Módulo 4 – O homem como ser social
Em pleno outono brotou a primavera! Acostumados a assistir pela
televisão o levante de povos contra governos autoritários, policiais enfileirados
impedindo o avanço de colunas de populares e o estouro de bombas de efeito
“moral” – muitas vezes físico, também -, eis que em 2012 os brasileiros
ofereceram as mesmas imagens ao mundo. O grande historiador Eric
Hobsbawm afirmou que a história é feita mais de coisas inesperadas que
esperadas. Há pouco tempo, se alguém fosse perguntado sobre a possibilidade
de acontecer o que temos acompanhado nas ruas das capitais do país, a
resposta viria carregada de ceticismo, quando não com a velha afirmação de
que o brasileiro é passivo e acomodado.
É raro que os acontecimentos acompanhem nossos prognósticos.
Nesse sentido, quem pensaria que o aumento da tarifa dos transportes
públicos em São Paulo em R$ 0,20 desencadearia tamanha agitação? Este, na
verdade, foi apenas a ponta de um iceberg mais complexo que carece de
análise. Não se trata, também, de rebeldia sem causa, como afirmou um
conhecido comentarista de jornal televisivo. Aliás, houve várias causas
presentes em todo esse movimento. Há conceitos, também, que precisam ser
mais bem conhecidos. Aqui, me detenho em dois: democracia e política. Para
tanto, temos de recorrer à Grécia, não a contemporânea, vítima da crise
econômica e também acometida por protestos diários devido ao desemprego, à
miséria e à injustiça, esta, sentida pela ajuda que é oferecida a banqueiros em
detrimento de aposentados, estudantes e trabalhadores, abandonados e
convidados a pagar mais e maiores impostos. Refiro-me à Grécia Antiga.
Democracia é a junção de dois vocábulos – demos e kratos -, que
significam literalmente “governo do povo”. Aqui temos outro conceito
agregado: o que nos diz a palavra “povo”? Ao contrário do que entendemos
hoje, essa palavra representava uma parcela pequena da população: homens,
nascidos na cidade-Estado e livres. Em sua maioria, estes homens nativos e
livres eram também proprietários de terras e de escravos. Em Atenas, por
exemplo, isso representava cerca de 10% da população. Política, por sua vez,
deriva de pólis, que era a cidade-Estado. Política são os assuntos próprios da
cidade-Estado e político todo aquele que se envolve nesses assuntos. Pólis é a
palavra grega para cidade, enquanto que os romanos empregavam em latim a
palavra civitas, de onde deriva cidadão.
Então, vemos a proximidade das palavras “política”, derivada de
pólis e cidadão ou cidadania, derivadas de civitas. Nesse sentido, ser cidadão é
também envolver-se nos assuntos políticos de sua cidade, porém, dado que
nosso país não é uma cidade-Estado, como na Grécia antiga, a cidadania se
liga aos temas mais candentes do país. Ocorre que em nossa democracia
ocidental e contemporânea, perdeu-se uma característica fundamental
existente nesse regime na Antiguidade: antes, era direta, hoje, representativa.
Assim, muito mais do que R$ 0,20 na tarifa do transporte público, o pano de
fundo das manifestações foi exatamente o resgate da cidadania, da política e
da democracia como antes, uma vez que nossos representantes não têm
cumprido sequer de longe com os compromissos que assumem e com as
demandas requeridas por grandes contingentes da população.
No momento em que escrevo este texto, a Presidente da
República acena para a necessidade de se fazer uma reforma política. Discutese, por enquanto, se esta viria por meio de plebiscito, de convocação de
Assembleia Constituinte ou por ação dos três poderes. Creio que essa reforma
contribuiria para aperfeiçoar os mecanismos de participação por que reclamam
os brasileiros, além de criar entraves – não impedi-los – aos desmandos e aos
favorecimentos característicos de muitos membros do Judiciário, do Legislativo
e do Executivo nas três esferas (municipal, estadual e federal). Não deve ser
tomada, no entanto, como panaceia que resolveria todos os males que nos
acometem. Nesse sentido, a continuidade das manifestações é fundamental
para que as conquistas possam seguir além da redução das tarifas. E seguem!
Acaba de ser rejeitada e arquivada a Proposta de Emenda Constitucional
número 37 (PEC 37), também conhecida como “PEC da Impunidade”. O
Congresso Nacional também retirou impostos do setor de transportes, no
intuito de contribuir para a manutenção das tarifas, em alguns casos, e em sua
diminuição, em outros. Há também neste momento, no Legislativo Federal, a
discussão para tornar a corrupção crime hediondo.
Isso tudo confirma cientificamente o que o cientista social da
Universidade de Binghamton, em Nova Iorque, James Petras, afirma há tempo:
sempre que contou apenas com as instituições para ter suas demandas
atendidas, a classe trabalhadora colecionou derrotas. É preciso ditar-lhes a
agenda, ou, pelo menos, influenciar a sua confecção e consecução. Por meio
do voto, apenas, isso não se efetiva. Daí a importância das redes sociais e das
ruas.
Hoje, as ferramentas contemporâneas incentivam a ação política
dos cidadãos, e, com isso, qualificam nossa democracia, à medida que
influenciam o debate em torno da formulação, da implementação, do
acompanhamento e da avaliação das políticas públicas, além de forjarem uma
política para além dos muros das instituições – parlamento, palácios etc. As
Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC´s) ampliam esses espaços
institucionais
de
debate
e
os
canais
de
expressão,
ajudando
no
desenvolvimento de outra forma de sociabilidade.
No começo dos anos 1990, o Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN) utilizou as redes sociais da época para angariar mais apoio a
suas causas, ganhando visibilidade mundial. Na Espanha, em 2004, a tentativa
de reeleição desesperada pelo ultradireitista José Maria Aznar, imputando a
responsabilidade pelos ataques à Estação Atocha ao partido adversário, foi
vencida graças ao uso das redes, que permitiram desmascarar a tempo a ação
golpista e eleger o opositor ao seu governo. Em 2008, Barack Obama fez uso
das mesmas redes e conseguiu tornar-se o primeiro presidente negro na
história dos EUA. As mesmas redes estão presentes agora, desvendando a
vigilância que a Casa Branca exerce sobre os cidadãos, por meio de gravações
de telefonemas e acompanhamento de mensagens eletrônicas. Com esses
canais de comunicação, os brasileiros conseguem se reunir rapidamente em
grandes manifestações e colocar em xeque a modorrenta rotina de eleger seus
representantes a cada quatro anos e aguardar o próximo período para
manifestar sua avaliação.
Uma característica dos atuais movimentos é que não possuem
direção. Não há um partido político, de direita ou esquerda, na condução dos
manifestantes. Isso também significa que não há um horizonte para onde se
encaminhar. Em meio a isso, oportunistas tentam tirar proveito e suscitar uma
liderança. Sabiamente, isso tem sido refutado em cada encontro público de
manifestantes. Como Eça de Queirós, escritor português do século XIX, as
faixas poderiam comunicar: “Não sabemos para onde ir; sabemos, no entanto,
onde não devemos ficar”. Para quem preferir o rock, ao invés da literatura,
fique com a origem do nome da famosa banda inglesa Rolling Stones, que o
explicou: “pedras que rolam não criam musgo”.
