HIGIENISMO E EDUCAÇÃO: DISCURSOS DOS
CIRURGIÕES DENTISTAS NA IMPRENSA PARAENSE NO INÍCIO
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Anais do VII ENEBIO – I EREBIO NORTE
ISBN 978-85-8857-812-8
HIGIENISMO E EDUCAÇÃO: DISCURSOS DOS CIRURGIÕES
DENTISTAS NA IMPRENSA PARAENSE NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Marcelino Carmo de Lima (IEMCI – UFPA)
Luiz Carlos Silva Conceição (IEMCI – UFPA)
José Jerônimo de Alencar Alves (IEMCI – UFPA)
Resumo: No Estado do Pará, no início do século XX, os discursos higienistas foram difundidos
pelos profissionais da área da saúde. Em parte, esses discursos tinham propósitos pedagógicos.
Analisando os jornais da época pudemos constatar algumas matérias assinadas por cirurgiões dentistas referentes à relação entre higienismo, odontologia e educação. Nosso propósito é analisar esses
discursos no sentido de compreender como as propostas dos cirurgiões dentistas se inscreveram nos
discursos higiênicos da época, relacionados à educação. Esses discursos propunham estabelecer o
ensino especial da higiene relacionada à saúde bucal nas escolas públicas, especificamente, por profissionais diplomados na área da odontologia.
Palavras-chave: higiene, educação, cirurgiões dentistas, escolas públicas, Pará.
Introdução
oje, muitos temas como higiene corporal e saúde, orientação sexual, alimentação saudável,
estão em varias disciplinas, através dos Temas Transversais, recomendados pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN). Entretanto, eles têm sido alvo de discussão quanto a sua
conformação, abordagem e até mesmo a sua permanência no currículo escolar. No inicio do século
XX, esses temas estavam, em grande parte, relacionados a uma disciplina chamada Higiene, que era
um campo de conhecimento dominante e que tinha intensa penetração nos currículos das escolas.
Retomar, através da análise histórica, essas questões higiênicas dessa época, no sentido de contribuir
para trazer subsídios para essas discussões, tem sido uma prática recorrente. Alguns autores têm
contribuído para a compreensão dessa associação entre Higiene e Educação.
Stephanou (1999), em sua tese de doutorado sobre os discursos “médico-higienistas” na
educação, nas primeiras décadas do século XX no Brasil, especificamente no Rio Grande do Sul,
buscou compreender esses discursos e a constituição de práticas médicas nas escolas, bem como, a
emergência de uma educação sanitária mais abrangente, voltada para a população das cidades.
Viana (2015) analisou a relação entre educação e higienismo, na Amazônia, nos periódicos
educacionais na passagem do século XIX para o XX, a fim de compreender como essa relação contribuiu para colonialismo nessa região.
As análises sobre a penetração dos discursos higienistas no Brasil, no campo da educação, têm
despertado a atenção de muitos autores, além de Stephanou, tais como Gondra (2004), Vivianni
(2007), Ferreira (2003). Essas análises têm focalizado, sobretudo, as localidades mais urbanizadas
do país, como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Quanto à Amazônia, como vimos,
Viana analisa os discursos higienistas nos periódicos educacionais que circularam em Belém do
H
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Pará no período entre 1891 a 1912. Entretanto, para se ter uma compreensão histórica mais ampla
do impacto dessa área do conhecimento no âmbito educacional nessa região, ainda há muito a se
pesquisar.
Analisando jornais da época encontramos algumas matérias referentes à relação entre
higiene, odontologia e educação. Pretendemos analisar essas matérias com o propósito de compreender como as propostas dos cirurgiões dentistas da época se inscreveram nos discursos higiênicos
da época, relacionados à educação. Para isso, foram analisados os jornais publicados na década de
1910.
