“Higienismo e Eugenia: discursos que não envelhecem”1
“Hygienism and Eugenics: Everlasting discourses”
Maria Lúcia Boarini (Docente da Universidade Estadual de Maringá)
Oswaldo H. Yamamoto (Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Endereço para correspondência:
Maria Lúcia Boarini, Universidade Estadual de Maringá/depto. de Psicologia.
Av. Colombo, 5790. CEP 87.020-920. Maringá/Paraná.
E- mail: mlboarini@wnet.com.br e mlboarini@uol.com.br
Telfax. 0 xx (44) 3261-4291
Resumo
Se já nos parece estranho atribuir o sucesso ou insucesso do indivíduo unicamente
às suas características pessoais ou biológicas (cor da pele, gênero etc.), estranheza
maior causa a constatação de que estes discursos são recorrentes há, no mínimo, um
século. E a medicalização de questões de ordem pedagógica e psicológica é um
exemplo disto, observado em nossos dias Pensar esta questão recuperando o eixo
naturalista dos movimentos higienistas e eugenistas presentes, oficialmente, nas
primeiras décadas do século, na sociedade brasileira, é o conteúdo deste artigo.
Palavras-chave: higienismo, eugenia, psicologia, determinismo biológico
Abstract
If it seems strange to attribute people's success or failure exclusively to their personal
or biological characteristics (color of the skin, gender etc.), much stranger is to realize
that these ideas are present in our society for at least a century. . The medicalization of
the subjects of pedagogic and psychological order it is an example of that, observed in
our
days.
The purpose of this paper is to analyze this question from the standpoint of the
naturalistic axle found in both hygienists and eugenicists movements in Brazil in the
1
Publicado em Psicologia Revista, vol. 13, n.1, SP. Educ. 2004. p. 59-72.
first decades of the century, in order to rethink these everlasting discourses protected
by the shield of science.
Key words: hygienism, eugenics, psychology, biological determinism
A natureza e a complexidade da temática aqui proposta impõem alguns limites
no seu tratamento: cada um dos termos abordados exigiria, pelo seu rico conteúdo,
uma cuidadosa análise. Com esta certeza, nosso propósito, neste estudo, é tão
somente levantar pontos para contribuir para o debate.
Conquanto temática virtualmente ausente no campo psicológico, a literatura
registra diversos estudos enfocando diferentes aspectos das idéias higienistas e
eugenistas, em outras áreas do conhecimento. A Antropologia, a Psiquiatria, a
Educação, a Educação Física, a Biologia são alguns exemplos.
Isto não significa, todavia, que a Psicologia e os psicólogos estejam isentos
deste discurso. Pelo contrário, em nosso entender é, sobretudo, nos limites tênues
entre Educação/Psicologia/Saúde que as idéias higienista e eugenista encontram seu
elixir da juventude. A título de ilustração, diríamos que é fato corriqueiro para o
psicólogo, sobretudo o que atua nos serviços de Saúde Mental da Saúde Pública,
receber uma grande demanda aos seus serviços oriunda da escola com a queixa de
“problemas de aprendizagem” ou “problemas de disciplina”. Detalhe interessante a
destacar é que, antes mesmo da avaliação do aluno pelo profissional da saúde ou até
antes do encaminhamento à saúde, a queixa do mau rendimento escolar já tem sua
explicação: “o aluno é assim porque tem muito piolho e o piolho dá anemia”; ou “são
crianças que nascem de ventre podre” ou “porque os pais são separados”, ou “porque
o pai bebe”, ou “porque mora na periferia” etc.. Justifica-se as dificuldades e
problemas de uma pessoa exclusivamente por suas características individuais ou
familiares. São explicações que mitificam o problema posto e, neste sentido, não se
sustentam diante de análises mais rigorosas. São encaminhamentos que, em sua
maioria, já estão historicamente comprovados como uma forma de deslocar o eixo da
preocupação do social para o individual.