O inverno é marcado pela queda das folhas mortas, permitindo
que as árvores se renovem na estação seguinte. Temos muitas folhas mortas e
moribundas no país que precisam dar lugar ao novo. O novo não significa,
necessariamente, o desconhecido, apenas o novo, o que ainda não tomou
lugar. Não significa, também, necessariamente e exclusivamente pessoas e/ou
governos. Há de se atentar para o Estado. É preciso, no entanto, olhar para
além dele, refletindo sobre suas origens, estruturas, interesses e vínculos.
O que a primavera nos reserva? Se buscarmos no passado a
renovação, teremos apenas mais do mesmo. Recorrendo a uma formulação
clássica, transformaremos o Brasil, e, talvez o mundo, “recolhendo a poesia do
próprio futuro”.
O que escrevi acima pode nos auxiliar a entender o que tem
tomado conta das ruas do país nos últimos meses. Pode também nos introduzir
ao tema deste módulo, que é guardado para dimensão social do homem.
Somos seres sociais, o que significa que somente em sociedade, em conjunto
com o outro, nos completamos humanamente. Há também, em sociedade, a
exploração de uns sobre outros. Este foi o tema de alguns autores. Em
sociedade, vivemos também com a organização e a centralização de uma
forma de poder, que é o Estado. Este é outro tema que tem sido estudado, no
âmbito da filosofia e das ciências humanas, em geral. Neste módulo, vamos
refletir um pouco mais sobre estes conceitos a partir de autores clássicos.
Um autor – entre tantos – que refletiu sobre esses temas foi JeanJacques Rousseau. Nascido em 1712 em Genebra e falecido em 1778 em
paris, viveu boa parte de sua vida na França, e, em 1753, escreveu uma obra
cujo título é bastante sugestivo: “Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens”. O título já nos revela algo importante: se há
uma origem, a desigualdade não é natural, não é dada pelo Criador. Para ele,
temos dois tipos de desigualdade: a natural e a política. A primeira é física, ou
seja, a diferença natural entre as pessoas no que se refere à altura, saúde,
disposição física etc. A segunda, no entanto, é provocada pelas relações
sociais, tendo sua origem na propriedade.
Para Rousseau, antes de viver em sociedade, o homem viveu
num estado de natureza, onde todos eram livres e sem regras, porém:
O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e
encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador
da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores
não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou
tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de
escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de
todos, e a terra de ninguém !". Parece, porém, que as coisas já tinham chegado
ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa ideia de
propriedade, dependendo muito de ideias anteriores que só puderam nascer
sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso
fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e
aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo do estado
de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais alto, e tratemos de reunir,
sob um só ponto-de-vista, essa lenta sucessão de acontecimentos e de
conhecimentos na sua ordem mais natural.
Para Rousseau, a desigualdade foi, a partir daí, “progredindo”,
tendo sido o primeiro marco desse “progresso” o estabelecimento da lei e do
direito de propriedade, havendo uma primeira distinção entre os homens: ricos
e pobres. O segundo é caracterizado pela instituição da magistratura, e aqui, a
existência de poderosos e fracos; por fim, o último grau da desigualdade é
marcado pela transformação do poder legítimo em poder arbitrário, havendo
senhores e escravos. Neste último estágio, o círculo se fecha, e um novo
estado de natureza aparece, porém, não como fruto da pureza (como no
estado de natureza original), mas sim da corrupção. Assim, todos os súditos
ficam em estado de natureza em relação à vontade do senhor.
No início, a forma original de governo não teria sido o despotismo,
pois o homem, segundo Rousseau, não tende à servidão, contrariando os
filósofos políticos. Inicialmente, a sociedade possuía apenas algumas
convenções gerais que todos se comprometiam a observar, e a comunidade se
responsabilizava por cada um dos seus membros. Foi necessário que a lei
fosse burlada e que a desordem se multiplicasse para que se pensasse em
confiar a particulares a custódia da autoridade pública. Assim, os chefes e os
legisladores só teriam aparecido após a associação dos homens em sociedade
e após o aparecimento das leis.
A criação da sociedade e do Estado, portanto, transformaram o
homem. Para Rousseau, o transformou para pior, uma vez que no estado de
natureza o homem é livre e vive conforme a criação. Em sociedade e sob o
jugo do Estado, não somos naturais: somos o que podemos ser, mas somos
artificiais e distantes do plano original da criação.
Se a propriedade é a base de todos os males existentes desde a
criação da sociedade, Rousseau não pressupõe a sua destruição, mas uma
sociedade em que todos sejam proprietários privados de meios de produção.
Ou seja, uma sociedade em que não haja patrões e empregados, mas onde
todos sejam donos de um pequeno negócio sem exploração da força de
trabalho de outrem. Somente assim teríamos uma democracia de verdade.
Trata-se de uma utopia. Independente de qualquer divergência que posamos
ter com sua obra, trata-se de um sintoma de insatisfação dele mesmo – e de
todos aqueles que ele possa ter representado – com a sociedade de seu
tempo. Toda utopia tem um caráter não só de proposta, mas também de
denúncia.
Leia
o
texto
na
íntegra
por
meio
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000053.pdf
do
Caso
link
tenha
escolher uma parte apenas, dê prioridade para as páginas 12 a 14 e 29 a 33.
Boa leitura!
Se Rousseau foi um filósofo que marcou o século XVIII, no século
seguinte Karl Marx foi quem fez diferença na Filosofia. Seu doutorado,
inclusive, é nesse campo do conhecimento. Entre muitas questões sobre as
quais se debruçou, Marx estudou profundamente a sociedade capitalista e o
homem, como ser social, nesse ambiente. Uma obra que escreveu em parceria
com seu amigo e interlocutor, Friedrich Engels, que você leu no módulo 2, tem
um título sugestivo: Manifesto do Partido Comunista. Na verdade, não havia
partido político com essa denominação no século XIX. O título se refere à
exposição do que significa ser comunista num contexto em que a burguesia
europeia procurava desqualificar esse movimento, que não foi criado pelos
autores, mas pelos trabalhadores urbanos – o proletariado. Nessa obra, para
além de uma exposição do que consiste ser comunista no início do século XIX,
os autores explicitam a origem da exploração dos homens sobre os homens na
sociedade capitalista. Servem-se, portanto, de autores como Rousseau, mas
vão além dele e trazem importantes reflexões sobre esse tema.
A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a
história das lutas de classes.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação
e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição,
têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que
terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade
inteira, ou pela destruição das duas classes em luta.