Nesta pesquisa foi realizada uma busca através da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional,
nos jornais A Província do Pará, Folha do Norte e Estado do Pará, no período entre 1900 e 1920. A
busca realizada através de palavras-chave como higiene, saúde, odontologia e dentista, e fez parte
de uma pesquisa mais ampla, cuja intenção era obter fontes para a construção de uma Dissertação
de Mestrado1. É importante sublinhar que, nesta pesquisa, apenas no jornal Estado do Pará encontramos dados relevantes para a atual análise, que consistem nos artigos assinados por cirurgiões
dentistas.
Alguns autores têm mostrado que o ensino de ciências e biologia deve possibilitar que o
aluno adquira uma postura crítica em relação aos conteúdos trabalhados e, principalmente, ao
processo de construção do conhecimento e que a história da ciência e da educação teria o papel de
abrir esse mundo de possibilidades. Este estudo trata da verificação da inserção de preocupações
de profissionais sobre questões de saúde humana. Ele se insere em uma área específica da história
da educação brasileira, que busca compreender os processos pelos quais as práticas de saúde aliadas a educação, tiveram seu momento inicial e sua consolidação no âmbito educacional brasileiro.
Estudos como este são relevantes, pois possibilitam conhecermos as relações que envolveram a construção de um campo de saber, como é o exemplo da higiene e sua inserção no campo educacional,
tendo a possibilidade de contribuir para a compreensão, no ensino de ciências e biologia, das práticas discursivas que fundamentaram a higiene como um campo de conhecimento ligado à educação.
Higienismo e Educação: do Brasil para a Amazônia
A penetração dos discursos higienistas na Amazônia não foi algo isolado, mas sim reflexo de
um movimento higienista mais amplo que vinha se expandindo nos centros mais urbanizados do
país, a partir das origens europeias. Para compreender esse processo na Amazônia, antes, retomaremos a esse processo em outras regiões do país, conforme se pode observar em algumas análises.
Nesse período, algumas cidades brasileiras passaram por um processo de urbanização que
alterou seus espaços físicos e o modo de viver de suas populações, sobretudo a capital do país.
Sanitaristas e higienistas estavam na vanguarda dos projetos dessas cidades rumo à modernidade e
ganharam importância social dentro desse contexto, sendo reconhecidos como os possuidores de
um conhecimento “verdadeiro”, que “atribuía à higiene um caráter exorcizador até então desconhecido e à saúde uma extensão impensada” (STEPHANOU, 2005, p. 147).
O higienismo foi uma corrente médica que se estendeu durante o século XIX, e teve fundamental importância nesses processos de medicalização. Essa corrente tinha a preocupação com vários
1
A pesquisa a qual nos referimos foi a Dissertação de Mestrado defendida por Marcelino Carmo de Lima, em 2016.
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aspectos da vida humana, principalmente com o meio e com a saúde das populações, construindo
mecanismos de controle social por meio da proteção ao trabalho, saúde e habitação (VIVIANI,
2007).
O discurso higienista, abrangia o campo da medicina bacteriana, da fisiologia, demografia,
pedologia e puericultura, e reivindicava o estatuto da racionalidade científica, utilizado para legitimar a intervenção estatal sobre vários aspectos da vida humana a fim de direcionar o corpo social
rumo ao progresso (VIVIANI, 2007; ALVES, 1997).
Na transição do século XIX para o século XX, a escola passou a ser alvo do discurso higienista.
Estes discursos se difundiam através de “conferencias e artigos educativos divulgados na imprensa
da época ou transmitidos pela radiodifusão” (STEPHANOU, 2005, p. 145).
Higiene e Educação na imprensa local: os
discursos dos cirurgiões dentistas
Esses discursos que atingiram as capitais mais urbanizadas do país também penetraram com
efeitos similares na cidade de Belém, que foi transformada pelos produtos materiais e ideológicos
vindos da Europa. O boom econômico ocasionado pela exportação do látex permitiu a entrada acelerada de novos projetos modernizadores nessas capitais, inclusive os relacionados com os discursos
de Higiene, tais como os que analisaremos a seguir.