Obviamente, estamos adotando como exemplo o que vem ocorrendo na área
pertinente à atuação do psicólogo, o que não significa exclusividade da área
educacional ou psicológica, como já assinalamos anteriormente Em outras palavras,
no caso da escola, atribuir ao aluno e à sua saúde (física ou psicológica) os problemas
de ordem institucional, é o que na literatura tem-se denominado como a
“medicalização”2 do espaço escolar 3 . A medicalização, a psicologização, a
sociologização são recursos cotidianamente adotados, em nossa sociedade, para
explicar problemas gerados em diferentes circunstâncias sociais 4 .Mas, se esta forma
de pensar e explicar as dificuldades não é prerrogativa da Educação ou da Psicologia,
também não é especifica do nosso tempo. No retorno à historia vamos constatar que
esta medicalização, salvo erro de generalização, é o cerne do pensamento higienista.
Já nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, as
explicações de caráter higienista e eugenista, também contribuíram para dar forma e
sustentação a diferentes formas de encaminhamentos das instituições brasileiras, no
caso,
circunscrevendo
nossa
discussão
às
questões
sociais
no
Brasil.
Encaminhamentos estes legitimados, também, pela Psicologia enquanto suporte
cientifico. E nestes termos, vale destacar, deve-se aos intelectuais adeptos do
higienismo a introdução, no Brasil, da profissão do psicólogo. A confirmação deste
fato é-nos oferecida pelo médico paulista Dr. Durval Marcondes:
Então, eu resolvi criar o serviço de higiene mental escolar
que ficou concretizado na Seção de Higiene Mental do
Serviço de Saúde Escolar de São Paulo. Criei então equipes
clinicas multi-disciplinares nas quais, alem do medico
psiquiatra, havia outros profissionais. Precisava também do
psicólogo. (...). Mas aqui não havia curso para formação
profissional de psicólogos. A Universidade de São Paulo
ignorava a existência deste profissional. (...). Eu indiquei
varias pessoas que, pelo seu trabalho anterior em outras
esferas profissionais, poderiam vir a estabelecer a nova
profissão aqui. Assim, nós criamos oficialmente os primeiros
cargos de psicólogos no Brasil. E só muito mais tarde é que a
Universidade acordou para o assunto (Sagawa, 1992, p.92).
2
. “O conceito de medicalização é de autoria de Ivan Illich (1975), que o usou para descrever a invasão
pela medicina de um número cada vez maior de áreas da vida individual: cada etapa da vida humana –
desde os recém-nascidos, as crianças, as mu lheres grávidas, até os que estão no climatério e os que
chegaram à velhice – é hoje objeto de cuidados médicos específicos, independentemente de haver ou
não sintomas mórbidos...” (Singer, Campos, & Oliveira, 1978, p. 62).
3
4
Neste sentido sugerimos, Boarini (1993) e Moisés & Collares (1992).
Dentre os autores que abordam esta questão, sugerimos Patto (1985) e Di Loreto (1997).
O que era o movimento higienista e eugenista
Seria pretensão da nossa parte definir tais movimentos no limitado espaço de
um artigo. Nosso propósito, aqui, é, apenas recuperar algumas informações sobre o
rico conteúdo e a significativa influência
que estes movimentos tiveram na
construção do pensamento da sociedade brasileira nos primórdios da sua
industrialização. Idéias que, sob um olhar atento, revelam-se presentes até os nossos
dias, embora com outras roupagens. . Idéias que, a nosso juízo, ainda não
envelheceram.
O movimento higienista e eugenista não se caracterizavam como movimentos
populares na verdadeira acepção da palavra. Isto é, não foram gerados no seio da
população em geral. Tratava-se de um pequeno grupo, em termos numéricos,
formado por médicos em sua maioria e, a considerar os padrões da época, com
grandes eruditos dentre eles.
Institucionalizaram-se, no Brasil, através da Sociedade Eugênica de São
Paulo, fundada pelo médico Renato Kehl, em 1917, sob o patrocínio do então diretor
da Faculdade de Medicina de São Paulo, o prof. Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho.
Diga-se de passagem, essa foi a primeira sociedade do gênero criada na América do
Sul e “sua criação despertou grande interesse não só no Brasil, como na América
Latina e na Europa” (Kehl, 1935, p. 27). Em 1923, foi fundada a Sociedade Brasileira
de Higiene, sendo seus membros, em sua maioria, pertencentes ao departamento de
Saúde Pública e a outras instituições da área, de vários Estados da Federação. Papel
de grande projeção também teve a Liga Brasileira de Higiene Mental (1923-1947),
fundada em 1923, no Estado do Rio de Janeiro, pelo psiquiatra Gustavo Riedel, após
ter ganhado o Grande Prêmio da Exposição Internacional de Higiene de Estrasburgo,
na França. Estas agremiações tinham suas delegações em vários estados brasileiros e
seus integrantes, em geral, pertenciam a várias destas sociedades.
