanecer por muito tempo no Acre ao serem designadas para ali servirem em algum momento. Uma desses casos é relatado pelo primeiro prefeito do Departamento do Alto Acre, o militar Raphael da Cunha Mattos, ao dizer em seu relatório de governo que “poucos dias após haver entrado em exercício o Dr. Toledo deu parte de doente e obteve licença para seu tratamento de saúde fora do Departamento”151. Tratava-se de 148 COSTA, 2007, p. 21. 149 Este Departamento foi criado em 1912, após desmembramento do Departamento do Alto Juruá. 150 SOUZA, Fábulas da modernidade no Acre: a utopia de Hugo Carneiro (1927 a 1930), 2018, p. 31. 151 MATTOS, 1905, p. 05. 47 juiz de direito Carlos Domício Toledo de Assis, que teria usado do subterfúgio de acometimento de doença para, poucos dias após sua chegada, retornar ao Rio de Janeiro e se submeter a cuidados médicos e nunca mais voltar ao Acre. Esse mesmo juiz, depois de já estabelecido e morando na capital federal, escreve um opúsculo chamado Organização Judiciária do Território do Acre, publicado em 1907 em que alega como motivação da sua saída — além do adoecimento — o baixo salário frente ao custo de vida no Acre e da falta de estrutura material para exercer a sua função. As ausências — em um Acre que quase tudo faltava — levam-no a fazer comparações. Em uma passagem da sua obra ele apresenta o que seria um descompasso existente no Acre, comparando-o com seu oposto e local onde ele então já residia: “o Rio de Janeiro é o grande centro civilizador do Brazil, onde nada falta. O Acre é o degredo do Brasil, onde nada existe de creado”152. Temos então dois espaços em opostos absolutos. A capital da republica seria por definição tudo aquilo que espelhava a modernidade e portava as comodidades que ele dizia não existir em terras acreanas. O Rio de Janeiro tinha tudo e o Acre não tinha nada e, nas palavras desse juiz, lugar de degredo. Para alem do simbolismo da sua afirmação final, isso de fato ocorreu em fins de 1904 e 1910 com o envio ao Acre de desterrados das revoltas da vacina e da chibata ocorridas na capital republicana153. E ele diz mais, em outro documento enviado ao ministro da justiça onde justifica sua saída repentina do Acre porque ali era “uma zona insalubre, primitiva, agreste e infelizmente barbarizada”. Alem do que, em relação ao funcionamento da justiça em terras acreanas ele acreditava que “durante muitos annos, não se poderá obter um jury regular, deante do atrazo e supina ignorância da maioria dos habitantes”. Se o território era doentio e primitivo, com habitantes ignorantes, o melhor era não investir alem do mínimo necessário, pois “não penso que se devam construir edifícios dispendiosos, incompatíveis com o meio social e com o estado de civilização local”154. Contudo, por mais que existisse boa vontade das autoridades nomeadas, muitas vezes faltavam recursos humanos, financeiros e materiais para executar as ações dos poderes públicos no Acre Federal. Por questões políticas e financeiras, Cunha Mattos afirma que não transferiu a sede do Departamento para a vila de Xapuri como desejava, ficando ela estabelecida definitivamente na Vila Rio Branco. Esta ultima localidade é descrita por ele em tom lamentoso, pois “conta com 22 casas, feitas quase todas de paxiuba, e pouco mais de 200 habitantes. Não é bom o seu clima, como em geral o das margens do (rio) Acre”155. O destaque dado ao material das casas, das palmeiras retiradas dos arredores florestais da vila, parecia encerrar exemplarmente o atraso do lugar que não dispunha de madeiras beneficiadas e muito menos de alvenaria para as construções urbanas de uma desejada cidade nos moldes dos cânones da belle epoque. Na imagem a seguir [Imagem 02] temos o instantâneo da equipe administrativa da Prefeitura do Departamento do Alto Acre. A foto foi publicada na revista O Malho em sua edição de julho de 1905 e traz o prefeito, coronel Raphael da Cunha Mattos à frente e sentado ao centro com os demais auxiliares seus, todos militares do exercito nacional transplantados momentaneamente para o Acre. Eles são assim nomeados, de cima para baixo, na publicação: “capitão Dr. Bezerra Marsillac, alferes Pinto Monteiro, dr. Paulo Queiroz, Mario Barbosa, Dr. Pedro Marques, capitão Odilon Pratagy e coronel Cunha Mattos, prefeito.” 152 Apud COSTA, Seringueiros, patrões e a justiça no Acre Federal, 1904/1918, 2005, p. 109. 153 Sobre estas questões ver: SILVA, Acre, a Sibéria tropical, 2018. 154 Apud COSTA, 2005, p. 122. 155 MATTOS, 1905, p, 17. 48 Imagem 02: A prefeitura do Alto Acre Fonte: O Malho, 15 de junho de 1905, ano IV, número 148, p. 14. Acervo da FBN. O destaque que se quer realçar na publicação da foto é evidentemente das autoridades deslocadas e em serviço altruísta no distante Acre Federal, vestidas em roupas que procuravam expressar suas respectivas autoridades e patentes militares. Posam na frente da sede da prefeitura, em uma das poucas construções de madeira ali existente e alugada pelo senhor Leon Hirsch156 ao poder departamental recém implantado. De acordo com Cunha Mattos, o estado de conservação do prédio não era bom, mas poderia ser melhorado com alguns reparos. Contudo isso tinha como entrave as dificuldades em conseguir matérias primas, material humano e recursos financeiros para obras, situação que assim ele pontua: “é quase impossível construir de alvenaria, pois tudo teria de ser importado, desde o tijolo até o mais insignificante material, o que traria enormes dispêndios. A madeira preparada aqui atinge sempre preço elevado, e não raro vêem-se casas de aparência modesta que custaram aos seus donos fortes somas”157. Então, como constituir um espaço urbano não dissociado dessas ausências materiais e humanas, distanciado do mundo rural, dos seringais e das matas que eram por definição seus contrastes? Devemos ter em mente que na ótica desses governantes, as cidades amazônicas vão se constituindo para gentes e pessoas que deveriam incorporar os “usos e costumes corretos” instituídos por decretos no meio citadino. Por isso deveria haver a separação clara das práticas do mundo rural/florestal, daquelas das cidades governadas por essas autoridades que eram geralmente militares com formação em engenharia e medicina. A engenharia, junto com a medicina, buscava definir estéticas e práticas ditas corretas e objetivas para os corpos dos cidadãos e para os múltiplos usos dos espaços urbanos. A matéria do jornal Alto Acre de 1913 se enquadra nessa perspectiva de corpos e comportamentos considerados inadequados, ao reportar que em Xapuri, “durante a semana finda visitaram a delegacia de polícia: por julgarem que a cidade era como estrada de seringa, em que se anda caçando com rifles, os seringueiros Antônio Cardoso e Raymundo de Castro”158. As autoridades através dos códigos de postu156 Leon Hirsch aparece citado em inúmeras vezes no jornal Folha do Acre entre os anos de 1910 e 1926. É referenciado como comerciante em Rio Branco, major e membro da diretoria da Associação Comercial local no ano de 1911. Entre outras propriedades, era dono da Casa Leon Hirsch, que vendia ferragens, roupas e joias. É informado ainda que ele era alemão da região da Alsácia e a edição 531 da Folha do Acre, de 10 de junho de 1926, anuncia a mudança de Leon Hirsch para o Rio de Janeiro. 157 MATTOS, 1905, p. 10. 158 Alto Acre, 17 de agosto de 1913, p. 02. Acervo do Museu Universitário da UFAC. 49 ras municipais implantadas idealizavam comportamentos inspirados em outras realidades urbanas e que conflitavam com hábitos e praticas sociais de trabalhadores do mundo rural/florestal que usavam armas com o intuito primeiro de caça e proteção no interior da floresta. Os seringueiros, em particular, passam a expressar os sujeitos inabilitados em viver ou mesmo momentaneamente visitar o espaço urbano, porque destituídos de práticas consideradas civilizadas e normativamente aceitáveis. Esse choque cultural é relatado pelo padre francês Jean-Baptiste Parrissier quando visita a região do Juruá e se depara com comportamentos que lhes são estranhos ao subir os altos rios para fazer desobrigas religiosas entre seringueiros em 1898. Por exemplo, ele se espanta com o fato de mulheres, homens e crianças comerem sem o uso de talheres e com as mãos que ele reputa como sujas, pois não tinham o habito de lavá-las e ainda o fato de cuspirem em demasia enquanto conversavam com ele. Sua explicação é que aquelas pessoas não “aprenderam nossos usos e costumes”159. A imagem de pessoas rudes ou alheias aos usos de costumes “corretos” mas crédulas em questões religiosas, leva esse padre a afirmar que, no entanto, elas eram aptas a se tornarem boas católicas porque tinham almas puras e limpas, malgrado a falta de higiene corporal. A higiene era uma questão angular nas cidades brasileiras do período, notadamente quando relacionada à prevenção de doenças. No caso do Acre, isso aparece com muita ênfase em várias administrações a partir de 1904. O prefeito Cunha Mattos era médico e teceu alguns comentários em seu relatório sobre salubridade em relação às vilas Rio Branco e Xapuri. Em 1912 uma Comissão sanitária liderada pelo médico Carlos Chagas percorreu o território acreano com a finalidade de debelar principalmente a malária nos seringais, que muitos associavam como sendo responsável pela queda na produção de borracha160. O fato é que nem mesmo Cunha Mattos conseguiu permanecer por muito tempo no Acre Federal para “civilizar” e “modernizar” o Departamento do Alto Acre. Ele oficialmente pede demissão ao ministro da justiça e ao finalizar seu relatório, em janeiro de 1905, afirma que o Acre é um “território ingrato, onde poucos que escapam com vida fatalmente retiram-se sem saúde”161. A ingratidão da terra que expulsava esses homens portadores de ações bem intencionadas vai ser um mantra repetido por muitos que andaram pelo Acre na busca de “civilizar” a terra e suas gentes. Havia o mal do corpo — expresso nas doenças endêmicas — e o mal do espírito expresso nos modos de pensar, dizer e agir das gentes atrasadas. Outro prefeito designado na mesma época para administrar o Departamento do Alto Purus (sede em Sena Madureira), também tece seus comentários sobre o local que governava e conta que “quanto a má fama que gosavam os habitantes deste sertão do Brazil, no que concerne a insubmissão dos mesmos aos preceitos legaes e a acção das autoridades, nada tenho a articular em detrimentos seu”162. O seu tom é dúbio, pois parecia querer calar-se já que não poderia falar bem ou que a população era o oposto daquilo que afirmava sobre si mesma. Acerca de Sena Madureira, cidade recém fundada para ser a sede do Departamento do Alto Purus, o prefeito diz que ali “até pouco tempo era o terreno ora occupado pela futura cidade, coberto de frondosa mata virgem e sem uma barraca que atestasse alli a existência do homem policiado”163. O sujeito policiado é aquele que compartilha dos regramentos legais e morais instituídos e que passa a conduzir o seu viver na polis, espaço que é o oposto da natureza apontada como intocada e virgem. Sobre a saúde das pessoas naquele Departamento ele se expressa nos seguintes termos: “a medicina e o tratamento de moléstias quaesquer estão aqui em estado empírico, sendo de notar que, por esse 159 PARRISSIER, Seis meses no país da borracha, ou excursão apostólica ao Rio Juruá, 1898, 2009, p. 23. 160 SOUZA, 2014. 161 MATTOS, 1905, p. 23. 162 MARIANO, Relatório do prefeito do Alto Purus, 19 de agosto de 1905, 1905, p. 05. 163 Idem, p. 06. 50 motivo, perecem em maior número os que lançam mão de toda espécie de remédios para debellar o mal que sofrem, que os tratados pelos processos racionaes empregado na medicina”164. Esse estado empírico se expressava em uma medicina popular que fazia uso de plantas, rezas e até de bebidas alcoólicas que são vistas pelo prefeito como práticas irracionais de pessoas que em muitas vezes não tinha a menor possibilidade de acessar a medicina alopática. Ele aponta ainda que o uso do álcool era um problema a ser debelado pelas autoridades públicas com denodo. Para isso deveriam essas autoridades “taxar fortemente a venda de taes bebidas, evitar o seu uso habitual e propagar a doutrina anti-alcoolica devem ser os cuidados principais da administração pública, para o engrandecimento moral e material do território”165. Outro prefeito contemporâneo deste, mas estabelecido no Alto Acre, fala em seu relatório dos tipos humanos que habitavam os seringais e áreas rurais próximas a Rio Branco. Acauã Ribeiro assim se refere aos habitantes de fora da diminuta vila e capital do Departamento do Alto Acre: “aglomerações de indivíduos na sua quase totalidade sem cultura intelectual e muitos de pouca morigeração, resultando innumeras vezes rixas, conflictos e práticas de delictos crimes que exigem a intervenção da autoridade”166. Incultos, preguiçosos e violentos, essa é a sentença do então prefeito. Mas havia aqueles que queriam e se esforçavam para mostrar que era possível ter civilização e bom gosto nesses confins do Brasil ao enviarem para o Rio de Janeiro fotos de eventos que realizavam na esperança de serem elogiados e reconhecidos como pessoas inseridas em gostos cosmopolitas. No caso relacionado à fotografia seguinte [Imagem 06], o resultado foi o oposto daquele esperado pelos retratados em busca de elogios e aceitação. Publicada na revista humorística O Malho, em uma de suas edições de 1907, ela serve de mote para a ironia caustica como imagem síntese do atraso, da feiura do Acre e dos seus moradores. Ela é a amostra tornada debochada de um evento ocorrido na cidade de Xapuri, onde na legenda da foto se lê as seguintes informações: um animado torneio de bagatella, realizado em 15 de julho na Casa Cacáo, e na qual tomou parte gente da melhor sociedade: – foram juízes os Srs. 1) Rodrigo de Carvalho; 2) João Coelho de Miranda; 3) José Bastos. Foram campeões, os Srs 4) Dr. Cezar Rosas; 5) Fulgencio Cruz; 6) Sesostres Cahan Coqueiro; 7) Dr. Esperidião Queiroz; 8) Euclydes Maranhão. Este clichê foi-nos oferecido para mostrar que o Acre não é tão feio como se pinta: tem vida, ânimo e diversões – como diz textualmente a nota167. 164 Idem, p. 11. 165 Ibidem. 166 RIBEIRO, Exposição dos factos administrativos occorridos na prefeitura do Alto Acre apresentada ao Exm. Sr. Dr. J. J. Seabra, 1906, p. 04. 167 O Malho, 09 de fevereiro de 1907, Ano VI, número 230, p. 25. 51 Imagem 03: Uma photografia interessante Fonte: O Malho, 09 de fevereiro de 1907, ano VI, número 230, p. 25. Acervo da FBN. A legenda com as informações sobre alguns dos presentes no evento já é bem sintomática naquilo que ela exclui, embora mulheres e crianças estejam presentes visualmente em primeiro plano com suas roupas de uso social. Os destaques são somente dados aos homens cuja identificação encontra-se numerada. As mulheres, as crianças e os demais presentes são apenas figurantes de uma cena que procurava dar destaque aos organizadores masculinos e jogadores de um torneio de bilhar com apostas de baixo valor ou premio simbólico, considerados na matéria sem importância. Por isso é classificado como um torneio de bagatelas, significando bugigangas e ninharias como prêmio. Não fica evidente, mas nomear as atividades lúdicas de “torneio de bagatelas” deve ter sido da lavra do periódico O Malho que viu ali uma oportunidade de fazer troça com as gentes atrasadas “da melhor sociedade” xapuriense. O ambiente interno ao fundo, com uma parede de madeira sem forro e enfeitada com folhas de palmeiras, adereços brilhosos e coloridos colados em peças nos madeirames das estruturas, junto com o que parece ser uma bandeira do Brasil estilizada e sem conformidade com o padrão formal de cores e tamanho, reforçariam o aspecto tosco e sem refinamento daquela propriedade e das pessoas ali reunidas. Por fim, ao se dizer que lhes foi oferecido um clichê, os editores da revista humorística querem afirmar que já receberam pronto um conjunto de signos presentes na fotografia que serviram como uma luva justa para reafirmar os estereótipos já consolidados, em vez de desconstruí-los como desejavam os participantes dos festejos na Casa Cacao ao se exporem em preto e branco nas paginas de uma importante revista da capital da república. A inversão de sentidos em relação ao desejo inicial dos fotografados é evidente. Na edição seguinte, de 16 de fevereiro de 1907, uma nova foto [imagem 04, a seguir] para uma nova pilhéria. No instantâneo fotográfico é mostrado o lado externo de onde ocorreu o festejado torneio de bagatela na Casa Cacao. A legenda mais uma vez é carregada de ironias, desta vez em relação ao prédio e suas condições arquitetônicas. A assimetria das linhas do prédio e sua composição de madeira denotavam então o atraso do lugar — Xapuri — e por tabela do Acre como um todo. 52 Imagem 04: Casa Cacao Fonte: O Malho, 16 de fevereiro de 1907, ano VI, número 231, p. 25. Acervo da FBN. O fato de ser descrito jocosamente “um dos melhores estabelecimentos” existentes na vila é com o intuito de reforçar o desmerecimento do lugar. É feita uma ponte entre o já findado torneio de bagatelas e aquele espaço físico que as pessoas frequentavam, conforme poder ser lido abaixo. A Casa Cacáo, um dos melhores estabelecimentos comercias da cidade de Xapury. Foi nessa casa que se realizou o torneio de bagatela de que nos ocupamos em o número passado. Entre os objetos expostos vê-se uma grande boneca dentro de uma caixa de papelão – o que prova que perante os primores dessa indústria são iguais o Alto Acre e a nossa Avenida Central168. A imagem do padrão arquitetônico local, sem a racionalidade das linhas simetricamente equivalentes e a falta de harmonia entre as construções desalinhadas internamente, oferecem aos críticos o que seria a expressão máxima da falta de bom gosto, da ausência de quaisquer laivos de civilidade ou da não chegada dos signos do moderno que poderiam ser encontrados na cidade do Rio de Janeiro. É isso que o texto da revista evidencia na sua mordaz ironia, ao comparar os padrões de construções entre as duas localidades e os profissionais dessa área que atuavam com soberba influencia nos espaços urbanos das grandes cidades brasileiras da época. Outros deboches corrosivos se reproduziam amiúde nas paginas deste mesmo semanário. No ano anterior esta mesma publicação faz troça com a arquitetura de um prédio público na cidade de Cruzeiro do Sul, sede administrativa do Departamento do Alto Purus [Imagem 05, a seguir]. A legenda da fotografia adverte antecipadamente ao leitor civilizado e conhecedor da cidade do Rio de janeiro que leve a sério a imagem que se olha na pagina da revista. E diz: Não se riam: o Acre não é a Avenida Central nem mesmo Jacarepaguá. É maior, todavia, porque produz borracha em penca. Não tem luxos, mas tem dinheiro. O palácio da sua Prefeitura não motivou o concurso entre as sumidades da engenharia, nem custou milhares de contos, mas é um edifício na altura da situação: é uma lettra que diz com a careta... O prefeito é o ilustre coronel Thaumaturgo de Azevedo, homem activo, inteligente e enérgico. Ele que não fez cousa melhor, lá sabe porque foi... Uma tenda de rude trabalho, este palácio da Prefeitura do Alto Juruá169. 168 O Malho, 16 de fevereiro de 1907, ano VI, número 231, p. 25. 169 O Malho, 14 de julho de 1906, ano V, número 200, p. 18. Acervo da FBN. 53 Imagem 05: Palácio da prefeitura Fonte: O Malho, 14 de julho de 1906, ano V, número 200, p. 18. Acervo da FBN. Se a imagem da Avenida Central era forçosa demais em matéria de comparação, Jacarepaguá se mostra ainda exagerado para fazer uma aproximação correta. O Acre era rico e despertava interesse apenas pela existência da borracha natural, mas é considerado sem luxo e sem estirpe por esses olhares que se queriam civilizados e cosmopolitas. A construção que sediava o poder executivo do Alto Juruá, segundo a publicação, estava à altura do “estagio evolutivo” de suas gentes e do lugar ainda marcado pelos signos do arcaico e do atraso. Essas imagens visuais, reforçadas pelas legendas adjetivantes e carregadas de ironia reforçavam estereótipos que iam se consolidando em imaginários variados, interna e externamente — principalmente — sobre o Acre e os acreanos. O Acre torna-se se o antípoda do Rio de Janeiro em matéria arquitetônica e em relação aos padrões de bom gosto, refinamento e cosmopolitismo. Durante as décadas seguintes, tal visão continuou predominando em opiniões de diversas autoridades e circulando na imprensa e em outros documentos da época. O já citado governador Hugo Ribeiro Carneiro quando retornou ao Acre 1927 para assumir o cargo de chefe do executivo se viu impactado pelo o que ele chamou de atraso do Acre e de sua capital, Rio Branco. À frente do executivo tomou medidas voltadas para construção material de espaços físicos que expressassem um padrão normativo de inserção do Acre na desejada modernidade. Foi a partir dessas ausências identificadas que ele iniciou as construções em alvenaria do Palácio Rio Branco, em substituição ao antigo prédio de madeira; do quartel da Força Policial do Território e do Mercado Municipal, localizado na margem esquerda do Rio Acre. Em seu relatório de governo Hugo Carneiro expressa na passagem abaixo sua satisfação incontida diante das obras que iam surgindo e deixando para trás o “velho” e o “atraso”. Como um guia aos desavisados, ele conduz o olhar do leitor para a nova urbe com a floresta posta distanciada no horizonte. Estenda a vista em torno e veras á entrada de nossa capital o elegante mercado publico, solida construção em alvenaria (...) ali, na planície soberana dominando toda Rio Branco, como que a velar pela sua guarda, lobrigais o majestoso quartel da força policial, obra que não teme o confronto com as casernas das principais capitaes dos diferentes Estados da Federação, em solidez e arquitetura 54 (...) acolá, vereis o pavilhão dos tuberculosos (...) alem do perímetro urbano, na purificação da floresta verdejante, está o leprosário170. Destas obras, o Palácio Rio Branco foi aquela mais tardiamente concluída. Em uma publicação oficial chamada de Território Federal do Acre (1946-1948), recheada de fotografias de “antes” e “depois”, são mostrados os principais prédios públicos finalizados durante o mandato em curso do major José Guiomard Santos (1946-1949) e como eram antes dele assumir o governo local, geralmente de madeira ou inconclusos em alvenaria. O pequeno texto de apresentação do álbum, que traz o brasão da republica, homenageia e agradece ao presidente Eurico Gaspar Dutra e parecia ser uma espécie de peça de propaganda para as eleições locais e nacionais que ocorreriam no ano seguinte171. O segundo parágrafo afirma que “pode-se dizer, sem receio de exagero, que nenhum prédio público de alvenaria se achava efetivamente concluído, depois de 40 anos de governo territorial...”172. As primeiras fotografias que abrem o álbum de imagens das realizações concretas do governador José Guiomard dos Santos são do prédio mais importante e suntuoso na simbologia do poder no Acre de então. Por isso é sintomático e representativo que algumas dessas fotografias sejam do Palácio Rio Branco, sede do poder executivo acreano e cujo nome homenageava o Barão do Rio Branco. A primeira imagem mostra o palácio em 1946 — dezoito anos depois de terem as obras sido iniciadas em 1928 pelo governador Hugo Carneiro — cercado de andaimes de madeiras na parte externa, sem pinturas, escadarias e rampas de acesso terminadas. Em uma dessas fotografias [Imagem 06, a seguir], temos o Palácio Rio Branco no ano de 1948, onde a legenda atesta sua finalização nas configurações do projeto original em estilo neoclássico desenhado pelo arquiteto Alberto Massler. O ex-governador Hugo Carneiro tem sua maior concepção de modernidade arquitetônica pensada para o Acre apropriada como peça de propaganda política de governos posteriores, como é o caso de José Guiomard dos Santos que irá realizar festejos cívicos, políticos e sociais dentro e no entorno do Palácio Rio Branco para celebrar seu nome e construir seu capital político dali em diante. Imagem 06: Palácio Rio Branco em obras - 1946 Fonte: Território Federal do Acre (1946-1948). 170 Apud SOUZA, 2018, p. 54. 171 José Guiomard dos Santos renunciou ao cargo de governador em 1950 e foi eleito deputado federal pelo Acre. 172 Território Federal do Acre (1946-1948). Sem data, autoria, local e editora identificados. 55 Obras públicas são por definição referenciais que o mundo do poder político busca agregar às narrativas de feitos personalistas e partidários, mas não menos importante são apresentadas como criações que visam preencher necessidades coletivas de uma dada população. Completariam sempre algo até então ausente, são apresentadas como voltadas para melhorias e “elevação” coletiva, pois levariam os cidadãos e a cidade de um patamar a outro. No Acre, os preenchimentos dessas muitas ausências são apropriadas como signos do progresso sempre desejado e fugidio, algo sempre inalcançável mas sempre uma meta infindável no horizonte. O Acre era por definição esse espaço nacional das carências mais evidentes. Pois o decantado território, então o mais recentemente incorporado ao Brasil, era geologicamente parte de uma terra nova nos dizeres de Euclides da Cunha. Para o escritor Abguar Bastos, esse território poderia ser traduzido em uma dúvida retórica que assim ele expressa: “fonte secular, com tão grandes sinais da Providencia, não será o Acre a terra da experimentação?”173. Independente dos referenciais de tempo que cada um deles usa, há a partir da narrativa de ambos a ideia de ausências essencializadas em relação ao Acre e que elas perdurariam ainda por muito tempo. Fazendo um paralelo com as problematizações levantadas por Achile Mbembe sobre o termo África, Acre e Amazônia, tal qual aquele continente, se constituem também inseridos em um imaginário pré-concebido onde “só conseguimos falar dessa realidade de maneira anedótica e longínqua”. São então lugares “onde tudo parece vazio, deserto e animal, virgem e selvagem, um amontoado de coisas agrupadas numa completa desordem”. Da mesma forma que o continente africano — a Amazônia durante e muito tempo e o Acre em particular de maneira mais demorada — também foram narrados em um semelhante “simulacro de uma força obscura e cega, emparedada num tempo de certa maneira pré-ético e possivelmente pré-politico”174 173 BASTOS, 1936, p. 64. 174 MBEMBE, A critica da razão negra, 2018, p. 97. 56 CAPÍTULO II: BICHOS, FLORESTAS E DOENÇAS: O OUTRO MUNDO SELVAGEM Só Em derredor se perde a vastidão da mata No horizonte acanhado o olhar derramo em torno E vejo que estou na abobada de um forno (...) Lá fora, enchendo o espaço, arbitrário, tirano, O dia tropical, o dia soberano, (...) Um silêncio de campa adeja no ar parado. E eu só neste recesso estou como engastado Numa imensa, soberba, esplêndida esmeralda. Benedicto Bellem175 175 Fon-Fon, 16 de outubro de 1909, número 42, p. 30. Acervo da FBN. O poema Só — cujo fragmento cito na epigrafe acima — é assinado por alguém chamado Benecdito Bellem176 e ao lado do nome do aludido autor, traz a localidade e o ano que seria da finalização da escrita — Acre, 1908. É provável que tenha sido escrito em Cruzeiro do Sul, onde vivia Benedicto Bellem na data de sua publicação na revista carioca Fon-Fon. O pequeno poema é marcado pelas sensações e subjetividades diante da natureza que o eu lírico contempla solitário em algum lugar do Território Federal do Acre. Sua descrição inicial é da perspectiva de quem olha a partir de uma clareira o espaço circundante tomado em todas as direções horizontais pela imponência da floresta. O céu sobre si projeta um calor inclemente, de um dia tropical classificado como tirânico, sem ventos que amenizassem a sensação térmica intensa que lhe aprisionava dentro da “esmeralda verde” que é a floresta amazônica. A Amazônia antes de ser nomeada e conhecida por essa designação derivada do mito grego, já causava admiração, espanto, medo, fascínio e elucubrações das mais diversas em relação ao que ela era e ao que guardaria em seus interiores desde os primeiros contatos dos europeus que irão formatar suas construções imagéticas sobre a região. Viajantes, exploradores, naturalistas, religiosos, militares e outros tantos teceram desde muito tempo os mais variados discursos e sentenças sobre o lugar que visitavam ou do qual recebiam informações por meio de terceiros. A natureza em seu sentido estrito foi desde o primeiro momento a fonte de todas as representações, algo perene ainda nos dias de hoje. Por isso temos uma vasta documentação escrita que desde o período da conquista ibérica colonial vai destacar o mundo hidrográfico, vegetal e animal com seus aspectos de fundo econômico, mágico, religioso, alimentar e medicinal em maiores evidencias177. Em sentido geral, há um domínio do julgamento da natureza pelos humanos a partir dos seus usos humanos, como bem salienta William Cronon178. O mundo “lá fora”, diz ele, só pode ser entendido pelos nossos valores e nossa ciência dominantes em cada época. Voltando a particularidade em questão, devemos considerar que essa natureza do Novo Mundo já não era tão natural como parecia ser aos olhos dos primeiros conquistadores europeus e seus interpretes posteriores. As pegadas humanas, as migrações de plantas, a chegada de microorganismos e animais de outras partes do globo já tinham ocorrido muito antes da ultima glaciação como salientam muitos estudos já consolidados179. Voltando à centralidade em discussão, algumas obras que lidam com essas questões imagéticas no contexto da Amazônia brasileira são bastante conhecidas pelo público leitor dos campos de estudos historiográficos, antropológicos e das demais áreas das ciências humanas. Neide Gondim, em sua obra A invenção da Amazônia, aponta que uma característica central dos cronistas-viajantes pós século XVI vai ser o deslumbramento em relação as floresta e as águas. As narrativas giravam em torno de visões edênicas e também de cunho infernal, que provinham de crenças e valores da mentalidade européia e cristã de então180. Em estudo mais recente, o historiador Auxiliomar Ugarte na obra Sertões de bárbaros traz interessantes discussões sobre os olhares dos viajantes ibéricos acerca do clima, da fauna e da flora da região 176 O jornal A Reforma no ano de 1923 traz uma nota em que afirma ter Benedicto Bellem recebido dias antes o diploma de agrimensor honoris causas da “escola de Engenharia do Rio de Janeiro”. No seu breve perfil é dito que chegou ao Acre em 1907 como auxiliar do militar Bueno de Andrada que chefiava a Comissão de Obras Federais em Cruzeiro do Sul. Com o fim dos trabalhos da comissão, passou a atuar como agrimensor e posteriormente como professor em uma escola na Vila Seabra, sede do Departamento do Alto Tarauacá. Fonte: A Reforma, 14 de outubro de 1923, ano VI, número 423, p. 01. Acervo da FBN. 177 Ver, entre outros: UGARTE, 2009; GONDIM, 1994; SLATER, 2015; HEMMING, Árvores de rios: a história da Amazônia, 2011. 178 CRONON, Introduction: in search of nature, 1995. 179 CROSBY, Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa (900-1900), 2011; UJVARI, A história da humanidade contada pelo vírus, 2011. 180 GONDIM, op. cit., capitulo II da obra. 58 hoje chamada de Amazônia. Para este autor, o principal objetivo dos europeus na região se voltava para a busca de riquezas materiais e a conversão religiosa-cultural de populações indígenas181. Essas viagens inaugurais teriam impactados os europeus em duas perspectivas: a primeira foi o encantamento pelo mundo visível, principalmente em relação às águas doces volumosas dos rios e da aparente fertilidade da terra. Em relação ao mundo não visível, os sinais “revelados” indicavam para a existência fabulosa de ouro. Deriva desse desejo, dessa imaginação e dessa busca a expressão espanhola el dorado impregnada desde sempre na imagética da região, que serviu e serve como metáfora para grafar quaisquer sucessos ligados a riqueza material que a Amazônia pode proporcionar a partir da exploração dos seus recursos naturais. O termo inclusive passou por incorporação à língua portuguesa ao se fundir o artigo e o adjetivo hispânicos em uma expressão nova e de uso corrente chamada “eldorado”. Um exemplo singular, entre muitos sobre esta afirmação, pode ser extraída de uma passagem da obra do missionário norte-americano Daniel Kidder. Ele esteve na Amazônia brasileira no início dos anos de 1840, período do início do Segundo Reinado e de agitações na então Província do Pará. Assim ele se reporta à região, que ele diz ser chamada de Amazônia “todo interior da província do Pará”. Para ele, nenhuma localidade na terra despertava “tanto interesse no que respeita a natureza”182. E assevera que “o descobrimento da região revestiu-se de circunstancias verdadeiramente dramáticas. Em meados do século dezesseis a lenda do Eldorado empolgava, na Europa, o espírito de todos”183. A Amazônia como região de posse brasileira é algo mais tardio no processo de formação política do território nacional e da nacionalidade. Magda Ricci em estudo sobre esta questão afirma que até a segunda metade do século XIX a região esteve alijada da prosperidade econômica do Brasil, dominada pelas culturas do café e do açúcar. A região teve como característica uma relação de distanciamento com o Brasil desde o período colonial, quando se reportava diretamente a Portugal. Essa relação continuou distante e marcada por tensões no período joanino e nas décadas iniciais do império184. O Acre, neste sentido, é mais ainda uma expressão tardia desses distanciamentos em relação ao Brasil que muitos narradores irão se reportar no início do século XX. Nesse período o Acre é a metonímia que ocupa o lugar da Amazônia dos séculos anteriores: localidade não abrasileirada, vazia e à parte da história nacional. Ao mesmo tempo é a metáfora — a parte tomada muitas vezes como o todo — dessa Amazônia decantada como distante, infernal, paradisíaca, rica, selvagem, mundo de florestas, bichos e águas. A FAUNA E A FLORA: RIQUEZA, EXUBERÂNCIA E SELVAGERIA Os animais de pequeno e médio porte do ambiente florestal são bichos mostrados como selvagens e, portanto, perigosos; micro organismos e insetos são apontados como incômodos e às vezes classificados como pragas; algumas plantas também são apresentadas como inconvenientes devido seus espinhos, capacidade de provocarem urticárias ou serem venenosas. Parte desses animais da fauna local também será incorporada no consumo alimentar dos migrantes que se tornarão os novos moradores da “selva”, bem como a domesticação de alguns animais para convívio cotidianos (principalmente papagaios, araras, macacos e outros de pequeno porte). Remédios serão obtidos de diversas plantas e passam a fazer parte de uma panacéia de recursos curativos aonde quase nunca chegava a medicina alopática. 181 UGARTE, op. cit., p. 170. 182 KIDDER, Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: províncias do Norte, 2008, p. 230. 183 Idem, p. 231. 184 RICCI, O fim do Grão-Pará e o nascimento do Brasil, 2003. 59 Recusa e aceitação, distanciamento e aproximação, medo e admiração foram ao longo dos séculos alguns dos sentimentos e primeiros impactos causados nos contatos com os ambientes florestal, aquático e faunístico da Amazônia por viajantes e moradores que vão se sedentarizando nesse lugar multifacetado. Os indígenas também aparecem em vários escritos como sendo pertencentes mais à natureza do que à decantada civilização. Como bem apontou o historiador ambiental Keith Thomas, na tradição ocidental chamada de moderna, a “civilização humana” é uma expressão virtualmente sinônima de conquista da natureza185. E a buscada conquista da região acreana passava além da tentativa de domínio da natureza pela presença de indígenas como problema, abordagem que será tratada no capitulo seguinte deste trabalho. Essa já onipresente separação é, por definição, contundente nessa miríade de narrativas que tem a Amazônia e o Acre como pano de fundo. São geralmente sentenças definitivas, onde predominam múltiplas demarcações de fronteiras entre esses dois mundos tornados binários, distintos e em oposição no jogo dos amplos interesses coloniais e posteriormente colocados como nacionais nos diversos países que emergem no continente. Ou ainda, na justaposição de questões mais ínfimas ligadas aos interesses privados entre grupos sociais diversos e indivíduos na luta pela ocupação territorial e no exercício do domínio legal e tradicional — em sentido weberiano — sobre trabalhadores, indígenas, fauna, flora e territórios. João Craveiro Costa, em uma passagem de sua citada obra, assim expressa esse entendimento mais genérico ao remeter à presença do nomeado colonizador-seringueiro-cearense no território desse Acre em movimento de criação e reinvenção dos seus mitos de origem como espaço, unidade nacional e referencial identitário-cultural: E, no verdor eterno da floresta virgem, disputando ao índio a terra e a água e ao clima inóspito a própria vida, escondiam a saudade torturante das campinas natais, afogavam a nostalgia intensa que os devastava, dos lares ermos da sua solicitude. Mas a terra desflorada pelo cearense heróico, que excedeu em pertinácia e arrojo ao bandeirante, a floresta que ele feria, abrindo caminho para a frente, lançando a semente da abundância ao redor das primeiras habitações, restituía, dadivosa, com prodigalidade infinita, aquelas rudes canseiras incessantes186. O migrante atraído pela febre da exploração do látex e outras atividades laborais, tomado no todo como composto somente de cearenses, é percebido na leitura do autor como sendo o principal agente transformador da natureza “intocada” e de seus recursos naturais abundantes. É descrita então uma natureza completamente oposta àquela de onde esses migrantes rumaram e que chegam já cheios de saudades e alheios aos códigos de apreensão do mundo natural que os rodeia dali em diante. Nessa narrativa o indígena é apresentado como elemento antagônico ao bandeirante amazônico, sujeito coletivo emulado no passado nacional e que mesmo saudoso, nostálgico e descentrado, vai avançando as fronteiras (nacional, econômica, cultural) e imprimindo o progresso frentes as intempéries do mundo tropical e úmido que lhe é de antemão estranho. Trazendo ao dialogo o escritor Océlio de Medeiros, sua narrativa ficcional complementa e reafirma as construções imagéticas narradas por João Craveiro Costa em seu texto A conquista do deserto ocidental. Em sua obra literária A Represa, o autor diz que “o desbravamento da Amazônia é uma aventura da raça. Mas sua colonização fulminante é uma obra da saudade” desses migrantes impetuosos já narrados assim, por exemplo, em Carlos de Vasconcellos e Craveiro Costa. Para alem dessa racialização coletiva em um pretenso “tipo nacional” defendida pelo autor, temos destacada a saudade de onde cada um partiu e o desejo premente que conservariam de voltar rapidamente ao local de origem e vivencias iniciais. Como isso não ocorre, os novos lugares de vivencias são nomeados com referenciais aos seus 185 THOMAS, O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1900), 2010, p. 33. 186 COSTA, 1940, p. 103. 60 locais de origem, para renovar esperanças e buscar uma adaptação mais serena ao novo lugar187. E assim ele finaliza sua afirmação, ao sentenciar poeticamente que “o território do Acre, a sua parte mais remota, é a saudade da terra distante”188. Lugar estranho, distante, coberto pela densa vegetação, mas dadivoso, conforme Craveiro Costa busca realçar na sua caracterização dessa conquista do deserto ocidental e tropical tornado brasileiro e aos poucos acreanizado pelos saudosos que jamais retornavam. Espaço geográfico tomado em luta contra o estrangeiro e que seria o novo berço civilizacional do colonizador brasileiro expresso, neste caso, na figura do nordestino cearense. O prefaciador da obra A conquista do deserto ocidental, Abguar Bastos, também não economiza adjetivos em tons superlativos para realçar a riqueza do território acreano baseado na sua extraordinária natureza florestal e aquática. Não era o deserto em sentido lato, mas um oásis fértil e aberto à exploração nas palavras desse escritor e jornalista paraense. Nos seus dizeres, Havia, ao contrario, uma famosa mesopotâmia que se prolongava entre o Juruá e o Purus. Dentro dessas duas formidáveis bacias não havia argila seca, nem seculares dunas. Repontavam, sim, dois impressionantes vales e um triângulo florestal de cento e cinquenta e dois mil quilômetros quadrados. Contra o mormaço que resseca, o calor que estorrica, e a fulguração que incendeia, desdobrava-se do cotovelo Purus-Acre ao cotovelo Tarauacá-Juruá, todo um incansável processo de irrigação que, de leste a oeste, levava húmus e clorofila a todas as árvores189. Toda extensão do território do Acre, já com mais de meio século de ocupação de migrantes brasileiros e de outras nacionalidades, aparece narrado por esses autores brevemente referenciados como sendo uma totalidade florestal e de natureza genericamente unívoca. No caso especifico de Abguar Bastos, os agentes ancestrais por ele destacados não são os humanos. Ele elege inauguralmente os rios transversais que dividem os vales homônimos de suas respectivas bacias e também os antigos departamentos territoriais que vigoraram antes de 1921. Neste autor, geografia física e política administrativa se sintetizam através dos diversos rios que, — com suas águas perenes — inundam, encharcam o solo e vitalizam as árvores da floresta tropical úmida como uma dádiva antecipada aos humanos que depois chegariam à região para explorá-la. Seria então uma natureza já pronta e voltada para atender aos interesses e as engenhosidades dos colonizadores que rumavam para a região acreana assentados no espírito do progresso e da civilização. Abguar Bastos dialoga retroativamente com Euclides da Cunha em outros textos desse autor, como é no caso de Um clima caluniado, quando ele assevera ser o clima do Acre Territorial o oposto daquilo que comumente era apresentado externamente por muitas vozes. A concordância entre ambos é de que haveria uma salubridade natural da região e ela não era obra dos melhoramentos implementados pela ação humana, principalmente após 1904 quando o poder público é instituído. A discordância mais geral se dá mesmo no aspecto relativo ao fato da Amazônia não ser um lugar ainda “pronto” para a aventura humana, como sentenciou o autor de Os sertões. A prova da primeira assertiva seria o processo de povoamento do território acreano, quando o autor paraense apela mais uma vez para a intertextualidade com a escrita euclidiana, ao reclamar do desleixo das autoridades públicas em relação à região. E por fim, também não busca romantizar a vida nos seringais dos trabalhadores extrativos que em sua escrita viveriam mal alimentados, explorados e esquecidos no interior desses centros extrativistas. Algo tão comum em tantas outras obras em seus vários estilos. Ele então assevera: 187 Em seu texto Um clima caluniado, Euclides da Cunha relata brevemente sua impressão acerca da singularidade dos topônimos dos lugares que ele vai encontrando em sua viagem pela região do Purus, no Acre, e cita alguns: Saudade, Inferno, Triunfo, Concórdia, Paraíso, Valha nos Deus, etc. CUNHA, 2000, p. 154. 