No artigo Ensino especial da higiene da boca, publicado no jornal Estado do Pará, o cirurgião
dentista Magno e Silva2, se refere ao movimento de criação de um ensino especial da higiene bucal
nas escolas públicas. Ele afirma que esse movimento vinha despertando a atenção dos governos de
alguns países da Europa, ou seja, que seriam avançados ou modernos, demonstrando interesse em
implantar a higiene bucal nas escolas.
O interesse que, nestes últimos anos, vem despertando a atenção dos governos europeus
sobre a necessidade da criação, nas escolas públicas, do ensino especial da higiene da
boca, mostra-nos o quanto eles se interessam pelo bem que isto, em larga soma, poderá
trazer aos seus concidadãos. (SILVA, 1911, p. 1).
Assinala, ainda, que em decorrência disso, por toda parte estariam surgindo “associações e
corporações científicas encarregadas, todas elas, de melhor estudar as bases dos seus programas” que,
uma vez aceitos, seriam postos imediatamente em prática. Justifica os benefícios que uma medida
como essa traria, argumentando sobre os resultados “colhidos em ensinos similares”, espalhados por
vários lugares no continente europeu, que ele considerava ser uma medida de elevado alcance. Isto
porque os governos passaram a exigir, de maneira obrigatória, a fiscalização dos exames dentários,
nos lugares em que se fazia necessário, desde as escolas públicas (onde a quantidade de crianças
pobres era maior) até as instituições de ensino superior. Ele também ressaltou que esse fato, mesmo
parecendo ser apenas uma exigência de classe, portanto, sem prerrogativa para ser considerada pelos
poderes públicos, não deixou de ser atendido nesses locais. (SILVA, 1911, p. 1).
2
O cirurgião dentista Antonio Magno e Silva obteve o diploma Cirurgia Dentária em curso de odontologia anexo da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores da Escola Livre de Odontologia do Pará, criada em 1914, onde atuou como professor da cadeira de
Clínica Odontológica e diretor, entre os anos de 1916 a 1938. Para mais detalhes, ver a Dissertação de Mestrado de Lima (2016a).
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A iniciativa de tornar obrigatório o ensino especial da higiene bucal nas escolas, segundo
cirurgião dentista Magno e Silva, havia sido originada na Rússia em 1896, quando os dentistas
russos fizeram uma petição ao ministro do interior, para a organização de uma repartição dentária naquele país. Essa ideia, logo teria se tornado realidade e conseguido adeptos, se expandindo
para várias regiões como França, Alemanha, Japão, Inglaterra, Suécia, entre outros. Nesses países,
segundo Silva, onde por imposição liberal, de utilidade pública, esses ensinamentos haviam produzido grandes benefícios, dos quais menciona que somente em 1908 no México “os dentes de
meninos de 250 escolas” haviam sido examinados e todos precisavam de cuidados.
Existem pesquisas no âmbito da história da educação que demonstram que esse movimento
ao qual se refere o cirurgião dentista paraense, já havia chegado às regiões mais urbanizadas do Brasil
no início do século XX.
De acordo com Mott et al (2008. p. 106), o dentista Frederico Eyer, que foi “inspetor geral
da Associação Paulista de Assistência Dentária Escolar de São Paulo e grande defensor da prevenção
e do tratamento dos dentes das crianças”, atribui à cidade de São Paulo um papel pioneiro nesse
campo, no Brasil. Assinalam, ainda, que
Em 1908 a Associação Odontológica Paulista nomeou uma comissão para inspecionar
os dentes das crianças que frequentavam escolas públicas na capital. A partir da década
seguinte começaram a funcionar dispensários junto às escolas da capital paulista e do
interior do estado, destinados ao tratamento de dentes das crianças pobres e patrocinados por senhoras da elite (MOTT, et al, 2008, p. 106).