Um olhar atento à duração temporal destas associações5 indicará que existiram
durante um tempo relativamente curto e com algumas dificuldades financeiras para se
manter. Entretanto, este grupo de intelectuais corporificou as idéias dominantes na
sociedade brasileira no final do século XIX e início do século XX.
4.
A não ser no caso da Sociedade Eugênica de São Paulo, o encerramento das demais
associações foram estimadas a partir do encerramento de suas publicações.
Higienizar a sociedade, eugenizar a raça
Refletir sobre o higienismo e a eugenia nas primeiras décadas do século XX,
no Brasil, exige alguns cuidados. Primeiro, ao ler o passado, podem ocorrer
distorções na compreensão se o fizermos com a lente e os recursos do presente. Sem
este cuidado, as limitações históricas da época podem ser consideradas, à primeira
vista, como equívocos de seus autores. Há, ainda, a considerar que no período em
referência, as idéias higienistas e eugenistas sobrepuseram-se em grande medida, o
que dificulta analisá- las em separado. Outrossim, vale assinalar que estes movimentos
não eram dominantes frente aos demais existentes no país e mais: ouviam-se vozes
divergentes no interior dos próprios movimentos em tela 6 .
Diante disso, discorreremos, ainda que brevemente, sobre o que representaram
estes movimentos na sociedade brasileira, buscando nas suas origens e em alguns de
seus propósitos, a diferença que as caracteriza. E, neste sentido, a definição oferecida
por Renato Kehl (1935), um dos maiores propagandistas da eugenia, no Brasil, nas
décadas de vinte e trinta pode nos auxiliar nesta necessária discriminação entre o
higienismo e a eugenia:
(...) a higiene, por exemplo, procura melhorar as condições do meio e
as individuais, para tornar os homens em melhor estado físico, a
eugenia, intermediária entre a higiene social e a medicina pratica,
favorecendo os fatores sociais de tendência seletiva, se esforça pelo
constante e progressivo multiplicar de indivíduos “bem dotados” ou
eugenizados (p. 46) (grifo nosso).
O higienismo
Pode-se dizer que o higienismo, como uma forma de pensar, é um
desdobramento da “medicina social” 7 . A urbanização sem planejamento - aqui
estamos nos referindo sobretudo ao Rio de Janeiro e São Paulo - decorrente da
industrialização emergente que acontecia no Brasil no final do século XIX e início do
século XX, traz como conseqüência problemas de toda ordem, entre os quais
destacam-se os de natureza médica: as condições sanitárias ameaçadoras e os surtos
6
Registrem-se significativas exceções, como, por exemplo, Ulisses Pernambucano, João Machado,
Varela Santiago e Manoel Bonfim, que eram favoráveis às idéias higienistas, mas repudiavam os
preceitos autoritários do movimento eugênico.
7
Cuidadoso estudo sobre a temática higiene/medicina social, o leitor encontrará em Machado,
Loureiro, Luz, & Muricy (1978) e Rosen (1994).
epidêmicos 8 . Morria-se de uma ampla variedade de doenças, como varíola, febre
amarela, malária, tifo, tuberculose, lepra, disseminadas mais facilmente pela
concentração urbana 9 .
Esta situação inquietava as classes dirigentes que aí visualizavam
possibilidades de todo tipo de doença e desordem social. Esse fato, visto sob a lente
do senso comum, deixa a impressão que é a cidade a causa das doenças e, nesse
sentido, a presença do médico passa a ser uma exigência urbana. Daí, a medicina
social ser caracterizada como essencialmente urbana.
Há aqui, no mínimo, dois pontos a considerar. Primeiro, as doenças
contagiosas desconhecem fronteiras. Assim, os problemas do interior diferiam-se
apenas quanto à quantidade de pessoas atingidas. Outrossim, claro está que sem as
descobertas e o auxílio da Bacteriologia e Microbiologia, que ocorreram nas últimas
décadas do século XIX, as epidemias estavam longe de serem resolvidas e, nesse
sentido, a higiene pública estava, igualmente, longe de estar sob o domínio médico.