188 MEDEIROS, op. cit., p. 21. 189 BASTOS, Introdução. In: COSTA, 1940, pp. 07/08. 61 Sem dúvida que há grande exagero na apreciação do clima acreano, considerado dos piores, quando é um dos mais saudáveis do Brasil. E não fôra essa salubridade natural, que é o característico de quase toda a região, o Acre não se teria povoado, porque vários elementos se conjugam, numa conspiração funesta, contra o viver nos trópicos: o desleixo oficial; o desconforto em que vive, nos seringais, o trabalhador; as dificuldades da existência; a deficiência da alimentação. Estas, na verdade, são as causas do excesso da mortalidade na região, levado à conta do clima190. O autor parecia estar se opondo às recorrentes afirmações duais que existiam sobre a região acreana havia algum tempo. Uma reportagem da revista Kosmos de 1904 dizia que a falta de higiene potencializava os efeitos deletérios do clima descrito por muitos como ruim. E que esse quadro só mudaria quando se estabelecesse o progresso na região, pois “é uma lei natural por toda parte verificada, a melhoria do clima sob influencia da civilização”191. A relação de causa e efeito seria então automática: gente civilizada, clima em harmonia com os humanos. Alem das narrativas envolvendo animais, clima, rios e suas relações com os humanos, temos também olhares lançados em direção a flora da região. No diário de viagem do militar Annibal Amorim ele teceu comentários sobre o uso de lenhas nas embarcações a vapor que singravam os rios da Amazônia nos anos iniciais do século XX. Sua observação é que o intenso uso de madeiras como combustível “traz a devastação das matas” e no seu entender isso afetaria “o regime dos rios” e a “capacidade pluviométrica dessas regiões”192. Ou seja, ele atribui à derrubada de árvores uma possível causa na alteração da intensidade de chuvas, que se tornariam mais escassas e prejudicariam a navegação comercial pelo menor volume de água que os rios passariam a ter em períodos de verões mais intensos. Uma saída, segundo aponta em sua sugestão, seria a adoção de carvão mineral que ajudaria a impulsionar a “nascente indústria carbonífera no Brasil”. Em parte, considerava que a devastação florestal se dava pela opção única da queima de madeira, facilitada pela extração das arvores próximas às margens dos rios pelos comerciantes locais, que já vendiam ela seca ao longo das inúmeras localidades em que aportavam as embarcações antes de chegarem aos seus trajetos finais. Interessante que ele nota haver uma majoração do preço do milheiro de lenha na medida em que vai se adentrando aos altos rios amazônicos. Por exemplo, no baixo Purus o preço era de 60$, no médio Purus cerca de 90$ e nas cabeceiras desse mesmo rio chegava à cifra de 200$193. Esse engenheiro calcula então que numa viagem entre o Acre e Manaus um barco do tipo gaiola gastava em torno de 20 contos de réis somente em madeira para alimentar as suas caldeiras fumarentas. Embora realce o gasto financeiro, também está claro que ele quer demonstrar o consumo imenso de madeiras retiradas da floresta para queima e que sua substituição poderia alavancar o comercio de carvão mineral em ascensão no país. Antes dele, outro viajante que no final do século XIX andou pela região do Juruá, o padre francês Jean-Baptiste Parrissier, descreve em sua crônica de viagem uma cena em que ele presenciou o embarque de achas de madeiras na condução em que viajava. Suas observações complementam nossa analise com o que é dito por Annibal Amorim cerca de uma década depois no rio Purus. Vejamos abaixo uma parte dessa narrativa do religioso franco-brasileiro: Os marinheiros e os passageiros da terceira classe que querem ganhar 3.000 ou 4.000 réis são convidados e eis todos saltando para a terra, afundando na lama até os joelhos, trazendo cada um, sobre os ombros, três ou cinco achas. Embarca-se desse modo 5, 10, 15 mil achas e durante esse tempo, que é ordinariamente longo, os passageiros olham os trabalhadores [...] Nossas máquinas devoram 190 COSTA, 1940, p. 383. 191 Kosmos, janeiro de 1904, número 02. Acervo da FBN. 192 AMORIM, 1917, p. 176. 193 Idem, p. 176. 62 quinhentas achas por hora e o milhar é comprado por 60 francos! Para uma região que, afinal, não é senão uma imensa floresta, temos que admitir que é um tanto salgado194. O padre prefere descrever inicialmente a cena visual em que retrata a classe social dos viajantes, onde os mais pobres que viajavam na terceira classe e os marinheiros, que trabalhavam nas caldeiras, eram aqueles que subiam as barrancas enlameadas dos rios e buscavam lenhas para a embarcação em diversas idas e vindas até haver madeira necessária para se chegar ao próximo destino. Outro aspecto curioso é o seu calculo de consumo de madeira no gaiola em que viajava: se são cerca de quinhentas achas de lenha por hora, ao longo de um dia de viagem se consumiam 12 mil achas, o que era uma enormidade de madeira queimada no seu entender. É isso que parece também impressionar Annibal Amorim, pelo aspecto destrutivo da flora e que afetava o regime de chuvas e a consequente navegabilidade nos rios da Amazônia. Já o neófito padre em sua primeira viagem parece não se voltar para essa preocupação, já que a região é para ele uma “imensa floresta” inesgotável. O adjetivo imenso era, para muitos cronistas, um termo incapaz de descrever o que seria — objetiva e subjetivamente — a rede florestal amazônica que se torna uma das metonímias mais usuais para alegorizar a região até os dias de hoje, provocando aquilo caracterizado por autores aqui já citados, como sendo a manifestação do amazonismo ou amazonialismo. Estes dois neologismos conceituais nos ajudam a pensar essa miríade de imagens sobre a região calcada mais na direção de uma natureza como algo que lhe é intrínseco e complementado pela ideia genérica e estereotipada da natureza em seu conjunto como algo inferior e em descompasso com a chamada civilização que lhe é sempre externa. A natureza amazônica — emulada na floresta tropical — seria aquilo que sombreia literalmente o seu oposto, a civilização em suas dimensões simbólicas e materiais. Paradoxalmente, parte desses discursos apontam a riqueza natural existente na região como fonte de bem estar e progresso aos que se situam no “mundo externo”. Algo contraditório na aparência da superfície desses discursos, pois o mundo narrado como inferior e de ausências é ao mesmo tempo apontado como o eldorado e a fonte de panaceias variadas para as necessidades dos “civilizados”. A SELVA COMO SOMBRA DA CIVILIZAÇÃO A floresta densa e escura como símbolo do medo, do mistério, da ausência de segurança e local de perigos é bastante acentuada na tradição ocidental e já foi objeto de diversas narrativas, desde poemas, filmes, pinturas, romances e obras historiográficas. Filmes como O Sétimo Selo (1957), do sueco Ingmar Bergman, retrata com denodo a existência e permanência dessa imagem alegórica da floresta como oposto da civilização, local deserto de humanos e sombrio por definição. É com esta mesma perspectiva que está centrada a narrativa do romance do europeu Joseph Conrad, publicado inicialmente em 1902 e intitulado Coração das trevas, quando se refere às florestas do antigo Congo Belga no continente africano, onde o romance é ambientado. Em sentido mais amplo e alegórico, é todo o continente africano sendo representado como ausente de civilização e o resumo conclusivo de ser uma antítese da Europa que emerge das representações deste autor195. É uma das muitas figurações da “África cuja característica é ser não um nome comum e muito menos um nome próprio, mas um indício de ausência de obra”196 humana nos moldes considerados pelos conquistadores e narradores eurocentrados. 194 PARRISSIER, op. cit., p. 10. 195 Uma crítica contundente a esta obra veio à tona em 1974 no artigo intitulado An image of Africa: racism in Conrad’s “Heart of Darkness”, de autoria do escritor e intelectual nigeriano Chinua Achebe. 196 MBEMBE, 2018, p. 31. 63 O historiador Jacques Le Goff em seu artigo, de 1985, intitulado O deserto-floresta no imaginário medieval , traz interessante discussão sobre a prevalência dessa mentalidade no seio da Europa medieval. Algo que ele se expressa desta maneira em outra obra sua ao dizer que “a floresta estava também repleta de ameaças, de perigos reais ou imaginários. Ela era o horizonte inquietante do mundo medieval, cercando-o, isolando-o, estreitando-o”198. O olhar é direcionando ao longe, para aquilo que não fosse marcado pela intervenção humana, atravessado pelos medos existentes que oprimia e limitava o movimento de muitos em direção ao mundo desconhecido das florestas. O historiador Keith Thomas ao tratar especificamente do caso britânico em relação a esta questão, nos diz que havia em meados do século XVII um dicionário poético que circulava na Inglaterra e trazia diversos termos para designar uma floresta. Entre os mais destacados, estavam: “’terrível’, ‘sombria’, ‘selvagem’, ‘deserta’, ‘agreste’, ‘melancólica’, ‘desabitada’ e ‘assolada por feras’”199. Em perspectiva mais próxima — temporal e geográfica — o poeta brasileiro Olavo Bilac escreveu um poema intitulado Via Láctea, publicado em 1888, onde no quarto soneto ele também tece uma imagem que vai em direção representacional ao que foi comentado anteriormente. 197 Como a floresta secular, sombria, Virgem do passo humano e do machado, Onde apenas, horrendo, ecoa o brado Do tigre, e cuja agreste ramaria Não atravessa nunca a luz do dia Assim também, da luz do amor privado, Tinhas o coração ermo e fechado Como a floresta sombria e secular...200 Se tomarmos essas construções como representações, elas então carregam aspirações de universalidade por quem as utiliza e carrega interesses dos grupos/sujeitos que as forjaram, conforme nos aponta Roger Chartier201 em uma de suas obras. É próprio do humano, em cada época e lugar, construir essas leituras e imagens em relação a si mesmo, aos outros e ao mundo que o envolve com doses de objetividades e subjetividades atravessadas pelos seus valores pessoais e coletivos. No caso do poeta parnasiano, ele parece se referir a um passado distante do Brasil em relação ao momento em que escreve, talvez de quando ainda era uma colônia de Portugal. No seio de sua filiação artística havia uma tendência ao objetivismo e ao uso de temas históricos como foco, junto com o rigor estético que marca esta corrente. Na primeira estrofe há referencia ao passado da futura nação que, tal qual a floresta citada como secular, não formava ainda uma sociedade de relações sociais publicas e complexas. Há nesse passado longínquo imaginado pelo eu lírico do autor, a figura do desbravador com seu machado como instrumento chave para desbastar a floresta densa e escura. Nesse passado alegórico destituído de nostalgias românticas, as relações humanas se desprendem da natureza mimetizada na floresta sombria e virgem de antes, em um espaço que é certamente o do litoral brasileiro já bastante antropizado ou “civilizado” quando Bilac redigiu sua obra lírica. Essa figuração positivada cria sua antítese, que é o sertão brasileiro, caracterizado como sendo o portador dos signos do passado arcaico em suas dimensões humanas e da própria natureza em sua decantada aura virgem. Um desses espaços tardios e de ausências, como já foi apresentado, é a Amazônia brasileira, tendo o Acre como síntese. 197 LE GOFF, O deserto-floresta no Ocidente medieval, 1994, p. 83-109. 198 LE GOFF, A civilização do Ocidente medieval, 2005, p. 125. 199 THOMAS, 2010, p. 275. 200 BILAC, Antologia: Poesias, 2002, pp. 37/55. 201 CHARTIER, A história cultural: entre práticas e representações, 1990, p. 17. 64 Conforme já indicado no capitulo I desse texto, uma das obras que se inserem nessa perspectiva amazonialista é o romance Deserdados, do escritor e engenheiro Carlos Leão de Vasconcellos. Como bem resume Francisco Foot Hardman, o leitmotiv dessa e outras narrativas é a representação de um “mundo ainda à parte, objeto de nosso sonho civilizatório (...) um território distante, remoto no tempo e no espaço, envolto no mistério de seus rios, línguas ‘sem história’, enfim, no império de uma violência naturalizada, na fúria ancestral de uma natureza indômita”202. É a síntese de uma imagem presente de um mundo ausente, ou de um desejante ausente. E são essas ausências que comandam as diversas narrativas há tanto tempo hegemônicas e perenes nos imaginários sobre o Acre e a Amazônia. Em Deserdados, o seu autor mergulha nas imagens já fixadas por antecessores e repisada por posteriores a ele. Constrói então a trama de seu romance dentro das linhas mestras dessa literatura regionalista/amazonialista de figuração naturalista que vai apelar para velhos exotismos talvez no intuito de alavancar a recepção da obra203. Além disso, sua emergência ocorre no “momento em que o literário invade o histórico não apenas como escrita, mas como percepção do real”204 e o narrador de Deserdados intenta fornecer ao leitor a sua impressão da materialidade histórica dos “fatos” por ele apresentados. Temos então a imagem do cearense Teodozio, migrante tornado seringueiro, que carrega as cores fortes do abandono e da exploração desmedida na Amazônia acreana. Ele é alguém desafortunado diante de um mundo em que não conhece de antemão a fauna local, a flora tropical, o regime climático das águas e nem as regras de convivência com os outros humanos nesse novo espaço mesológico e narrado como “pré” social. Teodozio torna-se a centralidade de uma trama romanesca em que ele é uma personagem mergulhada nos clichês mais recorrentes sobre a região: presa fácil das feras da floresta e das pragas diminutas, recém chegado e sem abrigo para morar porque terá que construí-lo com o material que a floresta oferece. Mas ele terá ainda que conhecer o ecossistema que o cerca, localizar e apreender a tirar madeiras boas para os alicerces, esteios para as escoras, tiras de embiras para as amarras, palhas de ubi para cobertura e paxiúbas para assoalhos e paredes da futura morada. A revista Kosmos em princípio de 1904 fez uma extensa reportagem explicando aos seus leitores detalhes sobre o Acre brasileiro e federalizado, e ali vai sobressair o pitoresco da morada do seringueiro ao seu publico leitor. Destaca que a “barraca é uma ligeiríssima construção, todas de frágeis paus e folhas de palmeiras, de exígua capacidade”205 de abrigo às pessoas. No mesmo período, O Malho publicou uma foto para mostrar aos seus leitores o que era a morada e local de pouso do seringueiro acreano internado na “escureza desse mato virgem do Acre”. A descrição presente no romance, a matéria sobre a morada do seringueiro e a imagem a seguir [Imagem 07], se complementam no intuito das duas publicações em apresentar aos seus leitores o Acre exótico e distante. Ali, logo após a imagem, o texto explica que “estas barracas tem o estrado ou assoalho a uns dois metros do chão, não só por causa das frequentes inundações como para de certo oporem alguma dificuldade à visita de animais mais ou menos ferozes”206. A lógica do distanciamento do assoalho do solo tem a ver com proteção em relação à invasão de bichos e águas. Mas também servia para depositar embaixo utensílios de trabalho e arejamento da moradia. 202 HARDMAN, 2009, p. 25. 203 Idem, p. 31. 204 DECCA, Teoria e método históricos em Raízes do Brasil, 2000, p. 190. 205 Kosmos, fevereiro de 1904, número 02, p. 09. Acervo da FBN. 206 O Malho, 05 de maio de 1906, ano V, número 190, p. 09. Acervo da FBN. 65 Imagem 07 – Barraca do seringueiro Fonte: O Malho, 05 de maio de 1906, ano V, número 190, p. 09. Acervo da FBN. Contudo essa imagem acima não traduz a contento o que era a colocação (barraca) de um seringueiro, geralmente com paredes e sem tantas pessoas reunidas dentro e no entorno como é mostrado na fotografia em questão. Na imagem parece haver o extraordinário do momento em que foi tirada, com a presença de um fotografo e vários trabalhadores em um tapiri improvisado próximo de onde, de fato, moravam aquelas cerca de 20 pessoas enquadradas na fotografia. Pareciam estar em uma atividade de adjunto para derrubada coletiva da mata ao redor ou abertura de estradas de seringa de um novo seringal na região do Purus. A foto, portanto, traz mais elementos acerca do pitoresco e do excepcional do que aquilo que intencionava querer retratar como generalidade e padrão. Em geral, as barracas eram pontos geograficamente esparsos onde se encontravam essas personagens consideradas desbravadoras e narradas em algumas perspectivas glorificadoras e cronotéticas (separadoras de épocas) como o epíteto novos bandeirantes que conquistaram as terras do Acre e incorporaram-na ao Brasil. Esses descampados de morada formavam clareiras pequenas, em horizontes ditos acanhados e açambarcados pela proximidade da floresta que continuava no entorno próximo. Ao se adentrar para alem dessa barreira natural, as narrativas dominantes apontam que se tinha a imagem síntese do mistério, dos temores escondidos, do inculto dominante e ao mesmo tempo era o local de fonte da tão buscada riqueza vegetal que era o látex extraído das seringueiras nativas. O seringueiro desbravador, a partir de sua barraca, vai criando pontos isolados de lampejos que metaforicamente iluminam a chegada de alguma marca da chamada civilização, provocando contraste na escureza da floresta. São eles espécies de vagalumes colonizadores, reativando aqui as metáforas já discutidas a partir de Manoel de Barros, W. Benjamin e Didi-Huberman. O professor de literatura Robert Pogue Harrison, em seu livro Forests: the shadow of civilization, traça um amplo panorama sobre as florestas no imaginário e modo de vida ocidental. Ele aponta em seu estudo que a chamada civilização ocidental abriu seus espaços de vida comunitária em locais de florestas que foram sendo progressivamente devastadas pela ação humana ao longo de milênios: A sylvan fringe of darkness defined the limits of its cultivation, the margins of its cities, the boundaries of its institutional domain; but also the extravagance of its imagination. (…) the governing 66 institutions of the West - religion, law, family, city -originally established themselves in opposition to the forests, which in this respect have been, from the beginning, the first and last victims of civic expansion207. Forma-se a crença duradoura de que a franja sombria das florestas separava o local do culto, da cultura, do cultivo, do mundo civil e civilizado. Criam-se os limites que vão sendo instituídos pelos domínios da religião, da lei normativa, do espaço civilizado representado pelas cidades, da vida familiar em comunidades e de uma ética de confronto e medo em relação aos espaços florestais então dominantes. O horizonte da civilidade se mediria a partir da distância que seus próceres se mantinham da floresta, que estava sempre prolongando sua sombra sobre essa imaginação cultural tão duradoura208. Um contraponto a esta visão nós encontramos nos estudos de Tim Ingold, onde ele questiona a duradora dessa tese da dicotomia entre natureza e cultura. Para este antropólogo, o primado do conhecimento está na inter-relação dos humanos com os não humanos. O conhecimento prescinde da imersão do sujeito no mundo, da sua relação com a paisagem que carrega traços da ação humana sobre ela. O social (valores, ideias, culturas) e o biológico (humano e não humano) compõem o ambiente-mundo em seu fluxo permanente. Portanto, não há como estabelecer externalidades fixas do humano em relação a natureza segundo as assertivas deste autor. O biosocial é esse todo interdependente209 no qual estamos imersos como viventes e também como interpretes. Por fim, podemos complementar todas essas questões apontadas acima com os estudos de Anna Tsing. Esta autora afirma que o tempo em que vivemos é o do Antropoceno, cuja característica principal é a da perturbação humana em relação ao mundo físico e a natureza não humana. Isso gera o que ela chama de “diversidade contaminada”. No caso da Amazônia, de exploração do látex sem derrubada da floresta, talvez se enquadre no que ela conceitua como “ecossistema antropogênico de perturbação lenta” e que embora tenha ação humana, ele mantém sua “biodiversidade elevada”210. Tomemos então a Amazônia e o Acre em especifico, em fins do XIX e parte do XX, como lugares de “histórias contaminadas” envolvendo vidas de plantas, humanos e animais em interações simétricas e assimétricas. ALIMENTAÇÃO, DOENÇAS E OS CORPOS “FORA DO LUGAR” O medo de adquirir doenças era algo constante em quem viajava para a Amazônia no intuito de realizar algum trabalho esporádico ou permanente. Em diversas formas de narrativas, os corpos das pessoas pareciam estar de maneira constante em um lugar que não eram para se estar e nem para se habitar, pois chegavam sem serem convidados em um espaço apontado comumente como doentio, perigoso e de ares pouco convidativos. Como vai expressar Euclides da Cunha em tom sentencioso, a natureza não tinha preparado plenamente seu vasto salão para receber os intrusos impertinentes. Haveria um descompasso entre o elemento humano e a natureza do lugar que se queria ocupar. As narrativas sobre o ecossistema hostil, suas insalubridades e micro-organismos causadores doenças são realçados em boa parte do romance Deserdados escrito por Carlos de Vasconcellos. Já na viagem a partir de Manaus, o ambiente do barco gaiola que transportava os futuros seringueiros para o Acre é mostrado como sendo inadequado ao ser humano. Animais como bovinos e muares, descritos como mal alimentados, “fitirizados” e “mezenteiros” são alocados na terceira classe da embarcação, local em que também viajavam os passageiros mais pobres e onde não parecia haver distinção entre humanos e animais. 207 HARRISON, Forests: the shadow of civilization, 1992, p. IX. Tradução livre: “Uma franja silvestre de trevas definia os limites do cultivo, as margens de suas cidades, os limites de seu domínio institucional; mas também a extravagância de sua imaginação. (…) As instituições governantes do Ocidente - religião, direito, família, cidade - se estabeleceram originalmente em oposição às florestas, que a esse respeito têm sido, desde o início, a primeira e a última vítima da expansão civil”. 208 Idem, p. 100. 209 INGOLD, 2013. 210 TSING, 2019, p. 23. 67 É dali que brotavam ares descritos como fumarentos, quentes e úmidos provenientes das caldeiras a vapor que consumiam toneladas de madeiras que serviam de combustível também aos infindáveis navios e gaiolas211 que singravam os rios da Amazônia. Essas “árvores de rios” eram os caminhos naturais que serpenteavam as florestas então ricas em seiva branca do látex que assanhava o desejo de riqueza daqueles que subiam os rios para se embrenharem nos seringais. Como diz o narrador do romance, os sertanejos saiam da claridade do sertão descampado e seco para a floresta escura, úmida e sombria onde estavam os seringais que os atraiam em busca de melhorias de vida. Os corpos dos intrusos impertinentes são também atacados pelos micro-organismos que infectam a alimentação a base de enlatados e com prazo de validade geralmente vencido, de charque ardido e farinha mofada que causavam doenças como beribéri, escorbuto e problemas intestinais. Mas, eles ‘“são brabos e precisam acostumar-se cedo’” a essas adversidades, “justificam os patrões”212 em tons de hipocrisia naturalizada e intenção de reduzir a margem de prejuízos quaisquer que fossem. Ao longo do trajeto, que se passa no verão, diz o narrador que ocorram compras de pirarucu seco, mixira de peixe-boi e tartarugas que complementavam a alimentação em bordo dos passageiros e da tripulação. Mas esses alimentos eram mais caros e somente acessíveis aos que viajavam nas primeira e segunda classes que podiam pagar por esses “luxos” alimentares. A decantada pouca higiene a bordo realçada no romance como fator agravante de diversas doenças adquiridas via alimentação oral, também é complementada pela indigitada crônica fragilidade do organismo depauperado por doenças contraídas antes da partida pelo sertanejo sofrido dos sertões. O trajeto fluvial próximo da floresta também é configurado na narrativa ficcional como um fator significativo em relação à má saúde dos passageiros, pois das matas saiam enxames de piuns e carapanãs que atacavam os passageiros diuturnamente e “deforma-lhes a cara macilenta em mascara de lázaros...”213. Diante desse quadro tenebroso, muitos homens e animais morriam antes de chegarem aos seus destinos finais. Os animais quando mortos e impróprios para o consumo — devido ao temor de adquirir alguma doença grave —, eram jogados nas águas fluviais e serviam de alimentos aos bichos da fauna aquática. Já os humanos que morriam a bordo têm rituais mais dignos e são enterrados nas margens do rio por onde transitaram pela ultima vez. Já na antessala do antro de ganância que é o seringal, a narrativa romanesca aponta que as poucas posses dos mortos de algum valor eram apropriadas pelo patrão/agenciador para minimizar suas perdas de lucros com os braços a menos a serem explorados nos seringais acreanos. Para “cura” e “prevenção” de malaria, o romance denuncia a estratégia usada pelos patrões para ludibriar e espoliar ainda mais “brabos” e “mansos” que se encontravam em viagens com destinos aos seus seringais ou que lá já se encontravam: cigarros artesanais com um pouco de fécula de mandioca que se vendia como sendo quinino para o tratamento e a prevenção da doença. Tabaco e goma tornavam-se assim fontes lucrativas de negociantes inescrupulosos que faziam de tudo para endividar seus trabalhadores, apresentados na obra como rudes e ignorantes, através dessas estratégias de logro vigentes no mundo dos seringais, apontado como sem lei e sem ética que vigoravam no “mundo civilizado”. Ou como o fictício seringalista João Gonçalves, personagem do romance Certos caminhos do mundo, que afirma ao se encontrar com Euclides da Cunha no Purus: “— o homem destas bandas é um produto dos defeitos da terra. Mas cousa curiosa, no homem esses defeitos são qualidades, sem as quais ele não pode sobre211 Na época em que é ambientado o romance, essas embarcações eram movidas a vapor e variavam de tamanho e estrutura, mas geralmente tinham - na parte mais baixa - o espaço das caldeiras, lenhas, cargas, animais e até comportavam pessoas que viajavam ali pagando os preços mais baratos. No espaço intermediário era o lugar onde se viajava com redes atadas e, na parte superior, havia os camarotes onde viajavam as pessoas que podiam pagar os preços mais caros. 212 VASCONCELLOS, p. 29. 213 Ibidem. 68 viver”214. A inversão de valores como algo normalizado era então a expressão sintomática do anti-mundo amazônico. As ausências do poder público normativo, de procedimentos éticos firmes, de escrúpulos e de empatia com os menos favorecidos são destacados na passagem a seguir da trama criada por Carlos de Vasconcellos. Ele se coloca na almejada posição de originar uma narrativa nos moldes euclidianos, do intelectual que propõem ser o vingador em nome dos menos favorecidos e esquecidos nos sertões do Brasil. Há uma clara empatia distanciada pelo seringueiro, tal qual em Euclides da Cunha emerge sentimento semelhante em relação ao sertanejo. Ele então assim sintetiza sua denuncia: Os emigrantes sobreviventes, idos buscar no Ceará, ficam como refém para o pagamento integral de tudo e, escravos, sem outra prerrogativa que a de obedecerem, são quanto antes empilhados em batelões e distribuídos pela vastidão do seringal, para a infatigabilidade do preparo já tardio da borracha. Outras levas vão, com os comboios de muares, pelas tortuosidades dos caminhos de penetração, aos remotos centros da propriedade, isolados entre si de muitas léguas, á labuta terrível da indústria extrativa contra as hostilidades mesológicas215. Mas esse é um seringueiro particularizado na sua caracterização, pois ele é na origem descrito como o sujeito que migra do Ceará para o Acre e vai enfrentar um mundo de relações sociais assimétricas, baseadas nas normas ditadas pelo patrão seringalista. Alem disso, há o complemento sentencioso de uma natureza hostil e que isola os recém-chegados que geralmente nunca mais voltavam para o lugar de onde partiram. Em Deserdados, esse seringueiro-cearense genérico é apontado como alguém que também se alimenta mal após se estabelecer em sua colocação de seringa, onde vai viver e trabalhar para o seu patrão espertalhão. Sua dieta alimentar é descrita como de baixo teor nutricional, má qualidade de consumo e quantidade insuficiente para repor as calorias necessárias ao organismo de quem labutava cotidianamente nas estradas de seringa e em outras tarefas correlatas na sua colocação de morada, conforme narrado abaixo. Farinha, feijão, açúcar, café, toucinho e jabá comprados a crédito no barracão do seringal com preços extremamente majorados e que iam criando uma divida sempre renovada e quase impagável, conforme tantas outras narrativas recorrentes e dominantes sobre este tema. Nesse mesmo romance há esta passagem onde o seringueiro é aquele que: Mourejava o dia inteiro, deixando sobre o girau da barraca, ao fogo, isolado por uma camada de tabatinga, uma panela de feijão com um pouco de toucinho boiar com cartilagens de jabá ardido, e enveredava pela sombria floresta apenas forrado de café e raro do “chibé” - reles sopa de água açucarada com farinha d’ água216. A descrição do trabalho realizado pela personagem ficcional do seringueiro Teodozio como sendo de intensa exploração aparece em romances diversos e outras tantas obras de cunho historiográfico. Euclides da Cunha, influência sólida nesta escrita de Carlos de Vasconcellos, já havia sentenciado anteriormente em tom de denúncia que o seringueiro era um homem que trabalhava para se escravizar217. Para o seringueiro devedor do barracão, racionar a caríssima alimentação retirada periodicamente no barracão era uma forma de não avolumar a sua subordinação por dívida ao patrão seringalista a quem estava atrelado por uma rede complexa de compromissos morais, econômicos e sociais. Alem do mais, havia a impossibilidade de se adquirir produtos frescos e, se conseguisse, mantê-los próprios ao consumo por longos períodos em locais distantes dos centros produtores. Restava às populações amazônicas a opção mais corrente de se alimentarem de enlatados e carnes secas — às vezes 214 BASTOS, 1936, p. 09. 215 VASCONCELLOS, p. 37. 216 Ibidem. 217 CUNHA, 2000, p. 127. 69 vencidas e/ou passadas —, que quando próprias para o consumo já continham alto teor de sódio e se estragados provocavam outras doenças ou mal-estares nos organismos de quem os consumia. Até mesmo as carnes de caças frescas tinham que ser consumidas rapidamente ou salgá-las para maior durabilidade. O viajante e negociante francês Paul Walle publicou em 1912 uma obra chamada Au Bresil: État d’ Amazonas et Territoire de l’ Acre em que ele também trata desta questão relacionada aos seringueiros e a má alimentação que adotavam no contexto dos seringais, que seria agravada pela má higiene e vícios. Em determinada passagem ele aponta que “a grande mortalidade reinante entre os seringueiros se deve mais que tudo ao desprezo dessa gente ignorante a qualquer forma de higiene, por mais elementar que seja, bem como à sua má alimentação e excessos alcoólicos”218. Mas no olhar deste autor, em algumas localidades do Alto Acre o quadro se alterava devido a ação das autoridades públicas, como é o caso de Xapuri exaltado apologeticamente como exemplo de sucesso, pois: Acabou se transformando como que num sanatório para os enfermos do Alto Acre e do Rio Xapuri, depois que se abateu a floresta numa grande área, e a alimentação se tornou abundante e mais sadia, embora não necessariamente mais barata. De uns anos para cá, introduziu-se naquela zona uma certa variedade de gado da Bolívia, e iniciou-se a plantação de legumes, milho, feijão e mandioca, o que permitiu sensível melhoria na alimentação219. A derrubada da floresta e mantê-la ao longe estava, em muitas narrativas como essa acima, associada à ideia de precauções sanitárias e a proeminência da vitoria do urbano sobre a floresta. Aqui, o autor aponta para uma possível utilização dessas áreas para uso agrícola e de pastoreio cuja produção estaria voltada para o usufruto alimentar de uma parcela da população urbana de maior poder aquisitivo, que era muito diminuta em relação aos que moravam nos seringais e na zona rural no entorno das nascentes cidades acreanas. O consumo de carne fresca, mais conhecida como “carne verde”, era reduzido devido a baixa oferta e porque tinha preços inacessíveis para a maioria da população acreana em geral, pois o rebanho bovino no Departamento Alto Acre era oriundo em grande parte da Bolívia desde fins do século XIX e nos Departamentos do Alto Juruá e Alto Purus a busca mais recorrente eram de planteis no interior do Amazonas. Uma pincelada em jornais da época nos permite vislumbrar a oferta e preços de alguns desses produtos na cidade de Cruzeiro do Sul em 1912, ano em que a obra de Paul Walle é lançada na França. Um dos boletins mensais da Associação Comercial do Alto Juruá traz a listagem e preços dos produtos mais consumidos no mês de agosto e as carnes verdes estão assim discriminadas em quilogramas e valor em Réis: carne bovina (3$200); carne de porco (3$500); tartaruga (2$500); carneiro (4$000); caças (2$500); peixes (2$000); pirarucu (1$500)220. A titulo de comparação genérica, este mesmo jornal publicou a cotação do quilograma da borracha na praça de Manaus em julho de 1912, para onde a maioria dos seringalistas do Departamento Alto Juruá enviava sua produção: borracha fina (6$200); borracha extrafina (5$500); sernambi (4$500) e caucho (4$000)221. Cabe ressaltar que esses valores eram aqueles pagos aos patrões seringalistas pelos seus fornecedores sediados na capital amazonense. É evidente que nos seringais se pagavam preços bem inferiores a esses aos seringueiros pelo que eles extraiam de látex. A quase totalidade dessas pessoas não tinha acessibilidade a esses produtos frescos devido aos seus preços mais elevados frente aos enlatados e carnes secas vendidos também já bastante majorados nos barracões e, principalmente, devido às enor218 Esta obra encontra-se disponível na Bibliotheque Numerique Caraibe Amazonie Plateau des Guyanes (site: www.manioc.org). Acesso em 23/08/2017. Contudo, aqui utilizo a versão em português: WALLE, No Brasil, do Rio São Francisco ao Amazonas, 2006, p. 415. 219 WALLE, op. cit., p. 416. 220 Cruzeiro do Sul, 04 de julho de 1912, ano VII, número 215, p. 04. Acervo da FBN. 221 Cruzeiro do Sul, 22 de setembro de 1912, ano VII, número 221, p. 03. Acervo da FBN. 70 mes distâncias que estavam da zona urbana de Cruzeiro do Sul ou das outras sedes dos Departamentos que formavam o Território Federal do Acre. Esse último fator tornava a opção de compra cotidiana ou periódica nas poucas cidades e vilas, mesmo quando financeiramente mais barata, quase impossível porque redundava em demorada locomoção a pé pela floresta, eventual gasto em transporte fluvial para complementar o trajeto de ida e volta e, não menos importante, abrir mão de suas atividades laborais cotidianas. Por fim, tudo isso desagradava o patrão que via nessa atitude uma “traição” à tutela de compra no seu barracão e a ausência de produção na colocação durante um possível deslocamento à cidade. Embora não haja uma série constante de informações sobre o consumo de proteína animal em Cruzeiro do Sul, no mesmo período referenciado acima, o jornal O Cruzeiro do Sul trouxe um balancete das vendas do Mercado Público local nos meses de janeiro a março de 1912. Na tabela abaixo [Tabela I] é possível perceber que não era desprezível a oferta e o consumo de animais silvestres frente aos de animais criados nas poucas propriedades rurais do entorno urbano ou importados do Amazonas. Oficialmente, a oferta e o consumo legal de carne animal de origem silvestre e pesqueira era cerca de um terço daquela oriunda de animais de criação abatidos sob tutela da diretoria de higiene e vendidos no mercado municipal. Tabela I – Venda de carne no Mercado Público de Cruzeiro do Sul – 1912 Fonte de proteína Janeiro Fevereiro Março Boi (un) 08 21 19 48 16,00 (2.912 kg222) Porco (un) 11 14 19 44 14,67 Carneiro (un) 04 01 02 07 2,33 Peixe (kg) 471 957 936 2.364 788,00 Caças (kg) 42 88 68 198 66,00 Tartarugas (kg) Total Média 189 392 336 917 *Somente foram encontradas informações em relação aos três primeiros meses. Fonte: O Cruzeiro do Sul, ano de 1912. Acervo da FBN. 305,67 Esses dados oficiais esparsos, também não trazem informações sobre o consumo de aves e ovos, pois geralmente esses animais (patos/patas e galinhas/galos/frangos) eram criados nos quintais de muitas famílias para serem abatidos em situações mais formais de banquetes festivos, consumo em momentos de convalescência, vendas diretas a terceiros e como fonte permanente de oferta de filhotes e ovos para consumo e continuidade de reprodução dos plantéis. Esses números altos de abates e vendas de peixes pescados em rios, tartarugas recolhidas em praias e animais caçados nas florestas nos indicam que havia uma rede de trabalhadores que se dedicavam de forma permanente e complementar a essas atividades voltadas para o abastecimento do mercado municipal da sede do Departamento do Alto Juruá. E certamente o volume era maior que os números oficiais parcialmente apresentados, porque essa rede de caçadores e pescadores muito provavelmente reservava parte dessas carnes para consumo próprio e familiar e atuava também à margem da fiscalização municipal. A venda de carnes de porcos, carneiros e bovinos, que eram de valor mais alto, certamente tinham 222 Como a venda bovina era calculada apenas no numero de animais abatidos, tentei fazer uma aproximação em quilogramas usando um estudo recente sobre o rendimento de um animal abatido com média 419 kg. Deste peso total, a carcaça do boi gordo rende 151 kg de carnes (descontados os ossos) e mais 31 kg de vísceras e miúdos. Então consideramos, grosso modo, 182 kg por bovino abatido mesmo sabendo que deveria ser algo menor devido às condições de ração, vacina e melhoramento genético em voga hoje serem superiores. Cf.: LEDIC; TONHATI & FERNANDES, Rendimento integral de bovinos após abate, 2000. 