Magno e Silva assinala que em vários locais onde já havia sido instalado o programa, a maioria
das crianças carecia de tratamentos dentários e, conforme os exemplos, do mesmo modo se poderia
avaliar o que estaria ocorrendo nas escolas paraenses e o resultado prático que a sociedade teria no
dia em que fosse “também obedecida a praxe daquele ensino” nas escolas paraenses. Magno e Silva
afirma que apesar de ser uma nação nova, o Brasil, assim como as nações do velho mundo, estava
progredindo a passos vertiginosos, no que se refere às ciências. Dizia ele, ao apresentar sua proposta,
que a própria odontologia não era “a mesma exercida nos lendários tempos hipocráticos”, visto que
havia “evoluído sensivelmente”, sendo considerada parte integrante da medicina. Magno e Silva
demonstra em sua fala que do norte ao sul do país, “odontologistas distintos” (portanto dedicados e
qualificados) estavam empenhados “pela mesma teoria, pregando pela tribuna, pela imprensa, pela
palavra, o mesmo valor desses conceitos, que, talvez”, num futuro não muito distante pudessem ser
tomados como “objeto de consideração por parte dos poderes competentes”. Pois assim
(...) os governos dos Estados, empenhados como se acham na magnânima obra de remodelamento do ensino primário, prestariam inestimável benefício à infância se, ao lado
dos novos métodos de instrução, introduzidos nas escolas, colocassem uma assistência
de Clínica Odontológica. (SILVA, 1911, p. 1).
Evidente que essa teoria a qual se refere o cirurgião dentista paraense Magno e Silva, trata-se do movimento de surgimento de vários estabelecimentos, cuja finalidade seria proporcionar os
cuidados dentários das crianças nas escolas públicas, nesse período. Como por exemplo, a comissão
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para inspecionar os dentes das crianças da Associação Odontológica Paulista, criada em 1908 e o
Dispensário Dentário Escolar de São Paulo, criado em 1912 (MOTT, et al, 2008; MARTINO, et
al, 2010).
É importante ressaltar que a proposta de introdução da odontologia nas escolas era algo
muito mais abrangente que a tarefa de educar sobre a higiene bucal, que pudesse ser realizada pelos
professores. Não se tratava apenas de instruir as crianças sobre os cuidados bucais. Esse processo
deveria ser feito pelos profissionais da odontologia, pois “assim, facilmente seria zelada a saúde das
crianças e inculcada no seu cérebro, por profissionais competentes, a necessidade de cuidarem de
seus dentes”. (SILVA, 1911, p. 1). Cabe ressaltar, ainda, que esse era um momento em que a medicina (e a odontologia era considerada parte dela) estava voltada para a educação, demonstrando
através de iniciativas de assistência e proteção à infância, bem como a prescrição de práticas adequadas para o cuidado das crianças pelas famílias, desde a lactação, o crescimento, a educação e o
desenvolvimento mental (STEPHANOU, 2005, p, 148).
Magno e Silva analisa em tom de crítica a maneira como se constituía a prática dos professores no que se refere ao ensino dos princípios da higiene bucal. Segundo ele, as crianças geralmente
tratavam os dentes de maneira menosprezada, sobretudo, “nos colégios, onde, se não possuem
quem esteja incutindo no espírito a ideia de sua conservação, pouco se lhes dão que a cárie os vá
inutilizando” (SILVA, 1911, p. 1). Para ele, no que diz respeito aos cuidados da higiene bucais, seria
necessário que os cirurgiões dentistas interferissem no ensino nas escolas, pois somente mais tarde é
que as crianças iriam compreender o mal que a falta de cuidado ou do zelo adequado poderia causar. Assim, era um dever que consistiria aos dentistas de instruir as crianças, no sentido de mostrar
os sofrimentos que poderiam passar, prejudicando a saúde e privando-as até mesmo do tempo de
estudo.
Nesse momento, entre os motivos de preocupação com a saúde das crianças, a boca era considerada porta de entrada de várias doenças como, por exemplo, a tuberculose. Havia a crença na
relação direta entre a saúde dos dentes e a saúde física e mental das crianças, inclusive entre dentição,
delinquência e aproveitamento escolar, o que motivou dentistas e educadores a implantar serviços
e iniciar campanhas pela necessidade do uso de escovas e dentifrícios (MOTT, et al, 2008, p. 105).