Para Marx e Engels, as transformações que ocorrem na História
são provocadas pelos homens, porém, são os homens que vivem em
sociedade e se enfrentam em lutas sociais. Enquanto alguns homens lutam
para manter e, se puderem, aumentar a exploração sobre os outros, os
explorados lutam para diminuir e, no limite, acabar com a exploração que lhes
pesa sobre os ombros. Nesse embate conflituoso, a sociedade como um todo
sofre algum tipo de mudança, mesmo que pequena. Quando as lutas de
classes atingem um grau de envolvimento e participação social radical, as
transformações são equivalentes e proporcionais a essa radicalidade, daí as
grandes mudanças, como por exemplo, fim da escravidão, troca de regime
político, queda de governos etc.
A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal,
não aboliu os antagonismos de classe. Não fez senão substituir novas classes,
novas condições de opressão, novas formas de luta às que existiram no
passado.
Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter
simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais
em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente
opostas: a burguesia e o proletariado.
Como afirmado na página anterior, na sociedade contemporânea,
capitalista, as classes fundamentais são a burguesia e o proletariado, ou, em
outras palavras, a classe proprietária dos meios de produção e que explora a
força de trabalho dos trabalhadores é a burguesia, e o conjunto dos
trabalhadores é conhecido como proletariado.
Para que você tenha condições de refletir com mais profundidade
sobre esse tema e essas teses, leia o texto na íntegra no link
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000042.pdf Se tiver que
selecionar uma parte apenas para leitura, dê preferência às páginas 1 a 8.
Outro texto de Karl Marx sobre esse tema, tem um título que
merece esclarecimento: A Questão Judaica. Como sabemos, os judeus foram
perseguidos, estigmatizados e marginalizados em muitos países e em muitos
momentos da história. Na primeira metade do século XIX, na Alemanha,
quando essa discussão foi levantada – a libertação dos judeus de todos esses
estigmas -, Marx escreveu esse texto na tentativa de mostrar que no Estado
capitalista, mesmo se não fossem perseguidos, os judeus ainda assim não
estariam livres, como, aliás, todas as outras minorias, uma vez que há uma
dominação maior que paira sobre todos.
Dentre os autores que temos estudado, Marx certamente é o que
rompe com a tradição de pensar-se a liberdade humana dentro dos limites do
Estado e das instituições. Ou seja: a liberdade humana não se efetiva por meio
de leis.
A Política, como forma específica de ideologia, é dirigida a toda a
sociedade, e tem como função, em última instância, a manutenção ou a
destruição da ordem existente. A ideologia, em Marx, é o conjunto das
respostas que o homem deu até hoje às questões por ele próprio colocadas; é
toda a bagagem cultural humana que em dado momento exerceu uma função
social, que, no extremo, serviu para conservar ou para transformar o real.
Com relação à Política, ainda, em Marx ela possui uma
determinação negativa. Não é raro encontrarmos afirmações a respeito de
Marx como defensor do Estado e da prática política, o que contraria, em nossa
perspectiva, a sua obra.
Diferentemente de outros autores, como Hobbes, Locke e Hegel,
entre outros, Marx tem uma visão crítica do Estado, e tanto este como a política
são para ele fenômenos histórico-sociais, ou seja, são criações humanas, e
que, assim, podem e devem – de acordo com a vontade humana –
desaparecer. Dessa forma, Estado e política não são eternos, sagrados ou
inerentes à condição humana.
Marx, no século XIX, rompe com a tradição que vinha desde os
gregos de ter uma concepção positiva de política. Aristóteles (384 – 322 a.C.)
diz:
“Ora, como a política utiliza as demais ciências
e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não
devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as
das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano.
Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o
indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo
maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar.
Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo
só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou
para as cidades-Estados. Tais são, por conseguinte, os fins
visados pela nossa investigação, pois que isso pertence à
ciência política numa das acepções do termo.”1
A política, assim, é vista como um alto grau de humanidade, onde
o máximo de consciência possível é a consciência política.
Na primeira metade do século XIX, Marx dialoga – criticando –
com autores que, a exemplo de Aristóteles e dos filósofos modernos, tinham
uma concepção positiva da política e, assim, propunham a modernização do
Estado prussiano – alemão - a partir do seu afastamento da religião. Entendiase que se Estado e religião fossem separados, os judeus seriam mais livres,
pois não haveria mais a perseguição que sofriam. Em Hegel, talvez o maior
pensador do Estado burguês e dessa concepção de política, o Estado é
racional e universal, dirimindo os interesses divergentes no seio da sociedade
civil através da emancipação política, ou seja, tornando o homem um cidadão,
o que vale dizer, estendendo-lhe a igualdade política e jurídica. Assim, o
Estado hegeliano abole as diferenças de um homem abstrato (o cidadão),
porém, no seio da sociedade civil, as diferenças e os conflitos permanecem.
A
concepção
positiva
da
política
visa,
tão
somente,
o
aperfeiçoamento do Estado e de suas instituições, porém, a emancipação
política que defende para o homem não é senão uma emancipação parcial,
1
ARISTÓTELE“. Éti a a Ni ô a o , i Os Pe sadores. “ão Paulo: A ril Cultural, 97 , pp.
e 250.
9
diferente da emancipação humana. Para Hegel, o Estado funda a forma social,
daí o Estado realizar o homem.
Em Marx, o Estado é produto da forma social, e a superação do
homem se dá por ação do próprio homem. O Estado – e a política – é uma
representação do homem; não é possível entender o homem pelas suas
representações, mas pelo que o homem é.
Finalizando, na obra em referência, A Questão Judaica, Marx
amplia a reflexão feita acerca da emancipação dos judeus na Alemanha,
mostrando que a religião, seja judaica, cristã ou qualquer outra, representa
uma mediação, assim como o Estado, a propriedade ou mesmo a política,
outras mediações para a liberdade humana. Assim, dentro desses limites –
religião, Estado, política e propriedade -, o que o homem consegue não é a
liberdade, mas liberdade religiosa, liberdade de propriedade e assim por diante.
A essa liberdade burguesa, opõe-se a emancipação humana, que requer a
destruição da religião, do Estado, da política e da propriedade. Sem isso,
mesmo a emancipação judaica é frágil e burguesa, portanto, limitada.
Reparou que podemos falar em liberdade segundo várias
dimensões? O que os autores aqui propõem, principalmente Marx, é que a
liberdade não seja buscada apenas em uma ou outra dimensão, mas na sua
inteireza, pois seremos, assim, livres por completo. Utopia? Talvez, mas, como
vimos antes, a utopia é uma forma de nos rebelarmos com a incompletude do
mundo.
Módulo 5 – Ética, ecologia e direitos humanos
De alguma forma, os três temas deste módulo encontram-se
imbricados. É relativamente fácil estabelecer relações entre ética, ecologia e
direitos humanos. Para começar, vejamos em que consiste a ética. O homem é
o único animal que possui ética, ou seja, consegue discernir entre o certo e o
errado. A moral, por sua vez, está relacionada aos costumes que possuímos,
podendo ser alterada de época em época e de sociedade em sociedade.