Entretanto, nessa época, já é possível observar nos discursos e na prática a
“medicalização da vida social”. Mas, com o avanço das descobertas científicas, a
Medicina ganha legitimidade e seu discurso higienista em tudo intervém, penetrando
nos mais diferentes segmentos da sociedade brasileira: na família, na escola, no
quartel, no prostíbulo etc. (Machado, Loureiro, Luz & Muricy, 1978).
Estas instituições deveriam ser “higienizadas” e, através delas, o corpo. A
infância - e a sua entrada na escola - era apontada como o momento ideal para a
criação de hábitos que possibilitariam a “higienização” dos indivíduos. Partindo desta
perspectiva, entre outros encaminhamentos, a organização do Terceiro Congresso
Brasileiro de Higiene, realizado em São Paulo, em 1926, contempla a temática
Formação de hábitos sadios nas creanças: estudo psychologico, pedagógico e
hygienico 10 , cuja preocupação, como o próprio nome revela, era a infância, a
8
Merhy (1987) lembra as fases evolutivas na Saúde Pública delineadas por Mascarenhas em seu
estudo sobre o Estado de São Paulo: (a) período de saneamento empírico do meio ambiente (18401890); (b) período de controle científico de doenças infecto-contagiosas (aplicação da Bacteriologia)
(1890-1910); período moderno (1910 em diante).
9
De acordo com Caio Prado Jr. (conforme citado por Merhy, 1887), “A capital do Estado de São
Paulo, de 239.000 habitantes em 1890, passa a 889.000 em 1930. Ainda que houvesse predomínio
econômico do setor agrário, a taxa de urbanização da referida população já era bem significativa em
1930, quando as cidades continham em torno de 25% da população em geral” (p. 66).
10
Sob esta temática, que recebeu a numeração XII, apresentaram suas reflexões e propostas o Prof.
Olinto de Oliveira e os médicos: Dr. Waldomiro de Oliveira, Dr. Carlos Sá, Dr. A..Almeida Junior, Dr.
César Leal Ferreira, Dr. W. Radecki, Dr. Colombo Spinola, Dr. Carneiro Leão, Dr. Faria Góes, Dr.
educação, a higiene do indivíduo e “a utilidade dos casamentos eugênicos”
(Moncorvo, 1926, p. 907).
Nesta perspectiva, um dos participantes deste evento, o médico Carlos Sá,
sugeriu um verso que deveria ser recitado diariamente por todas as crianças como
uma forma de se manterem saudáveis. O verso era o seguinte:
Hoje escovei os dentes
Hoje tomei banho
Hoje fui à latrina e depois lavei as mãos com sabão
Hontem me deitei cedo e dormi com janellas abertas
De hontem e para hoje já bebi mais de 4 copos d’agua
Hontem comi ervas ou frutas, e bebi leite
Hontem mastiguei devagar tudo quanto comi
Hontem e hoje andei sempre limpo
Hontem e hoje não tive medo
Hontem e hoje não menti.
Há que se reconhecer que, diante da situação de calamidade pública que vivia
a saúde da população em geral, a higiene tanto individual quanto coletiva não era
apenas uma necessidade rotineira mas um imperativo de ordem social. É necessário
convir, porém, que a simples memorização de versos não tem o poder de favorecer a
saúde, fato reconhecido pelo próprio Carlos Sá (1926) ao afirmar:
Para formação de hábitos sadios não basta, porém, possuir
uma caderneta, em que se inscrevam os actos a repetir
diariamente: é indispensável collocar ao alcance das
creanças os meios de executar aquelles actos. Resta-me
insistir para que se confie às professoras a missão de incutir
hábitos sadios nas creanças (p. 816).
Mas, ainda assim, fica claro nas palavras de Sá que a preservação da saúde é
entendida, sobretudo, como uma questão individual, e que pode ser conquistada
através dos ensinamentos da educação higiênica e eugênica, dos pelotões de saúde,
das campanhas antialcoolismo, cujo fórum de realização privilegiado era a escola. E,
Ulysses Pernambuco, Dr. Arnaldo de Moraes, Dr. A. Moncorvo Filho, Dr. Luiz Hermany Filho, Dr.
nessa direção, é apoiado pelos demais higienistas, dentre os quais Spinola (1926): “O
lemma health first in the school tem conseguido nos Estados Unidos uma diffusão
digna da verdade que encerra. E não há melhor terreno e mais propicia opportunidade
para implantar estes hábitos de viver sadiamente que o ambiente escolar” (p. 861).