71 consumo mais restrito aos moradores de maior poder aquisitivo da cidade (administradores de alto escalão, militares de alta patente, magistrados, profissionais liberais, comerciantes). A título de exemplo do poder aquisitivo local, a Prefeitura do Alto Juruá pagava um salário mensal de 600$000 ao almoxarife; a metade deste valor (300$000) para uma professora primária e para o escrivão de polícia do município. Enquanto que um diarista a serviço da prefeitura ganhava 8$000 (oito mil réis) por dia, algo que daria para comprar ao fim do trabalho cerca de 2,5 kg de carne bovina se assim desejasse e pudesse. Nos escalões mais superiores do executivo, o secretario geral da municipalidade recebia um salário de 1:000$000 (um conto de réis) e o prefeito três vezes mais que esse valor223. Ou seja, é lógico pensar que carnes bovinas eram mais restritas a uma parcela mais reduzida e mais bem remunerada da população urbana e composta principalmente de funcionários públicos. No Alto Purus não havia muita diferença de preços de produtos e salários quando comparados aos valores praticados no Alto Juruá. Em julho de 1912 na cidade de Sena Madureira se pagava o valor 8$000 (oito mil réis) para o trabalho de jornaleiros; o salário mensal de um servente municipal era de 300$000; já o secretário da prefeitura ganhava 1:200$000 (um conto e duzentos mil réis); o médico, o engenheiro e o delegado de policia tinham rendimentos de 1:000$000224. Para além dos produtos, preços e salários, outro aspecto que vale também um comentário adicional é em relação ao termo “caça”, pois as tartarugas — por exemplo — não são incluídas nessa classificação adotada pela administração dos mercados públicos do Acre territorial. O uso da expressão estava mais especificamente relacionado para animais de grande e médio porte abatido por tiros de espingardas em caçadas realizadas no interior da floresta. Os animais mais apreciados eram antas, veados, pacas, catitus, tatus e capivaras. Os pequenos animais terrestres e aves (genericamente chamados de embiaras), provavelmente não estão incluídos nesse rol classificatório das autoridades municipais ligadas a Diretoria de Higiene. O quadro mostrado acima parecia não divergir também no Departamento do Alto Purus, pois em 1912 o jornal local ligado a administração municipal apontava que naquele ano — em alguns meses cujos dados estão disponíveis — foram vendidos no mercado local carnes de animais igualmente similares ao que havia disponível em Cruzeiro do Sul no mesmo ano. Tabela II – Venda de carne no Mercado Público de Sena Madureira – 1912 Fonte de proteína Abr. Mai. Set. Out. Nov. Dez. Total Média Boi (un) 12 14 20 29 31 18 126 12,6 Porco (un) 13 12 26 19 31 15 116 11,6 Carneiro (un) 04 02 — — 04 01 11 1,1 Peixe (kg) 374 445 1.005 1.222 744 535 4.329 432,9 Caças (kg) 473 582 487 385 697 374 2.998 299,8 Tartarugas (un) 02 07 04 13 1,3 *Os dados de abril e maio são de uma quinzena apenas. Por isso a média geral está por quinzena. Os meses citados são aqueles em que foi possível obter informações. Fonte: O Alto Purus, ano de 1912. Acervo da FBN. Em uma comparação ligeira, os dados médios disponíveis apontam para uma produção e um consumo de carnes de animais criados em cativeiros muito parecidos entre as duas cidades no mesmo ano. 223 Essas informações foram obtidas dos jornais O Cruzeiro do Sul, edições de 01º de janeiro de 1912 (número 189, p. 01) e 16 de junho do mesmo ano (número 208, p. 04). Acervo da FBN. 224 O Alto Purus, 10 de julho de 1912, ano VII, número 199, p. 01. Acervo da FBN. 72 Em Sena Madureira se consumia menos peixe, menos tartarugas e mais caças que em Cruzeiro do Sul, contudo não é possível fazer uma correlação de que a ampliação de consumo de caças era intrínseca a diminuição do consumo de pescados e tartarugas. O fato é que a captura de tartarugas em praias de rios era uma atividade em grande medida desenvolvida por pescadores, por isso podemos intuir que quem pescava mais capturava também mais tartarugas porque o espaço geográfico de incidência dessas atividades era o rio e suas margens. Por fim, não há estudos consistentes que apontem para a possibilidade de uma produção menor de peixes nos rios dos Purus por fatores de ordem reprodutiva da fauna ictiológica ou até mesmo hábitos alimentares diferenciados, o que é mais improvável ainda. Interessante destacar que o ano de 1912 é singular para a publicação desses dados informativos porque o mercado municipal de Cruzeiro do Sul foi reformado e reinaugurado em dezembro de 1911 e o de Sena Madureira é aberto oficialmente no inicio de 1912, como noticiam os jornais O Cruzeiro do Sul e O Alto Purus. Outro aspecto importante e ligado a burocracia do poder publico, através da diretoria de higiene nos dois municípios, era a obrigação legal de vendas de carnes frescas apenas nos mercados da cidade e o consequente pagamento de impostos pelos permissionários dos espaços nesses locais. O surgimento de fabricas de gelos nos dois municípios foi algo fundamental para conservar por mais tempo as carnes dos animais abatidos adequadas para o consumo humano. Em Cruzeiro do Sul, o jornal oficial local indica que foi em dezembro de 1910225 o surgimento da fabricação e comercialização do produto ali e em Sena Madureira no inicio de 1912, de acordo com o periódico O Alto Purus. É ainda em 1912 que se inaugura o abatedouro público desta ultima cidade, que certamente não encerrou abates clandestinos para consumo próprio e vendas paralelas no mercado local. Por fim, as determinações de abates e de vendas em locais regulamentados não encerravam ações do poder publico visando maior controle fiscal e sanitário sobre os produtos vendidos. Mesmo com gelo disponível para conservar por mais tempo as carnes frescas, a prefeitura do Departamento do Alto Juruá determinou através de uma circular que as denominadas carnes verdes que não fossem vendidas em 24 horas, deveriam ser salgadas para posterior revenda ao consumidor226. Se nesses dois Departamentos e em suas respectivas sedes administrativas ocorreram quase simultaneamente as adoções de medidas oficiais voltadas para abates e vendas de carnes, bem como o surgimento de logísticas de apoio ao abastecimento alimentar de carnes frescas variadas, no Departamento do Alto Acre havia um descompasso em relação aos exemplos apresentados nesses outros dois Departamentos. O mercado público de Rio Branco, por exemplo, só foi inaugurado em 1920 e seis anos após o lançamento de um edital público para a exploração do serviço pela iniciativa privada em que não apareceu nenhum interessado227. Em menos de uma década antes da escrita de Paul Walle e das informações aqui apresentadas sobre os dados do Alto Juruá e do Alto Purus, o primeiro prefeito do Departamento do Alto Acre Raphael da Cunha Mattos, que era médico do Exército, vai asseverar que “é simplesmente péssimo o sistema de alimentação” da população da Vila Rio Branco “onde sempre há grande profusão de conservas más, carne seca, farinha d’água, feijão e arroz deteriorados durante o verão”228 por apodrecimentos e ataques de pragas como gorgulhos e traças. Algo que parece não ter mudado muito nos anos seguintes com um acentuado descompasso que parece ter ocorrerido em relação a Sena Madureira e Cruzeiro do Sul no tocante a alimentação com proteína animal fresca. No mesmo período próximo ao relatado pelo coronel Cunha Mattos, no Departamento do Alto Purus o prefeito local culpava o próprio seringueiro, na sua afirmada inferioridade cultural e orgânica, 225 O Cruzeiro do Sul, 18 de junho de 1910, número 14, p. 02. Acervo da FBN. 226 O Cruzeiro do Sul, 24 de novembro de 1912, número 225, p. 04. Acervo da FBN. 227 Folha do Acre, 26 de julho de 1914, ano IV, número 159, p. 04. Acervo da FBN. 228 MATTOS, 1905, p. 19. 73 pela dieta alimentar que estava quase obrigado a adotar diante das relações em que se inseria ao se internar em uma colocação no interior de um seringal. Dizia o prefeito Cândido Marianno que: Dedicados quase exclusivamente a indústria extrativa, não procurando obter do ubérrimo solo da região o necessário para uma alimentação sadia e abundante, os moradores desta zona, principalmente os de condição inferior, limitam a satisfação de seu apetite ao uso de conservas, vindas do sul e do estrangeiro, nem sempre em estado de serem digeridas sem perigos229. Essa observação acerca da deficiência dietética em caráter mais sociológico e em tom de denúncia foi reverberada por Euclides da Cunha quando andou pela região acreana em 1905. Diz o afamado escritor que para além da decadência orgânica e do isolamento desse seringueiro, “a alimentação, que é a base mais firme da higiene tropical, não lhe fornece, durante largos anos, a mais rudimentar cultura. Constitui-se, ao revés de todos os preceitos, adstrita aos fornecimentos escassos de todas as conservas suspeitas e nocivas, com o derivativo aleatório das caçadas”230. Ou seja, a alternativa mais saudável seria consumir produtos mais variados, frescos e que se baseassem numa “rudimentar cultura” que — idealmente — deveria existir nos locais de morada dos seringueiros. Contudo, todos os esforços destes se voltavam obrigatoriamente para a extração do látex e qualquer outra atividade paralela conflitava com os interesses mais gerais dos patrões, em particular aqueles das vendas no varejo que ocorriam através da retirada consignada no barracão do seringal de produtos alimentares e de uso pessoal. Essa passagem citada acima é do seu famoso opúsculo intitulado Um clima caluniado, em que ele faz uma defesa das condições climáticas salubres do Acre e remete para o aspecto alimentar os problemas mais graves de saúde existentes na região. Essas questões já faziam parte dos discursos de muitos médicos sanitaristas especializados em “doenças tropicais”. Carlos Chagas, que coordenou uma missão sanitária do Instituto Oswaldo Cruz aos seringais acreanos nos anos de 1912 e 1913, vai alertar para o problema da má alimentação com produtos enlatados estragados e da falta de higiene da população como um problema que facilitava a emergência de muitas doenças na Amazônia231. É diante dessa realidade atravessada por carestias, má e insuficiente alimentação dos produtos comestíveis disponíveis no barracão do seringal de Adelino Chagas, que Teodozio resolve buscar de forma complementar e alternativa proteína animal e produtos vegetais para a sua alimentação cotidiana no interior da floresta que cercava sua colocação de morada no Alto Purus. Ali não existiam os mesmos animais silvestres ou domesticados tão comuns de onde ele tinha vindo (Ceará), como cabras, aves e bovinos, que certamente ele tinha mais intimidades do paladar que em relação aos animais da fauna amazônica. Nem as plantas — verduras, frutas, legumes e oleaginosas — mais conhecidas da dieta alimentar desse migrante eram comuns no Acre daquele período de fins do XIX e inicio do século seguinte. Este assunto é, aliás, um campo aberto para pesquisas mais demoradas, que tratem também das migrações de plantas e animais que seguiram juntos com esses viajantes nacionais e estrangeiros nesse período histórico de ocupação desses territórios por gentes adventícias que foram chegando ao Acre e configurando novas paisagens com complexas “diversidades contaminadas”. Essa mudança de atitude em relação a alimentação nos indica que Teodozio já tinha naquele momento um conjunto de conhecimentos sobre a fauna e a flora no entorno do local em que habitava, adquiridos empiricamente e através dos contatos com seringueiros (migrantes e caboclos) mais antigos. Teodozio, que expressa no romance a figura generalista do migrante tornando seringueiro, já não era mais um brabo e sim um manso no interior das florestas do Acre e alguém mais seguro em relação às praticas que pudessem burlar algumas das regras não escritas do barracão. Isso porque ele, 229 MARIANNO, Primeiro Relatório Annual, 1906, p. 33. 230 CUNHA, 2000, p. 153. 231 SOUZA, 2014. 74 Devassou a floresta, á cata da caça arredia e dos frutos alimentícios, na ânsia de comprar menos no barracão e então pagar, com a minguada borracha fabricada o seu debito, para poder subir no primeiro “gaiola” para mais férteis seringais. Fez provisão de bacaba, assai e patauá, amontoou pupunhas e assim reduziu as compras no barracão ao açúcar, café, farinha, feijão, tabaco, querosene e sabão, com a máxima sobriedade: e rejubilava-se á certeza de ir pairar num desses fabulescos seringais do Acre, onde a seringueira verte um dilúvio de leite ao ponto do trabalhador carecer de carrega-Io em saco impermeável232. Como já foi ressaltado, o barracão era a unidade basilar de um seringal na Amazônia e não era visto com bons olhos um seringueiro deixar de comprar no barracão, sendo geralmente proibida a atividade de plantio agrícola pois todos os esforços deveriam se voltar exclusivamente para a extração de látex. Em matéria sobre a situação de abastecimento do Acre em 1904, a revista Kosmos informou ao seu público leitor que “da agricultura nada. Tudo que ali se consome vem do Pará ou de Manaus. Ahi só se cuida da borracha”233. O mono extrativismo do látex se sobrepunha economicamente em relação a quaisquer outras atividades de cunho extrativista ou agrícola que porventura pudessem ser pensadas nesses anos iniciais do século XX. A revelia do seu patrão Adelino Chagas, Teodozio se transforma paralelamente em agricultor, extrativista, caçador e coletor florestal. Ele é alguém que se movimenta com traquejo de uma pessoa ambientada ao espaço antes desconhecido e temido. A necessidade o fez procurar se abastecer do que a floresta oferecia para sua dieta alimentar, tornando-o não mais totalmente dependente dos produtos caros e de má qualidade oferecidos pelo seu patrão. Passa a conhecer, por empiria e trocas culturais com outros habitantes, saberes acerca das técnicas de caça, dos hábitos e habitats dos animais amazônicos, da oferta silvestre e da localização de frutos e raízes comestíveis no interior das matas. Ele adquire praticas e conhecimentos em relação a um conjunto de saberes e sabores que o escritor Abguar Bastos234 vai classificar de “estranhas formas de se alimentar na selva”. Isso tinha e tem ancestralidades provenientes dos conhecimentos dos indígenas sobre a fauna, a flora, suas técnicas de caça e preparos de alimentos que foram fundamentais para a sobrevivência dos “brancos” e mestiços que durante séculos de conquista colonial foram se estabelecendo na região e mesclando seus saberes com outros saberes, seus sabores com outros sabores. Nesta passagem referenciada do romance nos é apresentado um Teodozio que já não quer ir embora da vida nos seringais do Acre, como inicialmente desejara ao chegar ao Alto Purus. Seus planos mais imediatos passam a ser saldar suas dívidas com Adelino Chagas e partir para outro seringal mais produtivo, em busca de um novo e mítico eldorado onde ele esperava encontrar um patrão menos explorador e conseguir algum dinheiro que o possibilitasse retornar como homem que venceu nos seringais acreanos, já então vistos cada vez mais como espaços diabólicos e não mais tão produtivos como antes. A natureza, antes descrita como dadivosa, tem realçados elementos negativos como a escassez das seringueiras leitosas, presença incômoda dos bichos silvestres de vários tamanhos, perigos dos indígenas selvagens e doenças perenes que atacavam seus habitantes ligados às atividades extrativistas. Essa é a construção mais intensa em Deserdados, onde temos uma natureza amazônica descrita como sendo instável, desordenada e surpreendente ao elemento humano que nela chegava atraído principalmente pela intenção de explorar a borracha das seringueiras nativas, árvores que exerciam a proeminência sobre a vida econômica, social e cultural do Acre e da Amazônia em grande medida. São recorrentes os traços de um ambiente social e de um ecossistema que causavam doenças variadas, que provocavam o isolamento humano, instituindo o nomadismo que obrigava o constante desenraizamen232 VASCONCELLOS, p. 53. 233 Kosmos, fevereiro de 1904, número 02, p. 09. Acervo da FBN. 234 BASTOS, A pantofagia humana ou as estranhas práticas alimentares na selva, 1987. 75 to das pessoas, sempre movidas por cobiças ligeiras e desejos perenes de partir do inferno verde quando amealhassem algum lucro substancial. Mas antes era preciso trabalho intenso e constante no interior da floresta e ir aprendendo os códigos de sobrevivência que o meio natural e social plasmava em todos os adventícios. É em um desses momentos de entrada na floresta ainda desconhecida que Teodozio é atacado por uma infinidade de formigas taxi235, ao de maneira desavisada retirar dali uma árvore inadequada para o madeirame da sua cabana carregada desses pequenos insetos, cujas ferradas provocam de imediato nele febres, dores lancinantes, coceiras e inchaços corporais. É nesse espaço estranho e em um casebre construído a duras penas por ele mesmo, que Teodozio começa a trabalhar no seringal de seu patrão Adelino Chagas, homem descrito romanescamente como um famigerado explorador de seringueiros. As doenças agudas, leves ou indisposições menos graves provocadas por insetos peçonhentos, ataques de animais, vírus e bactérias diversas em consequência do consumo alimentar inadequado, acidentes, higiene errônea ou ausente são salientadas em diversas narrativas como esta citada. No seu relatório administrativo relativo ao ano de 1908, o prefeito do Departamento do Alto Purus, José Candido Marianno afirmava que em Sena Madureira eram inúmeros os casos de impaludismos e úlceras na pequena população daquela vila. Uma das maneiras de debelar preventivamente esses casos citados, teve como “fatores primordiais a grande área em que foi feita a derrubada da mata, permitindo o fácil dessecamento do solo, o serviço de drenagem que beneficia toda a área urbana, permitindo o rápido escoamento das águas pluviais e o nivelamento do solo”236, atesta o então prefeito. O problema da alta umidade provocada pelo que se considerava excesso de água que a floresta ajudava a reter fora resolvido então pela ação humana que desflorestou toda a área considerada urbana e seu entorno próximo. Aprofundada pela drenagem de águas pluviais e de córregos, com a correção da topografia do terreno para que não pudesse acumular águas no espaço urbano. Essa concepção do dessecamento está assentada em teorias que emergem no Brasil em fins do século XVIII e relacionam as questões climáticas e atmosféricas e suas consequências com o desmatamento florestal. Contudo, no Brasil colonial alguns bacharéis como Baltasar Lisboa irão criticar os maus usos e os riscos dos desmatamentos exagerados e queimadas para o clima, regime de chuvas e a economia agrária de Ilhéus na Bahia237. Inversamente, no caso acreano, o prefeito do Departamento do Alto Purus agrega uma positividade ao dessecamento em relação ao estabelecimento, desenvolvimento e salubridade da cidade de Sena Madureira. Sobre os seringais do vale do Purus, situados no perímetro daquele Departamento, o prefeito diz que foram tomadas atitudes de vacinação contra a varíola em seringueiros no mês de dezembro de 1908 e atesta que: Com pesar devo dizer que nossa missão foi grandemente dificultada pela repugnância que as classes inferiores da nossa sociedade ainda votam a tão poderoso e fácil meio de imunidade, notando-se naquelas alturas os efeitos da triste campanha que se travou na capital da República contra a vacina obrigatória, cujas falsas e maldosas referencias contra este meio de profilaxia são ainda citados. Não obstante procurei por meios suasórios e convincentes dissuadir a ignorância desses valentes desbravadores das selvas238. Mesmo sendo apontados como ignorantes, os seringueiros também são elogiados pelo prefeito ao serem chamados de “intemeratos e ousados filhos do norte” que conquistaram aquelas zonas de natureza “inculta e selvagem”. Mas a ignorância em relação à ciência médica e aos preceitos normativos das 235 Espécie formiga amazônica do gênero Pseudomyrna, também chamada popularmente de formiga de novato e vive em árvores chamadas de taxizeiros que são muito comuns em proximidades de várzeas, rios e igarapés. Fonte: site – Biomania, disponível em: https://biomania. com.br/artigo/taxi. Acesso em 24/04/2020. 236 MARIANNO, Território do Alto Acre – Departamento do Alto Purus, 1909, pp. 46/47. 237 PÁDUA, Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888, 2004, p. 104. 238 MARIANNO, 1909, p. 47. 76 autoridades, tornavam esses heroicos conquistadores, vítimas de si próprios no entendimento do prefeito. Para muitos, a recusa em relação à imunização trazia os reflexos da Revolta da Vacina ocorrida em 1904 no Rio de Janeiros e que teve como parte das consequências em relação aos classificados pelas autoridades como revoltosos, o desterro exatamente para o Acre no início de 1905 de parcela daquelas pessoas presas durante a vigência do Estado de sítio na capital federal239. Mas esse mundo da política local também parecia fazer suas vitimas, principalmente entre os mais desprotegidos social e economicamente. Essa elite política do Acre territorial era geralmente composta de muitos militares e poucos civis, enviados ao Acre por seus padrinhos políticos da capiltal federal e até adversários políticos, como vingança, às terras distantes e atrasadas dos sertões do país. Esses adventícios tornados poderosos eram pessoas que se auto avaliavam — com frequência — como homens ilustrados servindo momentaneamente nos confins do Acre. E essa situação foi ironizada pela imprensa da capital da republica no ano de 1907 na charge adiante [Imagem 08], onde a tônica sardônica se reveste em forma de uma galhofa sinistra que envolviam o mundo da política e das doenças endêmicas de caráter febril que ocorriam no Acre Federal. Imagem 08 – No Acre Fonte: Fon-Fon, 15 de junho de 1907, número 10, p. 29. Acervo FBN. Malgrado a imagem solidamente posta no imaginário nacional sobre o Acre como local doentio e mortífero, nessa charge é a política local — fortemente marcada pelo personalismo e pelo autoritarismo240 — que se elevava como o grande problema causador das desgraças. Algo que se acentuava pelo fato do Acre ser um Território Federal com a hipertrofia do executivo, sem o contrapeso do poder legislativo, algo que era mostrado como um dos males que aniquilava os acreanos mais pobres e humildes. Em seu livro A conquista do deserto ocidental, João Craveiro Costa afirma que os prefeitos dos Departamentos acreanos eram “senhores de baraço e cutelo” e que diante “dos excessos dessas autoridades não havia recursos”. (...) Assim armados de poderes ditatoriais, os prefeitos, sem exceção, se desmandaram e porfiaram em violências”241. É uma síntese que vai ao encontro do que está posto de forma irônica na 239 SILVA, 2017. 240 Sobre o autoritarismo e personalismo no Acre Territorial, ver: SILVA, 2012. 241 COSTA, 1940, pp. 307/308. 77 imagem chargística apresentada metaforicamente, em que esses políticos seriam a doença mais mortífera do Acre Federal em seus anos iniciais de incorporação ao Brasil. O mesmo autor da charge que fazia referencia entre a febre e a política volta, na mesma revista Fon-Fon, duas edições depois, com a charge abaixo [Imagem 09] em que insistia na sua ironia sobre o Acre doentio. Interessante notar que a sua assinatura autoral anterior, encontra-se em forma de tatuagem no braço da personagem que pergunta ao hipotético viajante incidental se ele esteve no Acre. Imagem 09 – Prova visível Fonte: Fon-Fon, 29 de junho de 1907, número 12, p. 22. Acervo FBN. A pergunta é respondida em tom ríspido e de questionamento, como se a indagação fosse algo sem sentido, diante do visível estado doentio da personagem que conseguiu sobreviver a duras provas após uma estadia no Acre Federal. Essa representação da região pestilenta e mortal foi duradoura e antecedeu e transcendeu o século XX, fazendo eco até os dias de hoje. Até pouco tempo, o verbete Morte figurava nos principais dicionários de língua portuguesa como tendo em um dos seus muitos significados a expressão “ir para o Acre”. Terra de morticínios, de doenças e de doentes. Não era lugar para gente sadia viver sem atribulações. Abguar Bastos explorou alegoricamente isso em sua obra de 1936, ao dizer que “Doente no Acre só sobrevive quando não bebe remédio ou bebe errado. O tônico, a tisana, o xarope não alimentam. No Acre, que alimenta o corpo é a febre. Ter febre é viver, pois quem deixa de ter febre morre. Morre porque acertou com o remédio”242. É também uma desconstrução dos saberes encerrados nas medicinas alopáticas e homeopáticas da época com suas panaceias de curas para as temidas doenças que vicejavam no Acre Federal. Essa construção narrativa e negativa — com ares do surreal citado acima — sobre o Acre parece ter sido bastante enraizada no imaginário popular e ter circulado com intensidade em jornais, revistas, literatura, academia e em vários estratos sociais pais afora como pilhéria e estereotipo. A historiadora Linda Nash em seu texto sobre doenças e as relações delas com a história ambiental de áreas incorporadas pelos impérios coloniais, traz interessante discussão sobre os corpos fora do lugar dos europeus nessas áreas de conquistas e povoamentos. Como ela aponta, mesmo a medicina cientifica ocidental fazendo parte do projeto colonial, os resultados imprevisíveis de doenças nos corpos desses sujeitos deslocados era algo incontrolável e que levou muitos à morte. E isso ocorria em varias partes do mundo colonial, como ela narra abaixo: 242 BASTOS, 1936, p. 137. 78 Whether in Southern Africa, India, the Philippines, tropical Australia, New England, or California’s Central valley, the prevalence of disease fostered the persistent anxiety that white bodies in the colonies might be “out of place,” and underscored the sense that that colonial settlement was a gamble in both economic and physical terms243. A força dessa visão tem historicidade e localidades variadas. No Brasil imperial, um médico inglês chamado Robert Dundas viveu mais de duas décadas na cidade de Salvador e em 1852 publicou em Londres uma obra chamada Sketches of Brazil em que tratava da influência do clima tropical na manifestação de febres intermitentes. Neste tratado médico, “o objetivo declarado do dr. Dundas, então, era explicar a alegada decadência orgânica dos europeus que permaneciam por longo período residindo em países de clima quente”244. Só podemos imaginar tenuamente o quão o medo da morte rondava esses imigrantes, do temor de ficarem com sequelas permanentes e até se voltariam em algum momento futuro aos seus locais de origem. Esses temores em grande medida eram gerados em relação a possibilidade de contatos com patógenos como vírus e bactérias existentes nos locais em que iriam residir no anti-mundo colonial, algo que tardiamente o Acre representa. A tese do doutor Dundas parece ter sobrevivido e readaptada com certa liberdade no alvorecer do século XX, pois algumas autoridades e intelectuais olham para a Amazônia/ Acre com esse filtro da inadequação do migrante diante do clima local e a degeneração do seu organismo pelas doenças endêmicas. Deve ser acrescentado a isso a aversão aos corpos de outros humanos considerados inferiores que ali já viviam, da comida do lugar e da falta daquela alimentação que lhes era usual, da falta ou escassez de inúmeros outros produtos que estavam acostumados a consumir. Não eram somente corpos fora do lugar, havia também uma mentalidade deslocada, modos de vidas incongruentes com a realidade que se apresentava diante desses sujeitos que carregavam uma boa dose de aventura e incertezas em suas andanças provisórias ou na busca de fixação em terras tropicais. Essa questão já aparece em estudo anterior de Alfred Crosby, quando ele vai tratar da presença de europeus e “neoeropeus” nas “Neoeuropas”. Segundo este autor, “os europeus foram bem sucedidos na tentativa de enriquecer enormemente nos trópicos — tanto no Velho quanto no Novo Mundo. Mas raramente conseguiram estabelecer comunidades europeias permanentes nesses lugares. Em longo prazo, os trópicos úmidos revelaram-se um bocado para o qual a Europa tinha dentes, mas não tinha estômago”245. Para este autor, a principal causa de não permanecia definitiva e formação duradoura de assentamentos de transplantados foi o contato com a existência de vermes, óxidos, bactérias, insetos, germes, fungos e de outros inimigos minúsculos que atrapalharam essas sedentarizações adventícias. Isso teria sido uma constante nas áreas tropicais da Ásia, da África e das Américas que foram objeto de conquista colonial dos europeus pelas armas, ciências e tecnologias que poucos efeitos tinham sobre os patógenos invisíveis. E assim, Alfred Crosby resume seu argumento que conduz a centralidade da sua explicação da não “europeização” dos trópicos: Em ultima análise, o problema dos estabelecimentos europeus no trópico úmido não é o calor ou a umidade em si, embora um e outra contribuam maciçamente para o acúmulo de dificuldades. O problema era o contato com os humanos tropicais, com seus organismos servidores e parasitos locais, micro e macro246. 243 NASH, Beyond virgin soils - Disease as environmental history, 2014, p 83. Tradução livre: “Seja na África meridional, na Índia, nas Filipinas, na Austrália tropical, na Nova Inglaterra ou no vale central da Califórnia, a prevalência de doenças promoveu a persistente ansiedade de que os corpos brancos nas colônias pudessem estar ‘fora de lugar’ e ressaltou a sensação de que o assentamento colonial era uma aposta em termos econômicos e físicos”. 244 CHALHOUB, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial, 1996, p. 79. 245 CROSBY, op. cit., p. 145. 246 Idem, p. 152. 79 Se em sentido amplo e de contexto no âmbito do colonialismo europeu essa observação é importante, na perspectiva interna das ex-colônias e de suas particularidades na ocupação de áreas consideradas remotas há também proximidades desses corpos fora do lugar em relação aos relatos das experiências aqui discutidas. No caso do Brasil e da ocupação de fronteiras em regiões como a Amazônia, esse sentimento de deslocamentos assimétricos aparece atrelado a vários fatores, como já foi dito: doenças, ausências de alimentação adequada, clima inclemente, natureza perigosa, indígenas selvagens e, em resumo, falta de civilização que pudesse permitir a presença contínua de agentes do estado e de migrantes operosos no interior ou bordas da floresta. Contudo, o que estava em jogo não era mais implantar qualquer “neoeuropa”, mas fazer chegar o Brasil e a brasilidade em terras que estavam “à margem da história”. Em seu relatório de governo, o prefeito Acauã Ribeiro assevera que no Alto Acre por volta de 1905 predominava “o mais perigoso impaludismo, com seu cortejo de hepatites, anazarca, polinevrite, beri-beri e febres de todos os gêneros”247 que se manifestavam com frequência nos corpos dos moradores, da população em trânsito e que dificultava a permanência das autoridades deslocada para servirem no Acre Federal. As doenças citadas pelo prefeito eram (e são) causadas comumente por deficiência de nutrientes na alimentação (beribéri); associadas a problemas renais crônicos, desnutrição e cirrose (anasarca); derivadas comumente de infecções virais e consumo excessivo de álcool (hepatites) e poderiam estar associadas a diabetes e intoxicação crônica devido também ao consumo continuo de bebidas alcoólicas (polinevrites). As autoridades administrativas, sanitárias e médicas atribuíam geralmente a ocorrência e prevalência dessas doenças devido a má alimentação dos moradores e ao vício alcoólico, principalmente entre os seringueiros. Em seu estudo sobre saúde pública no Acre territorial entre 1904 e 1930, Sérgio Souza afirma a partir da pesquisa realizada nos relatórios departamentais que: observa-se a não preponderância de concepções ortodoxas que atribuíssem única e exclusivamente ao clima os quadros mórbidos existentes no então Território do Acre, durante a primeira década do século XX. No geral, era imputada bem menos culpa a este que a outros fatores como má alimentação, consumo excessivo de álcool, recursos a outras “artes de curar” e ausência de assistência médica. O que se percebe é um movimento inverso, com a maioria dos prefeitos tentando inserir em seus relatos o máximo de informações que ajudassem a desconstruir a imagem da malignidade do clima local, preceito que, quando divulgado, se constituía em forte empecilho para a empresa gumífera em processo de expansão e necessitando de mão de obra para a coleta do látex e produção da borracha248. Havia já em curso nos anos iniciais do século XX uma posição cada vez mais acentuada entre autoridades em geral e leigos de que o clima pouco tinha a ver com as doenças que corriam com mais freqüência na Amazônia acreana, fossem endêmicas ou epidêmicas. Em Cruzeiro do Sul, o encarregado da Comissão de Obras Federais Antonio Manuel Bueno de Andrada afirmava em 1907 — em relatório publicado no ano seguinte — que “a má fama destas regiões, quanto a sua insalubridade, provem da má escolha dos gêneros alimentícios e não das condições climatéricas. Desde que se derrube uma vasta área de mata, obtem-se terreno para moradia higiênica”249. Na sua afirmativa podemos extrair o abandono da tese dos ares corrompidos e o reforço do problema ligado a dieta alimentar imprópria da população que vivia no Acre, impossibilitando ela de se manter sadia. Corpo saudável e habitat (casa e cidade) salubres seriam conquistas advindas com a derrubada da mata próxima, conforme também defendia e atestava seu contemporâneo em Sena Madureira Cândido Marianno. A floresta como antro de doenças e lugar indesejado ainda permaneceria por muito tempo como um problema no horizonte não tão distante das cidades na Amazônia. 247 RIBEIRO, 1906, p. 15. 248 SOUZA, 2014, p. 62. 249 ANDRADA, Primeiro Relatório da Comissão de Obras Federaes no Território do Acre, 1908, p. 35. 80 Olhares opostos surgem apenas esparsamente e algumas iniciativas da época, mas em torno dos bosques melhorados e não das florestas “brutas” e “sombrias” ainda não gestadas pela mão humana. Como veremos a seguir, algumas ideias aparecem voltadas para a defesa da criação de parques urbanos nos moldes do que já existiam em outras cidades do Brasil naquele período das primeiras décadas do século XX. A NATUREZA REDIMIDA NO ESPAÇO URBANO Em 1914, o prestigioso Almanaque Brasileiro Garnier trazia em suas paginas uma extensa matéria sobre o Acre Federal. O texto era ilustrado por fotografias que o autor atribuía o envio delas ao Prefeito do Departamento do Alto Purus Samuel Barreira. A abertura do texto dizia que: “O Território do Acre civiliza-se... Ainda é um acampamento e bivac [local provisório] de população precária, aventureira. Mas, também funda-se a fortuna, e arraigam-se os domicílios com a constituição de famílias. Já não são raros os acreanos natos; povoam-se as escolas, e há já um caráter de habitat sedentário em algumas povoações e nas capitais novas: Sena Madureira, Cruzeiro e Xapury”250. Na continuidade da matéria se afirmava que havia no Acre alguns sinais da “civilização moderna” chegada esparsamente naquelas “solidões do extremo oeste”: a eletricidade, os clubes da sociedade de tiro, a existência da imprensa e alguns escassos automóveis251. São por excelência os signos que indicavam bom gosto e a imersão incipiente em algum padrão de sofisticação considerado válido. Na mesma edição, mas voltada para descrever a região do Alto Purus, o articulista acrescenta que a abertura de rodagens ligando os departamentos entre si era outro sinal claro do progresso e desenvolvimento do Acre. Atribui essas façanhas aos prefeitos dos departamentos e afirma que “a esse impulso de constante progresso e riqueza, basta que se juntem a competência, a ilustração e boa vontade dos Prefeitos que governam e dirigem aqueles começos de organização”252. Passados cerca de 21 anos desta publicação no Almanaque Garnier, o militar Lima Figueiredo253 publica 1935 varias matérias derivadas de sua viagem ao Acre. Numa delas, intitulada Uma viagem pela floresta acreana, ele abre o texto com uma referencia as ainda ausências daqueles signos de progresso apontados como em voga em 1914 na mesma cidade de Sena Madureira. O autor acentua de como ele, ali chegando já nos anos de 1930, se confronta com a incapacidade material de dispor de um carro que o transportasse até Rio Branco. Assim ele descreve sua viagem pela floresta em direção a capital do Acre Territorial já unificado após o fim dos antigos Departamentos: Os mappas do Território do Acre mostram-nos, em vermelho, uma estrada de rodagem ligando Sena Madureira a Rio Branco através do deserto verde e imenso. Ao chegar, pois, a primeira dessas cidades, que é banhada pelo rio Yaco, afluente do Purus, julgava poder alugar um Ford para percorrer a famosa rodovia. Não encontrei um só automóvel. Homens com 40 anos de idade só conheciam o grande invento de Cugnot através de photographias. Apesar disto, uma esperança me animava – não havia o vehiculo, porem a via de comunicação deveria existir bordando de salmão a mattaria verde. A condução mais cômoda que consegui foi o lombo de um muar. Podia ser peior...254. 250 Almanaque Brasileiro Garnier, 1914, número 17, p. 172. Acervo FBN. 251 Ibidem. 252 Idem, p. 444. 253 José de Lima Figueiredo (1902/1956) era militar e na época ocupava o posto de capitão e não fica claro qual era o motivo de sua viagem, que na sua narrativa adquire tons diletantes diante do trabalho que talvez tenha sido designado a realizar. Na referida revista ele é identificado como “instrutor chefe da Escola de Engenharia e ex-ajudante de ordens do general Rondon”. Publicou algumas obras como Limites do Brasil (1936) e Índios do Brasil (1939) e no inicio dos anos de 1950 exerceu um mandato de deputado federal por São Paulo. Fonte: CPDOC, disponível em: https://bit.ly/35jXcFi, acesso em 01º/05/2020. 254 Revista da Semana, 08 de junho de 1935, número 26, p. 37. Acervo FBN. 81 A estrada de chão batido e enlameada contrasta sua coloração de tons rubros com o verde do deserto imponente da floresta na narrativa amazonialista de Lima Figueiredo, que passa ao leitor a imagem de um homem surpreendido pela ausência de um “simples” automóvel que pudesse dispor, pois nas suas palavras o objeto motorizado era então algo desconhecido pela maioria da população local. Ele “volta” no tempo em seu intuito de se deslocar, fazendo uso do lombo de um animal para transportá-lo na sua viagem até Rio Branco. O tom pitoresco domina o restante do seu “diário” nesse deslocamento de cerca de 150 quilômetros que separam as duas cidades. A reduzida dimensão geográfica dos perímetros urbanos onde ficavam as sedes administrativas das prefeituras, com seus chefes executivos e alguns “sinais” da “civilização moderna”, eram para alguns que olhavam de fora e com certa dose de boa vontade com determinadas autoridades, a parte tomada como o todo. O mundo rural e florestal quase sempre desaparece de qualquer comentário mais demorado, pois a decantada superação do predomínio florestal, da diminuição de doenças endêmicas e crescimento populacional e material das vilas atestavam um Acre que “evoluía” em direção aos signos redentores do cosmopolitismo. A natureza redimida e colocada a serviço do bom gosto, bem estar e interesses econômicos em voga era a meta buscada e desejada por essas vozes. Derrubar as matas do entorno das cidades era proporcionar moradias “higiênicas” no espaço urbano, conforme vai atestar em seu relatório um dos prefeitos do Alto Juruá em 1907255. Contudo, mais à frente no tempo algumas sensibilidades proto burguesas locais já passam a considerar o refrigério das matas e atividades de lazer como passeios, tiros esportivos e piqueniques algo que deveria ser realizado nesses espaços arcadianos redimidos chamados parques públicos. Por isso, alternativamente, a criação de parques públicos com área verde “domesticada”, pitoresca e alterada aos gostos e necessidades dos moradores urbanos mais elitizados também ocorreu no Acre Federal. Um caso exemplar é a doação de terras feita em 1926 pelo casal José de Mello e Isaura Parente, seringalistas e proprietários das terras onde se formou o primeiro distrito de Rio Branco. Em documento enviado ao governador Alberto Diniz os doadores afirmam que já havia nas cidades de Xapuri e Sena Madureira parques urbanos, faltando um espaço semelhante na então capital do Acre Federal. Nas considerações em que destaca a valorosa doação, o benemérito casal afirma que a criação de um bosque público traria enormes vantagens aos moradores do perímetro urbano de Rio Branco, pois se tornaria um “refugio aprazível” e serviria para minorar os “terríveis efeitos de intensa canícula” no período de verão amazônico256. A justificativa, mais que estética, era de caráter utilitário e com fins voltados para a diminuição da sensação de alta térmica que existia na cidade desflorestada e de horizontes mais alargados em relação às suas décadas iniciais de formação. Mas não se deve excluir a variante da satisfação emocional, de um ar mais cosmopolita e integrador ao se ter um “bosque urbano” como já havia em grandes cidades brasileiras do período. Nos encômios dirigidos ao governador recém empossado, a família Mello apela para suas “qualidades superiores” de administrador e esperava que ele encontrasse os devidos caminhos para superar “os entraves á pratica de tão feliz quanto carinhosa iniciativa em beneficio dos moradores de Rio Branco”257. Os elogios iniciais ao governador se tornam no final do texto uma auto homenagem que os doadores fazem a si mesmos como pessoas magnânimas para com os seus citadinos. 255 O engenheiro militar Antonio Manoel Bueno de Andrada foi diretor da Comissão de Obras Federais em Cruzeiro do Sul e exerceu interinamente o cargo de prefeito local entre junho e setembro de 1907. 256 DINIZ, op. cit., p. 103. 257 Idem, p. 104. 82 E num tino de bajulação que parecia querer mexer com os brios do governador recém nomeado, o casal de seringalistas258 propõe que o nome do futuro logradouro público seja denominado Bosque Desembargador Diniz e que “prontificamo-nos a assinar a respectiva escritura de doação no dia e hora que V. Excia. houver por bem designar”259. No dia 04 de novembro de 1926 o governador responde ao casal Mello acerca da proposta de doação de terras que ele diz ter recebido exatamente no dia de seu aniversario. Relembra que coincidentemente dias antes tinha ocorrido uma conversa entre ele, Izaura Parente e o cunhado desta [João de Mello] em que ele governador lamentava não haver nos arredores da cidade de Rio Branco um espaço publico em formato de um bosque municipal. Fica claro então que a motivação da doação foi essa primeira conversa e cuja iniciativa se concretizou no dia do aniversario do governador como uma espécie de presente e com a sugestão que a área de terras levasse seu nome. Torna-se patente a tentativa da família Mello em, no mínimo, agradar especialmente o novo governador do Território Federal do Acre. Essa doação foi noticiada em primeira pagina no jornal Folha do Acre260 e ali se afirma que o ato era uma homenagem dos proprietários do Seringal Empreza ao novo governador do Acre recém empossado. Uma das exigências do governador para efetivar a aceitação das terras do futuro bosque público foi que a proposta do seu nome para o batismo oficial do lugar desse vez ao de sua filha recém falecida chamada Flora. Ficaria então o nome — muito apropriado — de Bosque Flora. O governador Alberto Diniz afirma que o futuro bosque público assim nomeado seria uma forma de guardar uma “viva lembrança da primitiva mata em toda sua selvagem e imponente beleza”261. E que o local se tornaria um espaço para diversão e recreios das famílias que viviam em Rio Branco, claro que sem o primitivismo e a selvageria da floresta em seu estado original como ele deixa afirmado na sua manifestação ao casal Mello. Dois dias depois, o militar e seringalista José de Mello responde ao governador em nome de sua família e assevera que eles se sentem “desvanecidos” pela honrosa sugestão de homenagem proposta pelo ex-desembargador a sua filha falecida e que a doação era uma “parcela mínima” de gratidão que a família tinha com o então governador262. Não há continuidade na imprensa da época e nem no livro de memórias de Alberto Diniz se de fato houve a implantação do bosque municipal em Rio Branco. Tudo leva a crer que não, pois logo este governador foi substituído e talvez tenha caído no esquecimento as vontades de homenagens à família Diniz e que a doação do terreno não tenha se efetivado de fato. O pano de fundo que atravessa essa proposta e demais informações de relatos dos prefeitos e outras autoridades sobre as cidades acreanas e seus entornos é o da existência de desflorestamento em média e grande escala, a preocupação recorrente da eliminação de micro-organismos da flora e do solo, manter animais bravios e peçonhentos em uma distancia imaginada segura e, talvez, o mais significativo desse processo foi a busca de transformação da paisagem urbana e de seu entorno para que trouxesse ares de um desejado cosmopolitismo frente a floresta e sua imponência perene não tão distante. Mas esses desejos ou não se completavam ou eram sempre renovados diante da sensação de ausências que serão sempre reativadas e reelaboradas em vários momentos temporais e históricos do Acre Federal. Em 08 de maio de 1943, por ocasião do aniversário de Getúlio Vargas ocorrido no dia 19 de abril, 258 Alem do Seringal Empreza herdado da família de Isaura Parente, o casal era proprietário de vários imóveis em Rio Branco e existia na justiça federal um rumoroso processo que se arrastava havia alguns anos de pedido de pagamentos de precatórios pela União ter ocupado suas terras para fundação do distrito de Penapólis (Primeiro Distrito). José Francisco de Mello era também advogado, jogador de futebol e foi chefe de policia do Território nas administrações de Alberto Diniz e Hugo Carneiro. Fonte: jornais Folha do Acre. 259 DINIZ, op. cit., p. 105. 