Exemplo: até o século XIX, no Brasil, não era considerado imoral alguém que
tivesse escravos. Hoje, no mesmo lugar, mas em outra época, temos que
nossa moral condena essa prática. Na mesma época, por outro lado, podemos
uma moral numa sociedade que se contrapõe a outra em outro lugar. Exemplo:
compare os costumes em nossa sociedade ocidental e numa sociedade
oriental. Pense, por exemplo, no papel das mulheres em ambas. Você verá que
há uma moral por aqui que condena o papel destinado às mulheres por lá, e
vice-versa. Não há, nesse sentido, uma moral superior à outra, como também
não há uma sociedade inferior à outra.
A ética, nesse sentido, é uma reflexão que podemos – e devemos
– fazer sobre a moral, refletindo sobre o que é certo e o que é errado. É com
base nesse tipo de pensamento e de reflexão que é possível colocar em xeque
nossos valores e mudá-los com o tempo e com as nossas necessidades. Ainda
bem, não é mesmo?
Um autor que refletiu sobre essas questões foi Friedrich
Nietzsche. Alemão do século XIX, esse autor pensou dialeticamente a ética e a
moral, nos colocando algumas provocações intelectuais. Não se preocupe que
não vou me estender muito. Apresentarei brevemente algumas de suas teses
sobre esse assunto. Quando quiser e puder, leia mais desse autor e sobre ele
também. Citarei algumas obras que não serão indicadas para leitura, mas
apenas apontadas, como disse, visando um interesse futuro de sua parte.
A principal preocupação do autor, poderíamos afirmar, não
apenas nesta, mas em toda a sua obra, refere-se aos valores morais. Em Para
Além de Bem e Mal, de 1886, e Para a Genealogia da Moral, de 1887,
Nietzsche estuda como surgem os valores, e, em especial, os valores morais.
Os valores não são eternos, não foram dados por Deus ao homem, mas, antes,
são “humanos, demasiado humanos”. Foram criados pelos homens a partir de
avaliações, e elas próprias merecem ser avaliadas, a fim de que haja a
“transvaloração de todos os valores”.
Estudando antigas sociedades, o autor chega à conclusão de que
existem dois tipos fundamentais de moral: “Há moral de senhores e moral de
escravos”, afirma Nietzsche no parágrafo 260 de Para Além de Bem e Mal.
Quem concebe primeiro a ideia de “mau” é o fraco, o ressentido, o escravo,
que atribui essa ideia aos fortes, corajosos, nobres. Dessa forma, a antítese o
leva ao “bom”, que é ele mesmo. Por sua vez, o forte concebe o princípio
“bom”, que atribui primeiro a si, e, por contraste, a ideia de “ruim”, que
endereça ao fraco e pobre. Essa ideia de “ruim’, para o forte, é uma ideia
secundária, ao passo que para o fraco, a ideia original, primeira, criadora de
sua moral, é a de “mau”“.
Depreende-se que o valor “bom” para nobres e escravos é
diferente, porque fundado em perspectivas distintas. Para o autor, o ressentido
quer transformar sua fraqueza em força. Daí exaltá-la como virtude. A
impotência vira bondade, a fraqueza, humildade, a submissão, obediência, a
covardia, paciência, o não poder vingar-se vira perdão e assim por diante. O
fraco cria até outro mundo para justificar a sua impotência diante deste. Deus
surge como fruto do ódio e desejo de vingança. Esse ressentimento nem pode
ser confundido com reação, pois é justamente a não possibilidade de reação
que engendra o ressentimento.
Os valores morais, assim, não existem desde sempre, mas são
históricos, possuem uma origem, e ela é humana. Para Nietzsche, há uma
relação estreita entre costumes e moralidade. A tradição ajuda a consolidar
ideias, maneiras de agir e pensar, e, no limite, não aceitará questionamentos,
tornando-se imoral aquele que não se submeter a esses valores. Daí que
decorreria a ideia de homem respeitável aquele que tem residência fixa,
trabalho estável, opiniões perenes etc.
Se, paralelo a esse questionamento acerca dos valores,
agregarmos outra concepção do filósofo, a ideia de luta, tomaríamos mais
espaço, mas entenderíamos porque sua obra foi apropriada por pessoas tão
díspares, como anarquistas e nazistas. Como em Heráclito, onde os opostos
estão em guerra permanente, num movimento de construção e destruição, em
Nietzsche o forte desafia o outro, porém não para exterminar, mas para
dominar. Este último ponto foi abolido pelos nazistas. Os anarquistas vão usálo, na medida em que Nietzsche recusa a ideia de que os valores sejam
oriundos de alguma divindade, fora do mundo. Assim, o questionamento da
sociedade burguesa fica facilitado, entendendo-se as diferenças sociais e a
opressão como criadas pelo próprio homem, sem fundamentação divina,
portanto. Já os nazistas, apropriando-se da ideia de luta, farão com que o
extermínio dos judeus pareça uma coisa natural, uma vez que o próprio autor
vê na força uma ausência de intencionalidade: a ela não é facultado não se
exercer, é natural que seja exercida, mesmo sem objetivos a atingir, ela se
exerce como vontade de potência. Afirma Nietzsche no parágrafo 259 de Para
Além de Bem e Mal :
“Viver é essencialmente apropriação, violação,
dominação do que é estrangeiro e mais fraco,
opressão, dureza, imposição da própria forma,
incorporação e, pelo menos, no mais clemente
dos casos, exploração.”
Para Nietzsche, tudo que há no mundo deve ser questionado, e o
homem que, questionando, afasta-se dos valores, crenças e certezas, conjuga
sua condição humana com a liberdade. Em A Gaia Ciência, parágrafo 347, ele
afirma:
... seria pe sável u prazer e força da autodeter i ação, u a li erdade da vo tade, e
que um espírito se despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele
está, em poder manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos
dançar ainda. Um tal espírito seria o espírito livre par excellence.
Em nossa época ganha amplitude e cada vez mais importância a
questão do meio ambiente. Ecologia não é mais somente um campo de estudo
de aficionados pela natureza. É em meio à sociedade capitalista, marcada pelo
consumo desvairado e pela produção em grande escala de objetos supérfluos
que o meio ambiente, nosso habitat, encontra-se ameaçado, uma vez que
consumimos desvairadamente recursos naturais que podem nos faltar – em
algumas partes do planeta já escassos e extintos – num futuro próximo.
Leonardo Boff é um frei católico que se doutorou em filosofia.
Além de muitos livros, esse autor produziu artigos que estão disponíveis para
consulta pública. Dentre eles, destaca-se o que vamos abordar agora,
relacionando a ecologia e a sociedade humana, uma vez que é necessário,
para ele, colocar o ser humano no centro desse debate. Vejamos um extrato de
seu texto:
O grande desafio vem da pobreza e da miséria. Esses são nossos principais
problemas ecológicos e não o mico-leão dourado, o urso panda da China e as
baleias do Atlântico Norte.