Ora, sem polemizar esta tarefa redentora que se atribuía à escola, o que não
se levava em conta era o grande número de crianças que não a freqüentavam, visto
que, em tenra idade, já tinha a tarefa de contribuir com o parco orçamento familiar11 .
Além disso, é necessário reconhecer que, em determinadas situações precárias de
vida, não basta o conhecimento para alterá- las.
Enfim, o que estamos tentando pontuar é que se as descobertas científicas no
que tange à Bacteriologia e a Microbiologia ofereceram caminhos para combater as
várias epidemias que dizimavam a população, dentre estes caminhos a necessidade da
higiene para prevenir os perigos do contágio de determinadas doenças, estas me smas
descobertas foram absorvidas para legitimar a idéia que atribui ao indivíduo a total
responsabilidade pela sua saúde. Ao considerar, apressadamente, que a maior
incidência de doenças e mortalidade infantil ocorria na classe trabalhadora pela falta
de cuidados pessoais, ou que esta situação era devida à ignorância desta população,
os higienistas negavam, praticamente, a diferença de recursos necessários à
preservação da saúde em decorrência da diferença entre classes sociais. E assim
entendendo, o melho r encaminhamento era propor ao Estado educar esta população.
E mais que isso, era necessário intervir em uniões que poderiam transmitir doenças,
como se acreditava no caso da sífilis, tuberculose, doença mental, alcoolismo dentre
outras. E aqui, adentramos no terreno da eugenia que, em determinado momento
histórico, articula-se perfeitamente com os propósitos do higienismo.
A eugenia
(...) é sinônimo de eugenesia e eugênica. Tem por fim a
melhoria progressiva da espécie, pelo fomento da ‘boa
Eurico Branco Ribeiro e Dr. J. P. Fontenelle.
11
“O Departamento Estadual do Trabalho observa que, no ano de 1912, é bastante expressivo o
aproveitamento de mão-de-obra menor na indústria têxtil do Estado de São Paulo. Nos
estabelecimentos então visitados na capital – aproximadamente 22 - , os menores representam pouco
mais de 30% do total de operários absorvidos pelo setor, sendo empregados sobretudo na fiação e na
tecelagem, funções nas quais constituem respectivamente, 50% e 30% da mão-de-obra. Em 1919, o
mesmo departamento constata, ainda com relação a esse setor, que os menores correspondem a cerca
de 40% do total da mão-de-obra empregada nos 19 estabelecimentos que visita. Com relação aos
demais setores, a mão-de-obra menor corresponde, nos 109 estabelecimentos que o departamento
geração’, pela ‘procriação hígida’ consistindo, em suma, no
enobrecimento físico e mental do homem. (...)’ como ciência,
tem por objeto a investigação da herança biológica; como
arte, tem por escopo a bôa procriação.” (Kehl, 1935, p. 15)
Construída epistemologicamente sobre o terreno das ciências naturais12 ,
apoiando suas bases nos estudos de Darwin (mais precisamente, nos desdobramentos
do darwinismo social), nas descobertas da Biologia e aqui estamos nos referindo
mais especificamente as revolucionárias contribuições de Gregor Mendel e sua nova
concepção de hereditariedade e, principalmente, na Biometria de Francis Galton13 , a
Eugenia tinha como meta a melhoria e a regeneração racial ou a “higiene da semente
germinal”. Tal objetivo justificava-se pela crescente degradação dos povos em geral,
da qual o Brasil não estava isento. Assim, para Kehl (1935), a pretensão da Eugenia
era “regenerar os indivíduos para melhorar a sociedade”. Sob esta ótica, o controle
sobre a constituição biológica do indivíduo através do controle de sua reprodução é a
marca registrada das propostas eugenistas. Em seus programas contemplava-se a
elucidação e organização da “sociedade humana contra os fatores de degeneração,
controlando os casamentos, evitando o matrimônio entre tarados e degenerados,
vulgarizando e aplicando os conhecimentos necessários à proteção individual e
racial” (p. 17). O descaso a este tipo de controle era considerado “impatriótico”, visto
que “os anormaes não têm direito a geração de typos anormaes” (Monteleone, s/d:, p.