260 Folha do Acre, 21 de novembro de 1926, ano XVI, número 548, p. 01. Acervo FBN. 261 DINIZ, op. cit., p. 106. 262 Idem, p. 109. 83 a Revista da Semana publicava uma extensa matéria carregada de mesuras acerca de como se deram os festejos no Acre em homenagem ao ditador do Estado Novo. Em certa passagem do texto, assim se diz sobre o Acre quase quatro décadas após sua incorporação ao Brasil e mais de 15 anos passados desde a tentativa fracassada de outorgar um bosque publico em Rio Branco: Parte integrante da Amazônia que, verdadeiramente, constitue para o mundo “um mundo a parte”, a natureza, ao constituí-la, foi de um capricho extraordinário, desconcertante por vezes, por vezes deslumbrador, em que se não sabe o que mais admire – se a imponência de suas criações bizarras, se o tumulto da elaboração ciclópica que ainda processa na região, como que incontentada da amplitude com que selou sua obra local. E cada zona tem peculiaridades notáveis e cada vale dos grandes rios possue os seus fenômenos marcantes como advertir os estudiosos de que estão em presença de um mundo novo, de uma terra, de certo, ainda em formação e cujo mistério de sua genesis desafia a argúcia dos pesquisadores, quase sempre deslumbrados. Tudo isso é, porém, quase estranho ao Brasil. E há quem julgue o Acre uma calamidade. E há quem o malsine sem o conhecer, porque ele está muito longe, lá distante da civilização dos grandes centros, e a sua visão – a visão das suas florestas virgens, dos seus rios lendários e soturnos, da sua vida de renuncias e sacrifícios – esbate-se na distancia como um horrífico panorama amedrontador e formidável263. (grifos meus). Essa passagem resume bem a permanência desse conjunto variado e sobreposto de imaginários acerca do Acre, em particular, e da Amazônia, em geral. Afirmava-se que ainda existia “um mundo a parte” de uma pretensa brasilidade e história nacional, resquício das construções euclidianas do inicio daquele século. Local ainda narrado como tumultuário e de bizarrices que impressionavam olhos externos “civilizados”, mundo primevo tal qual as paginas do Genesis narram a infância terreal da obra divina. O Brasil, como é afirmado, continuava “estranhando” aquele Acre distante, território ainda “deserto”, com seus rios “soturnos”, virgindades florestais intocadas, com humanos vivendo em “sacrifícios” e “renuncias” permanentes. Humanos são frequentemente desumanizados porque não teriam ainda saído da barbaria e não atingiram a civilidade plena, a natureza é antropomorfizada com características humanizantes porque o “conquistador” ainda não penetrou, domou, assimilou, domesticou ou desvirginou plenamente aquelas paragens remotas. Se décadas antes as tentativas de transformação do deserto ocidental se deu em caráter mais privado, a matéria da revista emula a figura de Getúlio Vargas e do Estado Novo como os novos agentes de outra Marcha para Oeste264 com fins redentores. 263 Revista a Semana, 08 de maio de 1943, número 19, p. 22. Acervo FBN. 264 Marcha para Oeste foi um programa desenvolvimentista criado durante a ditadura varguista (1937/1945) e visava impulsionar a economia e o aumento populacional das regiões Norte e Centro Oeste via ação estatal. É atribuído ao escritor modernista Cassiano Ricardo a função ideológica de promover o projeto varguista através de seu livro Marcha para o Oeste: a influência da bandeira na formação social e política do Brasil, publicado em 1940. Cf.: OLIVEIRA, O progresso na “marcha para o oeste”: uma análise enunciativa na imprensa mato-grossense, 2007. 84 CAPÍTULO III: INDÍGENAS E CABOCLOS NO CAMINHO DA CONQUISTA E DA COLONIZAÇÃO Esses claros não são os futuros desertos. São os rastros do homem que civiliza, o campo aberto da luta, onde ele tudo derrubou, para conquistar uma região coberta cem por cento de florestas. Océlio de Medeiros (A Represa, p. 78) N o processo de conquista do chamado Novo Mundo pelos europeus, as suas narrativas dos primeiros contatos irão destacar um conjunto de ausências em relação ao território e as populações nativas daqueles que serão depois — genericamente — chamados de indígenas. As ausências do território se referem à falta de estrutura física, das paisagens, do arcabouço mental e dos produtos do mundo europeu aos quais os colonizadores estavam acostumados265. Oposto a isso havia também percepções de excessos relativos a exuberância e grandiosidade da natureza, principalmente em relação ao ambiente florestal, faunístico e aquático. As ausências humanas começavam pela própria duvida em relação à humanidade daquelas gentes nativas, que quando muito eram rotuladas no mínimo como infantis e atrasadas. E assim vão sendo sedimentadas crenças de que aquelas populações não tinham língua, nem religião, também não conheciam leis, e nem tinham noção de propriedade e posse. Essas propaladas ausências justificariam a partir dessa constatação uma serie de ações sobre os modos de vidas e existência étnicas dessas populações complexas e culturalmente diversas que já habitavam o novo continente. Um conjunto de considerações duradouras e que atravessa os séculos seguintes são as reiteradas narrativas do território vazio, ermo, aberto e disponível à conquista e exploração econômica dos adventícios. Se havia gentes — ou seres vivos próximos a isso na visão dos colonizadores —, foram tachados de inferiores e indolentes com bases em narrativas religiosas, filosóficas e (pseudo) cientificas nos séculos posteriores ao processo inicial de conquista européia. Como aponta Paco Nadal sobre esta questão, “los indígenas eran nadie y si estaban donde non debían las armas o los relatos podian hacerlos desaparecer”266. Indígenas em geral e os sujeitos mestiços racializados são preferencialmente rotulados como aqueles nativos incapazes de construir civilização e nacionalidade nesses espaços de fronteiras imperiais, onde a dominância da natureza é vista como se sobrepondo com vigor frente à incipiente obra humana do colonialismo e da colonialidade267. Como exemplo sintomático desse pensamento duradouro, trago a este texto um artigo do escritor potiguar Aurélio Pinheiro de meados dos anos de 1930 intitulado O caboclo amazonense e que foi publicado na então revista carioca A Semana Ilustrada. Em um exercício de cunho psicológico-antropológico e carregado de pré-noções em voga havia algum tempo, o autor nos diz: O predicado primordial do caboclo amazonense é a desambição. A vida livre, a facilidade de alimentação, uma herança de inércia secular, a própria natureza sombria, quieta, imutável, e o predomínio absoluto da mentalidade dos aborígenes tornaram-no integralmente desprendido, simples, ingênuo, não compreendendo a vida fora desse ambiente de independência e irresponsabilidade.268 Aurélio Pinheiro269, que era médico de formação e atuava no meio jornalístico e literário, expressa em seu texto um olhar que rebaixa o caboclo como sujeito racializado com sangue e modos de vida de herança indígena e do branco. Mas claramente preponderando para o atraso e a inatividade que seriam atavicamente de procedência indígena. Para a antropóloga Denise Lima, o termo caboclo é uma categoria de classificação carregada de complexidade que envolve dimensões geográficas, raciais e de classe270. Segundo esta autora, “na região amazônica, o termo caboclo é também empregado como categoria relacio265 Entre outros, ver: KIENING, 2014; TODOROV, 2010; McCLINTOCK, 2010; UGARTE, 2009. 266 NADAL, Indios, negros y otros indeseables: capitalismo, racismo y exclusión en América Latina y El Caribe, 2017, p. 102. 267 Os termos colonialismo e colonialidade remetem às discussões encampadas por Anibal Quijano (2005) e Walter Mignolo (2007). 268 268 A Semana Ilustrada, ano XXXV, número 18, 14 de abril de 1934, p. 01. Acervo FBN. 269 Aurélio Valdemiro Pinheiro (1882-1938) nasceu no Rio Grande do Norte, formou-se em medicina na Bahia e atuou como inspetor sanitário no município amazonense de Parintins. Poeta, escritor e tradutor publicou, entre outras, a obra À margem do Amazonas (1937). Fonte: https://bit.ly/2Qs6x7M, acesso em 18 de março de 2020. 270 LIMA, A construção histórica do termo caboclo: sobre estruturas e representações sociais no meio rural amazônico, 1999, p. 03. 86 nal. Nessa utilização, o termo identifica uma categoria de pessoas que se encontra numa posição social vista como inferior em relação àquela com que o locutor ou a locutora se identifica”271. Aurélio Pinheiro em sua ênfase assevera que o caboclo amazônico é mais parecido com o indígena do que com o branco na cultura e na sua psicologia de cunho comportamental e hereditário. A liberdade e independência que o autor atribui como parte do modo de vida do caboclo, tornam-se aspectos de viés negativo, equivalentes a irresponsabilidade, e seriam traços da permanência da “mentalidade dos aborígenes”. A natureza tropical era então “sombria, quieta e imutável”, tendo em seu interior sujeitos com as mesmas características atávicas e reprováveis aos olhos da “civilização” chegante. Territórios e sujeitos ausentes da civilização, que sozinhos não tinham como sair do atraso em que se encontravam. Isso porque: Como o índio, ele não pode assimilar as ideias do branco: o trabalho, a ordem, o método, o conforto, a riqueza, a permanente preocupação de uma existência melhor, travando quotidianamente, infatigavelmente, uma batalha cruel contra os seus próprios semelhantes, contra a natureza, contra tudo que possa tolher sua escalada na vida272. Haveria uma impossibilidade racial, genética, hereditária e cultural do caboclo e do indígena em se equivalerem como humanos ao escopo branco considerado civilizado. Alem disso, eles próprios seriam resistentes às mudanças em seus modos de vidas apontados como atrasados e inferiores ao padrão considerado correto e unicamente válido. Estavam então — indígenas e caboclos — condenados a viverem em luta permanente contra a “civilização”, que chegava de fora, e contra a natureza ali pré-existente. Numa passagem da sua obra Razão negra, Achille Mbembe afirma que o termo negro, produto indissociável do capitalismo, foi inventado para significar exclusão, embrutecimento, degradação, um limite sempre conjurado e abominado273. Poderíamos agregar a tal invenção colonial também o termo índio, que como coletividade carregou concomitantemente esses mesmos signos quando seus territórios e seus corpos foram inseridos na mesma lógica capitalista. Foram também tornados diferença em estado natural, assim como os negros foram nos dizeres do referido autor camaronês. Como aponta o escritor Océlio Medeiros em epigrafe de abertura deste texto, a natureza amazônica e acreana eram teatros de luta para o estabelecimento da desejada civilização. Há uma clara simetria como o texto de Aurélio Pinheiro e concordância em relação a quem é “o homem que civiliza”. Esse homem colonizador foi quem “tudo derrubou para conquistar uma região coberta cem por cento de florestas”274. Portanto, florestas vazias de gente e de sentidos; com indígenas e caboclos invisibilizados porque destituídos de positividade aos olhos da maioria dos colonizadores e de seus prosélitos. A floresta sombria deveria dar lugar aos “clarões” da civilização que em sentidos polissêmicos iluminaria o território remodelado e a obra humana dos adventícios, com o necessário apagamento da decantada barbárie declarada existente desde a chegada dos primeiros europeus ao Novo Mundo. A NATUREZA SELVAGEM DO NATIVO O já referenciado escritor e jornalista Abguar Bastos, na apresentação da obra A conquista do deserto ocidental, traz sua leitura histórica do processo de ocupação e “conquista” do Acre. A figura genérica do nordestino, já bastante presente no meio intelectual e jornalístico dos anos 30 e 40, é realçada na sua reconfiguração narrativa a partir do sertanejo euclidiano de décadas anteriores. Esse nordestino inventado, e o cearense em particular, se tornam os desbravadores coletivos das terras do Norte do país, principalmente as do Acre. Como já demonstrou o autor de Por uma história acre, 271 Idem, p. 08. 272 A Semana Ilustrada, ano XXXV, número 18, 14 de abril de 1934, p. 01. Acervo FBN. 273 MBEMBE, op. cit., p. 21 274 MEDEIROS, op.cit., p. 78. 87 há um movimento intelectual que emergiu nos anos de 1910 e 1920 e que vai inventar o Nordeste como um espaço cultural idiossincrático275. São autores principalmente do Ceará, que internamente ao regionalismo freyriano em voga na região pós anos de 1930, buscam confrontá-lo a partir do olhar particular da diáspora cearense para terras de outras paragens do país, principalmente na Amazônia. Externamente, esses intelectuais representam um enfrentamento às narrativas hegemônicas da nacionalidade brasileira produzidas em torno do bandeirante desbravador dos sertões. O “nordestino-cearense” se constrói como aquele que alargou tardiamente o território nacional ao ir ocupando e explorando as terras do Acre como um novo bandeirante. Não deixa de ser interessante a vinculação intelectual de Abguar Bastos a esta interpretação ao dizer que “a assimilação, pelo nordestino, da terra acreana” foi um feito grandioso semelhante à obra do bandeirante do período colonial. Esses nordestinos são sujeitos coletivos imersos na identidade genérica de matriz geográfica e cultural, que nesse outro geográfico precisam se refazer em relação ao que lhes era adverso e estranho na natureza do lugar de fronteira em movimento que irão ocupar. Por isso, “com as necessárias concessões ao meio, o complexo moral do velho patriarcado do Nordeste, cremos que não teria lugar, não fosse o para-choque estabelecido com a lavoura, contra o complexo instintivo da economia florestal”276. Para este autor, tradição, mudança, maleabilidade cultural e saberes são trazidos pelo migrante conquistador e colonizador das terras amazônicas do Acre. Não é mais o sujeito nativo movido por “instintos” de apenas coletor extrativista e caçador. A economia coletora, extrativa, florestal de povos indígenas e dos caboclos são colocadas como pouco disciplinada, instintiva e de sobrevivência imediata, presentificada e sem planejamento futuro. Os saberes da lavoura sedentária, da plantação e do cultivo de alimentos são apontados como uma forma de manutenção da identidade de sujeitos migrantes que “regridem” para sobreviver em um novo espaço de natureza adversa aos seus costumes e herança cultural. A fronteira acreana, pensada a la Fredrick Turner mas sem a densidade teórica do autor norte-americano, é uma oportunidade desses intelectuais em tornarem o cearense (ou o nordestino) genérico no elemento chave na construção de uma identidade coletiva no extremo ocidental do Brasil. Neste caso, não estava em jogo ainda a busca de uma pretensa identidade acreana, mas a de afirmar o papel do nordestino ou cearense dentro da narrativa identitaria nacional. Essa fronteira em movimento não deixa de ser, “o pico de da crista de uma onda – o ponto de contato entre o mundo selvagem e a civilização”277 na aproximação com o sentido turneriano que intentei correlacionar. Assim, as violências humanas contra indígenas, seus territórios culturais e ancestrais são preços que estes pagam à chegada do progresso trazido pelo colonizador ao aportar em seus territórios vistos como vazios. Não há por parte dos adventícios quaisquer objeções éticas aos habitantes selvagens das áreas de ocupação que transformam territórios indígenas em seringais, fazendas, colônias e povoados. Para Abguar Bastos, “o desoldamento da tradição patriarcal do sertanejo haveria de processar-se cada vez mais violentamente”278 essas praticas de ocupações e de etnocídios. E de fato, em muitas obras e relatos, essas violências são realçadas como uma característica necessária ao se chegar a um ecossistema considerado extremamente hostil pelos fatores naturais e pelas características dos habitantes ali já existentes. Contudo, conforme aponta Abguar Bastos, esse migrante nordestino, “‘descendo’ ao índio, ele conseguiu “regressar” conservando o que de mais profundo o caracterisava e perdendo o que, na superfície 275 ALBUQUERQUE JÚNIOR, A invenção do Nordeste e outras artes, 2011. 276 BASTOS, p. 47. In: COSTA, 1940. 277 TURNER apud KNAUSS (org.), Oeste americano: quatro ensaios de história dos EUA de Frederick Jackson Turner, 2004, p. 24. 278 BASTOS, p. 39. In: COSTA, 1940. 88 de sua educação, haveria de servir de liga ás condições da terra, do meio e da vida”279. E mais, segundo este mesmo autor: o nordestino ao chegar ao Acre fez o caminho contrário. Não “saltou”, como o índio, três vezes à frente, mas “saltou” três vezes atrás. Como num filme atravessou, aos recuos, as três etapas da barbárie e encontrou-se num reino feito a semelhança da fase superior do estado selvagem. Não importa que o reino fosse povoado de civilisados, que houvesse por ali instrumentos de aço e ferro, que houvesse o alfabeto. O que importa é o seguinte: a economia a ser explorada era a do bugre manso. Aquela que recebia do civilisado o machado ou o terçado e dava em troca o páu ou o látex280. Esse “salto” em direção ao arcaico por parte desses migrantes, teria sido — nas palavras de Abguar Bastos a partir de uma simplificação invertida das ideias de Lewis Morgan —, uma imposição do meio físico e das condições econômicas de trabalho baseadas no extrativismo florestal. Por isso uma indesejada herança indígena se impõe sobre os nordestinos, outros migrantes e caboclos nesses duais confrontos/ encontros onde os antigos modos vidas são permeados pelas trocas e incorporações de alguns elementos das culturais locais, notadamente de matriz nativa. Na sequencia dessa discussão, o autor em seu longo prefácio afirma que: Os meios de transporte, os métodos de trabalho e o gênero de vida, eram autenticamente indígenas, e seus processos ainda remontavam a época do descobrimento. Nem uma diferença havia entre a clássica pindoba indígena, comprida e sem compartimentos, com o barracão dos seringais. E si havia lanchas não deixava de haver canoas. E si havia novos caminhos, os principais ainda eram os antigos caminhos dos índios. Dos índios ainda eram os remédios, as defumações, as lendas, as superstições, os nomes, os utensílios e a forma e a forma de pagamento a trôco dos produtos florestais: os objetos e os tecidos281. Embora comumente apagadas, e geralmente negadas, essas observações do escritor paraense são — mesmo na época em que ele as escreveu — algo destoante em relação a outros escritos coevos, sejam ficcionais ou históricos, quando tratam da formação do Acre e da constituição da identidade acreana. Esse conjunto amplo de herança da cultural material e imaterial de matriz indígena geralmente não é algo atestado pela maioria dos cronistas e memorialistas. Para alem da ideia de regressão no tempo ao se adentrar os espaços florestais amazônicos, dessa mescla de “civilização” com a “barbárie” originando algo diferente, temos em Bastos uma rara posição de reconhecimento dos saberes indígenas na formação da sociedade dos seringais. Ele sentencia então que “todo o barro de formação do homem novo do Acre era indígena”282. Esse homem novo, na sugestão implícita do autor, parece ser o acreano. Sem ter como atestar de todo, parece-nos que o autor dialoga com o famoso texto de Frederick J. Turner sobre a constituição da fronteira no Oeste americano. Para alem da contigencia de intencionalidade, vejamos o que diz F. J. Turner acerca do contato dos migrantes pioneiros com os indígenas no wilderness americano: “na fronteira, acima de tudo, o meio ambiente é duro demais para o homem. Ele tem que aceitar as condições que esse meio ambiente lhe oferece, ou perecer”283. É a lógica do passo atrás, que precisa ser dado nos momentos iniciais da colonização. São esses homens nordestinos ou cearenses — narrados também como o gênero por excelência da conquista — e tornados seringueiros ou patrões que serão narrados como os “primeiros ocupantes do solo”284 até então apontado como vazio. O militar Glimedes Rêgo Barros, ao escrever e publicar a biografia administrativa de seu pai Francisco do Rêgo Barros — prefeito do Alto Juruá entre 1912 e 1915 — assim 279 Idem, p. 47/48. 280 Idem, p. 34. 281 Idem, p. 35. 282 Idem, p. 46. 283 KNAUSS (org.), op. cit., p. 25. 284 BARROS, Nos confins do extremo Oeste: a presença do capitão Rego Barros no Alto Juruá (1912-1915), 1993, p. 122. 89 se refere aos indígenas da região do Juruá: “O índio constituiu um sério problema para os donos dos seringais, com sorrateiras incursões e por vezes flechando seringueiros”285. O autor narra que no Alto Juruá, dois renomados proprietários locais — Absolon Moreira e Mâncio Lima — tiveram “suas” terras “invadidas” por “silvícolas” nos primeiros anos do século XX. A obra, publicada pela primeira vez em 1982, é sustentada em muitos documentos pessoais guardados pelo seu pai e numa memória herdada pelo próprio filho e autor, imbuído de ser o fiel representante da “verdade histórica” e a voz autorizada relacionada às vivencias do pai já então falecido. No caso especifico de Mâncio Lima, o autor assim sintetiza o que ele conceitua como “invasão” indígena das terras sob domínio deste seringalista, politico e fazendeiro renomado do Alto Juruá: “Havia doze anos que as propriedades de Mâncio Lima vinham sendo inquietadas em horas da faina diária, por ameríndios de origem desconhecida. Penetravam sorrateiramente, furtavam os barracões, não deixando na vegetação ou no solo qualquer indício de sua passagem”286. Como é comum nesse tipo de narrativa, os indígenas não são vistos como portadores de direitos sobre o território em que viviam desde sempre. Assim, qualquer reação posterior por parte dos indígenas na tentativa de se contraporem aos assassinatos, capturas, tomada de seus territórios étnicos e culturais é narrada como “invasão” por parte dos “silvícolas” não “civilizados”. A solução teria sido a arregimentação, por parte de Mâncio Lima, de indígenas Nauas “civilizados” para em uma expedição chefiada por Antonio Marques de Menezes e depois Antonio Bastos, ambos chamados pelo autor de sertanistas, para contatarem os indígenas “Poanauas” com o intuito de “convencê-los” a “visitar” à convite a fazenda Rio Branco de propriedade de Mâncio Lima e que prometessem dali em diante “amizade” ao poderoso proprietário de terras do Alto Juruá287. Escrevendo posteriormente a estas ações de Mâncio Lima descritas acima e relacionada às correrias para capturas, matanças e expulsões de indígenas dos seus territórios ancestrais, José Moreira Brandão Castelo Branco Sobrinho288 publicou no inicio da década de 1950 na prestigiosa revista do IHGB uma série de artigos sobre a presença histórica de indígenas no território que depois se chamou Acre. Em artigo intitulado O gentio acreano, o autor fala em relação a Mâncio Lima e aos Poianauas com o tempo verbal relacionado ao momento em que escreve e diz: Os Poianauas do rio Môa conservam seus chefes, mas obedecem ao dono do seringal que os catequisou, chamando-o de papai grande, ou papai Mancio, seu prenome. Não se sabe com segurança a que atribuir essa tolerância. Não é propriamente ao temor, porque eles facilmente se subtrairiam ao novo jugo, como sempre fizeram, fugindo. O mais verossímil é que o façam por simpatia e mesmo aceitando uma proteção ou aliança com uma força mais poderosa e capaz de dar-lhes mais estabilidade e sossego289. Em relação ao intervalo temporal que separam as duas referencias a Mâncio Lima, em Rêgo Barros e Castelo Branco Sobrinho, há algo em torno de uma geração. Tempo mínimo de domínio dessa expressiva figura seringalista e política do Alto Juruá sobre corpos e territórios Poianauas. A explicação dada por Castelo Branco Sobrinho sobre esta situação nos abre algumas brechas de analises que podemos intuir em relação a um jogo complexo de escolhas e imposições dos dois lados. Parece ter havido, pela perspectiva dos indígenas dessa etnia, uma escolha nada fácil de mitigação do processo contínuo de “catequese” 285 Idem, p. 124. 286 Idem, p. 125. 287 Ibidem. 288 Natural do Rio de Janeiro, José Moreira Brandão Castelo Branco Sobrinho (1888/1962) logo que se formou em direito seguiu para o Acre e fixou residência em Cruzeiro do Sul (Alto Juruá) e ali atuou como juiz preparador, juiz municipal e juiz de direito entre os anos de 1909 e 1933. Foi ainda Interventor Federal do Acre nomeado por Getulio Vargas entre 1934 e 1935. Fonte: CPDOC (https://bit.ly/3a4O6xQ). Acesso em 18 de março de 2020. 289 CASTELO BRANCO SOBRINHO, O gentio acreano, 1950, p. 49. 90 e usurpação que sofreram e isso os levou a criarem alternativas de coabitação em novas territorialidades, paisagens e estratégias de sobrevivências que não os apagassem por completo. Por outro lado, Mancio Lima construiu ao longo de décadas uma sólida imagem de “benfeitor”, “protetor” e “civilizador” de indígenas no Alto Juruá. Para alem dessas narrativas memorialistas e de cunho historiográfico dos autores citados, a ausência dos indígenas de quaisquer protagonismos, descritos como meros incômodos ou os seus convívios com os colonizadores em condições subalternas e negativas são temáticas também recorrentes em obras ficcionais que tem a Amazônia acreana como foco. Na obra já citada de Carlos de Vasconcellos encontramos uma gama de referências desairosas em relação aos indígenas que brotam das vozes do narrador e de outras personagens que compõem a trama do livro. Indígenas das etnias Canamaris, Ipurinãs, Maneteneris, Catianãs e Paumaris aparecem ao longo da escrita e no glossário da obra, onde são ditos como indígenas habitantes da bacia do Rio Purus. De maneira geral, essas comunidades indígenas aparecem narradas em descrições ligeiras e carregadas de estereótipos em muito já consolidados em diversas narrativas anteriores a deste autor. Em trabalho recente, o antropólogo José Pimenta (2015) diz que ainda hoje no Acre e em outras localidades da Amazônia os indígenas continuam sendo vistos por muitos através da lente dos estereótipos arraigados socialmente. Eles são geralmente “considerados ‘não civilizados’, quando não são simplesmente equiparados a animais, são alvo de uma saraivada de adjetivos depreciativos: sujo, bêbado, preguiçoso, traiçoeiro etc”290. E em referencia a outro pesquisador, José Pimenta diz que “esses preconceitos produziram a identidade estigmatizada do índio como ‘caboclo’, isto é, um índio que ‘se vê com os olhos do branco’”291. Peles indígenas, com sangues indígenas, mas forçados pela lógica colonizadora a “subirem” o degrau em direção ao pedestal racial para usarem a mascara de caboclo. Parodiando mais uma vez Frantz Fanon, os indígenas e os caboclos também são construídos como indígenas e caboclos292. Indígenas chamados de “puros” aparecem em muitas passagens da obra Deserdados em atividades subalternas, são gentes sem futuro, fadadas ao desaparecimento físico e cultural com o avanço da civilização. As mulheres indígenas só aparecem como corpos capturados para o amasiamento ou sexo forçado com os homens brancos. As pessoas identificadas como caboclas são pertencentes a um terceiro campo, que não é o do indígena e nem o do branco. São vistas como semi-civilizadas, compondo um meio termo estático que não regride e nem avança na escala racial e social, por isso não são plenamente integradas porque trazem em suas veias sangue indígena. Como foi realçado, o termo caboclo é algo polissêmico e carrega sentidos históricos de ordem social, racial e geográfica. A antropóloga Deborah Lima, em um artigo intitulado A construção histórica do termo caboclo, nos diz que: Na região amazônica, o termo caboclo é também empregado como categoria relacional. Nessa utilização, o termo identifica uma categoria de pessoas que se encontra numa posição social inferior em relação àquela com que o locutor ou a locutora se identifica. Os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem as qualidades rurais, descendência indígena e “não civilizada” (ou seja, analfabeta e rústica), que contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada293. Cabe observar, como aponta a própria autora, que os usos coloquial, relacional e social do termo caboclo não podem ser entendidos como homogêneos e distintivos. Como ela bem aponta, esse adjetivo é uma abstração que serve para “estabelecer diferenças entre pessoas numa sociedade”294. Na obra roma290 PIMENTA, 2015, p. 214. 291 OLIVEIRA apud PIMENTA, 2015, p. 214. 292 FANON, Pele negra, máscaras brancas, 2008. 293 LIMA, 1999, p. 07. 294 Idem, p. 08. 91 nesca de Carlos de Vasconcellos, cabocla é aquela pessoa que tem pai ou mãe indígena ou que vive desde muito pequena entre os brancos após “captura”/“saída” das aldeias e adquiriu os hábitos dos seus algozes e se tornou socialmente, ou se acha, mais branca que índia. Complementando esse entendimento, Bessa Freire nos apresenta o caboclo como aquele indígena puro ou mestiçado que vive nos espaços urbanos amazônicos e só fala a língua portuguesa295. Ele é por definição um deslocado cultural, geralmente marginalizado étnica e socialmente. Em Deserdados, numa das subidas pelo Rio Purus, uma comitiva composta de seringueiros (entre outros, Teodozio), de um engenheiro agrimensor (Costa Vitor) e de um patrão seringalista ( Jenseríco) encontra indígenas da tribo dos Canamaris, que ao se depararem como as músicas tocando em um gramofone desse grupo de “civilizados” colonizadores, “os selvajens inaniam de assombro”296, olhavam para o aparelho de forma “atoleimada” em busca de um cantor cairu [branco] em miniatura dentro da máquina musical. E ao tomarem cachaça oferecida pelos viajantes, começaram então uma “folia grotesca das dansas das malocas”297. Uma descrição semelhante sobre o assombro causado pelo gramofone entre essas populações amazônicas foi relatada pelo padre Jean-Baptiste Parrissier quando ele navegava pela região do Juruá em 1898 em trabalho de sacramentos. Ele conta que em determinado momento da viagem ele pôs para tocar músicas e os passageiros da terceira classe do gaiola, “estes infelizes subiam uns nos outros para ver, escutar e, se fosse possível, tocar esta máquina enfeitiçada que ri, fala, canta e chora como um caboclo”298. Indígenas e caboclos são apresentados em ambos os autores como pessoas distanciadas da civilização e dos seus signos, sintetizados no exemplo do gramofone, tornando-se eles objetos de galhofas pelos aspectos étnicos e culturais vistos como carregados de ausências, algo que os impediam de serem integrados ao mundo civilizado. Em Deserdados os indígenas que habitam a região das bacias dos rios Iaco e Purus não tem nenhum protagonismo histórico, fazem parte mais da natureza em sentido estrito, de uma condição pré-civilizada e sem nenhum atributo de beleza, de faculdades criativas e de engenhosidade. Essa é a primeira impressão que tem Teodozio quando em um determinado dia chega ao terreiro de sua colocação uma menina que ele presume ter cerca de oito anos de idade. À primeira vista ele “supoz ser uma índia da asqueroza tribu dos Paumaris”299. Mas depois a criança contou ser de origem cearense e morar com seu pai em uma colocação localizada em um seringal vizinho nas margens do Rio Ituxi. O motivo de ela estar ali foi devido ter se perdido muitos dias antes na mata após se esconder de um homem estranho que visitou sua barraca durante a ausência do seu pai, quando este saiu para realizar trabalhos nas estradas de seringa. Se os indígenas da etnia Paumari são “asquerosos”, os indígenas Ipurinãs são apresentados como raivosos e assim se justificava o ataque contra eles realizado pelo seringueiro chamado Doroteu, que em tons de “bravata e façanha” conta em determinado momento para uma platéia de ouvintes da comitiva, em que estavam presentes Teodozio e Costa Vitor, ter matado a tiros de escopeta dois indígenas dessa tribo. Bravata ou façanha, conforme aparece no romance, temos a inferioridade do outro como justificativa para atos que seriam repudiados se tomados em relação a um igual. Em outra passagem da mesma obra, o narrador descreve uma cena de bebedeira em uma colocação e realça com cores do preconceito a situação de um senhor que participava daquela reunião: “só o índio velho, com o rizo alvar da cretinice, sapateava agora no terreiro da barraca, á surdina, rosnando 295 FREIRE, Rio Babel: a história das línguas na Amazônia, 2011, pp. 184/185. 296 VASCONCELLOS, 1921, p. 84. 297 Idem, p. 85. 298 PARRISSIER, 2009, p. 12. 299 VASCONCELLOS, 1921, p. 55. 92 incompreendidos sons das malocas, ao ritmo binário das festas de sua tribu, dando provas de inesquecido ao cabo de longuíssimos anos de domesticidade300.” Haveria então uma latência adormecida de indianidade em um ancião que desde muito tempo vivia entre os ditos civilizados, mas em quem o álcool acendeu a centelha que consumiu sua “domesticidade” e que fez emergir seu lado “selvagem” em um momento de embriaguez. Seria um indígena voltando a ser indígena a partir de elementos da sua cultura que se tentou apagar nos momentos em que dispunha da plenitude do superego a domar seus instintos e sua cultura reprimidos. Os descritos como caboclos não merecem qualificações lisonjeiras e assim como os indígenas são retratados com menoscabo e depreciação na obra Deserdados, tais como sujeitos imbecilizados, viciados em álcool e palermas. No trajeto de subida pelo Rio Purus pela comitiva onde estava Jenseríco, Teodozio e Costa Vitor, na época do verão, há uma descrição acerca da desova de tartarugas nas praias arenosas desse mesmo rio. O narrador inicia falando de outros animais predadores que descavavam e comiam os ovos enterrados nas areias e compunham o que ele chama de “fauna famélica”. São jacarés, jaburus, gaivotas, jacurarus, onças e capivaras que aproveitavam da fartura de ovos nas areias das margens do rio. Contudo é o elemento humano o mais destacado no consumo de ovos e caça aos quelônios, principalmente os “caboclos” que colhiam os ovos e viravam as tartarugas com o casco para cima durante a noite para, pela manhã, apanhá-las mais facilmente. Tudo isso regado a doses de parati (cachaça artesanal), onde “caboclos” se embriagavam e as “cunhãtas” que os acompanhavam “vogam [sic] em busca de quem as faça de tartarugas e as virem á discreção ... E praticam uma saturnal espantoza em plena natureza!”301. Mulheres indígenas e caboclas aparecem no livro como troféus sexuais, de exacerbada sexualidade, jovens “encapetadas” que despertavam os desejos masculinos sem nenhum tipo de freio moral e eram sempre acessíveis ao sexo. Como é o caso que o cearense Doroteu conta a Costa Vitor. Diz ele ser viúvo de uma “caboca que era mió que favo de abeia”, uma indígena que vivia desde criança com seu cunhado em um seringal e depois morreu de parto ao ter o seu primeiro filho. Ele mesmo é também descrito e certa altura como “caboclo ladino”302. Ou seja, esperto, manhoso e astucioso. Quase no fim do romance, Carlos de Vasconcellos sintetiza as (des)venturas das personagens principais da trama por ele criada. Teodozio e Costa Vítor, Izaura e Lídia, são os multivagos da desventura, sempre nimbados por um halo de esperança e de amor. Oferecendo no estoicismo um premio aos dejenerados, cavaram a desgraça da Amazônia, com retardar-lhe o auspiciozo vaticínio de centro da grandeza estupenda do planeta303. Alem dos já apresentados personagens centrais, temos Izaura e Lídia. A primeira é casada com o cearense Reinaldo, que foi buscar essa “linda, trigueira e jeitoza” conterrânea após trabalhar como seringueiro e ter saldo para tal façanha. Quando retornou ao Acre ele resolveu mudar de seringal e rumou “com sobranceria para os confins lonjinquos onde se acoutavam profugos os aborijenes”304, visando lucrar e voltar com sua esposa para a cidade de Sobral no Ceará. Contudo, na nova e distante colocação Izaura vive em sobressaltos e certo dia sonha com Reinaldo sendo devorado pelos “antropófagos” indígenas Manitineris. Contudo o que lhe ocorre é uma doença misteriosa adquirida logo após uma caçada de Queixadas e que exaure paulatinamente as forças e disposição daquele homem descrito como trabalhador infatigável. Ele não resiste a enfermidade e morre, deixando a esposa grávida que logo se casa com o 300 Idem, p. 196. 301 Idem, p. 79. 302 Idem, p. 102. 303 Idem, p. 308. 304 Idem, p. 216. 93 vizinho de colocação chamado Zé Pomada. É uma mulher sertaneja, sem sangue indígena realçado, por isso ela é diferente e pode ser classificada como “jeitosa, linda e trigueira”. Lídia, outra desventurada, é descrita inicialmente como mulher branca, “rapariga seivosa e grácil”, que vive em uma colocação nas margens do rio Iaco com seu pai Inácio Gomes, homem já doente. Ela desperta desejos e olhares de Costa Vitor quando este durante a viagem faz uma parada em sua casa para descanso e preparo do almoço da comitiva. Logo que seu pai morre, ela é casada com o seringueiro Damião Torres e vai morar próximo da vila Xapuri, onde seu marido então residia. A beleza de Lídia continuava despertando interesses mesmo ela sendo comprometida, como é notório nos casos do padre Estanislau e do prefeito de Rio Branco Cláudio Mota que a conheceu quando ela foi a passeio nessa cidade. O esposo Damião passa a ser perseguido pelo prefeito galanteador e sem saída abandona o seringal e foge para a vila Floriano Peixoto, hoje Boca do Acre (AM). Em seguida vai com a esposa para Manaus e, por ciúmes, vai preso ao matar um promotor de justiça que galanteava a branca Lídia. Fica bastante evidenciado no romance o lugar e as representações das mulheres e suas respectivas etnias dentro de classificações hierárquicas de matrizes raciais, étnicas e patriarcais. Como diz o narrador em tons lamentosos, cada pessoa na Amazônia é um “abismo”, uma “fera” que ali projeta os instintos mais agudos do ser humano. É como se houvesse uma regressão “civilizatória” e o lado sombrio de cada um emergisse maculando a todos, carregando-os para o buraco como uma voragem. As personagens do romance são chamadas de “filhos da dor e educados por dificuldades quazi insuperáveis, eles ora ensinam aos compatrícios qual a grande escola única a ser fundada na enormidade da pátria brazileira”305. Essa enormidade era sem duvida os chamados sertões amazônicos carregados de ausências e que obrigavam muitos a darem esses passos para trás. OS INDÍGENAS: VIOLÊNCIAS E A INDOLÊNCIA ATÁVICA A revista carioca O Malho publicava com frequência noticias e relatos “curiosos” em tons galhofeiros sobre o Acre e a Amazônia. Mesmo quando as autoridades e proprietários mostrados nas fotografias eram tratados com desvelo, havia brecha para comentários em tons irônicos que subvertiam as intenções iniciais dos autores ao enviarem à capital da república noticias e imagens dos sertões amazônicos com o fito de receberem elogios pelas empreitadas colonizadoras que realizavam nos “confins do Brazil”. Uma dessas fotografias foi enviada ao citado periódico e publicada em 17 de fevereiro de 1912. A imagem a seguir [Imagem 10] retrata o que seria o chalé do Seringal Cassanduá, situado nas margens do Rio Purus que se vê ao fundo bastante caudaloso. E na margem oposta, a floresta se sobressaindo no horizonte. Certamente o chalé era um local de lazer e atração aos moradores e freqüentadores da sede desse seringal. Por isso escolhido para o instantâneo da imagem. 305 Idem, p. 309. 