Alinhado às noções de higiene da época e ao pensamento da “era bacteriológica”, Magno e
Silva (SILVA, 1911, p. 1) afirmava que “a boca, pelo estudo dos micro-organismos, é um perfeito
receptáculo de germens, que aí vivem esperando simplesmente uma oportunidade para, no primeiro ato de descuido, atacarem-nos como inimigos traiçoeiros”. Dessa forma, se a ciência estaria
emprestando armas para eles lutarem contra esses ataques, porque não utilizá-las, sendo que a
higiene dentária não teria outra finalidade senão a de “prevenir os dentes ou, de um modo mais
geral, a boca, contra as ações nocivas desses parasitas?”. Com isso, ele também destaca o caráter
da superioridade da ciência ao afirmar que “ela estabelece regras tão seguras e infalíveis que basta,
apenas, para isso, que saibamos conhecer a natureza dos agentes morbígenos e as circunstâncias que
concorrem como elementos poderosos, para favorecerem a sua ação no nosso organismo”. A natureza infalível da ciência tem mais uma demonstração quando relata o método pelo qual as doenças
são combatidas. “Assim, de posse desses elementos, ela destrói os focos de infecção em sua origem e
aniquila completamente o poder nocivo desses germens”.
Magno e Silva prossegue argumentando sobre a importância de se ter cuidados com a saúde
bucal. Elencando algumas funções dos órgãos relacionados à boca, ele considerava ser “inegável que
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uma boca sã, com os dentes bem conservados, seja para a face um belo ornamento; e ao contrário
disto é a impressão má que sempre nos causa uma boca desguarnecida de dentes”. Portanto, seria
mais que uma necessidade que eles, os cirurgiões dentistas, ensinassem às crianças a persistência
na conservação dos dentes. E enquanto não pudessem “possuir esses ensinamentos, professado nas
escolas”, que fossem eles “os dentistas os seus mestres, falando-lhes nas conferências públicas e
escrevendo-lhes pelas colunas dos jornais e pelas páginas dos livros” (SILVA, 1911, p. 1).
A ideia de utilizar exemplos de outros países, considerados modernos, para valorizar a prática odontológica que se pretendia instalar nas escolas públicas, continua, se estendendo também
a fala de outro cirurgião dentista paraense, Julio Muniz3. Essa proposta de se introduzir os ensinamentos de higiene bucal nas escolas também foi um assunto abordado em um artigo publicado no
jornal Estado do Pará, em 1915. O artigo intitulado Higiene Oral: A árvore de Natal da Sociedade
Dentária do Pará às criancinhas indigentes de Belém. Nesse artigo, ele afirma que na Europa e nos
Estados Unidos, onde a higiene pública dentária já havia se consolidado, os cirurgiões dentistas
estariam recebendo apoio das variadas instâncias dos Estados.
Não é de admirar, portanto, que a higiene pública dentária seja uma questão internacional. E, assim, na Europa e na América onde o resultado prático das clínicas dentárias já está reconhecido, os cirurgiões dentistas não trabalham sozinhos. O Governo, os
Departamentos dos Estados, e todas as organizações militares, escolares e hospitalares,
contribuem com a sua parte de trabalho e auxílio. (MUNIZ, 1915, p. 1).
Para corroborar suas afirmações, Muniz detalha os diversos países da Europa além dos da
América do Norte, onde os cirurgiões dentistas teriam dado inúmeras contribuições para os serviços
de dentários nas escolas e uma infinidade de estabelecimentos teria sido criada para atender a esses
serviços dentários. Essas medidas seriam fatos que já vinham ocorrendo em várias regiões consideradas desenvolvidas, principalmente na Europa.