Digamos logo de saída: pobreza e miséria são questões sociais e não naturais
e fatais. Elas são produzidas pela forma como se organiza a sociedade. Hoje
temos consciência de que o social é parte do ecológico no seu sentido amplo e
verdadeiro. Ecologia tem a ver com as relações de tudo com tudo em todas as
dimensões. Tudo está interligado. Não há compartimentos fechados, o
ambiental de um lado, o social de outro etc. A ecologia social pretende estudar
as conexões que as sociedades estabelecem entre seus membros e as
instituições e todos eles para com a natureza envolvente.
Antes de mais nada cumpre enfatizar:
- Não basta, em ecologia, o conservacionismo: conservar as espécies em
extinção, como se a ecologia se restringisse somente a um setor da natureza,
aquele biótico ameaçado. Hoje todo o planeta deve ser conservado, porque
todo ele está ameaçado.
- Não basta o preservacionismo: preservar, por reservas ou parques naturais,
regiões onde se conserva o equilíbrio ambiental. Isso propicia apenas o turismo
ecológico e induziria a um comportamento reducionista; somente nestas
reservas o ser humano teria um comportamento de respeito e veneração, em
outros lugares obedeceria a lógica da devastação.
- Não basta o ambientalismo, como se a ecologia tivesse apenas a ver com
ambiente natural, com o verde, as águas e o ar. Esta perspectiva pode ser até
anti-humanista, segundo a qual, o ambiente é melhor sem o homem/mulher.
Estes seriam antes o satã da terra do que o anjo bom e protetor. Diz-se: onde o
ser humano anuncia sua presença revela agressão e apropriação egoísta dos
bens da terra. Essa visão ambientalista é encontrada em muitos países no
hemisfério norte. Depois de haverem dominado política e economicamente o
mundo, o querem, purificado, somente para si. A realidade é que o ser humano
faz parte do meio-ambiente. Ele é um ser da natureza com capacidade de
modificar a natureza e a si mesmo e assim fazer cultura; ele pode agir com a
natureza expandindo-a, bem como contra a natureza agredindo-a. Devemos
estar atentos a um ambientalismo político que esconde por detrás de seus
projetos, uma atitude de permanente violação ecológica. Este ambientalismo
político quer uma harmonia entre sociedade e ambiente. Mas esta harmonia
visa desenvolver técnicas para saquear o ambiente natural com a menor
alteração possível do habitat humano. Perdura nesta visão a ideia de saquear a
terra, de que o ser humano deve dominar a natureza; então mais que uma
harmonia permanente, se quer, na verdade, uma trégua, para a natureza se
refazer das chagas, para em seguida continuar a ser devastada. O que
importa, hoje, é ultrapassar o paradigma da modernidade, devastador e
energívoro e desenvolver uma nova aliança ser humano-natureza, aliança que
os faz a ambos aliados no equilíbrio, na conservação, no desenvolvimento e na
garantia de um destino e futuro comum.
- Não basta a ecologia humana que se ocupa com as ações e reações do ser
humano universal, relacionado com o meio-ambiente. Ela é importante, porque
trabalha as categorias mentais (ecologia mental) que faz com que o ser
humano singular seja mais ou menos benevolente ou mais ou menos
agressivo. Mas é ainda uma visão idealista, pois o ser humano não vive no
geral mas nas malhas de relações sociais. As próprias predisposições mentais
e psíquicas possuem uma característica eminentemente social. Por isso
precisamos de uma adequada ecologia social que saiba articular a justiça
social com a justiça ecológica. É dentro da ecologia social que os temas da
pobreza e da miséria devem ser discutidos. Pobreza e miséria são questões
eco-sociais que devem encontrar uma solução eco-social.
Repare que o autor faz afirmações importantes. Para além da
ecologia ambiental, há a ecologia social, que é tão ou mais importante que a
primeira. Em sociedade, temos um ser que padece pela desigualdade social
que se aprofunda e conforma-se como um abismo, separando dois mundos:
um, com uma parte seleta da humanidade que dispõe e usufrui do que o
planeta oferece em termos de recursos e conforto; outra, imensa, que trabalha
e vive precariamente sem o suficiente para potencializar sua humanidade no
ambiente social. Ecologia e miséria, portanto, se relacionam e precisam ser
enfrentadas, debatidas, a fim de que possamos dar resposta também a essa
questão.
O texto em questão de Leonardo Boff tem poucas páginas e pode
ser acessado no link http://www.leonardoboff.com/site/vista/outros/ecologiasocial.htm
Leia-o e relacione com os conceitos de ética e de moral que
trabalhamos anteriormente. Aproveite e estabeleça elos, também, com os
direitos humanos, cuja declaração universal encontra-se logo abaixo, retirada
do link http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)
da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948
Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da
paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos
bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que
os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do
temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito,
para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a
opressão,
Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as
nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos
humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos
dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores
condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em
cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades
fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mis alta
importância para o pleno cumprimento desse compromisso,
A Assembleia Geral proclama
A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido
por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da
sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, através do ensino e da
educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas
progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua
observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto
entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.
Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão
e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
Artigo II
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição.
Artigo III
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos
serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.
Artigo VI
a lei.
Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante
Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da
lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente
Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Artigo VIII
Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo
para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição
ou pela lei.
Artigo IX
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo X
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de
um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento
de qualquer acusação criminal contra ele.
Artigo XI
1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até
que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no
qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não
constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena
mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
Artigo XII
Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na
sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à
proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Artigo XIII
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de
cada Estado.
2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este
regressar.
Artigo XIV
1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em
outros países.
2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por
crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas.
Artigo XV
1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar
de nacionalidade.
Artigo XVI
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer retrição de raça, nacionalidade
ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos
em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
Artigo XVII
1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo XVIII
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito
inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou
crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em
público ou em particular.
Artigo XIX
Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade
de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por
quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XX
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Artigo XXI
1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por
intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa
em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo
equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo XXII
Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização,
pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e
recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua
dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Artigo XXIII
1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e
favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual
trabalho.
3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe
assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a
que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus
interesses.
Artigo XXIV
Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de
trabalho e férias periódicas remuneradas.
Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família
saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu
controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as
crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
Artigo XXVI
1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus
elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnicoprofissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade
humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades
fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as
nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol
da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito n escolha do gênero de instrução que será ministrada
a seus filhos.
Artigo XXVII
1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de
fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.
2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de
qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
Artigo XVIII
Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e
liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.
Artigo XXIV
1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno
desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às
limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido
reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas
exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos
contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.
Artigo XXX
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o
reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade
ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui
estabelecidos.
Lendo atentamente o texto da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, é perceptível que alguns direitos são flagrantemente desrespeitados.
Você saberia indicar quais? Pense e anote em seu caderno. Outra coisa: para
além desses, qual(is) direito(s) você entende que deva(m) ser adicionado(s) à
essa carta? Por que?
Agora, juntando a ética, a ecologia e os direitos humanos, leia a
entrevista concedida pelo filósofo Renato Janine Ribeiro. São poucas páginas e
está
disponível
no
link
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-
32832003000100015&script=sci_arttext
Gostou da leitura? Procure responder a questão abaixo, como
forma a exercitar essa reflexão.