94 Imagem 10: Aspectos da vida nos confins do Brazil Fonte: O Malho, 17 de fevereiro de 1912, ano XI, número 492, p. 42. Acervo FBN. Em primeiro plano da imagem aparece um homem negro identificado como proprietário do seringal e nomeado de Trajano Alves da Costa (nº 01), seus auxiliares de maior grau na hierarquia do seringal chamados de José Pinheiro da Costa (nº 02) e João de Barros Velasco da Silveira (nº 03). Na parte de trás uma quantidade maior de homens e crianças, sendo todos do sexo masculinos e provavelmente seringueiros e agregados convidados. O detalhe que chama a atenção do periódico é o fato de todos os adultos portarem rifles e na legenda o comentário acerbo é: “pelo que se vê, parece que toda essa gente esperava algum ataque índios ou coisa que o valha”. Vale insistir na atenção para a construção da cena preparada para a fotografia, pois parecia querer mostrar aos leitores de um dos periódicos mais conhecidos do Rio de Janeiro que nos seringais do Acre era possível ter os signos do bom gosto e da civilização, tais como o afrancesado chalet coberto de telhas de barro e platibandas esculpidas em madeiras com homens e crianças nas suas melhores roupas, calçados, chapéus e armados com suas espingardas. Contudo, a desconstrução ocorre a partir de um detalhe que não é banal e realçado na legenda: homens empunhando armas no que seria uma corriqueira finalidade de defesa contra ataques frequentes de indígenas. Para alem da cena, o uso de armas nos sertões amazônicos estava associado à bravura, caçadas, masculinidade e responsabilidade de autodefesa pessoal e de grupo. O periódico ao fazer uma troça com o detalhe e vincular o porte de armas como uma forma permanente de repelir indígenas, trabalha com um signo deveras corriqueiro para o brasileiro que ouvia falar ao longe desses ambientes dos sertões do Acre: dos indígenas selvagens e perigosos que atacavam os civilizados das frentes pioneiras. Na Amazônia do inicio do século XX, os seringais acreanos eram localidades em que tais presenças consideradas indesejadas poderiam surgir a qualquer momento para afrontar os ditos “proprietários” que foram incorporando territórios indígenas em novas territorialidades e domínios. A fotografia, de uma maneira geral, é um artefato cultural de um tempo. Ela posterga um conjunto de ícones de um determinado momento e lugar que são carregados de sentidos. Esses sentidos são individuais e coletivos, passam mensagens para quem a olha e faz sua “leitura”, uma leitura que nunca 95 é objetiva e esgotada306 porque atravessada de valores externos a ela como produto. Essa e as demais fotografias são exemplos disso. Essa em particular, sofre uma dupla desmontagem: primeiro, pela revista O Malho no momento em que foi publicada e agora quando submetida à analise nesse texto. Retomando a centralidade da abordagem, algo parecido em relação ao que os proprietários viam como problema causado pela presença de indígenas é relatado no jornal o Alto Purus de setembro de 1912. Contudo, a solução apresentada pela pessoa que assina a matéria é menos belicista, embora carregada do mesmo olhar acerca da inferioridade indígena. No texto há uma defesa vigorosa da utilização “dos inúmeros braços das tribos indígenas que vagam desprotegidas”307. A matéria é assinada por Henrique Soares, agrimensor e funcionário da Prefeitura do Departamento do Alto Purus (Sena Madureira), que diz haver opiniões contrarias à dele “em relação à utilidade do aproveitamento do braço indígena ao trabalho; afirmando ser o índio mau, indolente, indomável. Eu, que tenho convivido com algumas tribos em suas aldeias, posso afirmar o contrário”. Ele informa ainda suas ações de agrimensor na região do Alto Juruá, numa localidade chamada Nova Olinda. Talvez tenha sido um trabalho privado para delimitar e referendar a posse de um novo seringal em terras de acentuada presença indígena. E esse agente conclui paternalmente que “o índio é uma criança: dê-lhe o são exemplo da moral, ele será moralizado; dê-lhe o exemplo do trabalho, ele será trabalhador”. São claras as indicações de uma política de tutela, de destribalização, de desterritorilidades de indígenas como algo normalizado pelas vozes e as ações desses agentes da conquista a serviço do poder público ou privado, que geralmente se misturavam no contexto do Acre Federal. Essas pregações tiveram materialidade com a criação de “povoações indígenas” aldeadas em novos territórios e novas territorialidades, onde eles iriam praticar a agricultura e se inserirem em “ações de cunho pedagógico, voltadas à ‘educação’ pelo trabalho”308, conforme atesta o antropólogo Marcelo Iglesias ao tratar especificamente das ações do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais – SPILTN no Alto Juruá e Alto Purus no inicio da década de 1910. Ainda de acordo com este pesquisador, o ajuntamento desses indígenas de varias etnias e então considerados “dispersos” pelos agentes desse órgão, permitiria “a convivência com famílias de ‘trabalhadores nacionais’, vistas como outra relevante fonte de ‘exemplo’ para os indígenas incorporarem costumes e hábitos produtivos, e assim acessarem benefícios da ‘civilização’”309. Em outra matéria, um ano depois, a temática indígena voltava às paginas do jornal tarauacaense O Município em 1913. O texto é derivado de uma carta assinada por Antonio Bastos e o título, bastante indicativo, chama-se Solicitado pelos índios e é datado de dezembro de 1910, tendo o rio Juruá como local da escrita da missiva. Não fica claro o porquê da demora de três anos para publicação, mas talvez seu autor considerasse o teor muito atual. Na abertura o tom patriótico e paternalista já aparece ao se afirmar que os “pobres aborígenes, outrora massacrados pelos peruanos e mesmo alguns Brasileiros” merecem uma cuidadosa atenção do governo federal e demais autoridades. Ressalta que nesse processo de amparo, as autoridades contariam com “a valiosa cooperação dos proprietários, que muito tem contribuído sem remuneração alguma do governo para tão almejado fim”. Na sequencia, o autor defende as ações “pacificadoras” dos seringalistas estabelecidos na região do Juruá ao dizer que: o único fito dos proprietários, é a pacificação, deste Departamento, de varias tribos indígenas, algumas delas bem irrequietas, advindo de maneira branda e conciliatória do proceder de cada uma, 306 CARDOSO & MAUAD, História e Imagem: os exemplos da fotografia e do cinema, 1997, p. 406. 307 O Alto Purus, 29 de setembro de 1912, número 212, p. 03. Acervo FBN. 308 IGLESIAS, Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá, 2010, p. 203. 309 Idem, p. 203 96 — a tranquilidade dos seringueiros e proprietários, e o melhoramento dos fabricos, muitas vezes interrompidos por depredações de índios, com graves prejuízos, danos e perdas de muitas vidas310. Antonio Bastos referenciado como autor da carta é a mesma pessoa citada por Glimedes Rêgo Barros em seu livro como sendo um “expedicionário”, quando este se refere às ações de “amansamento” patrocinadas pelo seringalista Mâncio Lima no Alto Juruá. Segundo Marcelo Iglesias, o “catequizador de índios” e “protetor” Antonio Bastos antes de fazer essas ações “privadas”, era então funcionário da prefeitura do Alto Juruá e tinha sido empregado da Comissão de Obras Federais naquele Departamento alguns anos antes311. O militar Bueno de Andrada foi quem chefiou inicialmente essa Comissão de Obras Federais em Cruzeiro do Sul a partir de 1907 e ele traz em seu relatório algumas informações sobre como esta comissão lidou com a questão indígena. Entre outras atividades, esta frente de trabalho estava imbuída de construir uma estrada ligando Cruzeiro do Sul a Vila Seabra e daí, a Sena Madureira no Alto Purus. Um dos problemas realçados pelo militar era como “vencer a resistência de tribus de indígenas na zona a percorrer”312 porque o caminho necessariamente passava em territórios habitados por indígenas. E mesmo sendo esses espaços narrados como vazios, o fato de haver indígenas causava preocupações aos trabalhadores dessas obras federais para lá destacados. Mais adiante ele afirma que considerava “com verdadeira felicidade o êxito das minhas relações com os índios”313 durante os trabalhos daquela comissão. Na continuidade ele relata um encontro dessa frente de trabalho por ele liderada com outro conhecido “amansador” de indígenas que atuava na região. Seu nome era Ângelo Ferreira e o militar Bueno de Andrada assim diz sobre ele: Do Tarauacá para o Purus seguiu, amansando índios e atravessando matas, em direção a Sena Madureira, o sertanejo coronel Ângelo Ferreira, o mesmo que efetuou pela primeira vez a travessia do Tarauacá para o Juruá. Tentou ele esta empresa depois de combinar comigo, prometendo eu auxiliá-lo junto ao governo, no reconhecimento de alguns lotes de terras desconhecidos314. Interessante notar uma recorrente harmonia entre os agentes do estado nacional — militares, chefes executivos, agentes do SPILTN — com seringalistas, comerciantes e aventureiros privados em ações que visavam expropriação de terras dos indígenas e a execução da recorrente política de “amansamento”/“catequização”. Bueno de Andrada não tem nenhum constrangimento em descrever a promessa feita por ele a Ângelo Ferreira após este lhe solicitar um jeitinho para a futura regularização de terras usurpadas por ele de indígenas. Poucos anos antes, o mesmo “desbravador” Ângelo Ferreira é citado no relatório do primeiro prefeito do Departamento do Alto Juruá, Thaumaturgo de Azevedo315. Este afirma tê-lo convidado para “romper” um varadouro desde sua propriedade localizada no rio Tarauacá até Cruzeiro do Sul e que Ângelo Ferreira seria recompensado pela prefeitura do departamento caso realizasse tal empreitada. E diz então textualmente: “este proprietário tem ao seu dispor, perfeitamente catequisados, cerca de 150 310 O Município, 20 de abril de 1913, número 134, p. 04. Acervo da FBN. 311 IGLESIAS, 2010, p. 198. 312 ANDRADA, 1908, p. 16. 313 ANDRADA, 1908, p. 28. 314 Idem, p. 28. 315 Gregório Thaumaturgo (1853/1921) de Azevedo foi um militar de carreira e também exerceu vários cargos políticos na República. Foi governador do Piauí (1889/1890) e do Amazonas (1891/1892). Durante o governo de Floriano Peixoto foi acusado de conspirar contra e este e, junto com outros, foi desterrado para a Amazônia onde ficou por cerca de seis meses. Foi anistiado pelo presidente Prudente de Morais e nomeado chefe da Comissão de Limites Brasil–Bolívia em (1895/1897). É considerado o “fundador” de Cruzeiro do Sul, sede do Departamento do Alto Juruá do qual foi seu primeiro prefeito. Fonte: CPDOC, disponível em: https://bit.ly/30YvjTa, acesso em 19 de junho de 2020. 97 índios, com a ajuda dos quais já abriu uma estrada de rodagem em direção às cabeceiras do rio Gregório”316. Ainda sobre o uso de armas de fogo usadas contra os indígenas como nessas “missões” relatadas acima, José M. B. Castelo Branco Sobrinho assim se posiciona na passagem abaixo sobre essa prática tornada corriqueira nos seguintes termos: nas margens do Juruá, os abridores de seringais tiveram que lançar mão dos mesmos recursos [armas de fogo] para afugentá-los ou dominá-los, restando ainda dessas rumorosas façanhas nomes como Triunfo, Vitória, Novo Triunfo, assinalando o êxito dos conquistadores (...) a população indígena da região, principalmente dos vales do Juruá, Tarauacá e Iaco, era considerável, porem, escorraçados a bala pelos civilizados: brasileiros (seringueiros) e peruanos (caucheiros)317. Nota-se por parte do antigo juiz que serviu no Acre e foi governador interventor nos anos de 1930, a carregada metaforização da situação sofrida pelos indígenas ao apenas afirmar que eles foram afugentados e dominados pelos “abridores de seringais” na região do Acre. Um possível tom mais áspero de critica a estas ações ou perceber de forma mais contundente alguma humanidade intrínseca aos indígenas estava longe de ser algo comum em vozes provenientes do status quo então estabelecido. Castelo Branco Sobrinho na sequencia do mesmo texto citado acima usa textualmente esse adjetivo e outros termos correlatos, atribuindo genericamente a um sujeito coletivo indeterminado tais considerações de rebaixamento dos indígenas: Tinha-se o índio como um animal prejudicial e maléfico, incapaz de ser civilizado, pensamento, alias, de pessoas influentes que dirigiram a colonização, porem, ignorantes, incapazes de tomar no momento outra direção, principalmente por encontrarem alguma resistência na ocupação da terra, o qual só poderia dar o resultado verificado, a quase exterminação dessa gente”318. Mas claramente ele fala que esse tipo de pensamento brotava das crenças de “pessoas influentes que dirigiram a colonização”. O verbo é usado por ele no passado como se quisesse realçar algo distante e não mais praticado no momento em que escreveu seu texto no transpor da primeira metade do século XX. A indolência descrita como atávica aparece também — por exemplo — na obra de João Craveiro Costa, quando em relação aos indígenas ele adota um tom menos empático que Abguar Bastos ao prefaciar sua obra. Diz o autor que passados tanto tempo desde o descobrimento, “os índios continuavam refratários ao trabalho, perdidos na densidade da floresta e no miserável viver das malocas. E mesmo que assim não fosse não seriam eles precisamente valores reais de atividade e desenvolvimento econômico”319. E assim ocorrem em outras poucas passagens de sua obra, quando lamenta a “inutilidade” do indígena para o trabalho e desenvolvimento do Acre. Em Craveiro Costa o indígena quando aparece é como um empecilho à colonização, elemento que seria fatalmente vencido pela ação dos empreendedores fulgurantes que vão ocupando terras vazias e deixando suas marcas no território conquistado. O ideal almejado pela grande maioria dessas vozes ao longo dos processos de expulsões, capturas e mortes de milhares de indígenas, traduzido em etnocídio feroz nas terras inventadas como acreanas, — portanto algo que só ganha sentido com a chegada dos colonizadores —, talvez seja mais bem sintetizada nessa passagem abaixo do comerciante e viajante frances Paul Walle no inicio da década de 1910. Seria curioso e belo, e ousamos depositar nossas esperanças nesse sentido, ver os últimos aborígenes, os descendentes dos altivos Tupinambás, se associarem aos rudes conquistadores que, partindo 316 Apud CASTELO BRANCO SOBRINHO, 1950, p. 16. 317 Idem, p. 13. 318 Ibidem. 319 COSTA, 1940, p. 99. 98 do litoral, os expulsaram pouco a pouco para as florestas amazônicas, a fim de, todos juntos, valorizarem as riquezas incontáveis e inesgotáveis de uma das mais ricas regiões do globo320. Nesse fragmento abreviado, o viajante frances sentencia como sendo uma curiosidade futura e carregada de beleza o fim dos chamados “aborígenes” no Brasil. Para isso deveriam os indígenas da região amazônica se “associarem” — ou serem forçosamente associados como foram — para que houvesse a redenção do projeto colonial de exploração vigorosa dos recursos naturais da Amazônia, que significaria também a exploração intensa de humanos pobres colonizados, deslocados e invisibilizados. DESLOCAMENTOS E APAGAMENTOS A assimetria envolvendo colonizadores e colonizados em processos de deslocamentos e apagamentos é bem sintomática na imagem a seguir [Imagem 11]. Imagem 11: O progresso do Acre Legenda: Quatro esforçados propugnadores do progresso do Acre. são os srs.: 1) coronel José Vicente de Assumpção; 2) major Arthur Napoleão; 3) Gastão Souto; 4) dr. Hugo Carneiro Ribeiro. Todos residem naquele território. O n.5 é o indígena Ibonam, tutelado do dr. Hugo Carneiro (grifos meus). Fonte: O Malho, 12/10/1912, ano XI, nº 526, p. 49. Acervo FBN. Com o sugestivo titulo de “O progresso acreano”, a revista O Malho publicou em 1912 essa fotografia em que o destaque era dado aos nomeados e distintos homens de bem que “desenvolviam” o Acre Federal. São nominados ali José Vicente de Assumpção (nº 01); Arthur Napoleão (nº 02); Gastão Souto (nº 03) e Hugo Carneiro (nº 04). A foto foi provavelmente produzida na cidade de Cruzeiro do Sul, sede do Departamento do Alto Juruá e onde atuavam na vida publica da cidade aqueles homens ali postados em poses altivas. Folheando algumas edições do jornal O Cruzeiro do Sul é possível encontrar muitas referencias aos quatro adultos e nenhuma ao jovem indígena chamado de Ibonam. O militar Arthur Napoleão Lebre era então juiz preparador suplente da magistratura local; Gastão Souto aparece, entre outros cargos, como delegado e 320 WALLE, 2006, p. 430. 99 professor; José Veríssimo era proprietário de uma casa comercial e juiz de paz; Hugo Carneiro era advogado com banca privada naquela cidade. Ibonam, diferentemente dos adultos é colocado na pose para fotografia deitado no chão, inferiorizado aos pés do seu “dono” benemérito o advogado Hugo Carneiro, futuro governador do Acre (1927/1930). A imagem nos convida de imediato a fazer alusão a representação de Ibonam como sendo a de um cão de estimação. Sua condição humana parece ser ainda algo distante, que somente seria atingida pela tutela constante, obediência ao seu “protetor” e a consecução do apagamento da sua indianidade ao longo da vida. Mas jamais seria um branco — no máximo um caboclo — e em tempo algum deixaria de ser lembrado pelos outros de que era índio. Imagens como esta, exaltando o desejado apagamento através da “catequese” e da “civilidade” de crianças indígenas que viviam no Acre Federal era algo comum no período dada a constância com que eram publicadas em periódicos da capital da República ou de outras cidades importantes esses atos de amparos de órfãos. Como podemos perceber na fotografia [Imagem 12] a seguir, também do mesmo ano da que foi mostrada anteriormente, a prática era algo bastante usual. Na imagem temos uma cena que talvez sintetize em expressividade essas ações privadas e estatais em relação aos indígenas considerados “dispersos” na região do Juruá, notadamente em relação às mulheres e crianças capturadas em correrias. Imagem 12 – A catechese no Alto Juruá Fonte: O Malho, 20 de julho de 1912, número 514, p. 43. Acervo FBN. A legenda da fotografia, publicada na revista O Malho, traz as identificações de todos os presentes na imagem. No primeiro plano o recém nomeado prefeito capitão Francisco do Rêgo Barros, que parece inspecionar criteriosamente o resultado de uma expedição de apresamento de indígenas liderada pelo indefectível Antônio Bastos (nº 01), chamado no texto de “devotado catechisador”. A indígena mulher que aparenta ser mais idosa (nº 02) é chamada de Madalena e seria da etnia Amuaca. As crianças (nº 05 a 07) não tem os nomes atribuídos e é dito que já são batizadas, da mesma forma que os indígenas numerados de 10 a 14. O quase adolescente (nº 03) é chamado de José e seria de uma etnia chamada Ivo-cainin. Atrás dele, à esquerda, a jovem é nomeada de Cecília e é dito pertencer ao povo Canani. Os homens de números 15 e 16 são também descritos como “catequisadores” e chamam-se respectivamente João Lustosa e Luiz Gonzaga. 100 Nos chama a atenção à disposição das pessoas nessa imagem. Os “catequizadores” ficaram em cantos opostos como se estivessem de guarda para não permitir que os indígenas — quase todos de olhares tristes e compungidos — saíssem da formação castrense que lhes foi exigida. Talvez para constrangê-los em não se rebelarem diante da exigência de uma fotografia que procurava mostrá-los extirpados de suas terras, línguas e modos de vidas. As roupas que vestem também tem um conjunto de significados, onde um deles aponta para o aspecto moral e cristão dos indígenas já batizados e com panos que cobrem suas “vergonhas”. O uso de roupas, nomes de branco, calçados e outros adereços estranhos as culturas desses indígenas de diversas etnias visava mostrá-los destituídos dos seus ancestrais artefatos culturais e pessoais. A ocorrência apresentada acima se aproxima com muita propriedade ao caso dos Bororos comentado por Alexia Shellard em seu estudo sobre as ações colonizadoras voltadas para as etnias indígenas na região de fronteira com a Bolívia, nas ultimas décadas do século XIX e primeira década do século seguinte. Esta pesquisadora afirma então: As estratégias de “civilização” dos indígenas, embora distintas, pautaram-se ambas – a religiosa e a militar – na assunção de que a própria condição indígena era intermediária e que o processo de “civilização” dos indígenas redundaria no abandono das práticas tradicionais e na adoção de padrões “civilizados”: sedentarização, trabalho capitalista, família nuclear, uso de roupas, frequência à escola entre outros321. Esse desejado “passo à frente”, projetado pelos colonizadores em relação aos indígenas existentes nos caminhos da conquista, era carregado das retóricas e dos sentimentos paternalistas e cristãos, que também se atrelavam a uma buscada nacionalização dos indígenas — senão como cidadãos plenos — mas trabalhadores disciplinados para os afazeres subalternos nos sertões do país em empresas privadas ou em ações coordenadas pelo Estado. Na fotografia mostrada a seguir [Imagem 13] temos o indígena batizado de Aguinaldo Jacuman Barreto, identificado como sendo de origem Jaminará [sic, provavelmente Jaminawa] e com sete anos de idade. Imagem 13: Catechese particular Fonte: O Malho, 01º de abril de 1911, ano X, número 446, p. 49. Acervo da FBN. 321 SHELLARD, Viver na fronteira: transformações socioambientais nos sertões do Brasil nos limites com a Bolívia (1881/1912), 2019, p. 93. 101 A matéria parece ser a reprodução de uma publicação oriunda do jornal Correio de Pernambuco e é assinada por Jonas Barreto, que pelo sobrenome pode indicar algum parentesco com o gerente do seringal que tutelava a criança indígena capturada em um dos muitos casos de correrias havidos no Acre e em toda Amazônia desde séculos anteriores. No texto assinado são descritas as qualidades da criança, que vestida como um adulto faz pose altiva: “É inteligente, conversador, fazendo admirar o modo como se apresentou na capital do Amazonas, a primeira vez que pisou terras civilizadas, frequentando teatros, cinema, como velhas coisas a que já se achasse habituado”. Os adjetivos são exatamente aqueles que em muitos escritos e relatos aparecem como sendo ausentes nos indígenas de maneira geral, pois são qualidades dos “civilizados”. Por isso, não é gratuito descrevê-lo como “inteligente e conversador”. Apontar tais qualidades parecia querer dizer que ele já tinha se distanciado da sua origem indígena e passado a ter gostos cosmopolitas e de gente “civilizada” a partir do momento em que pisou terras manauaras. Em tom de quase súplica, Jonas Barreto que se assume como amanuense do Correio de Pernambuco, assim diz: “Se lhe publicardes o retrato, dareis motivo, de jubilo ao Benevides Barreto e ensejo para o Aguinaldo, no seringal Porangaba — não mais soltar as flechas do arco dos índios, mas as boas risadas da alegria de um brasileiro, ainda criança, incorporado à civilização americana”322. Nos dois casos mostrados nas fotografias anteriores em sequencia temos duas crianças indígenas, muito provavelmente capturadas através de processos violentos de destruição de suas aldeias, mortes de seus pais e parentes adultos conforme alguns estudos já demonstraram em relação ao contexto acreano nesse período323. A opção por captura de crianças era uma pratica que se expressa em sua plenitude numa observação do prefeito do Departamento do Alto Juruá Francisco Rêgo Barros, que em seu relatório de 1914 assim se posicionou sobre esta questão, segundo Castelo Branco Sobrinho, em seu texto O gentio acreano: “refratários ao trabalho e à disciplina, como são em geral todos os índios, os adultos dificilmente poderão ser aproveitados com vantagem; somente aos menores se poderão fazer sentir os efeitos da civilização”324. Se os adultos eram vistos como inadequados para os empreendimentos fronteiriços da civilização, restava apostar na “catequização” de crianças e jovens como o caso daqueles presentes na fotografia de 1912 [Imagem 12] em que o prefeito Francisco Rêgo Barros passa em revista os menores capturados para provarem e serem provas dos “efeitos da civilização”. Esse registro imagético é repetido em outros momentos com frequência. Vejamos então essa fotografia [Imagem 14] de 1907 onde temos dois indígenas com aparências de adultos, embora pareçam ainda jovens. No comentário presente na revista O Malho eles são identificados como Ormingo e Acustin acompanhado do engenheiro militar e prefeito interino do Departamento do Alto Juruá Bueno de Andrada e do seringalista Absolon Moreira, descrito como empreendedor visionário porque cultivava seringueiras em seu seringal chamado de Humaitá. 322 O Malho, 01º de abril de 1911, ano X, número 446, p. 49. Acervo da FBN. 323 Ver: IGLESIAS, 2010; PANTOJA, Os Miltons: cem anos de história nos seringais, 2008. 324 BARROS apud CASTELO BRANCO SOBRINHO, 1950, p. 20. 102 Imagem 14: Nos confins do Brazil Fonte: O Malho,14 de setembro de 1907, ano VI, número 261, p. 29. Acervo da FBN. Os indígenas são descritos como “domesticados” pelo referido seringalista e pertencentes a tribo dos Catuquinas “situada em seringais de sua propriedade, cuja tribo conta para mais de mil e quinhentas pessoas”. É muito sintomático o jogo de palavras usadas que nos apresentam o seringalista como proprietário e os indígenas apenas como situados naquele domínio territorial de um único homem. O primeiro é o pioneiro “desbravador”, colonizador, domesticador, amansador e civilizador do lugar e das gentes indígenas reduzidas à condição de barbaria. Os segundos, formavam uma coletividade grandiosa — que deveria ser muito maior antes dos contatos —, e são apresentados como aqueles que recebem uma espécie de favor de um homem bondoso ao lhes outorgar uma concessão para que morassem em suas terras. Era em suma a propaganda dos avanços da “civilização” entre os Catuquinas. A publicação finaliza dizendo que “O benemérito Dr. Bueno d’Andrade [sic], logo que soube dos reais serviços prestados pelo Sr. Absalão [sic] à catequese dos selvícolas, felicitou-o e tem tomado medidas de elevado alcance afim de melhorar as condições d’essa pobre gente”325. Dessa união do poder publico e administrativo com os proprietários locais, temos a garantia irmanada de que o projeto “civilizador” buscava o apagamento completo das identidades indígenas e das suas culturas. E isso, longe de ser algo negativo, era carregado de intenções e de significados sobranceiros por parte desses agentes da anticonquista, conforme nos aponta Mary Pratt ao se referir aos múltiplos aspectos do embate colonial326. A fotografia é flagrantemente preparada em um cenário onde ao fundo temos um pano que desce ao chão e todos são ladeados por um conjunto de plantas que parecem ser de canas de açúcar. Ainda sobre este tema, cabe citar Antônio José de Araújo que atuou como desembargador e advogado em Cruzeiro do Sul no inicio do século XX. Ele publicou à época suas memórias intituladas Cartas do Acre (1910). Em uma das passagens de uma carta datada de 19 de março de 1907 ele comenta sobre 325 O Malho,14 de setembro de 1907, ano VI, número 261, p. 29. Acervo FBN. 326 PRATT, 1999. 103 que providencias o poder publico — no caso as prefeituras do Acre Federal — deveria tomar em relação aos indígenas que habitavam o Acre Territorial. Quanto aos índios, outros não há, a meu ver, senão os catequizar, conservando-os em suas malocas, construídas estas do modo mais higiênico e moral, a maneira das nossas tabas ou povoados, e reservada para cada uma delas área determinada de terreno, que possam cultivar, fornecendo-Ihes gratuitamente a ferramenta indispensável e ensinando-se-Ihes a trabalhar, embora em comum. Assim situados, o mestre-escola levar-Ihes-á, em aulas diurnas e noturnas, para as crianças e para os adultos, as luzes da instrução. No dia em que o índio souber com certo numero de silabas formar uma palavra, pode-se garantir que mais um grande e poderoso elemento terá entrado para a comunhão nacional327. O desembargador é mais um daqueles que defendiam a realização da catequização laica, centrada no principio da educação escolar e atravessada ainda por questões de ordem moral e princípios higiênicos. Havia também no seu entender a necessidade do estabelecimento de uma nova territorialidade para os indígenas, algo que passava por novas formas de uso da terra para distintos cultivos alimentares e produção de excedentes para venda. Ou seja, havia uma intrínseca marca de ausências variadas atribuídas aos indígenas: não tinham higiene, não portavam moralidade alguma, não tinham “luzes”, eram analfabetos, falavam dialetos e não uma língua e, não menos importante, não sabiam trabalhar e cultivar a terra. Por isso era necessária essa multiplicidade de ensinamentos àquelas pessoas que não tinham nada de útil a oferecer aos colonizadores se continuassem “três saltos atrás”. As incursões desses “desbravadores” do Acre por territórios indígenas, que irão ser desterritorializados e re-territorializados em novos usos de exploração e domínios serão uma constante na região a partir da segunda metade do século XIX e boa parte do século seguinte. Os deslocamentos físicos e culturais que os indígenas sofreram se somaram aos apagamentos em intensidade talvez proporcional. A obra dos chamados bandeirantes do norte na região do Acre só tem materialidade e ganha sentidos discursivos se trouxer indivíduos e comunidades indígenas submetidos às novas lógicas de exploração econômica e social do território. Um exemplo bastante sintomático é em relação à exploração da região do rio Purus e seus demais afluentes, com o encontro desses exploradores dos sertões com os indígenas que habitavam seus territórios ancestrais naquela região. Ao traçar o perfil elogioso do então já afamado seringalista Avelino Chaves, que comandava a exploração gomífera na região de Sena Madureira, a revista Fon-Fon o trata nestes termos: Avelino Chaves, verdadeiro bandeirante do Norte, entrou no Rio Iaco em 1898, e o explorou até aos confins com a Bolívia, onde jamais chegara outro homem civilizado antes dele. Aí encontrou uma tribo de índios nus denominados de Catianas, trabalhadores, de boa índole e que se dedicavam a uma agricultura rudimentar. Avelino Chaves familiarizou-se com eles aprendendo-lhes logo a língua, fazendo-se camarada do tuchaua e obsequiando-os. Com esse processo insinuante de catequese foi melhorando dia a dia as condições sociais daquela tribo, valorizando-lhe os serviços, permutando-os por um relativo bem estar, fornecendo-lhes em compensação dos esforços no cultivo da terra os cereais e instrumentos, roupas, medicamentos, não permitindo que aventureiros a explorem e persigam328. Percebe-se no texto o tom carregado de preconceitos étnicos e culturais em relação aos indígenas Catianas, que são retirados da “barbárie” pelo “civilizado” Avelino Chaves que “desbrava” terras nunca antes palmilhadas pelo homem branco e superior. Os sinais de atraso dos indígenas são comprovados no texto da revista pelo fato de andarem nus e fazerem cultivos agrícolas considerados rudimentares, sendo 327 ARAUJO, 1910, p. 15. Carta escrita em Cruzeiro do Sul, datada de 19 de março de 1907. 328 Fon-Fon, 01º de junho de 1911, ano V, nº 26, p. 37. Acervo FBN. 104 eles no máximo elementos passivos da paisagem a ser desvirginada pelos impetuosos novos bandeirantes que chegavam ao Acre transformado em um território de fronteiras em movimento. Este é o caso de Avelino Chaves, o “bandeirante do norte”, que regride alguns “passos atrás” para aprender a língua dos indígenas por questões de ordem prática ligada aos seus interesses de exploração humana e territorial na sua inserção como seringalista na região. Na sua “insinuante catequese”, foi se tornando — segundo a publicação — um respeitado benfeitor dos indígenas ao lhes permitir “melhorias”, “valorização” e “bem-estar” e não deixar — mais uma ironia dita de forma séria — que “aventureiros” e “exploradores” os perseguissem dali em diante. Na década de 1950 ao publicar seu texto O gentio acreano, Castelo Branco Sobrinho também se refere a este seringalista e ao “auxilio” que ele teria recebido de alguns indígenas quando se apossa de suas terras para abertura dos seringais tornados seu patrimônio. Escreve então o ex-governador e ex-juiz que “Avelino de Medeiros Chaves foi auxiliado pelo Catianas, Canamaris, e outras tribos na exploração dos seus vastos seringais no alto Iaco, mas, à proporção que os serviços se iam alargando, chegaram novos colonos e entre estes alguns maus elementos que provocaram o desaparecimento dos indígenas”329. O tom dos dois textos é assemelhado, mesmo tendo quatro décadas de diferenças entre um e outro. Reforçado pelo tom sempre elogioso, humanístico e respeitoso voltado para as ações de Avelino Chaves em relação aos indígenas. Por estas assertivas, a derrocada dos indígenas do Alto Purus só teria sido iniciada com a chegada de outros “aventureiros” de maus procedimentos que foram aos poucos provocando o “desaparecimento” daqueles indígenas. Mais uma sinistra metáfora para se referir aos muitos crimes de assassinatos, que eram ao mesmo tempo físicos e étnicos. OS INDÍGENAS E A NACIONALIDADE Em um dos mais significativos romances nigerianos, o escritor Chinua Achebe traz ao público em 1958 a sua obra O mundo se despedaça. A trama do livro gira em torno da tribo Igbo (ou Ibo) que vivia em seus territórios ancestrais e tudo começa a se transformar como a chegada do colonialismo britânico na região. A história se passa em fins do século XIX no sudeste da atual Nigéria e tem em Okonkwo a personagem central da narrativa. Ele é um homem que tenta manter as tradições tribais e familiares diante das transformações que começam a ocorrer em sua aldeia e nas outras próximas. Mas, como se diz em uma passagem da obra, “além da igreja, os homens brancos trouxeram também uma forma de governo. Tinham construído um tribunal, onde o comissário atuava como juiz”330. O mundo tribal que até então não conhecia alterações drásticas na sua cultura e cotidiano, se transforma por completo com a chegada do colonizador europeu e outros agentes locais já convertidos aos valores externos. Tomo como paralelo ligeiro essa referencia dos impactos da chegada do outro entre os Ibos como equivalência figurada das questões envolvendo os indígenas aqui referenciados no texto. Em ambos os casos temos a chegada de agentes coloniais carregados de signos e instrumentos que visavam submeter os nativos em um novo contexto cultural. Alem dos aspectos de ordem econômica em sentido estrito, havia elementos de ordem política e nacional com o domínio de novas fronteiras dentro do contexto do Estado Nacional, com sua estrutura normativa e de disciplina dos corpos, dos valores e do espaço em novas configurações. No caso da Amazônia, e do Acre em particular, havia uma imagem já bastante sólida de que esses espaços já geográficos e culturais, porque já antropomorfizados por ações e sensações humanas, estavam à parte da nacionalidade (seja boliviana, peruana ou brasileira). Permaneciam literalmente à margem da história pátria, que no caso de Euclides da Cunha sua defesa é que esta pátria seja o Brasil. Isto porque haveria a ausência de nacionais e da nacionalidade se manifestando para si nesses territórios que este au329 CASTELO BRANCO SOBRINHO, op. cit., p. 12. 330 ACHEBE, O mundo se despedaça, 2009, p. 162. 105 tor vai chamar de ignotos. Vejamos abaixo uma significativa passagem de Euclides da Cunha em que ele sintetiza o que estamos querendo realçar. O recém-vindo do Sul chega em pleno desdobrar-se daquela azáfama tumultuária, e, de ordinário, sucumbe. Assombram-no, do mesmo lance, a face desconhecida da paisagem e o quadro daquela sociedade de caboclos titânicos que ali estão construindo um território. Sente-se deslocado no espaço e no tempo; não já fora da pátria, senão arredio da cultura humana, extraviado num recanto da floresta e num desvão obscurecido da História331. Este texto do já famoso escritor, intitulado Um clima caluniado, é um dos seus textos chamados de amazônicos. Fica patente a omissão que o autor faz em relação aos indígenas, que são sujeitos quase apagados em toda sua escrita. No excerto acima, cuja opção é pela descrição em tons retumbantes, a natureza é realçada como a grande oponente humana e diante da qual os caboclos ali chegados vão “construindo” o território. E de fato é isso que ocorre com as novas territorialidades que ali vão se gestando nesses encontros carregados de diferenças. Um território chamado de obscuro da história e da cultura, que aos poucos estaria sendo alocado “dentro da pátria”. Se ampliarmos a lógica do escritor e incluirmos os indígenas nesse cenário pré colonização por ele narrado, eles são sujeitos sem cultura, sem história, sem pátria e até fora da contemporaneidade dos “civilizados”. Viviam em outro tempo. Geografia, história e nacionalidade estavam em descompasso naqueles sertões do Brasil acreano. Então voltemos novamente para a fotografia em que aparecem os indígenas Catuquinas nomeados de Acustin e Ormingo [Imagem 14, p. 108]. Os abrasileirados Acustin e Ormingo, engravatados, de sapatos e com sobrecasacas parecem servir para uma peça de propaganda do prefeito e do seringalista. A impressão é que queriam mostrar dois indígenas “catequizados” por brasileiros nos “confins do Brazil” e que passaram a compor uma mão de obra nacional naquela fronteira em expansão. E esse abrasileiramento nos permite apontar também outro sentido, para alem da questão recorrente da “catequese” e da formação de mão de obra conduzida por seringalistas e prepostos do governo federal na região do Juruá e assemelhadas. Há também uma evidente marca de contato dos dois indígenas com peruanos naquela região de fronteira, algo impregnado em seus prenomes já corrompidos e de clara matriz hispânica. Isso pode indicar que eles e seus parentes sofreram intensas e tensas relações em ambos os lados da fronteira tensionada por interesses nacionais e econômicos que lhes eram estranhos até então e, involuntariamente, eles caem nas redes dessas frentes do capitalismo avançado e altamente predatório em relação às inúmeras sociedades indígenas existentes na região. O já referenciado desembargador Antônio José de Araújo, também tece em algumas de suas cartas comentários sobre o que ele considerava ser o papel destinado aos indígenas diante da nacionalidade brasileira e dos interesses privados no Acre Federal. Nesta, de março de 1907, ele diz que o indígena é: mais bem empregado o que se despender com a catechese e civilização dos nossos Índios, do que o que se desperdiça com a introducção de estrangeiros que vêm explorar-nos e, depois de locupletados, voltam aos seus paizes sem haverem prestado outro serviço á não ser o de os ficarmos conhecendo melhor332. O tom carregado de elementos xenofóbicos, advogava que os indígenas se “catequizados” e “civilizados” — tornados então brasileiros — seriam aproveitados como mão de obra e dariam menos trabalho que os “estrangeiros exploradores” dos brasileiros que ali também viviam. Dois anos depois, sem muita variação ao que ele escreveu anteriormente, Araújo afirma que: Até as terras occupadas pêlos indios são tomadas pelos particulares, que as destroçam e escorraçam dando-lhes correrias em que morrem centenas delles. E tudo isto se faz sem o menor protesto ou 331 CUNHA, 2000, p. 146. 332 ARAUJO, 1910, p. 15. Carta escrita em Cruzeiro do Sul, datada de 19 de março de 1907. 106 opposição dos prefeitos ou seus propostos, que acham muito acertado introduzirmos O Turco e o Asiático, eliminando os indios, a elles superiores em tudo por tudo333. José Araújo ao retomar a sua temática em relação aos indígenas e a nacionalidade, adota o tom paternalista e benevolente ao querer dar lugar ao indígena no seio da brasilidade. Critica a ação de particulares e dos prefeitos departamentais que, no seu entendimento, agiam erradamente ao “escorraçarem” os indígenas em vez de os incorporarem como parceiros subordinados pela força do trabalho às atividades urbanas, rurais e florestais no Acre Federal. Não muito diferente do que dizia o ex-desembargador, o então prefeito do Departamento do Alto Juruá, Thaumaturgo de Azevedo, em seu relatório de 1905, já afirmava da necessidade “que se catechise esses verdadeiros brazileiros, victimas da ganância deshumana dos civilisados”. E para isso dizia ter entrado em contato com o acerbispado do Rio de Janeiro para que fosse providenciado o envio de frades trapistas da Europa com o fito de realizarem a “civilisação dos índios”334. O fato é que havia um excesso de vontades a serem impostas aos “verdadeiros brasileiros” sem que eles necessariamente quisessem. O já citado militar Antonio Bueno de Andrada também via nas ações da Comissão de Obras Federais envolvendo a mão de obra indígena um ganho patriótico em relação a presença dos peruanos naquela região de fronteira. No seu entender, os caucheiros peruanos foram um “flagelo para os silvícolas” e isso teria facilitado as relações dos indígenas com os brasileiros da referida comissão por ele liderada. Ao mesmo tempo, considerava que o esgotamento das áreas de caucho nativo no Juruá — devido a intensa exploração — teria aos pouco efetivado a rarefação do elemento peruano considerado “invasor”335. Teríamos então a natureza e a benemerência dos brasileiros em relação aos indígenas como fatores positivos no processo de construção da nacionalidade brasileira na região e a consequente incorporação facilitada dos indígenas como trabalhadores nacionais através da chamada catequese laica336. O tom de condescendência patriótica é também incorporado por Castelo Branco Sobrinho em seu texto. Ao se reportar às ações de Thaumaturgo de Azevedo frente à prefeitura do Alto Juruá, ele assevera acriticamente que o ex-prefeito foi incorporando os indígenas à sociedade local e pacificando conflitos entre os indígenas e os seringueiros. E estes seringueiros agiam como muito mais humanidade em relação aos indígenas que os peruanos que viviam e transitavam pela região com muita regularidade até ao inicio do século XX. Este autor cita ainda um caso em tons pitoresco ao relatar que no ano de 1905 o tenente do exercito chamado Luiz Sombra foi nomeado pelo prefeito do Alto Juruá como delegado na região da Vila Seabra com o fito de cessar as correrias contra indígenas naquela localidade. Parecia ser algo tão comum que se constituía no “esporte predileto de muitos seringueiros durante os lazeres da safra”. Contudo, no que seriam as palavras de Luiz Sombra reproduzidas por Castelo Branco Sobrinho, os proprietários brasileiros teriam aprendido com os peruanos não ser crime matar índios porque eles eram infideles. E ainda, que os proprietários brasileiros da região recorriam aos peruanos como assassinos profissionais quando queriam dizimar indígenas considerados incômodos nas áreas de seringais que consideravam ter o direito pleno de propriedade337. 333 Idem p. 105. Carta escrita na Foz do Muru, datada de 26 de setembro de 1909. 334 AZEVEDO, Primeiro relatório semestral, 1905, p. 22. 335 Apud CASTELO BRANCO SOBRINHO, 1950, p. 17. 336 A chamada catequese laica aqui se refere às criticas feitas pelo padre espiritano Constant Tastevin em seus vários artigos escritos nas décadas de 1910 e 1920 em relação a política da republica brasileira em relação a catequização dos indígenas de cunho positivista separada da catequização religiosa da Igreja católica. Essa questão aparece em artigos como: “Na Amazônia (viagem ao Alto Juruá e ao Rio Tejo), 1914”; “No Môa, nos limites extremos do Brasil e do Peru, 1914”; “Entre os índios do Alto Juruá, 1924”; “Os Kachinawas comedores de cadáveres, 1925”. Estes textos e outros foram organizados e publicados por Manuela Carneiro da Cunha. Cf.: Tastevin, Parrissier: Fontes sobre índios e seringueiros do Alto Juruá, 2009. 337 CASTELO BRANCO SOBRINO, op. cit., p. 22. 