Na Grã-Bretanha foram Firber e Cunningham quem introduziram a prática de examinar a boca da criança no ato da sua admissão escolar. Na Dinamarca e na Suécia,
Christensen, Forberg, Haderup e Lenhaldtson estabeleceram, também, o cuidado dentário escolar. Na Alemanha, o Dispensário de Estrasburgo, na Alsácia, sob a proficiente
direção do professor Ernest Jessen, é um modelo no gênero que serviu de exemplo para
os seus 213 estabelecimentos congêneres. A Suíça, a Noruega e a Rússia estabeleceram
clínicas semelhantes. Só Londres contém vinte Dispensários Dentários, e a América do
Norte apresenta o seu magnífico Dispensário Modelo: o Forsyth de Boston, onde mais
de 2.000.000 de crianças possuem o direito de ser examinadas e tratadas! (MUNIZ,
1915, p. 1).
Como se quisesse demonstrar a importância desses serviços para a sociedade paraense, o
cirurgião dentista Julio Muniz ressaltou que somente esse “cuidado internacional dentário nas escolas deve bastar para provar o seu resultado benéfico”.
3
Diplomou-se Cirurgião Dentista pela Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1915 foi convidado para assumir a cadeira de Prótese e Técnica
Odontológica na Escola Livre de Odontologia do Pará. Para mais detalhes, pesquisar os trabalhos de Lima (2016ª) e Lima et al (2016b).
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O artigo citado trata de uma festa de natal – inspirada em uma organizada pelo Dispensário
Dentário da cidade de Detroit nos Estados Unidos – onde seria montada uma árvore contendo,
ao invés de presentes, objetos de higiene oral, para cuidados bucais das crianças pobres de Belém.
Essa festa teria caráter humanitário, visto que a ideia era que ela fosse realizada pelos membros da
Sociedade Dentária do Pará4 em parceria com as damas da sociedade belemense.
O meu distinto colega e amigo, dr. Alberto Pereira, presidente da Dentária do Pará,
apresentou, anteontem, na sessão mensal ordinária dessa agremiação, a proposta, por
unanimidade aceita, de fazer-se, no próximo dia de Natal, uma festa semelhante à do
Dispensário Dentário de Detroit. Já foram fornecidas inúmeras listas a distintas senhoras e senhoritas no nosso “set”. Essa festa de caridade que prestará um real benefício às
pobres criancinhas de Belém, realizar-se-á na manhã de 25 de Dezembro vindouro, num
dos nossos mais conhecidos e benquistos grêmios esportivos. (MUNIZ, 1915, p. 1).
Embora o artigo escrito por Julio Muniz tenha como foco central a realização de uma festa
beneficente, em seu conteúdo aparecem vários discursos ligados à higiene, e especificamente à
higiene oral para as crianças, tendo como pano de fundo as escolas para a sua aplicação prática.
Aliado ao discurso da caridade, o discurso higienista, que teve presença marcante no início
do século XX, tanto no âmbito nacional como local, passa a ser defendido pelos cirurgiões dentistas
com uma serie de argumentos que buscam convencer a sociedade e o poder público da importância dessas práticas. Conforme assinalam Pykosz e Oliveira (2009), esses argumentos procuravam
garantir a necessidade do poder público investir na implantação de um conjunto de dispositivos, os
quais teriam como finalidade principal a educação dos corpos dos alunos das escolas públicas, via
inculcação de preceitos higiênicos.
A ideia de realizar um natal que contemplasse as crianças da classe pobre, além de exercitar
a prática da caridade, conforme o discurso de Muniz, também seria uma ótima oportunidade para
fazer propaganda da higiene oral. Ele afirma que “a árvore de Natal da Sociedade Dentária do Pará
significará o seu modesto concurso a essa solenização patriótica, e o seu primeiro passo em prol da
Propaganda de Higiene Oral, que se propôs fazer”. Para ele, “a base fundamental da higiene pública
bucal”, estaria “no cuidado que se deve ter com as crianças das Escolas”. Entre os argumentos dos
quais nos referimos anteriormente, Julio Muniz utiliza o recurso de autoridade para corroborar seu
pensamento, citando uma referência estrangeira, Ernst Jessen, cirurgião dentista alemão, ao afirmar
que: “salvar o primeiro molar permanente; prevenir o desfiguramento e o mau desenvolvimento dos
dentes e dos maxilares; manter em condições saudáveis a boca de uma criança é colocar um alicerce
útil na sua vida individual” (JESSEN apud MUNIZ, 1915, p. 1). Segundo ele, a tarefa das clínicas
dentárias escolares seria, portanto, eliminar os dentes estragados e cuidar dos saudáveis.