Interessante a relação entre ética, ecologia e direitos humanos,
não? Aos poucos, vá relacionando os outros temas que estudamos em
módulos anteriores. Como disse Edgar Morin, você verá que todos eles estão
presentes em conjunto. Nós só os separamos por uma questão didática, para
facilitar o entendimento. Não podemos, no entanto, esquecer de pensá-los
como integrantes de um todo, que somos nós mesmos e o mundo.
Parabéns pela conclusão de mais uma etapa! Vamos ao sexto e
último módulo.
Módulo 6 – Estética: o belo e o humano
Neste sexto e último módulo da disciplina de Filosofia, vamos
tratar de um tema sobre o qual os filósofos mais antigos devotaram atenção, e
que até hoje marca nossa sociedade. Um dos temas estudados pelos filósofos,
desde os antigos até os contemporâneos é a estética, a ideia de beleza que
temos das coisas, dos lugares e das pessoas.
Estamos numa sociedade em que a beleza é responsável por
uma variedade de programas de televisão, de seções em jornais, de
publicações especializadas e, como não podia deixar de ser, um dos setores
da economia que não conhece crise econômica é exatamente o que lida com
produtos de beleza. Observe em sua paisagem cotidiana: temos mais livrarias,
bibliotecas, escolas ou casas – salões – de beleza?
A beleza, como também a moral – estudada em módulo anterior –
é mutável, construída social e historicamente. Muda de época para época e de
lugar para lugar. Não há um padrão estético em todo o globo.
Houve regimes que tentaram fundar o belo no meio social. O
nazismo, por exemplo, tinha um ideal de beleza. Infelizmente, o conceito
levantado e defendido excluía parcelas consideráveis da sociedade alemã, o
que levou, junto a outras razões de ordem política, social e econômica, aos
campos de concentração e ao extermínio de milhões.
Há de se atentar, no entanto, para esse tema como algo implícito
na natureza humana. A beleza é uma dimensão essencialmente humana.
Na Grécia Antiga, a beleza tinha uma importância grande, daí,
inclusive, ainda hoje apreciarmos as obras, físicas e literárias, que os gregos
nos legaram. Um dos autores que abordaram essa questão foi Platão. Este
autor escreveu em forma de diálogos, daí que o conjunto das suas obras é
conhecido, exatamente com esse nome, Diálogos. Num deles, intitulado
Banquete, Platão descreve vários temas em um só. Eu explico. Apesar do título
se aparentar mais com uma obra gastronômica, os pensadores na Grécia
costumavam se reunir para filosofar, ou seja, para especular sobre o mundo e
sobre os homens – quem somos, de onde viemos, para onde vamos etc – em
jantares regados a muita comida e vinho. Enquanto se deliciavam com as
iguarias e com os debates, a escravaria trabalhava pesado para que eles
tivessem tudo à mão para satisfazer a gula. Foi num desses encontros que,
segundo Platão, os filósofos decidiram refletir e responder de onde vem o
amor. Abordando questões como a paixão, o amor, os deuses, a natureza
humana e a beleza, os filósofos responderam à questão colocada de forma a
tentar dar sentido a esse sentimento tão nobre. Dentre todas as especulações
feitas, destaco a de Aristófanes, filósofo grego que explicou de forma peculiar
porque as pessoas se atraem. Reproduzo abaixo a parte do livro em que
Aristófanes responde à questão daquele Banquete, e deixo entre aspas e com
a letra diminuta a longa e bela citação retirada do livro de Platão:
“- Não começarás primeiro o teu discurso, disse Aristófanes; que eu por mim é
o que farei. Disse então Erixímaco: “Parece-me em verdade ser necessário, uma vez que
Pausânias, apesar de se ter lançado bem ao seu discurso, não o rematou convenientemente,
que eu deva tentar pôr-lhe um remate. Com efeito, quanto a ser duplo o Amor, parece-me que
foi uma bela distinção; que, porém, não está ele apenas nas almas dos homens, e para com os
belos jovens, mas também nas outras partes, e para com muitos outros objetos, nos corpos de
todos os outros animais, nas plantas da terra e por assim dizer em todos os seres é o que creio
ter constatado pela prática da medicina, a nossa arte; grande e admirável é o deus, e a tudo se
estende ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas. Ora, eu começarei
pela medicina a minha fala, a fim de que também homenageemos a arte. A natureza dos
corpos, com efeito, comporta esse duplo Amor; o sadio e o mórbido são cada um
reconhecidamente um estado diverso e dessemelhante, e o dessemelhante deseja e ama o
dessemelhante. Um portanto é o amor no que é sadio, e outro no que é mórbido. E então,
assim como há pouco Pausânias dizia que aos homens bons é belo aquiescer, e aos
intemperantes é feio, também nos próprios corpos, aos elementos bons de cada corpo e sadios
é belo o aquiescer e se deve, e a isso é que se o nome de medicina, enquanto que aos maus e
mórbidos é feio e se deve contrariar, se se vai ser um técnico. É com efeito a medicina, para
falar em resumo, a ciência dos fenômenos de amor, próprios ao corpo, no que se refere à
repleção e à evacuação, e o que nestes fenômenos reconhece o belo amor e o feio é o melhor
médico; igualmente, aquele que faz com que eles se transformem, de modo a que se adquira
um em vez do outro, e que sabe tanto suscitar amor onde não há mas deve haver, como
eliminar quando há, seria um bom profissional. É de fato preciso ser capaz de fazer com que os
elementos mais hostis no corpo fiquem amigos e se amem mutuamente. Ora, os mais hostis
são os mais opostos, como o frio ao quente, o amargo ao doce, o seco ao úmido, e todas as
coisas desse tipo; foi por ter entre elas suscitado amor e concórdia que o nosso ancestral
Asclépio, como dizem estes poetas aqui e eu acredito, constituiu a nossa arte. A medicina
portanto, como estou dizendo, é toda ela dirigida nos traços deste deus, assim como também a
ginástica e a agricultura; e quanto à música, é a todos evidente, por pouco que se lhe preste
atenção, que ela se comporta segundo esses mesmos princípios, como provavelmente parece
querer dizer Heráclito, que aliás em sua expressão não é feliz. O um, diz ele com efeito,
“discordando em si mesmo, consigo mesmo concorda, como numa harmonia de arco e lira”.