107 Assim, embora praticassem as correrias e contratassem quando conveniente os “serviços” de peruanos, os desbravadores brasileiros são narrados em muitos dos escritos de época em cores mais amenas na lógica colonial das violências perpetradas contra indígenas. Geralmente se adota a narrativa justificatidora do revide, como a simples reação para as agressões primeiras sofridas em relação aos seus bens moveis e imóveis e, às vezes, à própria vida desses novos bandeirantes. Na mesma direção acima, mas com a escrita recuada ao ano de 1907, o escritor Euclides da Cunha imprime sua marca em torno da questão do trabalho realizado na extração do látex das seringueiras e do caucho, por brasileiros e peruanos, e como isso se relacionava com a nacionalidade e a questão indígena da época. Vejamos então a passagem abaixo, que se encontra no seu texto intitulado de Brasileiros e publicado originalmente no Jornal do Commercio no ano supracitado. A exploração do caucho como a praticam os peruanos, derribando as árvores, e passando sempre à cata de novas “canchas” de castiloas ainda não conhecidas, em nomadismo profissional interminável, que os leva à prática de todos os atentados nos recontros inevitáveis com os aborígines – acarreta a desorganização sistemática da sociedade. O caucheiro, eterno caçador de territórios, não tem pega sobre a terra. Nessa atividade primitiva apuram-se-lhe, exclusivos, os atributos da astúcia, da agilidade e da força. Por fim, um bárbaro individualismo. Há uma involução lastimável no homem perpetuamente arredio dos povoados, errante de rio em rio, de espessura em espessura, sempre em busca de uma mata virgem onde se oculte ou se homizie como um foragido da civilização338. Temos então, pela natureza da exploração extrativista, o brasileiro sedentário que não precisava derrubar a seringueira para extrair a cobiçada riqueza. Por outro lado, o peruano nômade e construtor de ruínas, que ia dizimando cauchais e indígenas por onde passava em encontros que o autor considera inevitáveis. O brasileiro era o construtor do progresso e o peruano, o destruidor sem amor ou capacidade de criar identidade com o lugar onde passava de passagem. O ato de fazer o território de uma maneira especifica teria então fadado a tornar o Acre brasileiro, em vez de peruano ou boliviano. Na sua viagem como chefe da Comissão de Limites Brasil-Peru, Euclides da Cunha também se enternece e se impressiona com a pátria dilatada ao mirar, nos limites fronteiriços em disputas, as grandezas horizontais que ele ali estava ajudando a fixar em beneficio da brasilidade no extremo ocidental da Amazônia brasileira. O sol descia para os lados do Urubamba... Os nossos olhos deslumbrados abrangiam, de um lance, três dos maiores vales da Terra; e naquela dilatação maravilhosa dos horizontes, banhados no fulgor de uma tarde incomparável, o que eu principalmente distingui, irrompendo de três quadrantes dilatados e trancando-os inteiramente – ao sul, ao norte e a leste – foi a imagem arrebatadora da nossa Pátria que nunca imaginei tão grande339. Essa é a “orla Amazônica expandida” de que fala o autor340, que parece se completar somente com as definições encerradas das fronteiras do Acre já brasileiro em relação a Bolívia mas com pendências em relação ao Peru. Com a conclusão dessas tratativas tudo indicava, aos olhos do escritor, que a pátria se completava em sua essência territorial. Alem das marcas da identidade brasileira, a desejada e fugaz busca de uma sempre incompleta identidade acreana pressupôs a negação de quaisquer traços indígenas como elementos valorativos em sua formação genealógica e cultural. Mas nos anos de 1950, Castelo Branco Sobrinho aponta a mácula silenciada em seu artigo já citado. Ele então apresentava o que poucos cronistas até então evidenciavam: os primeiros acreanos deviam ser produtos dessas uniões, aliás, na grande maioria filhos de pais brancos ou morenos, uma vez que o numero de pretos na Acreania, como no resto da Amazônia, era insignificante. De qualquer forma já havia sangue indígenas da parte dos invasores, pois, estes, 338 CUNHA, 2000, p. 189. 339 Idem, p. 332. 340 Idem, p. 182. 108 quase na totalidade oriundos do nordeste brasileiro, já conduziam , nas suas veias, por herança dos seus antepassados tupis ou tapuias341. Para alem da desimportancia dada ao elemento negro na formação do Acre e da Amazônia, que o autor busca quase limitar aos “brancos” e “morenos”, seu destaque é realçado em relação aos indígenas locais e aos traços indígenas também já presente nos genes dos “invasores” das terras do Território Federal do Acre. Mas tal evidencia era algo com frequência negada, conforme podemos inferir no exemplo colhido cinco anos antes desse artigo de Castelo Branco ser publicado. Em novembro de 1945 o jornal Folha do Acre publicou um acerbo editorial criticando a chegada ao Acre do seu ex-interventor federal Martiniano Prado (1935/1937). O titulo bastante sugestivo era O Acre não esquece seus algozes e entre outras opiniões negativas direcionadas ao ex-governador, há a comparação em relação às atitudes autoritárias dele como chefe executivo nomeado e o momento do seu retorno em que tentava construir uma possível candidatura à Câmara Federal com “sorriso nos lábios e olhares pidões”342. O editorial questionava se tal mudança de postura do ex-governador menosprezava a inteligência dos acreanos e indagava se ele imaginava que população local era composta de indígenas. Relembra então o momento em que Martiniano Prado tomou posse como governador-interventor no ano de 1935. E assim diz o jornal: julgando-se CIVILIZADO apenas por ser filho de São Paulo, acreditou que os moradores do Território eram filhos de tabas, usando como ornamentos orelhas e beiços furados dos aborigenas [sic]. Agora sua posição é diferente. Ele não é mais governador. Não tem mais o poder nas mãos. Veio mendigar o voto do povo que julgou naquela época seu escravo343. O teor da matéria parecia ter um tom de recalque que se queria expiar na critica a Martiniano Prado. O contraste do Acre com São Paulo, que serve para condenar uma aludida empáfia de outrora por parte do ex-governador, é rebatida pela mesma lógica do preconceito atribuído ao outro. Um pretenso preconceito geográfico e étnico de um é confrontado com um explicito preconceito étnico do outro que põe os indígenas e os acreanos em lugares distintos no campo dos valores da cultura e das duradouras hierarquias étnicas. Nesse sentido, busca se negar quaisquer rastros identitarios ou até alguma vinculação presente e futura dos acreanos com os indígenas. Divergindo aqui do que a matéria do jornal apresenta em tom negacionista, é importante ressaltar a existência de muitos lugares, seres humanos e não humanos que carregam nominalmente topônimos de herança indígena. Embora tenha havido apagamentos diversos, no âmbito cultural e físico, as marcas dessas múltiplas nomenclaturas indígenas permanecem ainda hoje presentes nas identificações de rios, igarapés, cidades, animais, seringais, colônias, times de futebol, fazendas, frutas e na culinária com ingredientes de origem silvestres e nativa. Os nomes dos principais rios da região que deram nomes aos Departamentos (Acre, Purus, Tarauacá e Juruá) são de origens indígenas, bem como algumas cidades acreanas que compõem parte dos municípios do atual Estado (Bujari, Xapuri, Tarauacá, Quinari)344. Portanto, essas identidades regionais internas, dos patronímicos urbanos iniciais, dos vales hidrográficos locais e do próprio termo relacionado a quem nasce no Acre, tem conexões com os glossários de diversas línguas indígenas mesmo que hoje sejam pouco lembradas. Voltando a (dis)topia ficcional e talvez desejo futuro de Océlio Medeiros citada na epigrafe de abertura deste capitulo, os claros provocados pelos rastros do homem que civiliza foram se impondo com 341 CASTELO BRANCO SOBRINHO, op. cit., p. 55. 342 Folha do Acre, 05 de novembro de 1945, ano XXXV, número 52. In: ASSMAR (Org.), Editoriais dos jornais de Rio Branco – século XX, antologias, 2008, p. 167. 343 Idem. 344 Interessante trabalho em que aparece parte desta discussão pode ser encontrada em: MARTINS, O perfil da toponímia indígena ma zona rural do Estado do Acre, 2017. 109 as novas territorialidades tecidas sobre os antigos bioterritorios indígenas de antes. Contudo, essa claridade anunciada não iluminou tudo onde ela se projetou. Ao contrario, trouxe apagamentos e conservou preconceitos soturnos ainda hoje herdados dos anos mais trágicos da conquista colonial presentes na invenção do Acre como território nacional. Para concluir essas discussões apresentadas, cabe lembrar, conforme aponta Gomez Nadal em sua obra, que os indígenas afetados pelo colonialismo no Novo Mundo foram desde o inicio relegados pelo poder e pela retórica à condição de povos sombra e condenados a se tornarem nacionais a partir dos processos mais tardios de independências coloniais345. Para as particularidades aqui tratadas, serem transformados em brasileiros e acreanos. 345 NADAL, 2017. 110 CAPÍTULO IV: AS DISPUTAS PELO ACRE: NARRATIVAS DO RISÍVEL E DO HERÓICO O povo acreano Sarapatel de tipos diferentes, De raças e de sangues, Panelada de terra, Buchada ou maniçoba Procede o povo do Acre da violência, Da conquista da terra, Do domínio dos rios, Da ambição, da aventura. (...) Nasceu mamando leite de seringa, E comendo borracha, Guerreando a Bolívia E quebrando castanha Océlio de Medeiros346 346 SILVA (org.), Cantos e encantos da floresta I, 2004, p. 149. O atual estado do Acre, como já foi dito anteriormente, foi alvo de disputa territorial entre três países em fins dos séculos XIX e inicio do XX: Brasil, Peru e Bolívia. Foi espaço de disputas de territorialidades por indígenas, seringalistas, caucheiros, coletores, comerciantes, seringueiros e outros sujeitos sociais que passaram a explorar continuamente o território acreano em função dos recursos naturais que existiam na região. Legalmente o Brasil reconhecia a região de parte do atual território do Acre como boliviana desde o Tratado de Ayacucho celebrado em 1867 entre essas duas nações. O Acre não deixa de ser um espolio colonial tardio que refletia uma herança bruxuleante das disputas lusas e hispânicas na região. Havia até o final do XIX pouco interesse dos setores econômicos brasileiros e do capitalismo internacional avançado em explorar os recursos naturais dessa parte da região amazônica dos altos rios à Oeste devido à relação custo versus beneficio não ser compensador. Essa equação se inverte com a demanda no mercado mundial pela borracha natural extraída principalmente das seringueiras e cauchais nativos. Assim, “a presença deste recurso natural despertou a vontade econômica e política (...) na medida em que propiciava forte compensação para os esforços envolvidos na ocupação da floresta”347. Nesse contexto, a região acreana vai sendo ocupada majoritariamente por brasileiros que exploram fundamentalmente a borracha natural nos vastos seringais que vão sendo abertos e constituídos nesses diversos espaços narrados então como vazios e selvagens. Em muitos desses lugares havia presenças significativas de indígenas que se tornam um incomodo problema a ser resolvido através dos genocídios, dos apresamentos e incorporações deles ao processo colonial interno que vai sendo aprofundado. Como diz o trecho do poema citado em epígrafe, “o povo do Acre procede da violência”. Violência heroificada contra o “estrangeiro opressor e audaz”, como aparece na letra do hino acreano e que é sublimada ou escondida quando pensada em relação às populações indígenas, seringueiras, ribeirinhas e outras tantas de pessoas pobres e anônimas nesse jogo complexo de ocupação, conquista, exploração e assimilação colonial. Gente que mamou leite da seringueira e comeu borracha em sentido metafórico tão bem expressado pelo poeta, mas que não lhes serviram para satisfazer seus desejos ou ambições diante daqueles mais poderosos que eles nas relações assimétricas que foram se cimentando. Em fins do século XIX a Bolívia intenta ocupar formalmente o Acre e fazer valer sua soberania e domínio, algo que desagrada os seringalistas brasileiros que exploravam o látex na região, preocupados em muito com os impostos e taxas que a república andina iria cobrar a partir da chegada de suas autoridades fiscais e administrativas. De pronto, movimentos armados são formados tendo na linha de frente seringueiros conduzidos por seringalistas e outros proprietários da localidade. O primeiro conflito tomado como “fato” ocorre em 1899, liderado por José de Carvalho, ação que ele próprio denomina de Primeira Revolução Acreana348. Logo em seguida, o espanhol Luiz Galvez de Arias conduz outro movimento insurreto e proclama em 14 de julho de 1899 o Estado Independente do Acre349, uma data escolhida claramente pelo seu alusivo caráter histórico e simbólico. Em todos esses eventos conflituosos o Brasil fica favorável e respeita os direitos bolivianos sobre o Acre. Contudo, em 1902 iniciam-se novamente os conflitos armados da chamada ultima fase da Revolução Acreana que termina em 1903 com o Brasil intervindo militarmente na região e ocupando-a até que se resolvesse a disputa pelas vias diplomática de forma bilateral. Algo que redundou na assinatura do Tratado de Petrópolis, quando a Bolívia cede formalmente o Acre ao Brasil em troca de compensações financeiras, territoriais e a promessa da construção da Ferrovia Madeira-Mamoré que ligaria o estado andino à bacia amazônica brasileira350. 347 PÁDUA, Biosfera, história e conjuntura na análise da questão amazônica, 2000, p. 795. 348 CARVALHO, 1904. 349 TOCANTINS, 2000. 350 Idem. 112 É diante dessa questão e de seus desdobramentos que pretendo discutir alguns aspectos relacionados às disputas, o desfecho do supracitado acordo e duas grandes narrativas que daí emergem à época na imprensa brasileira e na produção livresca: uma é de cunho humorístico e outra de caráter heroico e de forja identitária do Acre e dos acreanos. Irei trabalhar fundamentalmente com o uso de charges, poemas, matérias jornalísticas e crônicas publicadas em periódicos contemporâneos ao período de disputa e incorporação do Acre ao Brasil e as múltiplas narrativas em torno das identidades coletivas do lugar chamado Acre e de seus habitantes identificados ao longo das décadas iniciais do século XX como cearenses, novos bandeirantes, nordestinos, acreanos ou brasileiros do Acre. Quanto às imagens visuais, não pretendo focar no que é intrínseco a elas, ou seja, em seus aspectos internos do traço, elementos gráficos ou técnicos. O foco é no externo a elas, nas direções que elas apontam, na busca dos efeitos a partir da produção de imaginários cujos significados são encontrados para alem da imagem em si. Por isso não quero lidar com as imagens por elas mesmas, mas com o que elas buscam dizer em relação ao histórico nelas representado, aos sujeitos ali significados e aos lugares a que elas se referem. Essa imagens por definição são signos que (re)significam os objetos/pessoas/acontecimentos. E a interpretação desses signos — nos dizeres de Stuart Hall — só terá eficácia se os receptores compartilharem do mesmo sistema conceitual que envolve a produção desses signos351. A questão acreana, como grande parte da imprensa vocalizava à época dos conflitos de fronteiras com os citados países andinos, ocupou as páginas dos principais folhetins no início do século XX. Seja no Brasil, na Bolívia, nos demais países do continente sul-americano ou nos centros financeiros e industriais dos EUA e da Europa. Essa proeminência seu deu pela importância que a região acreana adquiriu desde os últimos anos do XIX em função da larga produção de borracha natural extraída das florestas por caboclos, indígenas e outros migrantes nacionais e estrangeiros que ali foram se estabelecendo em novos territórios geográficos e sociais. Esse produto elástico natural era então uma importante matéria prima e base da economia de origem extrativa que o Brasil e demais vizinhos da região pan-amazônica dispunham oferecer para as emergentes indústrias dos países centrais. Depois de beneficiada, a borracha dava origem a inúmeros produtos manufaturados que eram vendidos no mercado global atingido pelo capitalismo avançado da época. Com as querelas diplomáticas e bélicas envolvendo brasileiros, bolivianos e peruanos pela região acreana na virada do XIX e primeiros anos do século seguinte, a elite política da República brasileira e os periódicos das suas principais cidades não tinham como manter silêncio sobre o que vinha ocorrendo no Acre naquele momento. O tom das narrativas oficiais, dos discursos de seringalistas, dos comerciantes (principalmente de Manaus e Belém), de jornalistas da capital federal e cidades da região amazônica, e outras demais vozes, transitam dos tons patrióticos — passando pela questão econômica, militar e de segurança de fronteiras — até aos tons jocosos, carregado de ironias e estereótipos sobre o lugar chamado Acre e das gentes que ali residiam/trabalhavam/viviam. Para esta abordagem inicial, selecionamos algumas charges que circularam entre os meses de fevereiro a dezembro de 1903 fazendo referencias às disputas pela região acreana, aos embates diplomáticos entre Bolívia, Peru, Brasil e EUA — este último emulado através do conglomerado Bolivian Syndicate352 —, as discussões no Congresso brasileiro e entre as autoridades do executivo sobre a incorporação do Acre como parte definitiva do território nacional. Esse período marca o fim da chamada Revolução acreana em 24 de janeiro de 1903 e a ocupação do território litigioso pelas tropas brasileiras por ordem do en351 HALL, Cultura e representação, 2016, p. 36. 352 Foi uma companhia colonial criada em Londres no ano de 1901, mas o seu capital era majoritariamente de investidores norte-americanos. Por isso o Bolivian Syndicate vai estar identificado com os interesses norte-americanos na região acreana. O intuito da Bolívia era arrendar com fins comerciais a região para esta companhia por um período de 30 anos, o que fez aflorar uma intensa oposição do Brasil e de brasileiros diante desse acordo. Cf.: TOCANTINS, 2000. 113 tão ministro das relações exteriores, Barão do Rio Branco353, até que a assinatura de um acordo definitivo que resolvesse a Questão acreana. Como já foi afirmado, um modus vivendi foi estabelecido formalmente em La Paz no dia 21 de março de 1903 e perdurou até a assinatura do Tratado de Petrópolis firmado entre o Brasil e a Bolívia354. No Brasil uma das figuras que reverberou sua opinião através da imprensa sobre a questão acreana foi o senador Rui Barbosa, já afamado como político e grande orador da República. Sua posição de defesa dos brasileiros que viviam no Acre, chamando por ele de “território brasileiro do Acre”, leva o Barão do Rio Branco a convidá-lo — junto com Assis Brasil — para compor o trio de plenipotenciários355 que representaram os interesses brasileiros nas negociações bilaterais com o país andino durante a vigência do referido modus vivendi. Rui Barbosa se coloca favorável à incorporação do Acre ao Brasil com o pagamento de compensação financeira, mas é frontalmente contra a cessão de qualquer parte de território brasileiro à Bolívia, o que o faz pedir exoneração do cargo antes da assinatura do Tratado de Petrópolis, já em outubro de 1903356. Se tivemos publicados artigos como os produzidos sob a pena de Rui Barbosa, sérios, patrióticos e alicerçados em bases jurídicas, tivemos também artigos e charges em tons satíricos que transitaram no campo da ironia e da galhofa, que desconstroem determinados territórios discursivos em voga naquele momento. Mas ao mesmo tempo, as narrativas das charges são carregadas de estereótipos, lugares comuns e preconceitos retratando em muito determinadas visões de mundo de uma época e que — em alguns casos — tiveram vida duradoura para alem do tempo em que foram produzidas. Segundo Luiz Teixeira em sua obra Sentidos do humor, trapaças da razão, a charge é algo que repassa ao leitor uma reflexão mediante sua relação com o contexto social, trazendo em suas imagens e palavras posicionamentos de crítica com amplos significados. Ela — a charge — “conta e resume histórias reais de modos e maneiras convincentemente irreais”357, buscando provocar o riso pelo tom exagerado e absurdo ao ser vista e processada por quem recepciona a sua mensagem. Sem uma noção previa da realidade histórico-social que a charge remete, quem a observa dificilmente consegue captar suas irrealidades grafadas nas páginas dos periódicos. As charges que vamos apresentar aqui neste capitulo estão carregadas de conotações de gêneros, de classe, de etnia e de lugar geográfico. A charge é, portanto, caracterizada por ser uma representação satírica de uma pessoa, de um acontecimento, de uma situação em evidencia numa determinada época e que é traduzida pelo traço e subjetividade do seu autor. Assim, ela torna-se a crônica de uma circunstância e de um lugar, documento valioso para captar as representações coletivas, já que ela só é compreendida socialmente pelo público leitor do periódico de acordo com o espírito do tempo em que foi lançada e entrou em circulação. Geralmente traz uma dupla linguagem que envolve o aspecto verbal (escrito) e o não verbal (imagem) em um único enquadramento. A BOLÍVIA COMO MULHER E A REPRESENTAÇÃO COLONIAL DO GÊNERO Diz a historiadora Anne McClintock em seu estudo sobre gênero e colonialidade que desde o período da conquista do Novo Mundo, figuras femininas foram plantadas como fetiches em pontos ambíguos 353 José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845/1912), político e diplomata brasileiro que herdou do pai o titulo nobiliárquico pelo qual era mais conhecido. De 1902 até seu falecimento, exerceu o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Fonte: Centro de História e Documentação Diplomática – CHDD. Disponível em: https://bit.ly/2HnPkHB, acesso em 14/02/2020. 354 TOCANTINS, 2000; CASSIANO RICARDO, O Tratado de Petrópolis, 1954. 355 Pelo lado brasileiro atuaram Barão do Rio Branco, Assis Brasil e Rui Barbosa. Pelo lado boliviano, Cláudio Pinilla e Fernando Guachalla. Cf.: TOCANTINS, 2000. 356 ANDRADE & LIMOEIRO, Rui Barbosa e a política externa brasileira: considerações sobre a questão acreana e o Tratado de Petrópolis, 2003. 357 TEIXEIRA, Sentidos do humor, trapaças da razão, 2005, p. 91. 114 de contatos nas múltiplas fronteiras e territórios que foram se estabelecendo no mundo colonial358. Se tomarmos o continente americano e a região que hoje é chamada de Amazônia como produtos desses fetiches inaugurais da colonização, temos narrativas escritas e visuais portentosas na criação de imagens perenes da América e da Amazônia simbolicamente desvirginadas e conquistadas pelo homem branco, cristão e europeu. Como diz Christian Kiening, essas viagens espetaculares necessitavam de relatos também espetaculares359. A partir daí foram sendo encadeadas, em complexas relações, outras representações que criaram e reatualizaram leituras essencialistas dos gêneros feminino e masculino nos mundos coloniais. Alguns dos casos que iremos aqui abordar parecem se enquadrar nessas buscas colonizadoras e imperiais de domesticação e conquista de terras vazias e das gentes que ali já viviam. Os agentes desses empreendimentos carregam atributos historicamente figurados no elemento masculino patriarcal cristão e branco e, portanto, superior e consequentemente dominante. Imagem 15: Uma indigestão de bolivianos Fonte: O Malho, 31 de janeiro de 1903, número 20, p. 09. Acervo FBN. Nesta direção analítica acerca do gênero no contexto colonial, temos na Imagem 15 (acima) uma critica que O Malho360 faz ao jornal argentino La Prensa, que teria publicado anteriormente uma matéria favorável à causa boliviana e, portanto, antibrasileira. No revide patriótico d’O Malho o jornal platino é representado por uma mulher argentina estereotipada, uma portenha, que é objeto de ironia misógina de tom sexista. O jornal argentino é acusado pelo brasileiro de ser contra o Brasil, pois La Prensa assoprava para açular o vulcão do Acre, prestes a explodir, se posicionando então como aliado dos adversários dos brasileiros. 358 McCLINTOCK, Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial, 2010, p. 47. 359 KIENING, 2014, p. 31. 360 Todas as edições deste periódico foram consultadas através do portal www.memoria.bn.br da Biblioteca Nacional. 115 A sugestão feita na linguagem verbal contida na charge (linguagem visual) é que o governo brasileiro presenteie La Prensa com um objeto fálico derivado da borracha brasileira, para que se pudesse então aplacar os furores sexuais daquela portenha. A conotação sexual é direta, sem intermediação ou leitura divergente. Isso se soma aos outros componentes de cunho sexual que estão sublimados: vulcão, fogo e mulher que devem ser “pacificados” para que a “normalidades” nas fronteiras políticas e de gênero se restabeleçam. As próximas duas charges analisadas a seguir [Imagens 16 e 17] fazem referencias ao acordo diplomático entre Brasil e Bolívia que começou a ser discutido em fevereiro de 1903 e se encerrou em novembro do mesmo ano. A primeira charge é de fevereiro e a segunda é de outubro. Essas construções visuais trazem a mesma imagética: o Brasil é a figura masculina, do homem que age na esfera pública, representado na imagem pelo seu poderoso ministro Barão do Rio Branco. A Bolívia é o gênero feminino fora do seu lugar social, mulher figurada como inferior e que acaba sendo superada pela personagem masculina e patriarcal mais forte, poderosa e sagaz que é o Brasil/Barão do Rio Branco. A Bolívia é algo fora da ordem diplomática e política, fadada a perder por estar deslocada e, portanto, fora do lugar em que deveria estar. Nessa primeira charge intitulada A solução pacífica [Imagem 16], se intenta mostrar uma relação de pretensa igualdade e de pacificação dos conflitos na região, ao tentar se estabelecer uma definição territorial de fronteiras que fosse favorável a ambos os países. O Brasil — antevisto como naturalmente superior — precisava construir uma narrativa que minorasse a perca por parte da Bolívia, dando a atender que tal acordo seria benéfico simultaneamente aos dois países. E assim, talvez diminuir a barganha boliviana de compensação por abrir mão do seu direito de posse em relação ao Acre. Imagem 16: A solução pacífica Fonte: O Malho, 14 de fevereiro de 1903, número 22, p. 05. Acervo da FBN. 116 Algo que fica mais explicito na segunda charge adiante intitulada de Idyllio [Imagem 17] e publicada cerca de oito meses depois da anterior. Novamente temos um casal contencioso, o Barão do Rio Branco e a Bolívia, em tratativas que remetem a figura da mulher interesseira que quer tirar o máximo de vantagens do homem a quem ela promete se entregar se seus pedidos forem atendidos. A mulher, que sublima a república andina, não é mais a “típica” cholita da charge anterior, com seus traços indígenas e que confronta o ministro brasileiro em uma disputa inofensiva de cabo de guerra, sem armas, mortos ou feridos. Ela é então uma mulher branca, de corpo colado ao Brasil masculino e branco em virtude da força exercida pelo braço do seu galanteador que lhe enlaça. Nos dois casos, a força superior do braço do Barão de Rio Branco é decisiva para a consecução de seus intentos luxuriosos e patrióticos com uma mulher branca. Imagem 17: Idyllio Fonte: O Malho, 10 de outubro de 1903, número 56, p. 25. Acervo da FBN. Talvez a revista O Malho, através das subjetividades do chargista, tenha buscado expressar na segunda charge o preconceito de gênero e machista tão em voga na época. A Bolívia se oferece ao Barão do Rio Branco em troca de vantagens para si. Nessa charge temos uma mulher branca, mais jovem que o Barão do Rio Branco que se interessa por ela, mas reclama do que teria que dispensar em troca. Naqueles tempos poderia ser tolerada uma piada sexista que envolvesse um homem e uma mulher da mesma “raça”, mas parecia intolerável uma chacota que remetesse afetos de um dos homens mais importantes da república brasileira com uma indígena estrangeira como aquela mostrada na charge intitulada Solução pacifica [Imagem 16]. Pensando a partir das questões levantadas por Anne McClintock temos nas duas charges anteriores as mulheres bolivianas (indígena e branca) representadas e vistas como “carne viva do corpo nacional desvelada e exposta ao ataque lascivo do homem colonial”361, patriarcal, branco e conquistador. Homem que no caso em discussão, também é a sublimação corporificada da nacionalidade e de seu país. O Brasil 361 McCLINTOCK, 2010, p. 534. 117 e a Bolívia, neste sentido, já trazem em seus nomes os artigos que definem seus gêneros e determinam o papel de cada qual naquela contenda diplomática emulada na questão de gênero. Os humoristas de traço chargístico apresentados aqui através de suas produções, são fazedores de uma crítica política e de costumes com forte conotação sexual. Eles carregavam os preconceitos, visões de mundo e ideologias de seus tempos. Esse humor trazia ainda uma carga de estranhamento ao debate público quando insere “absurdos” e irrealidades que “o conduz ao território ambíguo e instável da fragmentação e impermanência”362. Este tipo de humor possibilita dizer o impensável, provocar o não dito, explicitar o que hoje chamaríamos de politicamente incorreto ao ampliar o terreno do real com outras dimensões geralmente ausentes nas narrativas ditas sérias, verdadeiras e verossímeis. Imagem 18 – Sem titulo Fonte: O Malho, 24 de janeiro de 1903, número 19, p. 01. Acervo da FBN. O embate entre o Brasil e a Bolívia ganha um terceiro ator nessas representações cômicas, algo que remete aos interesses norte-americanos figurados no Bolivian Syndicate363 presente na charge mostrada acima [Imagem 18]. O conteúdo sexista e da Bolívia feminina como presa fácil no território masculino (campo de batalha e arena pública), continua sendo a tonica da chalaça envolvendo questões de gênero e de fronteiras nas páginas da revista O Malho. Essa charge foi publicada no final de janeiro de 1903 e traz a representação de uma numerosa tropa de militares brasileiros armados e montados em cavalos que seguem em direção à fronteira que separaria o Brasil do território da sua vizinha e problemática Bolívia. Após a linha fronteiriça traçada quase retilineamente, temos uma mulher sozinha à frente, mas tendo atrás de si a figura de Tio Sam, personagem que simboliza os EUA e neste caso específico os interesses econômicos da chartered company denominada Bolívia Syndicate. A legenda da charge traz o seguinte texto: “os arreganhos da Bolívia denotam que ela tem as costas quentes”. Ou seja, temos a sátira de uma situação vista como absurda: uma mulher petulante e desafiadora que enfrenta sozinha o Brasil com sua tropa de muitos homens armados, porque manipulada por 362 SALIBA, Raízes do riso, 2002, p. 27. 363 Sobre esta companhia comercial, consultar no segundo volume da obra de Leandro Tocantins (2000) a 9ª parte intitulada A cortina do imperialismo econômico, pp. 29/94. 118 outro homem que açula sua atitude de ameaça. Os termos “arreganhos” e “costas quentes” trazem ainda claras conotações de conteúdo sexual presentes no senso comum. Esta ultima charge antecede em cronologia as três anteriores e ambienta figurativamente o momento que precede as tratativas mais incisivas do Brasil no campo diplomático tendo à frente o seu ministro Barão do Rio Branco. Outra leitura complementar de cunho histórico e cultural envolvendo as questões de gênero aparece com a sugestão de que a mulher não é portadora de autonomia, sem livre arbítrio e destituída de motivação histórica em seus atos porque o espaço dos grandes feitos em que ela encontra-se deslocada é eminentemente masculino. No caso especifico, ela é ainda manipulada por um homem intruso que quer fazer valer seus interesses na região acreana chamada então pela Bolívia de Territorio Nacional de Colonias. A ironia e o preconceito de gênero não deixavam de ser um menoscabo contra a elite política e econômica que governava a república da Bolívia, composta essencialmente de pessoas oriundas do meio militar e de proprietários ligados ao grande latifúndio agroextrativista e mineral, os chamados tierra tenientes364. Continuando na metáfora militar e de gênero deslocada, presente na imagem e na legenda, cabe trazer ao texto uma referencia ao intelectual franco-argelino Frantz Fanon em seu texto A Argélia se desvela. Tomando de empréstimo suas observações de outro contexto colonial e posterior, temos então no presente caso os brasileiros conquistadores se dirigindo para penetrarem em um território que não era deles de direito perante aos acordos pretéritos estabelecidos pelo seu próprio país, mas já ocupado civilmente por eles, aberto e desprotegido para o domínio colonial como fato e com um frágil domínio de gênero como metáfora365. Esta charge é sucedida por uma crônica assinada por alguém cujo pseudônimo é Amalio e que trata da questão acreana envolvendo o militar e presidente boliviano José Manuel Pando nos seguintes termos: O formidável general Pando, que é um general completo de republiqueta hespanhola, entendeu que essa história de diplomacia era muito demorada e principalmente muito cheia de complicações. E foi d’ahi, dispoz-se, ao que parece, resolver o caso em dous tempos, pela valentona: mandou organizar expedições militares, poz á frente de uma seu ministro da guerra, collocou-se elle mesmo a frente de outra, e zás! La vae a caminho do Acre ver se toma aquillo a pulso, de vez, e se vinga os seus patrícios das constantes esfregas que lhes tem applicado os bravos acreanos, ou, melhor – os corajosos brasileiros que moram no Acre366. No caso acima, temos a depreciação do general boliviano e do país que ele preside, chamado então de republiqueta. A superioridade moral e a bravura dos brasileiros do Acre são realçadas em varias dimensões: a grande maioria não é de militares de carreira, como os bolivianos do altiplano; não portam altas patentes militares; não são figuras ligadas ao governo brasileiro e não contam com o apoio deste. Sai a discussão entre gêneros e entra em destaque a coragem do homem brasileiro frente ao homem boliviano, em quem ele aplica constantes e humilhantes esfregas (surras). Na charge O que acontecerá na questão do Acre [Imagem 19], aparece de maneira direta mais uma vez a relação de gênero estabelecida na representação dos três países mostrados na cena construída pelo desenhista da charge: Brasil e EUA são os homens e a Bolívia uma mulher. Os três carregam seus estereótipos duradouros do decantado tipo nacional: o brasileiro é um índio de penacho e vestido com um artefato de penas; a mulher boliviana é uma criolla cholita em seus trajes ditos típicos, onde se destacam um chapéu tradicional e a pollera; o americano é o indefectível Tio Sam, homem branco de trajes aristocráticos – cartola e fraque – inspirados na bandeira nacional de seu país. 364 MESA et alii. História de Bolívia, 2003. 365 FANON, A Argélia se desvela, 1995, p. 27. 366 O Malho, 24 de janeiro de 1903, nº 19, p. 02. Acervo da FBN. 119 Imagem 19: O que acontecerá na questão do Acre Fonte: O Malho, 07 de fevereiro de 1903, número 21, p. 03. Acervo da FBN. Enquanto o Brasil está armado com canhões e navios bélicos, a Bolívia traz à mostra apenas uma pequena espada embainhada e às escondidas um revolver, que parece ter sido dado por um Tio Sam retratado como um senhor abobalhado. A imagem sugere que a Bolívia ao estender a mão em direção ao Brasil em um ato aparentemente pacifico, quer que este se desarme para então revidar de maneira traiçoeira e incentivada pelos EUA. Esta parece ser uma das leituras possíveis da cena apresentada graficamente, que traz ainda um texto do dialogo ficcional havido entre essas três nações: diz a Bolívia: “não faça caso homem, que isso foi uma brincadeira”. Retruca o Brasil: “não faça piadas que podiam te sair muito caras”. E o surpreso Tio Sam, sentencia pesaroso: “por esta eu não esperava”. Mesmo em tom de ironia, a charge é francamente favorável ao Brasil ao apresentá-lo como superior militarmente, superior como figura de gênero em relação à mulher — também em parte indígena como ele — e superior na astúcia, no jeitinho macunaímico avant la lettre, que surpreende o metódico norte-americano de origem anglo saxônica. Lembremos que Frantz Fanon vai alertar tempos depois que no contexto colonizador “a militarização e a centralização da autoridade de um país automaticamente provocam o surgimento da autoridade do pai”367. Parece-nos ser útil fazer tal alusão ao caso do Acre, incorporado ao Brasil como filho menor, Território Federal administrado pela União de maneira autoritária e firme368. Em outra perspectiva, mas como o mesmo sentido, temos as figuras dos heróis paternos encarnados em Plácido de Castro, Barão do Rio Branco e outros pais menos reverenciados. O humor que trata das nacionalidades é algo em voga na virada do século XIX para os anos iniciais do século XX, como demonstram os trabalhos de Marcos Silva e Elias Saliba acerca das charges e caricaturas. O primeiro, em sua obra aqui já citada, faz uma analise da figura da personagem Zé Povo, criada pela revista Fon-Fon e reproduzida por muitos chargistas à época como figuração do brasileiro alheado da política, homem simples e pobre que servia pretensiosamente para dar vazão à crítica humorística da 367 FANON, 2008, p. 127/128. 368 SILVA, 2012. 120 vida brasileira e seus estratos sociais diferenciados. Sobre a funcionalidade da charge, diz Marcos Silva que “a ocupação do espaço do humor visual (...) estabelece uma permanente comparação entre o mundo imaginário e o mundo vivido, apresentando o primeiro como instrumento privilegiado para a indagação sobre o outro e sugerindo sua recíproca pertinência”369. Já Elias Saliba traz uma abordagem na parte inicial do seu trabalho sobre humor e narrativa nacional assentado nas discussões de Ernest Renan, Hommi Bhabha e Bendict Anderson. Começa apontando para algo já dito por muito humoristas, que o Brasil é um país sem graça porque as piadas já vêm prontas. Ou seja, a realidade muitas vezes já soa como algo impossível, ridículo e irreal. Isso tornaria o trabalho do humorista difícil, pois a sua criatividade seria tolhida pela antecipação do real e do vivido. Nesse contexto a anedota não é pura ficção, mas verdade que não veio à tona ou verossimilhança provável. Assim, “o humor seria impossível no Brasil — segundo Mendes Fradique — pela ausência de contraste ‘entre o que é e o que deverá ser’”370. Daí resultaria a dificuldade de se conceber uma comunidade imaginada de brasileiros e de nação de forma séria diante de tantos contrastes e paradoxos surpreendentes371. ACRE, O “MAU” NEGÓCIO DO BRASIL E A VITÓRIA DE PIRRO O Acre como um estorvo para a nação brasileira, lugar distante, vazio, povoado por selvagens indígenas e migrantes tumultuários se constrói fortemente na virada do século XIX e décadas iniciais do século subsequente, tal como a Amazônia em momentos anteriores e de maneira concomitante ao longo do século XX372. Durante as discussões em torno da chamada questão acreana, principalmente a partir de 1903, afloraram de forma amiúde tais estereótipos na imprensa, em relatórios oficiais e em algumas vozes no parlamento brasileiro com particular profusão. Trazemos aqui essa vertente imagética vinculada ao que seria o sentimento de brasileiros e bolivianos, onde de maneira semelhante as autoridades dessas duas nações percebiam as diversas dificuldades em exercerem o desejado controle de uma região marcada pelo signo do atraso, portanto ausências várias, difícil acesso e enormes distâncias dos seus centros metropolitanos. Como bem situa Durval M. Albuquerque Jr., “não existe região sem que se elabore em torno dela e de seus moradores uma série de conceitos que podem vir a se tornar, com o passar do tempo, preconceitos”373. Nesta direção da consolidação de estereótipos, as figuras centrais das charges deste tópico são o ministro Barão do Rio Branco, pelo lado brasileiro; e o general e presidente José Manuel Pando pelo lado boliviano. As três charges na sequencia, intituladas de A caminho do Acre [Imagem 20], A volta do Pando [Imagem 21] e Acre [Imagem 22] lidam com o que seria a situação do presidente José Manuel Pando diante dos infortúnios enfrentados por ele e pela Bolívia em terras acreanas quando tentava assegurar o controle da questão do Acre terceirizando o território a um sindicato estrangeiro. Pelo lado brasileiro temos a imagem do homem publico e diplomático, que resolve a situação pelo dialogo e em outras franjas de relações. Do lado boliviano, o próprio presidente — um militar — que tenta resolver pelas vias bélicas e do confronto. Talvez existisse sublimado aí o mito duradouro do brasileiro cordial. 369 SILVA, Caricata República: Zé Povo e o Brasil, 1990, p. 58. 370 SALIBA, 2002, p. 33. 371 Idem, p. 35. 372 SILVA, 2012. 373 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Preconceito contra a origem geográfica e de lugar, 2007, p. 33. 