Assim como Magno e Silva, cirurgião dentista citado anteriormente, Julio Muniz se vale
de argumentos que se referem a outros países para convencer a sociedade paraense da importância
de suas práticas. Segundo Muniz, esse movimento de expansão dos cuidados dentários nas escolas,
mundo afora, seria suficiente para comprovar os benefícios deste empreendimento, cuja Sociedade
4
A partir de 1915, surgiram registros sobre a Sociedade Dentária do Pará no jornal Estado do Pará, informando sobre reuniões de seus membros.
Entretanto, ainda não foram encontrados outros registros sobre ela, como Estatutos, Atas das Reuniões, etc.
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Dentária do Pará, objetivava implantar nas escolas públicas da cidade de Belém, a exemplo do que
vinha ocorrendo em outros países, e até mesmo no Brasil, como é o exemplo de São Paulo.
Ele afirmava, ainda, que “o efeito moral de uma festa assim”, seria “incontestável”, pois provocaria “nas crianças, junto a um sentimento de prazer, uma reflexãozinha de que não se deve recear
o dentista”. Esse trecho da fala de Julio Muniz evidencia uma preocupação dos cirurgiões dentistas
da época, que diz respeito ao temor ao dentista por parte da população. É importante ressaltar que
mesmo depois da descoberta da anestesia, ocorrida por volta da primeira metade do século XIX
(REZENDE, 2009), o medo ainda persistiu (ou ainda persiste) por muito tempo e, isso era visto
como um fator negativo para a aceitação buscada pelos cirurgiões dentistas perante a sociedade
paraense (LIMA et al, 2016b). Embora, já houvesse métodos de extração e cuidados dentários utilizando a anestesia muito antes desse período pesquisado, em muitos lugares, a anestesia ainda não
havia sido introduzida, ou ainda era uma prática pouco comum.
Considerações Finais
Neste artigo tivemos como objetivo analisar alguns artigos de jornal, assinados por cirurgiões
dentistas, veiculados na imprensa paraense, no sentido de compreender como suas propostas sobre
a higiene se inscreveram nos discursos higienistas da época relacionados à educação. Conforme
apresentado no texto, pudemos observar que de modo geral, através das escritas dos dentistas,
houve propostas de intervenção direta na prática educacional nas escolas, cuja intenção era provocar
mudanças nos hábitos higiênicos dos escolares paraenses, no que diz respeito à higiene bucal.
Notamos, ainda, que os dentistas pretendiam que a introdução do ensino de higiene odontológica nas escolas não fossem apenas de caráter teórico, e sim que incluíssem um ensinamento
prático, que imprimisse a incorporação de hábitos e costumes de higiene por parte dos estudantes
em relação à saúde bucal, inclusive pela aceitação e requerimento, e a não rejeição ou temor do profissional da odontologia. Esses ensinamentos deveriam ser feitos pelo profissional especializado em
odontologia e não por professores e outros profissionais não especializados nesse campo de conhecimento. Assim, pretendiam introduzir na escola um espaço para a atuação profissional, requerendo
para isso, a criação de clínicas dentárias para o tratamento dentário dos alunos, associadas ao espaço
educacional.
No que se refere à abrangência da análise proposta neste artigo, consideramos de importância crucial para entendermos os processos pelos quais um campo de conhecimento é construído,
como uma área de saber como a higiene é inserida no campo educacional. Abordagens como esta
trazem um pouco da história das múltiplas relações que se inscrevem em determinados contextos,
na construção do conhecimento. Permite vislumbrar como os profissionais da saúde tiveram participação intensa, se constituindo, assim como seus saberes, peças importantes no cotidiano escolar.
Entretanto, para se ter uma compreensão mais abrangente de um processo complexo como a história da educação brasileira, ainda há muito a se pesquisar.
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