Ora, é grande absurdo dizer que uma harmonia está discordando ou resulta do que ainda está
discordando. Mas talvez o que ele queria dizer era o seguinte, que do agudo e do grave, antes
discordantes e posteriormente combinados, ela resultou, graças à arte musical. Pois não é sem
dúvida do agudo e do grave ainda em discordância que pode resultar a harmonia; a harmonia é
consonância, consonância é uma certa combinação — e combinação de discordantes,
enquanto discordam, é impossível, e inversamente o que discorda e não combina é impossível
harmonizar —assim como também o ritmo, que resulta do rápido e do certo, antes dissociados
e depois combinados. A combinação em todos esses casos, assim como lá foi a medicina, aqui
é a música que estabelece, suscitando amor e concórdia entre uns e outros; e assim, também
a música, no tocante à harmonia e ao ritmo, é ciência dos fenômenos amorosos. Aliás, na
própria constituição de uma harmonia e de um ritmo não é nada difícil reconhecer os sinais do
amor, nem de algum modo há então o duplo amor; quando porém for preciso utilizar para o
homem uma harmonia ou um ritmo, ou fazendo-os, o que chamam composição, ou usando
corretamente da melodia e dos metros já constituídos, o que se chamou educação, então é que
é difícil e que se requer um bom profissional. Pois de novo revém a mesma idéia, que aos
homens moderados, e para que mais moderados se tornem os que ainda não sejam, deve-se
aquiescer e conservar o seu amor, que é o belo, o celestial, o Amor da musa Urânia; o outro, o
de Polímnia, é o popular, que com precaução se deve trazer àqueles a quem se traz, a fim de
que se colha o seu prazer sem que nenhuma intemperança ele suscite, tal como em nossa arte
é uma importante tarefa o servir-se convenientemente dos apetites da arte culinária, de modo a
que sem doença se colha o seu prazer. Tanto na música então, como na medicina e em todas
as outras artes, humanas e divinas, na medida do possível, deve-se conservar um e outro
amor; ambos com efeito nelas se encontram. De fato, até a constituição das estações do ano
está repleta desses dois amores, e quando se tomam de um moderado amor um pelo outro os
contrários de que há pouco eu falava, o quente e o frio, o seco e o úmido, e adquirem uma
harmonia e uma mistura razoável, chegam trazendo bonança e saúde aos homens, aos outros
animais e às plantas, e nenhuma ofensa fazem; quando porém é o Amor casado com a
violência que se torna mais forte nas estações do ano, muitos estragos ele faz, e ofensas.
Tanto as pestes, com efeito, costumam resultar de tais causas, como também muitas e várias
doenças nos animais como nas plantas; geadas, granizos e alforras resultam, com efeito, do
excesso e da intemperança mútua de tais manifestações do amor, cujo conhecimento nas
translações dos astros e nas estações do ano chama-se astronomia. E ainda mais, não só
todos os sacrifícios, como também os casos a que preside a arte divinatória — e estes são os
que constituem o comércio recíproco dos deuses e dos homens — sobre nada mais versam
senão sobre a conservação e a cura do Amor. Toda impiedade, com efeito, costuma advir, se
ao Amor moderado não se aquiesce nem se lhe tributa honra e respeito em toda ação, e sim
ao outro, tanto no tocante aos pais, vivos e mortos, quanto aos deuses; e foi nisso que se
assinou à arte divinatória o exame dos amores e sua cura, e assim é que por sua vez é a arte
divinatória produtora de amizade entre deuses e homens, graças ao conhecimento de todas as
manifestações de amor que, entre os homens, se orientam para a justiça divina e a piedade.
Assim, múltiplo e grande, ou melhor, universal é o poder que em geral tem todo
o Amor, mas aquele que em torno do que é bom se consuma com sabedoria e justiça, entre
nós como entre os deuses, é o que tem o máximo poder e toda felicidade nos prepara, pondonos em condições de não só entre nós mantermos convívio e amizade, como também com os
que são mais poderosos que nós, os deuses. Em conclusão, talvez também eu, louvando o
Amor, muita coisa estou deixando de lado, não todavia por minha vontade.
Mas se algo omiti, é tua tarefa, ó Aristófanes, completar; ou se um outro modo
tens em mente de elogiar o deus, elogia-o, uma vez que o teu soluço já o fizeste cessar.”
Tendo então tomado a palavra, continuou Aristodemo, disse Aristófanes: - Bem
que cessou! Não todavia, é verdade, antes de lhe ter eu aplicado o espirro, a ponto de me
admirar que a boa ordem do corpo requeira tais ruídos e comichões como é o espirro; pois logo
o soluço parou, quando lhe apliquei o espirro.
E Erixímaco lhe disse: - Meu bom Aristófanes, vê o que fazes. Estás a fazer
graça, quando vais falar, e me forças a vigiar o teu discurso, se porventura vais dizer algo
risível, quando te é permitido falar em paz.
Aristófanes riu e retomou: - Tens razão, Erixímaco! Fique-me o dito pelo não
dito. Mas não me vigies, que eu receio, a respeito do que vai ser dito, que seja não engraçado
o que vou dizer - pois isso seria proveitoso e próprio da nossa musa - mas ridículo.
- Pois sim! - disse o outro - lançada a tua seta, Aristófanes, pensas em fugir;
mas toma cuidado e fala como se fosses prestar contas. Talvez todavia, se bem me parecer,
eu te largarei.
“Na verdade, Erixímaco, disse Aristófanes, é de outro modo que tenho a
intenção de falar, diferente do teu e do de Pausânias. Com efeito, parece-me os homens
absolutamente não terem percebido o poder do amor, que se o percebessem, os maiores
templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe fariam, não como agora que
nada disso há em sua honra, quando mais que tudo deve haver. É ele com efeito o deus mais
amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a
maior felicidade para o gênero humano. Tentarei eu portanto iniciar-vos em seu poder, e vós o
ensinareis aos outros. Mas é preciso primeiro aprenderdes a natureza humana e as suas
vicissitudes. Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas
diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o
masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual
resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na
forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais
é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso
redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos,
dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois
rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como
desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em
qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida,
como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo,
apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis
por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era
descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua
tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem
semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma
grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de
Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para
investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que
se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los
como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça - pois as honras e os templos que lhes
vinham dos homens desapareceriam — nem permitir-lhes que continuassem na impiedade.
Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens
possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito,
continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e
também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos,
sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo,
disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.” Logo
que o disse pôs-se a contar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a
conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo
voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a
própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava
curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se
chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a
firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele
se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros
quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão
à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição. Por conseguinte,
desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a
ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se
confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do
outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e
com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher - o que agora
chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de
compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente - pois até então
eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as
cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a
geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um
homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a
raça, mas se fosse um homem com um homem, que pelo menos houvesse saciedade em seu
convívio e pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar- se do resto da vida. E então de há
tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa
antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana. Cada
um de nós portanto é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os
linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento. Por
conseguinte, todos os homens que são um corte do tipo comum, o que então se chamava
andrógino, gostam de mulheres, e a maioria dos adultérios provém deste tipo, assim como
também todas as mulheres que gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm.
Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirige muito sua atenção aos homens,
mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo. E todos os que
são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são crianças, como cortículos do
macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar,
e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural mais corajoso. Dizem alguns, é
verdade, que eles são despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor que fazem
isso, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante.