121 Imagem 20: A caminho do Acre Fonte: O Malho, 31de janeiro de 1903, número 20, p. 24. Acervo da FBN. Temos então um general apressado em uma “partida arriscada” e mal planejada rumo ao Acre [Imagem 20]. De esporas e sem cavalo, pois ele é um militar de cavalaria montada, resta-lhe apenas uma espada na cintura conduzindo uma tropa de improviso e sem muita dotação bélica em uma arriscada aventura já fadada ao fracasso. Em uma caixa, ele conduz sua tropa que remete ironicamente aos soldados de brinquedo utilizados por crianças — masculinas — em seus devaneios bélicos infantis. Alem de arriscada, a ação boliviana tem sugerida uma determinada dose de irresponsabilidade. Após o retumbante fracasso antecipadamente anunciado, A volta do Pando [Imagem 21] para a Bolívia é mostrada como uma fuga carregada de desculpas histriônicas e humilhações. Com duas semanas de diferença em relação à publicação da charge anterior, temos o general e presidente boliviano derrotado, de olhos cerrados, sozinho e sem a sua indumentária militar anterior. É um homem sem poder algum e relegado a uma imagem de civil andarilho. Imagem 21: A volta do Pando Fonte: O Malho, 14 de fevereiro de 1903, número 22, p. 08. Acervo da FBN. 122 José Pando é mostrado como um ex-comandante militar cabisbaixo, em trajes civis — quase andrajoso — com um bissaco às costas sustentado por uma espada quebrada indo embora porque ali não há lugar para ele — ou seja, não há espaço para os bolivianos no Acre brasileiro. A representação no meio militar da espada fraturada estava associada à derrocada da honra e da bravura do seu possuidor. Essa arma pessoal estava associada à identidade do seu portador, entregá-la ao adversário significava rendição, quebrá-la significava humilhação. Temos então um general Pando, e também presidente, recuando humilhado, derrotado, impotente e despossuído de seu símbolo fálico-militar. Em março de 1903, com o aprofundamento das derrotas dos bolivianos para os brasileiros do Acre, o Acre permanece na imprensa carioca como assunto de interesse geral. A charge seguinte [Imagem 22] traz novamente o general José Pando em fuga, raivoso e paramentado, mas guardando a dignidade da estética militar na representação gráfica construída pelo desenhista. Imagem 22: Acre Fonte: O Malho, 07 de março de 1903, número 25, p. 03. Acervo da FBN. Contudo, na mensagem verbal da legenda a ironia aparece com a retomada da narrativa de fuga do Acre perdido no embate com os brasileiros revoltosos e que usa a desculpa de voltar ao seu país porque teria se esquecido de despedir-se da família, quando de lá de lá saiu apressado. A ausência de J. Pando das terras do Acre significava subliminarmente o fim das pretensões bolivianas sobre o Acre e a vitória que, dependendo ênfase das narrativas posteriores, vai ser dos brasileiros, ou dos acreanos, ou de Plácido de Castro, ou dos nordestinos, ou dos cearenses ou até de todos esses simultaneamente. Outro componente adicionado ao que foi realçado acima é que o Acre já aparece imageticamente como sendo território de fato brasileiro, com a bandeira do país hasteada ao fundo da charge sugerindo já uma posse definitiva diante de um presidente-general boliviano em retirada solitária e colérica. 123 Imagem 23: Acre mania Fonte: O Malho, 28 de março de 1903, número 28, p. 15. Acervo da FBN. Na charge acima [Imagem 23] é mostrado um diálogo ficcional travado entre um homem e uma mulher, ambos brasileiros, onde provavelmente a mulher é quem pergunta se não haveria perigo para os brasileiros com a chegada do general José Manuel Pando ao Acre com sua tropa militar. O homem na charge é a representação de gênero e a quem cabe a informação correta e abalizada sobre a questão de política nacional em tela. Ele então responde à mulher “desinformada” utilizando um trocadilho hibridizado com o português e o espanhol, fazendo uso de uma broma, ao dizer que “há de ver o Pando lá que aquilo não é pan de ló...”. Ou seja, que sua presença em terras acreanas seria um estorvo, algo nada tranquilo e sem algum resultado positivo aos intentos dos bolivianos. Percebemos duplamente um discurso irônico e nacionalista, onde a primeira interpretação remete ao imaginário da floresta, da natureza que confronta os homens ali chegados, das dificuldades intrínsecas daquele território em disputas. Mas também remete a uma imagem dos brasileiros impertinentes e valorosos na defesa do lugar que consideravam por direito seu. Essa é uma segunda interpretação possível, pois para isso teria que haver o brasileiro Zé Povo que acreditava no ímpeto bravio e heroico dos brasileiros do Acre lutando em nome dos interesses nacionais. O conteúdo informativo da charge e seu título remetem ao leitor que a questão do Acre não era algo estranho em rodas de conversas cotidianas de pessoas que estavam ao largo de diretamente terem quaisquer proximidades de natureza política, técnica, militar ou geográfica com a questão. Induz que era algo que sensibilizava parte da opinião publica nacional nos seus estratos médios. No caso envolvendo a figura do ministro Barão do Rio Branco, trazemos as próximas cinco charges onde ele e outras personagens, em quatro delas, lhe dão suporte aos diálogos irreais baseados em acontecimentos reais recriados pelos chargistas de acordo com o espírito do tempo. Mais uma vez essas narrativas visuais e escritas articuladas possibilitaram sentidos cômicos ao leitor da época ao trazerem para eles uma crônica daquele tempo sobre a questão do Acre no campo do ficcional e do verossímil, sem que isso seja necessariamente uma contradição. 124 Adotamos a sequencia cronológica da publicação de cada uma delas, que vai de julho a dezembro do ano de 1903. Esse período engloba a vigência do chamado modus vivendi na região acreana imposto pelo próprio Barão do Rio Branco, as tratativas diplomáticas ocorridas nas cidades do Rio de Janeiro e de La Paz, a assinatura do Tratado de Petrópolis entre os dois países e sua respectiva aprovação no Congresso Nacional brasileiro. Na charge de Raul Pederneiras a seguir [Imagem 24], intitulada O Ruy e o Rio, aparecem duas figuras centrais nas confabulações iniciais sobre o que viria a ser o futuro acordo entre brasileiros e bolivianos em relação ao Acre. O riso se constrói em torno da imagem de Rui Barbosa, incensado como grande advogado da época, orador notável e político de discursos longos. Ele “ameaça” o Barão do Rio Branco com sua “arma” poderosa caso as questões do acordo não sejam do seu agrado. Isso significava produzir um relatório tão caudaloso quanto seus infindáveis discursos caso a “espiga” (contratempo, maçada) do Acre se tornasse uma “batata” (problema, prejuízo, logro) para ele e os interesses do Brasil. Imagem 24: O Ruy e o Rio Fonte: O Malho, 18 de julho de 1903, número 44, p. 06. Acervo da FBN. Rui Barbosa de fato entrou na pendenga do Acre, mas as suas desavenças com o Barão do Rio Branco acerca das compensações a serem oferecidas à Bolívia fizeram com que ele deixasse de compor a comissão de plenipotenciários antes da conclusão dos trabalhos. Rui Barbosa era um atuante militante da causa acreana no senado federal e em seu jornal A imprensa, aonde desde 1900 vinha publicando artigos em que cobrava atitude mais enérgica do governo brasileiro frente às ocorrências de conflitos e tensões entre brasileiros e bolivianos na região conflagrada, que ele considerava de interesse nacional374. As duas personagens anteriores são evidenciadas alegoricamente nas duas charges seguintes, A bota do Acre e A droga do Acre. Nelas aparecem novamente Rui Barbosa e Barão do Rio Branco em situações de divergências nas tratativas acerca da questão do Acre. 374 ANDRADE & LIMOEIRO, 2003. 125 Nessa primeira charge a seguir, intitulada A bota do Acre [Imagem 25], as duas autoridades conversam e no diálogo o Barão do Rio Branco reclama que se encontra acometido de calos doloridos que lhe machucam os pés. Imagem 25: A bota do Acre Fonte: O Malho, 03 de outubro de 1903, número 55, p. 07. Acervo da FBN. As suas dores são causadas pelas botas que lhe apertam, chamadas de Acre. A sugestão é que ao se livrar da questão do Acre, o seu problema seria resolvido. O humor metafórico compara o Acre a um par de botas que causa desconforto e dores ao Brasil e às autoridades nacionais envolvidas na questão. O ato de tirar as botas mostrado na charge remete ao momento em que as tratativas finais do acordo entre os plenipotenciários brasileiros e bolivianos caminhavam para uma resolução final com o envio do texto para a aprovação nos congressos dos respectivos países em litígio375. Acordo final desagradou Rui Barbosa devido sua recusa em o Brasil ceder qualquer parte do seu território à Bolívia como compensação pela anexação do Acre. Rui Barbosa considerava o Acre território brasileiro sob domínio estrangeiro desde antes do modus vivendi. Como legalista e nacionalista que era, declarava a nulidade dos acordos bilaterais de 1895 e 1898 estabelecidos entre os governos do Brasil e da Bolívia e defendia para o caso acreano o princípio clássico do uti possidetis376. Ou seja, quando há um território em disputa prevalece o direito e a legitimidade em favor de quem o ocupa desde antes. 375 Após a assinatura do Tratado de Petrópolis, o acordo foi enviado para apreciação da Câmara Federal e Senado Federal, sendo aprovado respectivamente em 28 de janeiro de 1904 e 12 de fevereiro de 1904. Por fim, foi sancionado pelo presidente Rodrigues Alves em 18 de fevereiro de 1904. Cf.: TOCANTINS, 2000. 376 ANDRADE & LIMOEIRO, op. cit., p. 100. 126 Imagem 26: A grande droga Fonte: O Malho, 07 de novembro de 1903, número 60, p. 23. Acervo da FBN. Na segunda charge, intitulada A grande droga [Imagem 26, anterior], temos um Barão do Rio Branco retratado como uma espécie de garçom ou maitre, que serve em um copo chamado Acre uma bebida desconhecida para um decrépito freguês identificado como Tesouro Nacional brasileiro. A crítica humorística ocorre em um momento que antecede aos poucos dias anteriores à assinatura do Tratado de Petrópolis e, na imprensa carioca, já circulavam os pontos centrais do termo final. O Acre representa então uma droga oferecida ao já combalido Tesouro Nacional que iria arcar com os custos financeiros do acordo firmado com a Bolívia. O Brasil ganha perdendo, de acordo com a ironia traçada pelo chargista da revista O Malho. É então uma vitória sobre a Bolívia e os EUA com sabor de derrota, algo ganho com sabor travoso da ressaca, uma vitória de Pirro no sentido de que acarretaria prejuízos irreparáveis ao Brasil e legava um gosto travoso, acre por excelência, ao vencedor. Algo parecido com o que irá expressar Abguar Bastos na mesma direção anos depois em seu já citado romance, ao dizer que “a terra apresentava sem rebuços todas as qualidades advindas nesse titulo de aspereza invulgar. Aquilo seria sempre o Acre! Eis a praga do primeiro dono”377. No mesmo dia em que a charge acima foi publicada, o decantado mau negocio da aquisição do Acre por parte do Brasil também foi expressado em editorial circunspecto da mesma revista O Malho, em que o enxerto abaixo parece resumir bem e complementar com seriedade a ironia de cunho etílico mostrada na imagem anterior. Os ônus que esse acordo acarreta ao Brasil atingem a 80.000:000$ que, acrescidos a 25.000:000$ despendidos com as tropas destacadas ao Acre, e saído do tesouro por meio do Banco da República, alem dos 2.000:000$ dados ao sindicato anglo-americano, perfazem a extraordinária cifra de 107.000:000$ - tudo para que a Bolívia nos entregue a posse do Acre, que pela força e pelas circunstancias já era legitimamente nosso graças a esse valente Plácido de Castro, que a nação inteira glorificou e que terá o coração confrangido quando receber a noticia de que todo seu esforço, toda sua dedicação e todo seu patriotismo só serviram de pretexto para que fossemos encher os cofres vazio 377 BASTOS, 1936, p. 52. 127 do tesouro da Bolívia, para dar-lhe portos e estrada de ferro e para subservientemente, criminosamente, entregar-lhe 5.000 kilometros do território nacional em Mato Grosso378. A crítica gira em torno da tese de que o Brasil gastou e pagou muito caro por adquirir algo que já lhe pertencia e, ainda, teve que ceder nesgas do território nacional ao país vizinho e dotar materialmente a fronteira com um conjunto de infraestrutura para beneficiar a Bolívia. A penúltima charge aqui exposta (Imagem 27, a seguir) faz alusão ao momento posterior a assinatura do Tratado de Petrópolis, quando se esperava para o inicio do ano seguinte a votação na câmara federal do acordo firmado entre brasileiros e bolivianos. Temos então o ministro Barão do Rio Branco enviando uma “bomba” imensa, que é o Acre, para ser referendada a sua aquisição em votação pelos deputados brasileiros e depois senadores. Atrás do ministro vem o senador Rui Barbosa, um crítico do acordo final, que acende o pavio da “bomba” entregue ao parlamento. Seu comentário jocoso é o seguinte: “cuidado barão! Com esta bomba nem S. Pedro com seus tiros o salvará”. Imagem 27: Acre Fonte: O Malho, 26 de dezembro de 1903, número 67, p. 03. Acervo da FBN. O aviso de cautela apontava para uma improvável situação que poderia causar uma crise profunda entre o executivo e o legislativo em torno da aquisição do Acre, que talvez nem o navio de guerra mais poderoso da marinha brasileira à época — o São Pedro — poderia salvar os interesses do governo caso houvesse uma rebelião parlamentar acerca dessa questão. O tom de belicosidade e ameaças de um insatisfeito Rui Barbosa é realçado pelos termos bomba, tiros e São Pedro. Exageradamente se queria indicar que uma guerra tinha terminado com os bolivianos e havia a iminência de começar outra entre o executivo e o legislativo. 378 O Malho, 07 de novembro de 1903, número 60, p. 04. Acervo da FBN. 128 Por fim, nos referimos à charge final deste capitulo denominada de Acrite (Imagem 28, a seguir), que faz alusão às questões de fronteira em aberto com o Peru e só resolvidas diplomaticamente em 1910379 com o Tratado do Rio de Janeiro. Imagem 28: Acrite Fonte: O Malho, 26 de dezembro de 1903, número 67, p. 06. Acervo da FBN. Na representação visual temos o Barão do Rio Branco em sua mesa de trabalho redigindo os pontos principais do acordo com a Bolívia, porem ele é interrompido de maneira repentina com a entrada da ave em sua sala derrubando o tinteiro e “melando” o acordo bilateral. A sugestão é que os peruanos iriam querer tirar proveito do acordo entre o Brasil e a Bolívia para também apresentarem suas demandas diante das questões pendentes de suas fronteiras com o Brasil na região acreana, mas o ministro brasileiro impôs tratativas separadas no intuito de não atuar simultaneamente em duas frentes380. O Barão do Rio Branco imaginando que havia terminado os problemas com o Acre, ao assinar o tratado com a Bolívia, descobre diante de si um intrometido Peru a lhe dar novas dores de cabeça. Ou melhor dizendo, lhe proporcionando a recaída em uma doença chamada de acrite. Cabe lembrar que as tensões entre brasileiros e peruanos na região acreana dos vales dos rios Purus e Juruá estavam em aberto e, em fins de 1904, o próprio Barão do Rio Branco designou o escritor Euclides da Cunha para compor uma Comissão Mista Brasileiro-Peruana381 para dirimir os conflitos e disputas fronteiriças. No ano anterior, conflitos armados ocorreram nos dois vales das bacias do Juruá e Purus e Moniz Bandeira assim expressa esses enfrentamentos a partir do que teria sido a perspectiva e as ações da nação peruana: Seu objetivo consistiu em dominar o alto Juruá. Primeiramente, instalou alguns pontos de apoio ao seu comércio e à extração do caucho. Em março de 1903, uma força do exército peruano tentou reconquistar a posição perdida na Boca do Chandless e atacou os brasileiros no barracão do Funil e em várias outras propriedades ao longo do Purus. Prisões, saques, violências e mortes resultaram dessa 379 SENADO FEDERAL. O tratado de limites Brasil – Peru. Brasília: Senado Federal, 2009. 380 BANDEIRA, O Barão de Rothschild e a questão do Acre, 2000, p. 161. 381 SENADO FEDERAL, op. cit. 129 excursão que visava reconquistar o posto de Chandless, conseguir víveres e saber o motivo pelo qual se impedia a passagem de embarcações com gêneros e mercadorias para os caucheiros peruanos do Alto Purus. Rio Branco recusou-se então a entender-se com o Peru enquanto seus destacamentos militares não se retirassem do alto Juruá e do alto Purus, por não ser tolerável que, durante o litígio levantado, autoridades peruanas governassem populações brasileiras lá assentadas382. No ano de 1905 O Malho trazia ainda as contendas na fronteira acreana envolvendo brasileiros e peruanos. A piada mais obvia envolve a ave cuja grafia do nome em língua portuguesa se associa ao país Peru. Em um poema assumido por um autor chamado D. Pablo se diz o seguinte: Mais bellicoso que um capão de briga Todo eriçado e todo provocante Com glu-glus de ameaças arrogantes, Ergue a crista o peru e se impertiga. Cedendo a fome que o devora e instiga Milho alcançar e fito do farçante, Que com tanto barulho e tal rompante Vai se metter, é certo, em grossa espiga! Avança contra em nós esfomeado E cousa estranha, cheio de magreza, Mas de inútil farofia recheiado! Faz-se de bicho máo por esperteza, Mas ao primeiro tiro disparado Bate a linda plumagem com certeza383. Os versos se centram evidentemente no trocadilho permitido apenas em português com a ave e o país homônimos. O Peru é então retratado como belicoso, arrogante e de falsa coragem que seria posta à prova quando os brasileiros dessem o primeiro tiro contra o invasor esfomeado a pisar no seu terreiro. Assim como no caso boliviano, apenas os brasileiros eram valentes e estavam fadados a vencer. No mês anterior, O Malho já tinha trazido a questão de fronteiras entre o Peru e o Brasil na região acreana tensionada a Oeste. A ave galiforme e o ministro Barão do Rio Branco estão em cena no chiste humorístico que traz uma conversa imaginária entre um assessor e o chanceler no dia de seu aniversário. O assessor diz: “aceite meus cumprimentos. Os melhores votos para que terminada a pandega com o Pando, você descalce a bota do Peru”. O Barão responde então: “Oh! conselheiro, não me fale nisso. Quando penso no Peru, ando-me a cabeça a rodar!”384. Havia pouco tempo, esse humor com tons nacionalistas focava em peso suas diatribes contra os bolivianos. Os preconceitos se exaravam em questões de conotações étnicas, sexuais, gênero, militares e diplomáticas transplantadas para os diversos estereótipos que Brasil e Bolívia podiam oferecer às ironias mais ligeiras. Com a emergência das questões fronteiriças com o Peru na ordem do dia na imprensa, há por óbvio a comicidade que evidenciaria as artimanhas do “animal” inimigo do Brasil: bicho que se quer esperto, carregado de maldade, farsante, barulhento e de magreza explicita que demonstrava a sua arrogância em querer lutar contra o forte Brasil. É fato que a vitoria militar e diplomática contra a Bolívia colocava o Brasil em aparente vantagem na sua nova batalha. Contudo, se externamente havia um apelo patriótico que detrata o inimigo através do chiste, internamente o Acre conquistado é um peso que traz dificuldades à nação brasileira conforme já foi explicitado anteriormente. Portanto, temos o Acre retratado como um fardo pesado para bolivianos e depois 382 BANDEIRA, op. cit., pp. 161/162. 383 O Malho, 14 de maio de 1904, ano III, número 87, p. 26. Acervo da FBN. 384 O Malho, 23 de abril de 1904, ano III, número 84, p. 07. Acervo da FBN. 130 para os brasileiros, terra rica, contudo ignota, distante da civilização no espaço e atrasada em relação aos mesmos valores no tempo. Lugar à margem da história nacional e aberto à colonização feita à gandaia, como irá falar Euclides da Cunha. Aparentemente ficamos diante de um paradoxo a partir dessas recusas, sentimentos e desejos complexos em relação ao Acre: um território renegado, apontado como problemático, mas disputado por três países. Talvez nos ancorando em Anne McClintock, possamos chegar a um entendimento sobre essa aparente contradição. Ela, citando Frantz Fanon, diz que “o colonialismo impõem a si mesmo uma domesticação da colônia”385. Ou seja, os interesses econômicos pareciam compensar os outros contratempos a médio e longo prazo. Assim, havia três países como intuitos internos colonizadores e exploratórios sobre o Acre, mas subordinados externamente aos interesses do grande capital que demandava o fornecimento da matéria prima nativa. Domesticar o território e suas gentes deveria ser obra estatal que precisava ali se estabelecer e regular o lugar e suas gentes através dos poderes militar, fiscal, judiciário e executivo. E, ao longo do tempo, irem sendo minorados os decantados atrasos e ausências culturais e materiais, centradas no descompasso histórico, da incipiente infraestrutura, do distanciamento político e pátrio dos seus nacionais que ali viviam. O que é estorvo político, cultural e geográfico, compensava pela possibilidade presente de riqueza que oferecia e de remissão futura que estaria fadada a ocorrer por mão dos operosos heróis, colonizadores e administradores. Outro entendimento possível e não excludente, remete ao fato destes três países não terem então suas fronteiras plenamente definidas e livres de questionamentos dos vizinhos, “seguindo a tradição de pensar a formação da nação como a formação do território”386. Havia então pontas abertas e tensionadas nas linhas fronteiriças em que o Acre era o ator principal das tramas que se realizavam no seu espaço geográfico de interesses nacionais tripartites e de cunho pessoal e comercial de amplas clivagens. Para finalizar, lembrando o escritor paraguaio Damian Cabrera em suas discussões sobre a fronteira em Ciudad del Leste (Paraguai) em momento recente, podemos afirmar também que essa tríplice fronteira acreana era um espaço atravessado por territorialidades em conflito que pulsavam por se consolidarem e se imporem sobre outras, tornando a fronteira um campo de múltiplas semanticidades e sentimentos para seus atores envolvidos387. Nas charges que mostramos, trouxemos os traços gráficos de cinco diferentes chargistas da revista O Malho. O humor mostrado por eles transita pelo campo do erotizado, carregado de duplos sentidos, às vezes marcados pelos preconceitos e conservadorismos do mundo do qual faziam parte. As charges embora se apresentem com o intuito de causar o riso através do humor irônico, satírico e paródico, traz também o contra discurso. É um conjunto de crítica política com uso de ilustrações e textos explicativos portadores de contra-narrativas, capazes de demolir determinados cânones estabelecidos pela capacidade poderosa de criar outras narrativas que são, apenas aparentemente, opostas pelos exageros e irrealidades que reverberam em relação àquelas consideradas sérias. Como diz a frase famosa atribuída ao dramaturgo Moliére (sec. XVII), rindo castigam-se os costumes. Para que isso ocorra, “a percepção do cômico [deve] está totalmente subordinada à capacidade do interlocutor de perceber a ambivalência da mensagem”388. Ou seja, o humorista trabalha com representações sociais e imaginários coletivos arraigados historicamente e que se vinculam a um contexto específico. E a partir daí muitas vezes diz e representa o que ninguém ousaria reverberar usando o expediente do crível e do autentico. 385 McCLINTOCK, 2010, p. 534. 386 ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2014, p. 124. 387 CABRERA, Notas para representarse: decires en frontera, 2014, p. 169. 388 SILVA, A representação do riso Grotesco no banquete gargantuesco, 2003, p. 13. 131 OS HERÓIS SINGULARES E COLETIVOS: UFANISMO NAS IDENTIDADES INVENTADAS Se os feitos de ocupação das alastrantes terras do Acre por si só já eram objeto de reverencias em muitas narrativas glorificantes produzidas à época e posteriormente, os conflitos armados de disputas pelo território contra bolivianos e peruanos e a anexação do território ao Brasil, fez acender com mais vigor a chama do patriotismo brasileiro voltado para aqueles que serão elevados à condição de heróis do Acre. Essas múltiplas construções dos heróis do Acre ocorrem em duas dimensões a meu ver. Uma primeira perspectiva é aquela que individualiza em algumas personagens centrais os combates contra os “audazes estrangeiros” e daí emerge localmente com proeminência o nome de Plácido de Castro, tornado o mitificado herói acreano ao longo do século XX e nas efemérides ocorridas no inicio do século XXI. Isso ocorreu porque “após o término dos conflitos, surge toda uma literatura exaltando os feitos de José Plácido de Castro. Isso contribuiu para a afirmação dessa vaga identitária pautada no patriotismo e heroísmo”389. Contudo, como sempre é por definição, essa identidade é algo móvel no tempo, manipulável, carregada mais de alegorias desejantes e glorificadoras do que alguma essência imanente. O primeiro grupo desses heróis tem rostos, são os proprietários seringalistas, os comerciantes e as autoridades locais que contribuíram com apoio logístico e humano no enfrentamento contra os bolivianos nos anos finais do XIX e iniciais do século XX e daí emerge em grandeza tornada sublime a figura de Plácido de Castro como foi dito há pouco, secundada por alguns antecessores e epígonos menores. No Album do Rio Acreç, que Emilio Falcão produziu em 1907, há uma clara predisposição em falar dos “grandes vultos” da Revolução através de uma rica iconografia por ele produzida. A abertura é com o diplomata Barão do Rio Branco, sequenciado de Plácido de Castro incensado ao papel de comandante de seringueiros “destemidos e obedientes até a morte á voz do seu chefe, que não podia ser mais digno, nem mais heroe”390. Interessante notar que as tentativas de heroificar a figura do Barão de Rio Branco sempre foram produzidas fora do Acre, sem quase nenhum apelo interno que tenha ganhado maior visibilidade. Mesmo havendo o palácio do governo e a própria cidade com seu nome, seus feitos não constam no panteão local. A outra dimensão é a do coletivo de heróis anônimos, chamados genericamente de seringueiros, cearenses e posteriormente nomeados de veteranos da Revolução Acreana. Há ainda o epíteto de “guerrilheiros acreanos” conforme adjetiva em tom ufanista e idílico a passagem abaixo da lavra de João Craveiro Costa, em sua obra A conquista do deserto ocidental. Através da maior vegetação florestal do mundo, dominando um ambiente hostil, abrindo, não raro, o primeiro piso entre a galhada e cipós que se enredam, os guerrilheiros acreanos, caminhavam para a guerra, alegremente e realizavam o prodígio de vencer a própria natureza391. Os inimigos a serem vencidos eram duplos, a natureza hostil e os bolivianos audaciosos e insistentes em uma causa fadada a perecer. Isso é complementado pelas palavras de Abguar Bastos, ao apresentar um Acre com sua natureza lasciva que preferia escolher a quem se entregar à conquista. Na metáfora da conquista apresentada por Bastos, teria havido uma afeição da terra ao “cearense brasileiro” ao mesmo tempo em que os indígenas eram “arremessados” à Oeste junto com os também indesejados bolivianos. Nessa narrativa em particular há um solene apagamento de quaisquer referencias aos peruanos como oponentes da conquista heróica, que fica reduzida aos acontecimentos ocorridos no vale do Acre e parte do Purus. [O Acre] Estava povoado. A terra não tinha amor ao seu dono. Com suas florestas desgrenhadas e as suas sombras lascivas, preferia entregar-se ao estrangeiro que vinha do Brasil com o cheiro do mar nas carnes rijas. Cada vez chegava mais gente do Ceará. A terra ali estava inacessível e áspera. Os 389 MORAIS, A questão fronteiriça como mito fundador do Acre e dos Acreanos, 2015, p. 113. 390 FALCÃO, Álbum do Rio Acre – 1906-1907, 1985, p. 25. 391 COSTA, 1940, p. 206. 132 rios passavam velozes procurando o seu leito. Os cearenses também. E a terra parecia mais mansa. Pouco a pouco o boliviano foi sentindo o desamor das plagas adulteras. Cada vez mais sua taciturna indiferença tornava o vale alheio aos seus carinhos. Pelas veias impetuosas de uma gigantesca potamografia as águas arremessavam os índios para o ocidente. O boliviano parecia estrangeiro. O cearense parecia o dono da casa392. O ufanismo condoreiro posterior tenta fazer crer que a junção desses dois grupos seria cimentada pelo patriotismo desinteressado, pelo desejo de serem “brasileiros por opção” e pelo acreanismo emergente como identidade chave dos habitantes lugar. Aos combatentes rasos, Craveiros Costa acentua primeiramente a luta contra a natureza que antecedeu a guerra travada com os humanos inimigos (estrangeiros e indígenas). Embora o grande líder exaltado nas muitas narrativas seja Plácido de Castro, ex-militar gaúcho e herói singular por excelência, temos concomitantemente um herói coletivo entabulado nos referenciais “nordestinos” ou “cearenses”. O ponto comum nessa narrativa laudatória é que não há espaço significativo para os sofrimentos, às dores e os dissabores conforme aponta Durval Muniz de Albuquerque Júnior em seu texto Por uma história acre393. Já findado os combates contra os bolivianos e o Acre antes boliviano incorporado ao Brasil, no dia 23 de abril de 1904 a revista humorística O Malho trazia em sua paginas várias referencias a Plácido de Castro que se encontrava na cidade do Rio de Janeiro. Seu nome é objeto de trocadilho, ao se dizer ali que em combate ele era terrível, mas como pessoa era um sujeito plácido. A publicação fez ainda troças com aqueles que não receberam convites para o jantar em sua homenagem ocorrido no dia de sua chegada à capital da república, em 19 de abril, que é representada na referida edição com uma charge em que mãos gigantes acima da Baía da Guanabara aplaudem o já incensado na imprensa como o herói do Acre, que surge por trás do Pão de Açúcar saudando os cariocas com seu chapéu. Ele havia saído do Acre no mês anterior e no inicio de abril foi recebido já em Manaus e Belém com festejos patrocinados por associações comerciais e autoridades locais394. Entre tantos encômios ocorridos naquele momento na cidade do Rio de Janeiro, destaco os versos laudatórios atribuídos a uma personagem identificada como D. Paulo. Os louvores ocorrem por contraste ao que teria enfrentado Plácido de Castro e seus comandados no teatro acreano dos combates contra os bolivianos. A floresta, as doenças e os enfrentamentos humanos são as intempéries vencidas brilhantemente e recompensadas posteriormente. Naquele momento, ele então colhia as glorias que começavam a ser semeadas em torno do seu nome. PLÁCIDO DE CASTRO Dos inhospitos climas acreanos, Depois de porfiar mezes inteiros Em lucta contra febres e guerreiros, Praticando prodígios sobrehumanos; Após trabalhos ásperos e insanos, Voltas de novo aos lares prazenteiros Ó tu, Plácido – para os brasileiros – Ó tu, terrível – para os bolivianos – És recebido agora entre banquetes, Ao concerto de vivas e foguetes, Enchendo de alegria a nossa terra: Bem mereces por tuas aventuras Tantos banquetes, festas e doçuras Tu que chegas do Acre duma guerra! D. Paulo (autor)395. 392 BASTOS, 1936, p. 47. 393 ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2014. 394 Correio da Manhã, 03 de abril de 1904, número 1.025, p. 01. Acervo da FBN. 395 O Malho, 23 de maio de 1904, ano III, número 84, p. 16. Acervo da FBN. 133 A luta destacada pelo autor da homenagem é algo individualizada na pessoa de Plácido de Castro já a partir do título do poema. Não há espaço para outros atores heroificados, mesmo que anônimos diluídos em coletivos. Temos somente os combates e a vitória de um homem só. É um homem especial que luta contra enfermidades, inimigos humanos, adversidades naturais e, como herói, só ele poderia praticar feitos para além do humano. Longe dos ditos climas inóspitos do Acre ele é reconhecido pelos seus grandes êxitos ao ser recebido com festas e banquetes na civilizada capital da república, oposto do que era o Acre. A matéria contrasta com a narrativa de Craveiro Costa surgida duas décadas depois quando este autor insere na épica da conquista aqueles que ele chama de “guerrilheiros acreanos”. Mas a semelhança é que esse coletivo, da mesma forma que Plácido de Castro, lutou também contra a natureza inóspita e as doenças febris perenes no espaço territorial acreano desde muito tempo antes dos conflitos armados ali se manifestarem. Antes de serem guerrilheiros acreanos, eles foram cearenses que amansaram “o deserto ocidental” para os que vieram depois. Como foi dito anteriormente, os conflitos envolvendo as disputas pelo Acre e sua conquista pelos brasileiros exalta atores desde muito conhecidos e heroicizados na historiografia local, mas deixa o sujeito simples, o seringueiro em particular, somente como ator genérico dessa história remontada em varias vozes, como aparece na obra de Farias Gama chamada Epopeia Acreana publicada em 1919. Este autor alinhavou em seu texto a tentativa de construir uma épica literária assentada na cronologia que vai da ocupação do território acreano pela Bolívia, passando pela sua incorporação ao Brasil ate a morte de Plácido de Castro. Assim como outros coevos, Farias Gama heroifica os cearenses e diz que eles chegavam ao Acre e iam se brutificando em um território destituído de qualquer civilização. É uma visão oposta, por exemplo, aos constructos de Abguar Bastos que realça o fluxo gradativo e redentor do amansamento da terra pelos “cearenses”. O ano de publicação dessa obra de Farias Gama também se relaciona com algumas efemérides importantes relacionadas ao Acre de então: completava-se uma década da morte de Euclides da Cunha e da assinatura do Tratado do Rio de Janeiro, duas décadas dos entreveros com os bolivianos que José de Carvalho nomeou de Primeira insurreição acreana e da proclamação do Estado Independente do Acre pelo espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Arias396. Na abertura dos versos o autor alude aos clássicos da tradição épica literária, ao falar de Virgilio e Homero como suas inspirações para compor o que ele chama de poemeto da “epopeia de Brazilios heroes [da] Nova Ulisseia”397 através da poesia narrativa em forma de canto. Seu poemeto épico é concluído com o assassinato de Plácido de Castro, apresentado como uma espécie herói maior e mártir da causa acreana. O herói — tal qual o da tragédia grega — precisa morrer para virar lenda e habitar um mundo que não é mais o humano e terreal. Nas entrelinhas das passagens dos versos VI e VII do Canto I, o autor se dirige para aqueles que vieram da região que hoje nomeamos de Nordeste, embora atribua destaque quantitativo aos cearenses e, por conseguinte, do papel deles na territorialidade daquele espaço geográfico disputado e na luta heróica contra os bolivianos. Diz o autor em tons grandiosos que os migrantes partiram ao encontro com o sofrimento e com a escravidão, enfrentando as adversidades da floresta no imenso território a ser explorado porque era até então “inviolado”. Destaca em sua épica tropical os embates dos migrantes com os indígenas descritos como indesejáveis e os perigos das doenças mortais que deixavam esses futuros heróis anêmicos e amarelados, conforme apresenta no trecho abaixo. 396 Sobre esta personagem consultar: DOMINGO, La estrella solitaria, 2003. O escritor Marcio Souza, em seu afamado Galvez, o imperador do Acre, parodia as (des)venturas desse espanhol em terras acreanas. 397 GAMA, Epopeia acreana, 1919. As páginas não são numeradas, por isso aqui usarei a identificação pelo numero dos versos do poema. 134 VI De tão grande porção amiúde vinda Restava empalemado e barrigudo, Um pujilo, a lutar disposto ainda Contra o índio, a floresta, a doença, tudo, Tudo com rude afinco congregado, Como a tomar o solo inviolado. VII Como se não bastassem tais tormentos Os pobres lutadores inorados Sofriam dos patrões, aviltamentos Quais não sofrem os maiores desgraçados Sem ter em quem buscar mercê, justiça, Pois de estranjeiros se julgava a liça398. O verso VII em sua sextilha centra seu foco em torno do herói coletivo chamado seringueiros, nomeados de lutadores e pobres ignorados. De fato, continuaram pobres e ignorados em seus direitos e assistência até jurídico-legal, porque redimir aqueles homens como iguais não estava no horizonte dos chamados “chefes revolucionários” e patrões seringalistas. Mas para a crítica não ser apenas em relação “aos debaixo”, Farias Gama inclui os patrões como homens que também sofreram aviltamentos e injustiças após terem “vencido” os estrangeiros até então vistos como únicos opressores. Esse pequeno opúsculo é considerado pelo próprio autor como sendo a primeira obra literária “ideada, escrita e editorada no Acre”. Alem do herói particularizado e coletivo, dos indígenas inimigos e das doenças endêmicas como marcas negativas do lugar chamado Acre, o destaque gira em torno da revolta armada contra os inimigos estrangeiros e ela é exaltada no Verso XVII do Canto VI, bem como a sua conclusão do que seria aquilo que veio depois como consequência: o abandono e o não reconhecimento de direitos políticos aos agentes locais por parte do governo brasileiro. XVII Era finda a revolta. Dispersados, Como feras bravias perseguidas Os chefes foram, por legais soldados Em breve eram seus feitos esquecidos Que a Patria vencedora na contenda, A terra abandonou, só vê a renda399. De acordo com a licença poética do autor, após o fim dos conflitos armados e tudo que haviam realizado, aqueles ditos homens heróicos foram simplesmente dispensados de exercerem o poder local, que passou a ser regulado pelo governo federal e a quem cabia indicar chefes políticos forâneos para os recém-criados departamentos administrativos acreanos. O governo federal é acusado de ter abandonado o Acre conquistado por Plácido de Castro, junto com os chefes seringalistas e seringueiros, para só se interessar basicamente pelos recursos fiscais oriundos dos impostos da borracha e ali nada investir no intuito de desenvolver material e culturalmente a localidade. Nessa narrativa e em outras, se havia o abandono dos brasileiros em território antes boliviano, a sua incorporação ao Brasil era apresentada como a panaceia que redimiria os esquecidos. Na crítica do autor em sua métrica versada, ele aponta que após 1904 há o afastamento dos heróis de qualquer prota398 Idem. 399 Idem. 135 gonismo político no território acreano e tornam-se eles — humanos e o Território Federal Acre — explorados pelo Estado brasileiro que dali só se interessava pela cobrança de taxas oriundas principalmente da borracha. Essa é uma narrativa interna que as elites econômicas do Acre irão frequentemente utilizar para justificar que as carências e ausências ali existentes, após terem abrasileirado o território, eram culpas de agentes públicos externos encarnados no diversos escalões do governo federal400. Alem das narrativas escritas citadas anteriormente, ao trazer todas essas charges produzidas na época sobre a questão do Acre — de incontáveis outras que foram produzidas — procurei apresentar e dialogar com suas expressões de ordens factuais e representacionais, com suas múltiplas historicidades e memórias que carregavam ao serem publicadas em suas épocas. As charges aqui apresentadas são um painel representativo, fruto de uma tripla montagem de ordem iconográfica, documentaria e alegórica e “sua dimensão histórica, logo, engajada na esfera pública e política”401 do momento em que foram publicadas. Cabe também dizer — a partir de Didi-Huberman em seu dialogo com Walter Benjamin — que “a toda imagem da história é preciso não somente uma legenda, mas uma legenda dialetizada”402. Cada comentário ou analise construída em torno dessas imagens iconográficas, a partir do signo visual e do texto escrito que compõem elas, são acima de tudo remontagens dialetizadas. Desta maneira, novas legendas surgiram nesse texto a partir das anteriores já dadas. Legendas entendidas aqui como re-leituras e traduções das mensagens visuais produzidas pelos autores das charges. São historias remontadas pois, tal como os poetas, os chargistas podem também ser considerados como aqueles que “nadam contra a corrente do fluxo histórico — sem negar sua imanência, sem se distanciar, sem andar na margem —, depois redispõem cada coisa na medida de suas próprias montagens reminiscentes”403. NOMENCLATURAS E MEMÓRIAS EM DISPUTAS Se em muitos romances, obras históricas, discursos políticos e jornais os seringueiros genéricos são exaltados como conquistadores do Acre e combatentes valorosos contra os “inimigos estrangeiros”, os seringalistas e proprietários em geral que apoiaram o movimento final de embate contra os bolivianos — emulados na figura de Plácido de Castro — também irão formatar e serão objetos de uma variada produção de memória histórica em torno da então chamada Revolução acreana. Se auto-intitularem ou serem identificados como revolucionários, participantes ou lideres da Revolução acreana, foi um processo difuso e de muitas narrativas dispersas, carregadas de significados multifacetados e que não eram coesas nos primeiros anos após o Tratado de Petrópolis e a incorporação do Acre ao Brasil. Por exemplo, quando emerge em 1910 no Alto Juruá um dos vários movimentos autonomistas que intentavam unificar os Departamentos acreanos em um único governo centralizado para todo o Acre e a revelia do governo federal, o coronel Antonio Antunes de Alencar404 é nos anos posteriores elevado ao patamar de líder daquela nomeada revolução acreana pelo jornal Folha do Acre, do qual era alma pater405. 400 SILVA, 2012. 401 DIDI-HUBERMAN, Quando as imagens tomam posição, 2017b, p. 148. 402 Idem, p. 161. 403 Idem, p. 162. 404 Seringalista, militar e “veterano da Revolução acreana”, foi prefeito dos Departamentos do Alto Acre (1907/1908) e do Alto Tarauacá (1913/1914). 405 Um fato pitoresco foi narrado pelo jornal Folha do Acre em sua primeira página da edição de 16 de outubro de 1910, quando duas semanas antes ocorreu a “inauguração” da fotografia de Antonio Antunes Alencar na sala do diretor do jornal coronel Manoel Theophilo Maia. Na matéria em que ele é incensado com vários adjetivos grandiloqüentes, a fotografia e a distinta homenagem são atribuídas à benevolência dos “operários” do jornal Folha do Acre. O militar e comerciante Manoel Theophilo Maia de Lima era primo de Neutel Maia, considerado o “fundador” de Rio Branco ao se estabelecer na margem direita do Rio Acre e fundar ali o Seringal Empreza. Em janeiro de 1916 Theophilo Maia foi nomeado vogal do Conselho Municipal de Rio Branco e assumiu em varias ocasiões como Intendente provisório do município nas ausências do titular entre 1916 e 1918. Foi diretor geral do jornal Folha do Acre de 1910 até fim de abril de 1911 e um dos sócios-proprietários da Fazenda Nemaia. No ano de 1911 aparece como sócio de Antunes Alencar na Seguradora Equitativa. 