21).
O encontro entre a eugenia e o higienismo
Embora alicerçados em circunstâncias históricas e proposições teóricas, de
certa forma, diferentes os movimentos eugenistas
e
higienistas aproximam-se
através de suas preocupações e determinação de tornar o Brasil uma grande nação.
Como exemplo, temos a Liga Brasileira de Higiene Mental que, após 1928, reafirma
seu estatuto para viabilizar, em outros termos, seus objetivos14 , ou seja, o alvo a partir
arrola em seu inquérito, a pouco mais de 15% do total de trabalhadores empregados na capital”
(Moura, 1995, p. 114).
12
De acordo com Kehl (1935) “para estudar a eugenia é imprescindível ter noções de anatomia,
histologia, fisiologia e embriologia. Desconhecendo os fenômenos da reprodução, da hereditariedade,
bem assim as doutrinas de Darwin, de Weismann, de Mendel, etc.” (p. 67).
13
Há registros da eugenia, enquanto uma proposta de intervenção social, nos idos da antiga Grécia,
mas o termo eugenia sob a égide da ciência aparece com Francis Galton, em 1865.
14
De acordo com os estatutos da LBHM, seus objetivos eram: “a) prevenção das doenças nervosas e
mentaes pela observância dos princípios da hygiene geral e especial do systema nervoso; b) proteção e
de então passa a ser o indivíduo normal e não o doente, passa a ser a prevenção e não
a cura.
Assumem, desta forma, o projeto eugênico (Costa, 1989), intensificando a
intervenção nos meios escolar, profissional e social em geral, utilizando todos os
recursos disponíveis na época, tais como palestras radiofônicas e nas escolas, artigos
na imprensa comum e especializada (Gazeta Médica, Folha Médica), campanhas,
publicação de uma revista própria (Archivos Brasileiros de Higiene Mental). Criam
Laboratórios de Psicologia 15 . Neste ponto, é necessário lembrar o Laboratorio de
Psicologia Experimental instalado em 1906 no Pedagogium16 , que esteve durante 12
anos sob a direção do ilustre médico Manoel Bonfim. No entender de Penna (1992,
p.57) este foi, provavelmente, o primeiro Laboratório de Psicologia do Brasil. Assim,
estudam, adotam, divulgam e incentivam a psicometria, contribuindo, desta forma,
para o crescimento vertiginoso desta técnica. Uma rápida consulta aos Archivos
Brasileiros de Higiene Mental confirma a importância que os higienistas atribuíam a
psicometria. São paginas e paginas expondo inúmeros estudos de validação de testes
psicológicos de caráter quantitativo. Inauguram a Clínica de Euphrenia que, além da
função terapêutica, “têm [tinha] a funcção prophylactica e, mais que isto, a de
edificação e sublimação dos caracteres que vão integrar a personalidade das
crianças.” (Liga Brasileira de Hygiene Mental [LBHM], 1933, p. 34). Recorrendo
desta forma às noções de higiene psíquica e racial, apoiando-se em conceitos das
ciências naturais e utilizando-se dos métodos das ciências exatas, os higienistas
propunham-se a explicar e prevenir a incidência das doenças mentais e tantos outros
problemas. É deste período e foi através de alguns higienistas, também, que a
psicanálise fez suas primeiras incursões no Brasil. E a prova disto é a XII Secção da
Liga Brasileira de Higiene Mental, denominada PSYCHOLOGIA APPLICADA E
PSYCHANALYSE. É discutível a psicanálise aí realizada se considerarmos alguns
dos estudos aí levados a efeito como, por exemplo, as “Pesquisas sobre a memória de
amparo no meio social aos egressos dos manicômios e aos deficientes mentaes passiveis de internação;
melhoria progressiva dos meios de assistir e tratar os doentes nervosos e mentaes em asylos publicos,
particulares ou fora delles; realização de um programa de Hygiene Mental e Eugenetica no domínio
das actividades individual, escolar, profissional e social” (Brasil, 1923). Em 1929, reafirmam a idéia
de “crescer e fructificar as ideas de hygiene mental e eugenia, que consubstanciavam o programma
d’aquella instituição” (Brasil, 1929).