Uma prova disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para
a política, os que são desse tipo. E quando se tornam homens, são os jovens que eles amam,
e a casamentos e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção, embora por lei a isso
sejam forçados, mas se contentam em passar a vida um com o outro, solteiros. Assim é que,
em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do amante, porque está sempre acolhendo o que
lhe é aparentado.
Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade,
tanto o amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que
sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se
um do outro nem por um pequeno momento. E os que continuam um com o outro pela vida
afora são estes, os quais nem saberiam dizer o que querem que lhes venha da parte de um ao
outro. A ninguém com efeito pareceria que se trata de união sexual, e que é porventura em
vista disso que um gosta da companhia do outro assim com tanto interesse; ao contrário, que
uma coisa quer a alma de cada um, é evidente, a qual coisa ela não pode dizer, mas adivinha o
que quer e o indica por enigmas. Se diante deles, deitados no mesmo leito, surgisse Hefesto e
com seus instrumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, ó homens, ter um do outro?, e
se, diante do seu embaraço, de novo lhes perguntasse: Porventura é isso que desejais,
ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite nem de
dia vos separeis um do outro? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa
mesma pessoa, de modo que de dois vos tomeis um só e, enquanto viverdes, como uma só
pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em vez de dois
ser um só, mortos os dois numa morte comum; mas vede se é isso o vosso amor, e se vos
contentais se conseguirdes isso. Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só
diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que
há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só.
O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é portanto ao
desejo e procura do todo que se dá o nome de amor. Anteriormente, como estou dizendo, nós
éramos um só, e agora é que, por causa da nossa injustiça, fomos separados pelo deus, e
como o foram os árcades pelos lacedemônios; é de temer então, se não formos moderados
para com os deuses, que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os
que nas estelas estão talhados de perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se
fendem. Pois bem, em vista dessas eventualidades todo homem deve a todos exortar à
piedade para com os deuses, a fim de que evitemos uma e alcancemos a outra, na medida em
que o Amor nos dirige e comanda. Que ninguém em sua ação se lhe oponha - e se opõe todo
aquele que aos deuses se torna odioso - pois amigos do deus e com ele reconciliados
descobriremos e conseguiremos o nosso próprio amado, o que agora poucos fazem. E que não
me suspeite Erixímaco, fazendo comédia de meu discurso, que é a Pausânias e Agatão que
me estou referindo talvez também estes se encontrem no número desses e são ambos de
natureza máscula mas eu no entanto estou dizendo a respeito de todos, homens e mulheres,
que é assim que nossa raça se tornaria feliz, se plenamente realizássemos o amor, e o seu
próprio amado cada um encontrasse, tornado à sua primitiva natureza. E se isso é o melhor, é
forçoso que dos casos atuais o que mais se lhe avizinha é o melhor, e é este o conseguir um
bem amado de natureza conforme ao seu gosto; e se disso fôssemos glorificar o deus
responsável, merecidamente glorificaríamos o Amor, que agora nos é de máxima utilidade,
levando-nos ao que nos é familiar, e que para o futuro nos dá as maiores esperanças, se
formos piedosos para com os deuses, de restabelecer-nos em nossa primitiva natureza e,
depois de nos curar, fazer-nos bem aventurados e felizes.
Eis, Erixímaco, disse ele, o meu discurso sobre o Amor, diferente do teu.”
Se você leu atentamente, deve ter gostado. Repare que a obra de
Platão, escrita no século 5 a.C., serviu de inspiração para outras histórias
presentes em outras culturas. Ou então, estas tiveram uma mesma inspiração
que não a de Platão, por exemplo, a que está presente no texto do Antigo
Testamento, cuja metáfora da criação dá conta que a mulher foi retirada de
uma parte do homem. Semelhante, não?
Se gostou e pretende ler a obra na íntegra, acesse o link abaixo:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000048.pdf
Caso
queira
apenas a parte inicial, leia as páginas 1 a 16.
Para nos encaminharmos à outra parte deste módulo e deste
tema aqui tratado, vejamos como outro autor, desta vez contemporâneo,
aborda a questão da arte e da estética na educação.
Do ponto de vista da produção de significações, três são os modos de
relacionamento entre o indivíduo e o mundo. O primeiro é o modo de
relacionamento através do sensível e do qualitativo. É o modo das sensações,
emoções, qualidades. (...) O segundo modo de relacionamento entre um
indivíduo e o mundo se dá através das coisas e eventos. É o modo da ação
física do homem sobre o mundo e do mundo sobre o homem, o modo da
experiência e da experimentação. (...) Num terceiro modo, o indivíduo
relaciona-se com o mundo através de um sistema de convenções. (...) A escola
concentra todos seus esforços neste terceiro, ensaiando uma tímida
aproximação pelos domínios do segundo. Quanto ao primeiro, pouco ou nada.
Isto equivale a dizer que a escola, a rigor, adota este procedimento sui generis
que consiste em construir casas a partir do telhado.
O autor do texto “O imaginário e a pedagogia do telhado”, Teixeira
Coelho, critica a educação contemporânea ao não privilegiar o relacionamento
dos estudantes com o mundo por meio da arte. Ensina, a escola, as
convenções sociais e coletivas, daí a metáfora do título, pois as convenções
são representações do que produzimos nesse primeiro tipo de relação que
estabelecemos com o mundo. Numa explicação um pouco mais didática e
correndo o risco de ser também simplista, a escola nos ensina o que é o
mundo a partir do que está estabelecido socialmente, mas não estimula a
percepção e os sentidos do estudante com relação a como vê e sente o
mundo.
O texto de Teixeira Coelho, de cinco páginas, está disponível no link
http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/916/822
Vejamos a letra da música abaixo:
Beleza pura
Caetano Veloso
Não me amarra dinheiro não!
Mas formosura
Dinheiro não!
A pele escura
Dinheiro não!
A carne dura
Dinheiro não!...
Moça preta do Curuzu
Beleza Pura!
Federação
Beleza Pura!
Boca do rio
Beleza Pura!
Dinheiro não!...
Quando essa preta
Começa a tratar do cabelo
É de se olhar
Toda trama da trança
Transa do cabelo
Conchas do mar
Ela manda buscar
Prá botar no cabelo
Toda minúcia, toda delícia...
Não me amarra dinheiro não!
Mas elegância...
Não me amarra dinheiro não!
Mas a cultura
Dinheiro não!
A pele escura
Dinheiro não!
A carne dura
Dinheiro não!...
Moço lindo do Badauê
Beleza Pura!
Do Ilê-Aiê
Beleza Pura!
Dinheiro hié!
Beleza Pura!
Dinheiro não!...
Dentro daquele turbante
Do filho de Gandhi
É o que há
Tudo é chique demais
Tudo é muito elegante
Manda botar!
Fina palha da costa
E que tudo se trance
Todos os búzios
Todos os ócios...
Não me amarra dinheiro não!
Mas os mistérios...
Não me amarra dinheiro não!
Beleza Pura!
Dinheiro não!
Beleza Pura!
Dinheiro não!
Beleza Pura!
Dinheiro Hié!
Beleza Pura!
Ah!