136 Mesmo após passadas algumas décadas desse movimento autonomista de 1910, esse periódico continuamente irá tecer loas em suas páginas à figura do ex-prefeito do Departamento do Alto Acre e do Alto Tarauacá como uma liderança impar naquele momento. Essa é uma pequena amostra da apropriação e sentido distintos que o termo revolução adquire já nos anos iniciais do século XX por vozes contemporâneas daqueles acontecimentos contra os bolivianos e dessa posterior tentativa de unificação administrativa do Acre Federal. Contudo, no calor dos acontecimentos daquela revolta autonomista que se tentou espraiar pelos três departamentos (Alto Acre, Alto Juruá e Alto Purus) o então já “veterano” da outra Revolução acreana é alguém que não quer ser identificado de imediato com os revoltosos de Cruzeiro do Sul. No máximo, ele é um distanciado portador das demandas de todos os acreanos levadas ao governo federal e que apostava numa saída pacifica, homem que agiria de maneira dissuasória junto aos revolucionários do Juruá e que apostava na vigência da legalidade normativa em voga, conforme o jornal O Estado de São Paulo narra em julho de 1910. Esteve hoje pela manhan em conferencia com o sr. Francisco Sá, ministro da viação, o coronel Antunes de Alencar, recém chegado do Acre. Tendo partido do Acre antes do movimento há pouco occorrido em Cruzeiro do Sul, no Juruá, e do qual se teve noticia depois da sua chegada a Manáus, o sr. Alencar disse que não é emissário dos revolucionários. Vem a esta capital como portador de uma representação pacifica que os brasileiros domiciliados no território do Acre, usando do direito constitucional de petição, dirigem aos poderes públicos, solicitando medidas que interessam o bem estar dos povos que habitam aquella região do Amazonas. O sr. Antunes de Alencar mandou emissários aos três departamentos do Acre, aconselhando os amigos a absterem-se de qualquer movimento e desacato ás leis e autoridades da União. Espera receber até 29 do corrente mez a noticia de estar restabelecida a ordem legal onde foi perturbada406. (Grifos meus). No mês seguinte a essa matéria do jornal paulista, e em sua primeira edição de vida, o jornal Folha do Acre traz extensa matéria sobre o movimento autonomista iniciado em Cruzeiro do Sul e chefiado pelos proprietários locais ligados ao chamado Partido Autonomista do Juruá. A centralidade da narrativa é em torno da figura de Antunes de Alencar, que em uma das passagens aparece como líder unificador de um movimento que teria interesses mais amplos que uma revolta local contra o regime em vigor do Acre Federal, dividido então em uma estrutura departamental imposta pelo governo federal. O Partido Autonomista do Juruá resolveu mais como conciliação de altos interesses políticos do movimento, aclamar Governador Provizório do Estado do Acre o bravo e honrado chefe acreano, coronel Antonio Antunes Alencar, a quem o movimento libertador do Acre deve magnos serviços, sujeitando esta sua rezolução a aprovação dos Departamentos do Acre e Purus407. Parece-nos patente que os autonomistas juruaenses apostavam que qualquer sucesso da empreitada local só teria viabilidade se contassem com a sintonia e apoio de forças políticas dos outros dois departamentos, para que embarcassem unidos na aventura de enfrentamento aos ditames em voga do governo federal para o Acre. Mesmo que carregado de justeza, as demandas do movimento autonomista não deixavam de ser algo ligado aos interesses das elites econômicas locais que queriam maior autonomia e protagonismo político frente à hegemonia da União no direcionamento dos cargos federais, finanças públicas, cobrança de impostos e predomino no gerenciamento da maquina pública. Essa “segunda” libertação do Acre necessitava para isso de um veterano de 1902 e Antunes Alencar pareceu, aos rebeldes de Cruzeiro do Sul, um nome unificador e apropriado. No ano de 1952, quando completava meio século da data símbolo do inicio do movimento cujo nome de Plácido de Castro emerge como grande líder, o jornal O Acre em sua edição de 06 de agosto 406 Estado de São Paulo, 24 de julho de 1910, ano XXXVI, número 11.546, p. 01. Disponível em: https://bit.ly/3fvjJDu, acesso em: 13/06/20. 407 Folha do Acre, 14 de agosto de 1910, ano I, número 01, p. 02. Acervo da FBN. 137 traz um variado conjunto de textos assinados, editorial e matérias sobre as com-memorações em torno da efeméride de cinquenta anos. Na primeira pagina do jornal, uma foto de Plácido de Castro se posta encimada ao editorial intitulado Culto aos heróis, cujo teor traz essa ode: Vamos comemorar, hoje, por conseguinte, o primeiro cinqüentenário da jornada dirigida pelo herói-martir José Placido de Castro. E ao fazê-lo, dediquemos a memória dos intrépidos bandeirantes que se sacrificaram para que o Acre fosse também Brasil, o nosso mais fervoroso culto cívico, e, aos que ainda sobrevivem, velhos e cansados, mas sempre dignos e altivos, esquecidos pela pátria até bem pouco tempo, nossas melhores atenções. Sejamos generosos nas homenagens que lhes vamos prestar. Eles tudo fizeram por nós, e será pouco tudo que possamos fazem por eles408. Naquele dia há uma extensa programação dos festejos oficiais organizados pelo governo do Território e pela seção Acre do IHGB. Tudo começou com uma alvorada de tiros na praça central de Rio Branco chamada então de Plácido de Castro e, atualmente, rebatizada de Praça da Revolução. Ocorreram ainda desfiles militares, escolares, execuções de hinos, missas em memórias dos mortos tombados em combates e visita a um sitio de batalha localizado no bairro do Quinze, com palestra do professor e membro do IHGB Geraldo Gurgel de Mesquita409. Na parte da tarde ocorreu um torneio esportivo no estádio José de Mello, entremeado de mais hinos e tiros de festim. À noite, foi reservada para um evento cívico em frente ao Monumento dos Heróis da Revolução situado na praça frontal ao Palácio Rio Branco. Participaram alguns dos chamados “veteranos da campanha do Acre” ainda vivos, que teve encerramento com o discurso do presidente do IHGB do Acre, professor José Rodrigues Leite. Eventos semelhantes, segundo este mesmo jornal, ocorreram ainda nos outros municípios acreanos com programação parecida. Interessante notar que a replicação dos festejos em Feijó, Tarauacá e Cruzeiro do Sul é algo um pouco inusitado pelo fato dessas localidades não terem tido participação direta nos conflitos em disputas com os bolivianos. Cria-se então um campo unificado de narrativa heroica e identitária, que resultou no apagamento da questão de fronteiras em disputas com o Peru do panteão do Acre brasileiro por opção genericamente inventado e discursivamente aprisionado em uma comunidade imaginada que se quer um todo coerente. Ao longo desse período, formatam-se os elementos referenciais que deveriam fixar uma consciência coletiva de base histórica e identitaria. E a imprensa toma um lugar especial ao ser um dos veículos preferenciais para fixar perenemente essas narrativas. Tanto no momento de sua circulação diária, quanto a partir de sua inserção como documento monumento guardado em acervos para consultas a posteriori. Alem da imprensa, temos naquele momento festivo a atuação do IHGB, cujos membros eram na sua quase totalidade composta de professores, escritores, magistrados e profissionais liberais preocupados com a fixação de um padrão narrativo para uma geração em que a maioria já percebia os acontecimentos do inicio do século como algo distante, um passado que já tinha passado. Esse mesmo periódico, dirigido pelo artista plástico, escritor e jornalista Garibaldi Brasil, traz em outra página uma crônica do escritor José Potyguara intitulada À margem de uma data em que ele faz a retrospectiva dos aspectos fundantes de uma memória coletiva já bastante sedimentada ao afirmar que: E que espécie de população era essa? Nordestinos, na maioria cearenses migrados. Sertanejos rústicos que não conheciam tratados internacionais, não distinguiam linhas fronteiriças, nem se preocupavam com os motivos que o mundo fora dividido em países. Eram brasileiros e para eles tudo era Brasil. Enxotados do Nordeste pelo flagelo das secas, cansados de sofrer e ali lutar contra a inclemência da natureza madrasta, emigraram para a Amazônia e, agora, não compreendiam porque lhe negavam o elementar direito de viver e trabalhar calmamente na terra que encontraram deserta e que, de boa fé, desbravaram e colonizaram. (...) cada seringueiro era uma fera, disposto a morrer 408 O Acre, 06 de agosto de 1952, ano XXII, número 1081, p. 01. Acervo da FBN. 409 Idem, p. 04. 138 e a matar para defender o patrimônio material adquirido a custa de suor e sacrifício. Em pouco tempo todo território estava em armas. Naquela agitação de animo, quem poderia deter o ímpeto dos acreanos?410 Enfim, O Acre não estava mais à margem da história. A sentença euclidiana havia sido superada. No texto de Potiguara há a repetição já bastante reforçada havia algumas décadas, do Acre gestado a partir de uma população nordestina e, por definição, cearense. Sujeitos que teriam alargado, como os ditos bandeirantes, as terras acreanas tornadas brasileiras. Por suas “rusticidades” e “ignorâncias” não conheciam os limites de fronteiras e se moviam por instintos de sobrevivência diante de uma natureza chamada de “madrasta”. Diante de modos vidas tão sofridos, esses homens — nas diversas narrativas não há espaço para as mulheres — diante do “audaz estrangeiro” que os agridem, viram feras, dispostos a matar e morrer para defenderem o muito pouco de conquista material adquirido nas suas diversas labutas na floresta tropical. Para alem dos aspectos elencados pelo autor, podemos também aludir a outras possibilidades pela “opção” de lutar contra os bolivianos: uma fluida — mas existente — identidade nacional que foi operada como elemento congregador de pessoas que se encontravam em distintas escalas hierárquicas (seringueiros, patrões, comboieiros, mateiros, noteiros, agentes públicos, comerciantes, profissionais liberais, etc.) no Acre Federal. Também, em nível mais individual, operavam distintas afeições com os lugares e gentes através de vivencias que foram sendo tecidas nas territorialidades possíveis para cada uma daquelas pessoas. Havia ainda impedimentos de ordem financeira e moral, que dificultava a grande maioria de simplesmente partir para outro lugar, seja dentro do território acreano ou fora dele, levando a pecha de endividados e fugidos. Em outro texto publicado no mesmo dia que o anterior, intitulado A Revolução Acreana e seu sentido, o escritor Mário de Oliveira também emite seu olhar carregado das memórias herdadas e da qual ele era muito próximo por ser uma figura publica bastante conhecida no Acre Territorial. E em especial, porque no momento em que escreve é como membro da seção acreana do IHGB. Para o escritor, teria ocorrido um “empolgante movimento irredentista” contrario ao estabelecimento boliviano nos vales dos rios Acre, Iaco e Purus411. Sua critica se volta para as atitudes tomadas pelo governo brasileiro antes de 1903, que em vários momentos reconheceu os direitos da Bolívia sobre o Acre. Ele data — como uma espécie de marco inicial — a presença de brasileiros no Acre a partir de 1876, ano em que eles irão realizar a “penetração e exploração da corda potâmica do Aquiri” em busca da “hevea preciosa” na floresta “virgem e bravia”. Na procura em estabelecer uma temporalidade inaugural da desejada origem do Acre brasileiro, e acreano, afirma Oliveira que o “marco zero” da Revolução Acreana é a data de 01º de maio de 1899, quando José de Carvalho — que não usa o termo revolução em seu escrito, e sim insurreição — lidera um movimento armado contra a presença boliviana na região. O autor lista em seguida uma infinidade de nomes de seringalistas que seriam os heróis a serem reverenciados pelos acreanos do futuro como os fundadores do Acre brasileiro. É sintomático nesse verniz patriótico brasileiro o “esquecimento” do nome de Luiz Galvez de Arias no panteão cívico, pessoa que em julho de 1899 liderou um movimento contra os bolivianos e proclamou o Estado Independente do Acre como um novo país que teve vida breve de pouco mais de cinco meses e logo esse espanhol foi deposto do cargo de presidente412. Esse largo movimento de enfrentamentos aos bolivianos por parte dos brasileiros que viviam no Acre, fora, nos dizeres de Mario de Oliveira, uma luta contra o domínio estrangeiro e a teimosia do governo brasileiro em não ficar declaradamente ao lado dos seus nacionais insatisfeitos. A resolução dessa 410 Idem, p. 06. 411 Idem, p. 06. 412 Ver: TOCANTINS, 2001. 139 trajetória de enfrentamento ao domínio boliviano tem seu desfecho interno final com Plácido de Castro, chamado de “chefe supremo” daquilo que Mário de Oliveira classifica como sendo a “quarta e ultima insurreição” dos brasileiros do Acre. Em sua conclusão apoteótica e glorificante, diz o autor que: Todos aqueles memoráveis episódios não foram senão uma constante, tenaz, perseverante, teimosa afirmação do espírito de brasilidade, de patriotismo daqueles mesmos admiráveis rebeldes que escreveram com o proprio sangue generoso uma das mais empolgantes paginas da história nacional, que o genio imortal do segundo Paranhos saberia compreender e glorificar com a celebração do Tratado de Petropolis – soberbo coroamento da Questão do Acre413. O arremate do texto acontece com a inserção da narrativa em um escopo maior na história do Brasil, onde aquilo que era essencialmente uma questão regional precisava alcançar uma dimensão maior. É assim que entra no panteão dos heróis da questão acreana o — à época dos conflitos — ministro das relações exteriores Barão do Rio Branco. Cabe lembrar que essa tentativa não é uma construção tardia, mas já emerge logo após o Tratado de Petrópolis por vozes principalmente em âmbito nacional. Mas como já foi apontado, a tentativa de heroificar a pessoa do Barão do Rio Branco nunca alcançou localmente o êxito desejado. Dois anos depois, nos cinquenta anos da organização administrativa do Acre após Tratado de Petrópolis, Mário de Oliveira publica alguns artigos no jornal Renovação onde faz a defesa ardorosa do que ele chama de acreanismo e rememora as suas origens como sendo de “uma formação de consciência coletiva da gente” com a criação em janeiro de 1924 do Centro Cívico Acreano. Afirma que foi um dos fundadores deste centro de civismo e escreveu o seu estatuto, que em seu artigo 5º buscava já “definir” o que eles entendiam por acreano. Existiam, por este documento, três categorias de acreanos: os natos, os acreanos históricos e os acreanos adotivos. Os natos seriam aqueles nascidos em qualquer “município do território”. Os acreanos históricos traziam uma elasticidade maior, pois estabelecia que seriam quaisquer pessoas que tivessem feito parte “da reivindicação do Território durante as revoluções nacionalistas, e aqueles que são ou foram domiciliados no Território desde a assinatura do Tratado de Petrópolis”. Por fim, os “acreanos adotivos” seriam aqueles homens nacionais ou estrangeiros “que tenham se casado como moças acreanas, ou os que residam no Território há mais de 5 anos e tenham mais de um filho acreano”414. No papel de acreanos adotivos fica claro que não cabiam as mulheres e nem o espanhol Luiz Galvez de Arias. Meio século antes dessas efemérides apresentadas acima, um publicista português radicado no Juruá chamado Fran Paxeco redigiu em março de 1900 um texto sob encomenda para tecer as cronologias antecedentes e as glórias de um movimento anti boliviano ocorrido na região do Vale do Acre que teve à frente os seringalistas Antonio de Souza Braga e Gastão de Oliveira, alem da figura de Rodrigo de Carvalho. Este último uma espécie de emissário do governo amazonense que granjeou projeção em vários momentos de rusgas com os bolivianos no Acre conflagrado415. Manuel Francisco Paxeco era português de nascimento e vivia em Cruzeiro do Sul e, segundo o jornal A Gazeta do Acre, foi um dos fundadores do Partido Autonomista do Juruá e atuava como seu porta-voz ideológico através do jornal O Cruzeiro do Sul que ali tinha então fundado. Atuou como chefe de gabinete do prefeito Thaumaturgo de Azevedo e após este deixar o cargo, Fran Paxeco foi acusado de malversação de recursos publicos pelo prefeito seguinte. Foi preso e solto meses depois, quando então 413 O Acre, 06 de agosto de 1952, ano XXII, número 1081, p. 02. Acervo da FBN. 414 Renovação, 30 de janeiro de 1954, ano I, número 10. In: ASSMAR, 2008, pp. 244/245. 415 Na obra já citada de Leandro Tocantins (2001) é possível obter maiores detalhamentos sobre Rodrigo de Carvalho e outra personagens citadas no texto de Fran Paxeco, algo que não cabe aqui especificar por não ser o foco de discussão. 140 foi embora definitivamente do Acre para exercer cargos na representação diplomática portuguesa no Brasil416. O contato com esses revoltos do Alto Acre e a encomenda do texto divulgado em Belém no inicio de 1900, o levam alguns anos depois a se estabelecer na região do Alto Juruá quando é recém criado o Departamento cuja sede torna-se a vila de Cruzeiro do Sul. Em 1906 o seu jornal O Cruzeiro do Sul publicou esse texto de seis anos antes em uma serie de quatro episódios cuja centralidade é a exaltação dos embates contra os bolivianos nos eventos ocorridos nos vales do Acre e Purus. O titulo era A questão do Acre e no subtítulo trazia esta insígnia: manifesto dos revolucionários acreanos. No fim do texto, em uma nota explicativa, o jornal afirma que se iniciava ali uma serie documental “importantíssima para a história da Revolução do Acre”417. É dito ainda que o texto fora produzido por Fran Paxeco e lido por Rodrigo de Carvalho em uma “reunião magna” na cidade de Belém no ano de 1900. Era mais uma das diversas apropriações do termo revolução acreana para nomear ocorrências distintas. A primeira parte do manifesto é dedicada em historiar o inicio da revolução e tece elogios a Luiz Galvez de Arias a quem ele chama de “incansável cidadão”. Quantos ao irredentistas, o manifesto afirma que “os rebeldes acreanos (...) conheciam minudentemente os convênios realisados e os factos pretéritos, contemporâneos do Brazil Colonial e do Brazil Imperial”. (...) “Insurgimo-nos espontaneamente, convencidissimos de que o venerando presidente da república consideraria nosso acto de patriotismo”418. Ou seja, estavam a par de situações do passado que reforçariam e davam credibilidade e justeza às pretensões de um Acre brasileiro encampada por aqueles homens tão cheios de brasilidade. O Estado Independente do Acre ganha na pena de Fran Paxeco o epíteto patriótico de “Estado brasileiro”419, como se fosse a mais nova unidade federativa incorporada ao Brasil à revelia do próprio governo central. Eis a narrativa nacionalista sublimando a realidade em nome de um mito que não perdurou e, ironicamente, escrita por um português. Não porque fosse exagero ou desejo distante daquela situação e seu desfecho posterior, mas porque outros mitos vieram na sequencia e se mostraram mais duradouros no imaginário social do Acre brasileiro. O texto em que Fran Paxeco atua como ghost writer tem uma narrativa entusiasta de Luiz Galvez e de Antonio de Souza Braga, ali exaltados como lideres de uma revolução acreana em favor do Brasil no apagar das luzes do século XIX. Na ultima parte, publicada no dia 15 de julho de 1906, Fran Paxeco conclui a redação de texto encomendado com o tópico chamado Os fins da Revolução. Nele, emergem elogios principalmente ao então deputado federal paraense Sezerdelo Correia que, em sua obra O Rio Acre, sai em defesa da causa acreana e dos seus bandidos honestos420, termo da sua lavra para se referir aos rebeldes do Acre. Abaixo, uma parte do fragmento do manifesto de Paxeco: Os revolucionários acreditavam e acreditam na justiça da sua terra mãe, que dará ao mundo o mais negro dos exemplos, se os abandonar e consentir que a imbelle Bolívia os vá acorrentar a um jugo humilhante, que elles repudiam com todas as veras de sua alma. Não há sentimentalismos diplomáticos que nos dobrem. O Acre foi explorado por nós, nós fomos quem fez brotar daquellas selvas a riqueza, e os terrenos são nossos, absolutamente nossos. Somos brazileiros e não nos curvaremos a nação alguma que não seja o Brazil. Possuímos o Acre pelo nosso trabalho e havemos de possuí-lo politicamente, estribados na fé dos convênios e na história do passado. Nada pretendemos, proventos alguns desejamos, posições de natureza alguma almejamos. Os impostos serão arrecadados 416 A Gazeta do Acre, 05 de julho de 2019. Disponível em: https://bit.ly/3eobgk2, acesso em 23/05/20. 417 Idem. 418 O Cruzeiro do Sul, 24 de junho de 1906, ano I, número 07, p. 01. Acervo da FBN. 419 O Cruzeiro do Sul, 30 de junho de 1906, ano I, número 08, p. 01. Acervo da FBN. 420 O Cruzeiro do Sul, 15 de julho de 1906, ano I, número 10, p. 01. Acervo da FBN. 141 no Amazonas e no Pará e as despesas da revolução, sem embargo, hão de saldar-se. O Acre é dos acreanos421. No final, assinam o documento datado de 01º de março de 1900, pela intitulada “Comissão Acreana”, o seringalista Antonio de Souza Braga, Rodrigo de Carvalho e Gastão de Oliveira. Secundam o documento ainda os proprietários Hypolito Moreira, Pedro da Cunha Braga, Joaquim Alves Maia, Manuel Odorico de Carvalho, Antonio Alencar Araripe, Joaquim Domingues Carneiro, Luiz Barroso de Souza, Francisco Manuel de Ávila e Raymundo Joaquim da Silva Vianna. Até aqui foram relatados três exemplos mais diretos sobre como em cada momento o termo revolução é apropriado em diferentes contextos históricos para moldar narrativas identitárias e de pertencimento, de bravuras e atos heroicos contra pretensões estrangeiras sobre o Acre e os brasileiros que ali viviam em fins do XIX e inicio do século XX, como é o caso das narrativas publicadas em 1906 e 1952 há pouco apresentadas. Na outra, do caso malogrado do Alto Juruá, apropriado por Antunes Alencar e seus bajuladores, a perspectiva é interna — dos proprietários locais que intentam maior autonomia política e administrativa frente ao governo federal brasileiro e o fim do regime departamental no Acre Federal. Não há um inimigo explicito, como nos outros dois casos aparecem. Todas essas são narrativas carregam o olhar no elemento patriótico e de defesa dos sempre indigitados interesses do Brasil, do Acre e dos brasileiros do Acre. Isso ocorre mesmo que internamente seus próceres tivessem divergências pessoais, de modos de ação e de interesses políticos que se chocavam localmente diante de aspectos mais mundanos. E mesmo que esse propalado sentimento desprendido de re-ação em nome de algo maior não fosse tão coeso e verossímil, o que importou aqui discutir foi aquilo que se disse nesses vários momentos temporais do Acre Federal. Lembrando mais uma vez o historiador Alessandro Portelli422, não importa neste caso o fato e sim a materialidade dos diversos textos produzidos e tornados públicos pelos seus autores ao longo do período. Evidentemente que essas distintas formas de dizer variavam a partir das múltiplas territorialidades em que aqueles sujeitos sociais estavam situados. Por isso, a guisa de conclusão deste capitulo, trago também brevemente algumas referencias à maneira como militares, proprietários e governantes bolivianos narraram seus envolvimentos na campaña del Acre ou na Guerra del Acre — termos mais consagrados na memorialística produzida a partir de autores bolivianos, como nos alerta a historiadora Clara Beltrán em artigo sobre o assunto423. Há entre elas uma diferença básica de narrativas que depende do ponto de vista adotado pelos seus produtores a partir do aspecto geográfico e do locus de poder nos quais estavam inseridos. A primeira é uma visão mais voltada para o destaque de personagens do altiplano boliviano, onde sobressaem abordagens de dirigentes e militares que serão exaltados como heróis da campaña del Acre. Avultam daí os nomes de Ismael Montes (comandante da primeira expedição ao Acre), Pedro Kramer (político, jornalista e diplomata) e Lucio Pérez Velasco (militar, vice-presidente no mandato de José Pando e nomeado por este delegado de governo no Acre). De outro lado, há um conjunto de narrativas centrada em personagens da Amazônia boliviana e tem como foco a exaltação glorificadora de seringalistas da região como Don Nicolás Suárez, do indígena Bruno Racua e do presidente Pando que nomeia o Departamento onde se situa hoje a cidade de Cobija424. Na cidade boliviana de Cobija, na fronteira com o Acre, e localidade que foi palco de diversas batalhas, 421 Idem. 422 PORTELLI, 1996. 423 BELTRAN, La exploración y ocupación del Acre (1870-1900), 2001, p. 575. 424 SILVA, A cidade de Cobija e os lugares de memória da Guerra do Acre/Revolução Acreana, 2016. 142 ainda hoje é possível ver essas disputas de memórias em torno das formas de apropriação de diversos signos em torno da questão do Acre425. Se não puderam criar um discurso heroico coeso e amplo, referenciado naquelas disputas contra os brasileiros, predominam no varejo elementos pontuais que são elevados à condição de glória local, principalmente cobijana e pandina. No altiplano, essas narrativas se voltam para as façanhas individuais de dirigentes militares e políticos (coragem, empenho, patriotismo). No vale amazônico, as vitórias contra os brasileiros em batalhas do Igarapé Bahia e da Coluna Porvenir, liderada por Nicolás Suárez, são alçadas a importantes elementos da identidade regional e uma contribuição cobijana à nacionalidade boliviana. Há inclusive uma disputa renhida em torno dessas memórias protagonizada no inicio da década de 1920 entre el patron Nicolás Suárez e o militar Frederico Román, que deriva depois em uma obra assinada por Nicolás Suárez intitulada Anotaciones y documentos sobre la campaña del Alto Acre (1902-1903) e publicada em 1928. Em prefacio para uma edição recente dessa obra, a pesquisadora espanhola Anne Guiteras Mombiola diz que: La difusión de las críticas de Román hacia el todo poderoso empresario generó una oleada de reconocimiento a Nicolás Suárez en el departamento del Beni y, en particular, en el norte amazónico. El apoyo a este respondió, por un lado, al sentimiento de pesar de los actores regionales “que vieron y actuaron” en el conflicto del Acre, al considerar que no se había valorado en su justa medida el importante papel jugado por ellos en la protección de las fronteras nacionales; y, por otro lado, al desconocimiento que, según ellos, había mostrado el coronel – y, por extensión, su audiencia altiplánica – sobre la história de las tierras bajas426. Acima temos uma semelhança entre os brasileiros do Acre e os bolivianos do norte Amazônico. Passado os conflitos, essas elites locais de homens poderosos ligados as atividades extrativas e comerciais irão se ressentir da falta de reconhecimentos dos seus respectivos governos centrais em relação às lutas que travaram contra seus inimigos estrangeiros. Se sentem alijados do poder político regional e desamparados economicamente quando vem a crise da borracha amazônica com a ascensão dos seringais de cultivo no sudeste asiático. Em seu livro El caucho ignorado, o boliviano Oscar Justiniano ao tratar da Guerra del Acre, afirma que o Tratado de Petrópolis representou um desastre para a Bolívia e algo extremamente vantajoso para o “Coloso del Este” e cita o que considera ser as três causas principais para esse desfecho desfavorável às pretensões boliviana no Acre: 1) a ferocidade brasileira em sua marcha incessante para Oeste; 2) a miopia dos governantes bolivianos em relação às terras do Oriente pátrio; 3) e, por fim, o desastre boliviano poderia ter sido maior com a perca de mais territórios, o que não ocorreu devido as ações armadas da heroica “Columna Porvenir” liderada por Nicolas Suarez que garantiu a manutenção e soberania da região onde hoje está situado o Departamento de Pando427. Se do lado brasileiros algumas vozes vêem o sucesso final contra os bolivianos como uma vitoria de Pirro, do lado boliviano a derrota definitiva para os brasileiros pode resultar em algum elemento valorativo no panteão da nacionalidade. Baseado principalmente em obras de historiadores bolivianos e memorias escritas de pessoas que participaram em diversos momentos da campaña del Acre, Oscar Justiniano reproduz amiúde os termos mais consagrados pelos seus antecessores para qualificar os brasileiros e os conflitos em torno do Acre. Assim, os brasileiros são designados como condutores de um “movimiento separatista”, são designados “filibusteros” e tal qual alguns autores brasileiros concordam, são também “bandeirantes modernos”. Os brasileiros compõem “fuerzas atacantes”, são “aventureros acreanos”, “sediciosos” e ainda “insurrectos” em relação aos direitos bolivianos reconhecidos então em tratados bilaterais sobre o Acre. 425 SILVA; SOUZA & MESSINA, Contentious narratives in amazonian cities along Brazil-Bolivia border: memories and resentments turned heroic and glorious, 2017. 426 MOMBIOLA, Estudio introductorio - Nicolás Suárez, pionero y patriota en los confines de la Amazonía boliviana, 2018. 427 JUSTINIANO, El caucho ignorado, 2010, p, 243. 143 O autor finaliza sua exposição sobre o assunto recorrendo a um trecho da obra da historiadora norte-americana Valerie Fifer, por considerar sua perspectiva mais abalizada e dotada de “imparcialidad” sobre essa questão. Em sua obra intitulada Bolivia, território, situación y politica desde 1825, publicada no inicio dos anos de 1970, esta autora afirma: La pérdida del Districto del Acre, a pesar de su extensión, no produjo gran conmoción en la mayoría de los bolivianos, sobre todo entre los de La Paz y de las regiones mineras. Muy pocos habían estado en vinculación directa, y muchos ni siquiera enterados de lo que pasaba. La perdida no solo no produjo un sentimiento de agravio ni ocasiono un deterioro en las relaciones con Brasil, sino que hasta sucedió lo contrario. Si se compara esto con la perdida de Atacama y más tarde con la del Chaco, el convenio del Acre és único en los diferendos territoriales de Bolívia428. Deve se considerar que de fato havia um distanciamento físico, afetivo e imagético do Acre até então declarado Territorio Nacional de Colonias em relação à maioria dos bolivianos que viviam nos altiplanos. Complementado pelo fato de não haver informações amplas circulando sobre o assunto e que atingissem um publico bem maior e capaz de causar algum interesse massificado de cunho patriótico à época. De ambos os lados, Brasil e Bolívia, temos a chamada Revolução acreana ou Guerra do Acre tornadas “relíquias secularizadas” pelas muitas e repetidas narrativas produzidas nas continuadas rememorações, para lembrar uma questão levantada por Didi-Huberman em uma passagem de sua obra Diante do tempo429 quando trata do conceito de benjaminiano de aura em objetos visuais no século XX. Embora não estejamos falando somente a partir de imagem visuais stricto sensu, em sentido mais amplo temos em todas essas narrativas imagens históricas e identitárias geralmente fechadas “em seus próprios axiomas”430. Carregam em si a aura de um passado que se quer recuperar e presentificar, no intuito de se criarem representações identitarias ligadas às respectivas nacionalidades. Em todas essas questões trazidas ao debate neste tópico, creio que elas lidam com múltiplas comunidades imaginadas relacionadas ao Acre e notadamente em torno de um conjunto de ausências que lhe são narradas, outorgadas, sentidas, determinadas, visualizadas e inventadas. Temos um Acre que é em grande medida mostrado como um não-lugar, seja como sociedade ou parte de alguma nação (Brasil, Peru e Bolívia) até os anos inciais do século XX. Um território visto como desterritorializado porque não teria marcas humanas na lógica do progresso e das nacionalidades que lhes disputavam. Outra ausência narrada com freqüência é a do pioneiro/colonizador que lhe “conquista” tardiamente, portanto ela logo é preenchida pelas narrativas vencedoras dos brasileiros do Acre. Sua incorporação ao Brasil em 1903 gerou, após esta data, novas disputas genealógicas, heroificantes e consequentemente de reelaborações de outros discursos em torno das ausências ou superação delas. Por definição, temos um Acre diverso e repetidamente inventado. 428 FIFER, apud JUSTINIANO, op. cit., p. 264. 429 DIDI-HUBERMAN, 2017a, p. 269. 430 Idem, p. 270. 144 EPÍLOGO As histórias são inventadas, mesmo as reais, quando são contadas. Entre o acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção. Conceição Evaristo431 “(...) no Acre, só é possível viver aos brados, para que se tenha a impressão de não estar nem afogado, nem perdido. Por isto o Acre não é um reino de solitários, mas não deixa de ser o paradoxal e abismoso reino da solidão”. Abguar Bastos432 431 EVARISTO, Becos da memória, 2017, p. 11. 432 BASTOS, 1936, p. 61. E m um conhecido aforismo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche diz que daquilo que achamos medir e amar é preciso que nos afastemos pelo menos uma vez na vida, pois é somente saindo da cidade que veremos a que alturas se elevam suas torres. Este ensaio aqui apresentado é fruto em parte de afastamentos geográficos, pessoais e acadêmicos carregados de afetos dos quais, mesmo mudando de ares não saem do pensamento e do fazer. Mais uma vez recorro estar no ombro de um gigante, neste caso do poeta Horácio, ao afirmar que aqueles que transpõem os mares mudam de céu, mas não de espírito. Não é saudosismo, mas apenas a adoção de um olhar distanciado de quem palmilha outros lugares e renova energias e idéias há tempos marcadas por certas repetições cotidianas. Às vezes, certas distancias são necessárias. Não tem a relação com a pretensão de ver melhor, de distanciamento objetivo, mas pensar o perto de longe. Existem ainda de minha parte os intrínsecos afastamentos temporais em relação aos autores, obras, acontecimentos e “fatos” selecionados que quis desexplicar. As aproximações foram possíveis através do exercício e da imaginação da escrita, da juntada de palavras e dos sentidos que delas brotaram a partir de minhas subjetividades e das marcas de vivencias impregnadas nas minhas maneiras de fazer e dizer. Não tive o intuito, desde o começo, em me colocar fora do texto e de tudo que isso implica pelo fato de ter nascido em um seringal no Acre, viver no Acre e atuar em campo do conhecimento das chamadas “ciências humanas”, na única universidade pública da Amazônia acreana, onde muito do que apresentei ao longo da escrita foi no intuito de desexplicar, des-construir e remontar, em uma narrativa de fundo historiográfico, algumas questões quase sempre apresentadas como obvias. Tentei não me deixar ser capturado pelos exotismos e lugares comuns já consolidados e tentar olhar por sobre e alem deles. O meu vivido — pessoal e profissional — sempre esteve transitando por estes territórios que tentei re-narrar com os devidos cuidados para não mergulhar nos faceis discursos já dados, totalizantes e adocicados como pontua Durval Muniz de Albuquerque em seu texto Por uma história acre. É fato a dificuldade em apagar de nós tudo que está escrito nas paisagens e vivencias intimas e sociais que nos constituem. Elas estão sempre se relacionando com o que vemos, fazemos e dizemos. Como bem aponta com precisão Anna Tsing, “nós experimentamos a habitabilidade apenas através dos lugares”433. Esse texto não deixa de ser a expressão de minhas habitabilidades. Essas narrativas aqui destacadas e apresentadas expressam em muito aquilo que poderíamos hoje classificar como preconceito geográfico, elas foram gestadas no passado, mas grande parte delas continuam entre nós e não são tão anacrônicas assim — não são pois um passado que passou. O passado desse Acre narrado nas molduras aqui discutidas, interpenetra no presente com suas doses cavalares de repetições e naturalidades. Não há como desconhecer certo dejá vu em determinadas falas recentes engendradas em meios políticos, intelectuais, jornalísticos, acadêmicos e artísticos em relação às origens heróicas do Acre e dos acreanos. A famosa sentença positivista de que os vivos governam os mortos não é de todo absurda quando se pensa essa particularidade. Para alem dos decantados heroísmos do passado, temos formas de falar, hábitos alimentares, gestos, doenças endêmicas, maneiras de vestir e de morar que ainda hoje estão entre nós. Convivemos e reproduzimos com marginalizações e preconceitos contra grupos sociais e étnicos que são tão presentes que parecem ter sempre existidos, por isso tornam-se aspectos quase normalizados para o senso comum arrivista. A epígrafe postada na abertura e retirada da obra Certos caminhos do mundo, de Abguar Bastos, nos possibilita reflexões talvez interessantes. O ato de gritar, de bradar em plenos pulmões é uma estratégia de comunicação utilizada por homens e mulheres nas florestas amazônicas e acreanas desde muito tempo em diversas situações. Em caçadas coletivas no interior das matas se grita(va) aos outros após se matar 433 TSING, 2019, p. 205. 146 uma caça, para avisar sua direção e não ficar em linha de tiro. Durante derrubadas para feitios de roçados em adjuntos, também se grita(va) após derrubar uma arvore no intuito de avisar que esta(va) tudo bem. Assim como o seu oposto, o silencio, gritar é uma atitude de sobrevivência em muitas situações. O autor — através de seu eu lírico — aponta a solidão como uma das marcas desse acreano pretérito e de vida mais próxima às florestas e também aos rios. Contudo, não seria de todo solitário porque tem outros em semelhante situação com quem contar nas necessidades e sofrimentos compartilhados. Isso se aproxima da idéia de Océlio Medeiros, do Acre ser uma represa humana, lugar também de solitários. A obra deste autor veio ao publico poucos anos após o livro de Abguar Bastos e há algumas semelhanças narrativas entre elas. Por essa perspectiva teríamos homens e mulheres empatados, no impasse de continuarem na solidão em relação ao mundo além Acre. Todos se configurariam então em uma plantation de humanos, porque eram braços (geralmente transplantados) colocados a serviço da sanha colonizadora baseada em um único produto, o látex nativo. Nesses encontros coloniais assimétricos, os homens coloniais sempre entraram em erupção conforme bem frisou a antropóloga Anna Tsing434, perspectiva que se aproxima da ocupação à gandaia de homens tumultuários sentenciada por interpretes já citados acerca do Acre. De forma geral, as ausências discutidas neste texto foram voltadas para perspectivas específicas em cada capitulo. Mas eles têm certa autonomia nas particularidades e se interligam no todo. Em um primeiro momento, se referem aos estereótipos bastante sólidos sobre a Amazônia e o Acre como territórios constituídos de vazios, imensidões, sem civilização e a margem do progresso e da história. Outras formas de ausências destacadas, imbricadas com as anteriores, se reportaram às questões de faltas de higiene, escassa, estranha e deficiente alimentação da população local, pouca ou nenhuma salubridade provocada pelo clima e hábitos realçados como negativos na população local. Na terceira parte, foi discutida a questão indígena envolvendo as prenoções duradouras em relação a essas populações no campo que se refere às suas culturas, relações com a natureza, crenças apontadas como marcadas pela inferioridade que se sintetizariam as ausências em relação ao mundo do “branco” dito civilizado. Por fim, a abordagem final se voltou para discutir as construções variadas em torno das buscas por uma identidade acreana, o papel de algumas personagens na remontagem dos eventos de luta contra bolivianos e peruanos pela incorporação do Acre ao Brasil e como isso se relaciona com as nacionalidades das margens nessas fronteiras tardias. Mas esse ensaio apresentado é também carregado de ausências intencionais e aquelas que são intrínsecas ao fazer historiográfico – em particular – e próprias do fazer da escrita e da pesquisa. Na parte das intencionalidades, ressalto a opção em não dialogar intensamente com trabalhos ou fontes datadas do período pós Acre território. Desta forma, não desqualifico ou tento invisibilizar inúmeras pesquisas e obras de valor considerável em vários campos do conhecimento já produzidas. Embora o texto seja carregado dos meus (a)fazeres do presente, necessitei fazer um recorte metodológico e arbitrário que pudessem ter mais sentido com as vozes ditas e escritas na circunscrição temporal estabelecida. Neste sentido, talvez caiba aqui recorrer ao grande historiador Jacques Le Goff para quem “a história seria não só a projeção que o homem faz do presente no passado, mas a projeção da parte mais imaginária do seu presente, a projeção no passado do futuro que ele escolheu, uma história-ficção, uma história avessas”435. Essa história aqui narrada é por definição uma história às avessas e carregada de projeções assemelhadas às luzes dos vagalumes. Creio que isso ocorre tanto no sentido atribuído por Le Goff quanto pela tentativa estabelecida inicialmente de desexplicar. Quanto à questão estética, é Euclides da Cunha quem sentencia com retumbancia a ausência dela na Amazônia que ele visita no inicio do século. Para este autor, o antiestético é um desajuste na composição da nacionalidade, da cultura e da história pensada por ele em seus escritos. Uma desejada 434 TSING, 2019, p. 211. 435 LE GOFF, História e Memória, 1990, p. 22. 147 estética uniformizante seria a redenção para que o Brasil (porque todo) e a Amazônia (porque parte) atingissem a civilização mentalizada por este escritor em suas proposições acerca de um Brasil futuro. Para finalizar, cabe relembrar o poeta grego Konstantino Kavafis em seu magistral poema A espera dos bárbaros citado na abertura deste ensaio. No Acre em sua formação inicial e nas décadas seguintes, as recorrências aos bárbaros e à barbaria serviram também para justificar muitos atos de políticos, proprietários, jornalistas, literatos e memorialistas. Os bárbaros eram também muitas vezes a solução inventada para o exercício da catequização; para a adoção das piedades paternalistas; para a escrita de verbos e adjetivos despejados em paginas de periódicos e obras literárias com fins de exaltação da conquista; para ocupação de territórios indígenas; para muitas ações publicas e privadas pensadas como redentoras das ausências elaboradas ao longo desse tempo de Acre Federal. 148 REFERÊNCIAS ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. AGUIRRE ROJAS, Carlos Antônio. Braudel e as ciências humanas. Tradução de Jurandir Malerba. Londrina: EDUEL, 2013. ALBUQUERQUE, G. R. “Amazonialismo”. In: ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de; PACHECO, Agenor Sarraf. Uwa’kürü: Dicionário analítico. Volume I. Rio Branco: Nepan, 2016. ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues de; ISHII, Raquel Alves. “A Amazônia acreana de Abguar Bastos”, pp. 121/141. 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