15
Esta assertiva é válida na região sudeste, muito especialmente em São Paulo. A criação de
laboratórios de Psicologia não segue necessariamente esse padrão em outras regiões, como por
exemplo, o nordeste.
fixação” realizada por Lopes (1930, p. 277). Mas esta é uma discussão para um
próximo artigo.
Enfim, o fortalecimento da articulação entre estes dois movimentos toma
tamanha proporção que, em determinado momento, a eugenia passa a ser entendida
como parte do higienismo, como pode se constatar no discurso de Lopes (1930), cuja
temática era o combate ao alcoolismo, durante o II Congresso Brasileiro de Higiene
ocorrido em 1924: “eu creio firmemente [que] haveremos de ser conduzidos a esse
ideal magnífico pela mão da higiene e da eugenia (...). Veja-se que quadro elegeu a
hygiene mental – da qual é a eugenia um capítulo...” (p. 93) (grifo nosso).
Encaminhando conclusões
O retorno às últimas décadas do século XIX indica-nos que o conhecimento
produzido na área da Genética, da Microbiologia, da Bacteriologia, da Fisiologia, as
teses evolucionistas de Darwin, enfim, os avanços das ciências naturais, de fato, são
reconhecidamente revolucionários. Ao provarem que todos os seres vivos sobre a
Terra, racionais ou irracionais, sofrem um processo contínuo de transformação,
opõem-se frontalmente às idéias até então predominantes, da predestinação divina.
Desmoronam as idéias que durante séculos sustentaram o sistema feudal de produção.
Mas, se por um lado, estas descobertas possibilitaram um novo olhar sobre o
homem e sua relação com a natureza e com a sociedade, por outro lado, quando
apropriadas pelas correntes científicas e políticas conservadoras, elas também
favoreceram distorções conceituais. Com isto, estamos querendo dizer que, muitas
explicações sobre as dificuldades e diversidade humanas partiram de pressupostos
orgânico-biológicos, agora legitimados pela chancela da ciência. E nessa linha de
raciocínio e atualmente com o beneficio do tempo transcorrido observa-se que muitas
orientações e encaminhamentos para os problemas, geralmente de caráter social,
oferecidos pelos higienistas foram justificados pelas dificuldades de adaptação do
indivíduo, na luta pela vida, advindas da sua origem intelectual, natural e hereditária.
Os estudos publicados revelam que partia-se do princípio que há uma essência
humana definida a priori, que pode se deteriorar ou se desenvolver dependendo de
sua predisposição hereditária e das influências do meio. Desta forma, cada qual faz o
seu percurso particular pela vida, distribuindo-se pela sociedade de acordo com sua
16
O Pedagogium foi criado em 1890 e tinha como objetivo “ser o centro propulsor das reformas e
maior ou menor competência para sobreviver à seleção natural. . E neste percurso o
instrumental da Psicologia foi de grande valia no esquadrinhamento e classificação
dos indivíduos. Ignorava-se, assim, o legado sócio- histórica. É necessário reconhecer
que nem sempre tais encaminhamentos resultavam em satisfação como pode se
constatar pelo depoimento do medico higienista Manoel Bonfim, publicado”, em
1923, em seu livro “Pensar e Dizer:
(...) durante 12 anos tive à minha disposição um laboratório
de
Psicologia;
nas
pastas,
ainda
estão
acumuladas
anotações, traçados, fileiras de cifras ... e nunca tive coragem
para organizar uma parte qualquer desses dados e de os
publicar; porque nunca obtive uma elucidação satisfatória
(...) Esses resultados mostrarão bem quanto é difícil o
concluir lucidamente em face de tais experimentações”
(Bonfim, 1923, p.27 apud Penna, 1992, p. 57).
Fica claro com este e outros depoimentos de Bonfim e de outros higienistas, que
não é o caso aqui relacioná- los, que não era hegemônico o pensar a sociedade com a
lente teórica das ciências naturais. Inquietava- lhes os problemas de ordem social e as
explicações que eram oferecidas para resolve- los. Inquietações que parecem não
encontrar eco em nossa época, explicações que apesar de superadas não apresentam
nenhum sinal de envelhecimento quando continuamos “medicalizando” problemas de
ordem pedagógica ou psicológica, por exemplo.
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